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Processo n.º 399/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
A – Relatório
1 – A., melhor identificada nos autos, reclama, ao abrigo do
disposto no n.º 4 do artigo 76.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua
actual versão (LTC), para o Tribunal Constitucional do despacho que indeferiu o
recurso por si interposto para este Tribunal com fundamento na sua
inadmissibilidade.
2 – Perscrutando o teor dos autos, deles resulta que:
A ora Recorrente intentou contra “B. - Sociedade de Mediação
Imobiliária, Lda.” uma acção declarativa de condenação, sob a forma de processo
sumaríssimo, pedindo a condenação da Ré no pagamento de 3.700,00 euros, a título
de indemnização por danos não patrimoniais alegadamente sofridos em consequência
da violação das obrigações contratuais e legais decorrentes do contrato de
mediação imobiliária celebrado entre ambas.
Na audiência de julgamento de 25 de Outubro de 2004, a Autora
requereu que lhe fosse concedido “um prazo razoável a fim de poder juntar aos
presentes autos certidão narrativa de (...) declarações, pois as mesmas foram
gravadas”.
Em resposta a tal requerimento, decidiu o Tribunal que:
“Dispõe o art. 523.º, n.º 2, do C.P.C. que se os documentos
destinados a fazer prova dos fundamentos da acção não forem apresentados com o
articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados até ao encerramento
da discussão em primeira instância, sendo a parte condenada em multa, excepto se
provar que não o pode oferecer com o articulado.
Requer a Autora a concessão de um prazo razoável para juntar aos
autos a transcrição do depoimento prestado pelo Sr. C., gravado na audiência de
julgamento realizada no dia 28/10/2003.
Verifica-se, assim, que a autora já há muito poderia ter solicitado
ao tribunal o prazo agora requerido.
Assim sendo, até por se desconhecer se o documento em apreço terá ou
não relevância para a decisão da causa, pois desconhece-se quais as declarações
então proferidas, indefere-se o requerido por extemporâneo.
Custas do incidente a que deu causa a cargo da Autora, fixando-se a
respectiva taxa de justiça em ½ UC – conforme o artigo 16.º do C.C.J.”
Inconformada, a Autora requereu que ficasse consignado o seguinte:
“Considero que a interpretação do C.P.C. feita pelo tribunal colide
com o espírito e a letra desse diploma. Por conseguinte parece-me, salvo o
devido respeito, que tal interpretação da lei é inconstitucional dado que o juiz
tem o poder de averiguar a verdade para além do que é apresentado em audiência e
além disso a partir do momento em que a audiência não foi fechada as partes
podem pedir a possibilidade de apresentar novas provas até ao fecho da
audiência, se bem que condenadas em multa.
Dado que a testemunha não se recorda do depoimento posto em causa a
parte poderia ter a possibilidade de trazer a verdade ao tribunal para que assim
seja feita justiça.
Tendo em conta esta situação a Autora pretende recorrer ao Tribunal
Constitucional para a interpretação legal dos textos”.
Perante o teor do requerido, foi proferido pelo Tribunal a quo o
seguinte despacho:
“Ao abrigo do disposto no art. 75.º A, n.º 5, da Lei n.º 28/82, de
15/11, e do art. 33.º do C.P.C., convida-se a Autora a, no prazo de dez dias,
indicar a alínea do n.º 1 do art. 70.º da referida Lei n.º 28/82 ao abrigo da
qual interpôs o recurso supra referido e a norma constitucional que considera
violada, assim como para constituir mandatário, sob pena de não ser admitido ou
ficar sem seguimento o recurso em causa”.
Com mandatário constituído, a Recorrente veio “nos termos do art.
75.º A n.º 2 e ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art. 70.º da Lei do Tribunal
Constitucional, apresentar a fundamentação que sustenta o requerimento que
apresentou no âmbito da questão de constitucionalidade que foi suscitada na
audiência de discussão realizada a 25/10/2004”.
Perante tal circunstancialismo, o Tribunal decidiu “indeferir o
recurso para o Tribunal Constitucional interposto pela autora, por ser
legalmente inadmissível”, estribando-se na seguinte fundamentação:
«(...)
Veio a autora interpor recurso para o Tribunal Constitucional do despacho
proferido a fls. 97 dos autos.
Logo de seguida, o Tribunal convidou a autora a aperfeiçoar o requerimento de
interposição de recurso, indicando, para o efeito, a alínea do n.º 1 do art. 70º
da Lei nº 28/98, de 15/11, ao abrigo da qual interpôs o mesmo e a norma
constitucional que considera violada, assim como para constituir mandatário.
Ora, muito embora a autora tenha constituído mandatário, o certo é que não
apresentou requerimento a aperfeiçoar o inicialmente produzido, tendo-se
limitado a apresentar as alegações de recurso sem prévio despacho a admitir o
mesmo, legalmente inadmissíveis, por intempestivas.
Não obstante, o certo é que mesmo que a autora tivesse respondido ao convite que
o Tribunal lhe fez, o recurso interposto seria sempre legalmente inadmissível.
Na verdade, de acordo com a jurisprudência uniforme e constante do Tribunal
Constitucional, o pressuposto da admissibilidade do recurso previsto no art.
70º, n.º 1, al. b), da Lei do Tribunal Constitucional, ao abrigo da qual a
autora, conforme decorre das alegações por si apresentadas, pretendeu interpor o
recurso em apreço, consistente em a inconstitucionalidade ter sido suscitada
durante o processo, deve ser tomado não num sentido puramente formal (tal que a
inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância), mas
num sentido funcional, tal que essa invocação haverá de ter sido feita em
momento que o tribunal 'a quo' ainda pudesse conhecer da questão. Ou seja: a
inconstitucionalidade haverá de suscitar-se antes de estar esgotado o poder
jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a mesma questão de
inconstitucionalidade respeita.
Daí que se entenda que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a
reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados
para se suscitar a questão da inconstitucionalidade.
Veja-se, neste sentido, entre muitos outros, os Acórdãos do Trib. Constitucional
de 13/07/89 (Ac. N.º 89-492-1), de 20/06/91 (Ac. n.º 91-291-1), de 6/11/91 (Ac.
N.º 91-418-2), de 22/11/1994 (Ac n.º 94-616-2) e de 09/07/96 (Ac. n.º 96-880-1),
in www.dgsi.pt/atco.
Face a tudo o exposto, uma vez que a autora, por um lado, não apresentou
requerimento a aperfeiçoar o requerimento de interposição de recurso
inicialmente formulado em acta e que este não satisfaz os requisitos do art.
75º-A, n.ºs 1 e 2 da Lei nº 28/82, de 15/11 e, por outro lado, a decisão aplicou
uma norma cuja inconstitucionalidade tenha sido previamente suscitada pela
autora, decide-se:
- indeferir o recurso para o Tribunal Constitucional interposto
pela autora, por ser legalmente inadmissível;
- ordenar o desentranhamento dos autos das alegações de recurso
apresentadas pela autora a fls. 124 e seguintes.
(...)».
3 – Inconformada, a Autora reclamou, nos termos do artigo 76.º, n.º 4, da LTC,
para este Tribunal, sustentando que:
« (...)
O Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto fundamenta, por um lado, o
indeferimento do referido requerimento, no despacho supra mencionado, na
consideração de que a autora, em vez de apresentar aperfeiçoamento do
requerimento inicialmente produzido, limitou-se a apresentar alegações de
recurso sem prévio despacho a admitir o mesmo, o que torna as mesmas legalmente
inadmissíveis, por intempestivas.
Por outro lado, considera ainda que, mesmo que a autora tivesse respondido ao
convite que o tribunal lhe fez, o recurso interposto seria sempre legalmente
inadmissível por o pressuposto da admissibilidade do recurso previsto no art.
70º, n.º 1, al. b), da supra citada lei, não se verificar no caso em apreço,
dado que 'a inconstitucionalidade haverá de suscitar-se antes de esgotado o
poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a mesma questão de
inconstitucionalidade respeita.'
1 - ÂMBITO DO REOUERIMENTO DO RECURSO DE INCONSTITUCIONALIDADE
Começando pelo segundo fundamento do referido indeferimento, deve lembrar-se que
a autora, ora reclamante, requereu a apresentação de documento, antes do
encerramento da discussão em 1ª instância.
Contudo, o tribunal fundamentou o despacho de indeferimento da referida
apresentação, por extemporaneidade e por nem sequer ser certo que o Tribunal
Cível da Comarca do Porto passasse certidão para validar o referido documento.
Ora, o art. 523º do CPC, com que o tribunal fundamentou aquele indeferimento,
não atribui ao tribunal o poder de recusar um documento com base na
extemporaneidade e, tendo em conta que o documento pretendia provar facto
essencial para a boa decisão da causa, pareceu à autora, ora reclamante, que a
decisão era injusta e abusiva, tanto mais que o requerimento para a apresentação
do documento só ocorreu por haver, por um lado, escusa anómala da única
testemunha que teria provado, caso cooperasse com a descoberta da verdade, o
facto essencial para a boa decisão da causa; e, por outro lado, o tribunal
entendeu não utilizar os seus poderes/deveres, previstos pelo art. 645º do CPC,
para a procura da verdade.
Por conseguinte, pareceu à autora que a interpretação que o tribunal estava a
fazer do Código de Processo Civil era inconstitucional, tanto mais que as
últimas reformas operadas naquele diploma (que, inclusive, acrescentou ao poder
o dever de inquirição), pretenderam dar maior dimensão ao apuramento da verdade.
Neste entendimento, a autora requereu recurso de constitucionalidade do despacho
de fls. 97.
Foi, assim, que o tribunal convidou aquela a fundamentar as regras
constitucionais violadas, no âmbito do aperfeiçoamento do requerimento de
interposição de recurso.
Contudo, vem agora dizer que, não obstante o convite, o poder jurisdicional do
juiz está já esgotado.
Esta argumentação do tribunal é completamente impossível, o que, noutros termos,
poderíamos até dizer de absolutamente inadmissível.
Pretende-se simplesmente expressar com o vocábulo inadmissível que a autora, ora
reclamante, pretendia apenas, através do referido requerimento, que o tribunal
administrasse a justiça, nos termos da lei e de acordo com as decisões dos
tribunais superiores como o obriga o art. 156º do CPC.
E a inadmissibilidade da argumentação do tribunal releva do facto de que
qualquer parte num processo, aquando da apresentação de um requerimento, não
pode razoavelmente prever que o tribunal vai aplicar a lei nos termos de uma
interpretação inconstitucional.
Isto, porque se espera de um tribunal uma aplicação normal das regras.
Por conseguinte, não há razão nem motivo para se invocar, antes da decisão que
materializa uma interpretação inconstitucional da lei, a questão de
inconstitucionalidade.
Este raciocínio, que não pode ser caucionado pelo bom senso, também não tem
cabimento jurídico, tanto mais que, no caso em apreço, foi o próprio tribunal
que, na audiência, ditou o referido requerimento de apresentação de documento,
para, logo a seguir, o indeferir, pois, não tendo a autora constituído advogado,
considerou o tribunal dever limitar a palavra à ora reclamante durante a
audiência.
Mas, mesmo que tivesse sido a autora a ditá-lo, como poderia ela prever que o
tribunal iria abusar do seu poder e interpretar a lei em termos
inconstitucionais, para, já no requerimento, invocar a inconstitucionalidade da
decisão?
De qualquer forma, o nº 1, al. b) do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional
é perfeitamente claro ao referir '(...) cuja inconstitucionalidade haja sido
suscitada durante o processo'.
Ora, sendo a sentença não um despacho de indeferimento de apresentação de
documento, que põe fim ao processo, a autora pode legalmente invocar a
inconstitucionalidade do despacho que não pôs fim ao processo.
Aliás, é constante a jurisprudência do Tribunal Constitucional que considera que
o poder jurisdicional se esgota com a prolação da sentença.
2 - LEGALIDADE DA PEÇA PROCESSUAL APRESENTADA PELA AUTORA
A peça processual que a autora apresentou perante o tribunal a quo não pode ser
considerada 'as alegações de recurso' como menciona o tribunal de primeira
instância.
Isto, porque, não obstante a forma, a autora não diz que vem apresentar
alegações de recurso nos termos do art. 79º da Lei do Tribunal Constitucional.
O que se referiu naquela peça foi que a autora vinha, 'nos termos do art. 75º-A,
nº 2, e ao abrigo da alínea b), n.º 1, do art. 70º da Lei do Tribunal
Constitucional, apresentar a fundamentação que sustenta o requerimento que
apresentou no âmbito da questão de constitucionalidade que foi suscitada na
audiência de discussão realizada a 25/10/2004, nos autos supra referenciados.'
Portanto, a autora não mencionou 'fundamentação de recurso' mas precisou:
'fundamentação que sustenta o requerimento que apresentou (...)”.
O termo sustenta tem aqui o sentido de ratificar, rectificar ou revalidar o
requerimento a que a peça processual se refere, ou seja, ao requerimento já
precedentemente apresentando na audiência.
Neste âmbito, a referida peça não pode ser considerada 'alegações de recurso'
mas antes um aditamento, acrescento ou fundamentação dos legais requisitos para
a rectificação do referido requerimento.
É certo que a mencionada peça encerra alguns lapsos ou erros materiais.
Assim, por lapso, a autora dirigiu-se aos senhores juízes conselheiros do
tribunal constitucional em vez de se ter dirigido à senhora juíza do tribunal de
pequena instância cível do Porto.
Contudo, o certo é que a peça processual foi apresentada no tribunal de pequena
instância cível do Porto e não no tribunal constitucional, como teria sido o
caso se se tratasse de alegações de recurso (art. 79º da citada lei).
E, salvo o devido respeito - que é todo -, aqueles lapsos materiais são
irrelevantes, ou seja, não podem afectar as formalidades legais específicas
exigidas para a validade do requerimento e, por conseguinte, não podem afectar o
requerimento.
Isto, porque o n.º 2 do art. 76º da Lei do Tribunal Constitucional prevê que 'O
requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional deve ser
indeferido quando não satisfaça os requisitos do artigo 75º-A, (...) ou ainda,
no caso dos recursos previstos nas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70º,
quando forem manifestamente infundados.' (sublinhado nosso).
Ora, os requisitos do art. 75º-A foram estritamente respeitados na peça
processual que veio rectificar o requerimento e o tribunal a quo não fundamentou
o indeferimento por aquele ser manifestamente infundado (possibilidade de
indeferimento prevista pelo referido nº 2 do art. 76º, in fine).
E, tendo-se respeitado os requisitos do art. 75º-A e não sendo o recurso
manifestamente infundado, pelo menos o tribunal a quo não se pronunciou sobre a
fundamentação do recurso, tem que se admitir que não há razões válidas para o
referido indeferimento.
Aliás, os requisitos do art. 75º-A não são gratuitos, tendo sido pensados no
âmbito de uma finalidade perfeitamente justificada.
Ou seja, o que se pretendeu com aqueles requisitos foi dar ao tribunal a quo a
possibilidade de reparar o recurso (como reparar o agravo) e, assim, evitar que
se leve perante o Tribunal Constitucional recursos manifestamente dilatórios.
Portanto, o recurso perante o Tribunal Constitucional deve ser limitado à defesa
do estado de direito, com base na democracia defendida pela Constituição da
República Portuguesa, ela mesma guardada e protegida, em última instância, pelo
Tribunal Constitucional.
Ou seja, o poder judicial, se bem que independente, não pode ser arbitrário,
isto é, o poder judicial, como os outros poderes democráticos, deve obedecer à
lei e não abusar dos poderes de tutela constitucional, sob pena de poder
destruir as bases da democracia que o Tribunal Constitucional deve proteger.
E, porque decorre da conjugação do n.º 2 do art. 72º, do n.º 2 do art. 75º-A e
do n.º 2 do art. 76º, todos da Lei do Tribunal Constitucional, a exigência de
apresentar uma peça processual, cujas alegações fundamentem com a necessária
suficiência a ilegalidade ou inconstitucionalidade, a fim de que o tribunal
ainda as possa apreciar, a autora apresentou, certamente, alegações mais do que
suficientes; porém, se a insuficiência pode constituir carência que legitima o
indeferimento, o mesmo não ocorre com o excesso no caso em apreço.
(...)».
4 – Neste Tribunal, o representante do Ministério Público pugnou
pela improcedência da reclamação sustentando que:
“(...) A recorrente não aproveitou a oportunidade processual que lhe foi
facultada pelo Tribunal a quo para suprir as evidentes deficiências que
inquinavam o requerimento através do qual manifestava a vontade de recorrer para
o Tribunal Constitucional: na verdade, a longa exposição de fls. 124 e
seguintes, não traduz cumprimento adequado dos ónus impostos à recorrente pelo
art. 75.º-A da Lei n.º 28/82, em termos de definir e delimitar claramente o
objecto normativo do recurso interposto”.
B – Fundamentação
5 – O despacho que “indeferiu o recurso” interposto pela autora para
o Tribunal Constitucional fundou-se na consideração de que, por um lado, esta
“não (…) apresentou requerimento a aperfeiçoar o requerimento de interposição de
recurso inicialmente formulado em acta e que este não satisfaz os requisitos do
art. 75.º-A, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 28/82” e de que, por outro lado, “a decisão
em causa não aplicou uma norma cuja constitucionalidade tenha sido previamente
suscitada pela autora”.
Por seu turno, entende a Reclamante que “os requisitos do art.
75.º-A foram estritamente respeitados na peça processual que veio rectificar o
requerimento”.
Ora, perscrutando o articulado através do qual a Recorrente trouxe
ao processo a “fundamentação que sustenta o requerimento”, torna-se indiscutível
que o seu teor não o permite compreender como uma resposta processualmente
adequada ao despacho-convite que lhe foi efectuado, nos termos do n.º 5 do
artigo 75º-A, da LTC, pelo Juiz a quo.
Antes, a recorrente espraia-se numa diversidade de considerações de
índole fáctico-jurídica que nada relevam do ponto de vista da concretização
delimitadora do objecto do recurso de constitucionalidade, orientadas no sentido
de marcar a contraposição da Recorrente ao mérito jurídico da aplicação
realizada pelo Tribunal a quo de diversas disposições do Código de Processo
Civil.
Ora, não tendo a recorrente definido o objecto do recurso de
constitucionalidade, não caberá ao Tribunal Constitucional fazê-lo, sob pena de
violação dos princípios da autonomia privada e da auto-responsabilidade
processual das partes.
Ademais, cumpria à Recorrente ter respondido perante o Tribunal a
quo ao convite que lhe foi efectuado, ao invés de se ter dirigido, alegando, a
este Tribunal num momento em que o recurso não estava admitido.
Mas, independentemente da qualificação de tal peça processual, importa saber se,
com a exposição aí constante, a Recorrente logrou cumprir os requisitos de
interposição dos recursos de constitucionalidade, maxime, no que tange à clara
definição e delimitação do objecto normativo do recurso interposto.
E, cingindo-nos a este campo, verifica-se que a Reclamante apenas se
insurge contra a concreta aplicação do direito levada a cabo pelo Tribunal,
concluindo a sua argumentação com uma inequívoca imputação do vício da
inconstitucionalidade ao despacho do tribunal a quo, determinando, assim, a
própria inidoneidade do objecto do recurso.
Além de que, mesmo a admitir-se que o vício da inconstitucionalidade
é dirigido a uma norma – e não à decisão judicial em si, no juízo subsuntivo que
ela concretizou – seria imprescindível que a Reclamante o identificasse de modo
claro o preciso.
Com efeito, pretendendo a Reclamante questionar a conformidade
constitucional de uma determinada interpretação normativa, compete-lhe
explicitar o sentido atribuído às normas em causa que pretendia ver apreciado no
âmbito do recurso de constitucionalidade. Como se afirmou no acórdão n.º 367/94
(Diário da República II, n.º 207, de 7 de Setembro de 1994), “ao questionar-se a
compatibilidade de uma dada interpretação de certo preceito legal com a
Constituição, há-de indicar-se um sentido que seja possível referir ao teor
verbal do preceito em causa. Mais ainda: esse sentido (essa dimensão normativa)
do preceito há-de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado
inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão, em termos de
tanto os destinatários desta como, em geral, os operadores do direito ficarem a
saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não
deve ser aplicado, por, deste modo, afrontar a Constituição”.
No caso concreto, esse sentido, que deve abstrair-se das
circunstâncias fáctico-concretas que determinam a subsunção ao critério
normativo, não resulta concretizado nas peças processuais relevantes.
Na verdade, o objecto da fiscalização jurisdicional da constitucionalidade são
apenas normas jurídicas, não podendo o Tribunal Constitucional pronunciar-se
sobre uma (eventual) “inconstitucionalidade da decisão judicial”, como, de
resto, tem sido unanimemente acentuado pela jurisprudência deste Tribunal – cf.
nesse sentido o Acórdão n.º 199/88, publicado no Diário da República II Série,
de 28 de Março de 1989, onde se afirmou que “este Tribunal tem decidido de forma
reiterada e uniforme que só lhe cumpre proceder ao controle da
constitucionalidade de ‘normas’ e não de ‘decisões’ – o que exige que, ao
suscitar-se uma questão de inconstitucionalidade, se deixe claro qual o preceito
legal cuja legitimidade se questiona, ou no caso de se questionar certa
interpretação de uma determinada norma, qual o sentido ou a dimensão normativa
do preceito que se tem por violador da lei fundamental”.
Por isso se afirma que os recursos de constitucionalidade, embora interpostos de
decisões de outros tribunais, visam controlar o juízo que nelas se contém sobre
a violação ou não violação da Constituição por normas mobilizadas na decisão
recorrida como sua ratio decidendi, não podendo visar as próprias decisões
jurisdicionais, identificando-se, nessa medida, o conceito de norma jurídica
como elemento definidor do objecto do recurso de constitucionalidade, pelo que
apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objecto de tal
recurso – cf., nestes exactos termos, o Acórdão n.º 361/98 e, entre muitos
outros, os Acórdãos n.os 286/93, 336/97, 702/96, 336/97, 27/98 e 223/03, todos
disponíveis para consulta em www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.
Nessa medida, este Tribunal não está configurado como uma instância de amparo
com competência para sindicar o mérito jurídico da aplicação da lei efectuada
pelas demais instâncias jurisdicionais, apenas lhe competindo apurar, nesses
termos, da inconstitucionalidade de normas, pelo que, não pode o Tribunal
Constitucional conhecer de recursos interpostos com fundamento em violação da
lei por banda da decisão judicial recorrida, nem, pelos mesmos motivos, apurar
se a decisão judicial é, ou não, “inconstitucional”, como considera e pretende a
Reclamante.
6 – De par com o exposto, importa também referir que não foi suscitado de modo
processualmente adequado qualquer problema de constitucionalidade susceptível de
integrar-se na esfera de competência cognitiva deste Tribunal.
Na verdade, constitui requisito do recurso interposto ao abrigo do disposto na
alínea b) do n.º 1 do art.º 280º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e
na alínea b) do n.º 1 do art.º 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, em cuja
categoria se insere o interposto pelo recorrente, e como decorre dos mesmos
preceitos quando falam de aplicação de norma cuja inconstitucionalidade haja
sido suscitada durante o processo, mas que encontra igualmente tradução no n.º 2
do art.º 75º-A da LTC, que a questão de inconstitucionalidade da norma
efectivamente aplicada como ratio decidendi da decisão recorrida tenha sido
suscitada durante o processo.
O sentido deste conceito tem sido esclarecido, por várias vezes, por este
Tribunal Constitucional. Assim, por exemplo, no Acórdão n.º 352/94, publicado no
Diário da República II Série, de 6 de Setembro de 1994, disse-se que esse
requisito deve ser entendido “não num sentido meramente formal (tal que a
inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)”, mas
“num sentido funcional”, de tal modo que essa invocação haverá de ter sido feita
em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão, “antes de
esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de
constitucionalidade) respeita”.
Por seu lado, afirma-se, igualmente, no Acórdão n.º 560/94, publicado no Diário
da República II Série, de 10 de Janeiro de 1995, que «a exigência de um cabal
cumprimento do ónus de suscitação atempada - e processualmente adequada - da
questão de constitucionalidade não é [...] “uma mera questão de forma
secundária”. É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal
recorrido deva pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade para o
Tribunal Constitucional, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame da
questão (e não a um primeiro julgamento de tal questão».
Neste domínio há que acentuar que, nos processos de fiscalização concreta, a
intervenção do Tribunal Constitucional se limita ao reexame ou reapreciação da
questão de (in)constitucionalidade que o tribunal a quo apreciou ou devesse ter
apreciado.
Na mesma linha de pensamento podem ver-se, ainda, entre outros, o Acórdão n.º
155/95, publicado no Diário da República II Série, de 20 de Junho de 1995, e,
aceitando os termos dos arestos acabados de citar, o Acórdão n.º 192/2000,
publicado no mesmo jornal oficial, de 30 de Outubro de 2000 (sobre o sentido de
um tal requisito, cf. José Manuel Cardoso da Costa, «A jurisdição constitucional
em Portugal», separata dos Estudos em Homenagem ao Prof. Afonso Queiró, 2ª
edição, Coimbra, 1992, pp. 51).
É certo que tal doutrina sofre restrições, como se salientou naquele Acórdão n.º
354/94, mas isso apenas acontece em situações excepcionais ou anómalas, nas
quais o interessado não dispôs de oportunidade processual para suscitar a
questão de constitucionalidade antes proferida ou não era exigível que o
fizesse, designadamente por o tribunal a quo ter efectuado uma aplicação de todo
insólita e imprevisível.
Usando os termos do recente Acórdão n.º 192/2000, dir-se-á, ainda, que “quem
pretenda recorrer para o Tribunal Constitucional com fundamento na aplicação de
uma norma que reputa inconstitucional tem, porém, a oportunidade de suscitar a
questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferido
o acórdão da conferência de que recorre...”, posto que ao encararem ou
equacionarem na defesa das suas posições a aplicação das normas, as partes não
estão dispensadas de entrar em linha de conta com o facto de estas poderem ser
entendidas segundo sentidos divergentes e de os considerar na defesa das suas
posições, aí prevenindo a possibilidade da (in)validade da norma em face da lei
fundamental.
Digamos que as partes têm um dever de prudência técnica na antevisão do direito
plausível de ser aplicado e, nessa perspectiva, quanto à sua conformidade
constitucional. O dever de suscitação da inconstitucionalidade durante o
processo e pela forma adequada enquadra-se dentro destes parâmetros acabados de
definir.
Ora, sendo assim, deve ponderar-se que não é de considerar
desrazoável ou inadequado que a ora Reclamante, ao solicitar a junção aos autos
da referida certidão, devesse antecipar o problema da constitucionalidade do
critério normativo susceptível de presidir à resolução do incidente por si
originado, vinculando o Tribunal a quo ao seu conhecimento num momento anterior
ao da conformação definitiva dessa questão processual.
Na verdade, a mobilização do preceito que fundamentou o despacho de
indeferimento foi convocada pela própria actuação processual da ora Reclamante
ao basear nele a formulação do seu pedido de junção de documento.
C - Decisão
7 – Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide
indeferir a reclamação.
Custas pela reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20 UCs.
Lisboa, 13 de Julho de 2005
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos