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Processo n.º 1050/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A sociedade A., melhor identificada nos autos, pretendeu interpor recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra: (a) da sentença proferida em recurso de avaliação fiscal pelo 2.º Juízo do Tribunal da Comarca do Fundão em 16 de Junho de 2003, que determinou a fixação da renda do imóvel de que era arrendatária, sendo senhoria a Santa Casa da Misericórdia do Fundão, também melhor identificada nos autos; e (b) da condenação por litigância “manifestamente de má fé”, por decisão de 13 de Outubro de 2003, proferida em decisão de um pedido de esclarecimento tido por infundado e com intuitos meramente dilatórios, considerado uma “tentativa de entorpecer a acção da justiça e, mais do que isso, de protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão” (fls. 100 dos autos). No requerimento de recurso, o recorrente não se referiu a qualquer questão de constitucionalidade. Por a decisão ser irrecorrível “(art.º 15.º do DL n.º 37 201, de 21 de Agosto de
1948, na redacção introduzida pelo Decreto Regulamentar n.º 1/86, de 2 de Janeiro)”, foi tal recurso indeferido por despacho de 26 de Novembro de 2003. Tendo-se verificado que não fora até então fixado um valor para a causa, um despacho da juíza do processo, de 4 de Junho de 2004, estabeleceu-lhe “o valor equivalente ao da alçada do tribunal de comarca”, nos termos do artigo 8.º, alínea c), do Código das Custas Judiciais, valor que foi aceite pela sociedade recorrente para efeitos de liquidação da taxa de justiça. Como anteriormente fora apresentada reclamação para o Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, suscitando diversas inconstitucionalidades, veio este, por decisão de 19 de Outubro de 2004, a considerar, por um lado, que “tendo a causa um valor equivalente ao da alçada do Tribunal de Comarca, o recurso nunca seria admissível por força do disposto no art.º 678.º, n.º 1, do C.P.Civil, independentemente da existência do § único do art.º 15.º acima citado e da sua conformidade constitucional, preceito que estipula expressamente a irrecorribilidade da decisão”; e, por outro lado, afastou a possibilidade de recurso da decisão de condenação como litigante de má fé também com base no §
único do art.º 15.º do Decreto n.º 37 021, na redacção do Decreto Regulamentar n.º 1/86: por o artigo 456.º, n.º 3, do Código de Processo Civil só admitir o recurso, em um grau, das decisões condenatórias por litigância de má fé
“independentemente do valor da causa e da sua sucumbência”, entendendo que “[o]
âmbito deste preceito é o de afastar a irrecorribilidade das decisões que condenem por litigância de má fé quando a decisão, digamos, principal não seja recorrível apenas por razões de valor da causa”; ora, acrescentou, “como a decisão é irrecorrível por norma que nada tem a ver com o valor da causa, não há lugar à aplicação do art.º 456.º, n.º 3.”
2.Inconformada, a recorrente apresentou recurso para o Tribunal Constitucional sobre o “julgamento e interpretação efectuados relativamente a dois itens”:
– a inconstitucionalidade do Decreto n.º 37 021 por a Comissão de Avaliação aí prevista invadir a reserva da função jurisdicional e por a intervenção “através de diploma emitido apenas ao abrigo da competência própria do Governo” violar a reserva legislativa da Assembleia da República;
– a violação do “princípio do duplo grau de jurisdição previsto no artigo 215.º da CRP” pelo “disposto no § único do artigo 15.º da falada lei.” Por despacho de 3 de Novembro de 2004, o Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, decidiu não admitir o recurso considerando:
– que a sociedade recorrente não questionara a conformidade constitucional de um dos fundamentos da sua decisão (a aplicação do artigo 678.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), pelo que “mesmo que o recurso viesse a proceder, a decisão do Tribunal Constitucional seria inútil, pois sempre subsistiria a irrecorribilidade por força do art.º 678.º, que não é questionado”;
– que “a questão da inconstitucionalidade do citado § único já foi decidida pelo Tribunal Constitucional, por unanimidade, pelo que o recurso para de novo a suscitar é hoje manifestamente infundado.”
3.Insatisfeita, a recorrente dirigiu uma reclamação ao Presidente do Tribunal Constitucional concluindo desta forma:
“1. No presente recurso, aprecia-se se a actuação da Comissão de Avaliação invade, ou não, a reserva da função jurisdicional [que a] Constituição da República Portuguesa estabelece em favor dos tribunais.
2. Em consequência do que, se positiva, a legislação que criou tal comissão – a Lei n.º 37 021 – é inconstitucional,
3. Em especial o seu artigo 15.º in totum;
4. E, neste, destacadamente, o respectivo § único, no caso, pelo facto de violar o princípio constitucional da igualdade.” O Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra admitiu a reclamação, notando porém estar assente nos autos que “a decisão é irrecorrível” e que
“de qualquer forma, esta reclamação não é o meio idóneo para discutir tal questão. Por isso, nunca a eventual procedência do recurso que se pretende interpor para o Tribunal Constitucional teria como consequência o recebimento do recurso interposto para esta Relação.” A recorrida, notificada da reclamação apresentada, veio invocar diversa jurisprudência do Tribunal Constitucional, quer sobre a não invasão da competência dos tribunais pelo § único do artigo 15.º do Decreto n.º 37 021, na redacção do Decreto Regulamentar n.º 1/86, quer sobre a não violação, por tal norma, do duplo grau de jurisdição, concluindo assim:
“1. A actuação da Comissão de Avaliação não invade a reserva da função jurisdicional que a Constituição da República Portuguesa estabelece a favor dos tribunais.
2. O Decreto n.º 37 021, de 21 de Agosto de 1948, e o seu dispositivo são formal, orgânica e materialmente constitucionais, tal como se pronunciou o Tribunal Constitucional sobre esta questão.
3. O artigo 15.º in totum é formal, orgânica e materialmente constitucional, tal como, aliás, o Venerando Tribunal Constitucional já, exaustivamente, se pronunciou anteriormente.
4. O § único deste artigo não viola o princípio constitucional da igualdade.
5. O valor da presente causa foi fixado no equivalente ao da alçada do tribunal da comarca, i. e., 3 740,98€, tendo a reclamante, não só aceite tal fixação, não o impugnando atempadamente, como tendo efectuado o pagamento da taxa de justiça correspondente ao valor fixado, pelo que,
6. a decisão é irrecorrível, por força do disposto no artigo 678.º do CPC e
7. do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 37.021, de 21 de Agosto de 1948, na redacção introduzida pelo Decreto Regulamentar n.º 1/86, de 2 de Janeiro, da Secretaria de Estado do Orçamento e conforme, aliás, têm entendido os Tribunais Superiores.
8. A decisão que rejeitou o recurso não ofendeu quaisquer disposições legais, antes se limitou a cumprir o estipulado na Lei e corroborado já pelos diversos Acs. supra citados.
9. A decisão do Exm.º Senhor Desembargador do Tribunal da Relação de Coimbra não ofendeu qualquer disposição legal.” Também o Ministério Público, notificado da presente reclamação, a considerou
“manifestamente improcedente” porque:
«– relativamente à irrecorribilidade da decisão de mérito, proferida pelo tribunal de comarca em sede de avaliação extraordinária, a “ratio decidendi” da decisão impugnada assentou exclusivamente no valor da causa, relacionado com a alçada do tribunal de 1.ª instância – e, portanto, apenas na aplicação da norma constante do art.º 678.º, n.º 1, do CPC.
– Quanto à questão suscitada em sede de inconstitucionalidade do art. 15º, §
único, do DL n.º 37 021, em si mesmo considerado, é a mesma a considerar manifestamente infundada face à orientação formada pelo Plenário deste Tribunal no acórdão n.º 202/99 (...).» Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
4.Embora a competência para decidir as reclamações contra a não admissão ou retenção de recursos caiba, no Tribunal Constitucional, às secções em conferência (artigos 76.º, n.º 4, e 77.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro), o facto de serem dirigidas ao seu Presidente não obsta a que sejam apreciadas (cfr. v.g. acórdãos n.ºs 268/94 e 569/95, publicados, respectivamente, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vols. 27º, pp.
1157-1164, e 32º, pp. 857-862). Por outro lado, o que se faz na apreciação de uma reclamação de indeferimento do requerimento de apresentação do recurso não é apenas a reapreciação das razões apresentadas para justificar tal indeferimento, mas a verificação dos pressupostos que viabilizariam o tipo de recurso interposto, em ordem a averiguar da indevida preterição da sua apreciação (cfr. v.g. acórdãos n.ºs
490/98, 24/99 e 571/99, os dois últimos publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 11 de Março de 1999 e de 15 de Novembro de 2000, mas todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
5.Ora, tendo o recurso de constitucionalidade sido inviabilizado, em relação à primeira questão formulada pelo recorrente, por apelo a uma norma processual civil que não vem impugnada (o artigo 678.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), é manifesta a inutilidade de tal recurso, insusceptível que seria qualquer decisão nele proferida de interferir na decisão de fundo (cfr. v.g., acórdãos n.ºs 44/85, 311/85 e 275/86, publicados, respectivamente, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vols. 5.º, pp. 617-620, 6.º, pp. 559-562, e 8.º, pp.
379-382, e Victor Calvete, “Interesse e relevância da questão de constitucionalidade, instrumentalidade e utilidade do recurso de constitucionalidade – quatro faces de uma mesma moeda”, in Estudos de homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra, 2003, pp. 403-431). A isto acresce o facto de a decisão reclamada – o despacho de não admissão do recurso – não ter aplicado a norma do Decreto n.º 37021 na sua dimensão supostamente intrusiva da competência da Assembleia da República (uma vez que não chegou a ponderar do mérito do recurso), falhando, pois, logo um dos requisitos desta espécie de recurso de constitucionalidade: a aplicação, na decisão recorrida, da norma (do sentido da norma) impugnada(o) durante o processo.
6.Em relação à questão da eventual desconformidade do regime do artigo 15.º, §
único, do Decreto n.º 37 021 – que, quando conjugado com o artigo 456.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, constituiu o fundamento para não admissão do recurso da condenação por litigância de má fé –, com o princípio da igualdade e com os princípios constitucionais em matéria de duplo grau de jurisdição, pode recordar-se que o acórdão n.º 202/99, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 43.º, pp. 213-224 (decisão retomada pelo Tribunal nos acórdãos n.ºs 310/99 e 427/00, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt) se pronunciou no sentido da sua não inconstitucionalidade. Em todo o caso, mesmo a não se considerar a questão de constitucionalidade reportada a esta norma manifestamente infundada, o certo é que o Tribunal Constitucional não poderia ter tomado conhecimento do recurso de constitucionalidade, na medida em que a norma que obstou a que fosse admitido o recurso quanto à litigância de má fé não foi simplesmente aquele § único do artigo 15.º, mas antes essa norma aplicada por força de um certo entendimento do artigo 456.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (o qual dispõe que
“independentemente do valor da causa e da subumbência, é sempre admitido recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má fé”). Pode, na verdade, ler-se na decisão do Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, de que se pretendeu interpor recurso de constitucionalidade, a propósito deste artigo 456.º, n.º 3, que “há que decidir se a decisão é recorrível também por força do § único do artigo 15.º. Nesta hipótese, como a decisão é irrecorrível por norma que nada tem a ver com o valor da causa, não há lugar à aplicação do art. 456.º, n.º 3”. A inconstitucionalidade desta norma do artigo 456.º, n.º3, do Código de Processo Civil, na interpretação aplicada como fundamento – conjuntamente com o artigo
15.º, § único – para não admitir o recurso, para o Tribunal da Relação, da condenação como litigante de má fé, não foi, porém, invocada no requerimento de recurso de constitucionalidade. Como notou o Ministério Público neste Tribunal, o reclamante poderia ter invocado fosse a inconstitucionalidade desse artigo
456.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, quando articulado com o artigo 15.º,
§ único, do Decreto n.º 37 021, na medida em que tal obstou à reapreciação da condenação do recorrente como litigante de má fé: “seria viável perspectivar uma outra questão de constitucionalidade, na articulação do referido art. 15.º, §
único, com a norma constante do artigo 456.º, n.º 3, do CPC, visando apurar a conformidade ao princípio constitucional da igualdade da preclusão do segundo grau de jurisdição, nas decisões que condenem por litigância de má fé, por força do referido art. 15.º (e da respectiva sobreposição à regra específica da recorribilidade, em um grau, de tais decisões, afirmada pela lei de processo civil, ulterior à reforma de 1995/96); sucede, porém, que a entidade recorrente, no seu requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, não delineou tal questão de inconstitucionalidade normativa, que exigiria, como é óbvio, a referência à aplicação conjugada dos arts. 15.º, § único, do DL n.º 37 021 e
456.º, n.º 3, do CPC.” Esta questão, correspondente à constitucionalidade das normas aplicadas, como ratio decidendi, pela decisão recorrida, não foi, pois, formulada, no requerimento do recurso de constitucionalidade. E apenas com ela se indicaria o fundamento da decisão de não admissão do recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, quanto à condenação como litigante de má fé. Não poderia, pois, o Tribunal Constitucional tomar conhecimento de um recurso de constitucionalidade que não a tomou por objecto, e a presente reclamação tem de ser indeferida. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e condenar a reclamante em custas, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 16 de Março de 2005 Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos