Imprimir acórdão
Processo n.º 89/06
3ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. A., ora reclamante, inconformado com a decisão do Juiz de Instrução do
Tribunal Judicial de Ponta Delgada que, por incumprimento do disposto na alínea
d) do n.º 1 do artigo 64.º do Código de Processo Penal, não admitiu um recurso,
por si interposto, da decisão que, entre o mais, lhe negou o direito de se
defender por si próprio, em todos os actos processuais, sem a assistência de
defensor, e não conheceu da excepção dilatória de incompetência territorial, por
ele suscitada, reclamou para o Tribunal da Relação de Lisboa, alegando, em
síntese e para o que agora importa, que:
“- A legitimidade do reclamante para, enquanto arguido, se defender a si próprio
“é questão prévia ao recurso indeferido”, não fazendo sentido que se rejeite um
recurso “alegando que o interessado carece de legitimidade para recorrer, quando
é precisamente essa legitimidade, que ele invoca como um direito seu
fundamental”;
- A interpretação do artigo 64.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal,
no sentido de que a presença de defensor se impõe aos arguidos sofre de
inconstitucionalidade, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da
República (…)”.
2. O Tribunal da Relação de Lisboa, por decisão de 27 de Setembro de 2005,
decidiu desatender aquela reclamação.
3. Inconformado com esta decisão o reclamante pretendeu recorrer para o Tribunal
Constitucional, tendo, para o efeito, apresentado um requerimento, por si
subscrito, com o seguinte teor:
“[...], reclamante nos autos a margem referidos, notificado da decisão de fls.30
e ss., não se conformando com a mesma, dela vem interpor recurso, ao abrigo da
al. b) do n.º l do art.70.º da LTC, por ter essa decisão aplicado as normas
contidas no C.P.P. art.64.º, n.º l, al. d) e ib. art.414.º, n.º 2, com um
sentido que nega aos arguidos a faculdade de, por si próprios, se defenderem em
processo penal.
Essa aplicação viola as garantias consagradas na C.R.P. art. 32.º, n.º1. Esta
inconstitucionalidade foi suscitada pelo requerente, ainda em primeira
instância, e deu origem à reclamação de que ora se recorre”.
4. Na sequência, o Desembargador Relator do processo no Tribunal da Relação de
Lisboa proferiu o seguinte despacho:
“Notifique-se o recorrente, bem como o seu defensor, para no prazo de 10 dias,
darem cumprimento ao disposto no artigo 83º, nº 1, da Lei nº 28/82, de 15 de
Novembro”.
5. O reclamante respondeu a esta solicitação através de um requerimento que tem
o seguinte teor:
“[...], reclamante no processo, à margem referido, notificado do despacho de
fls. 61 dos presentes autos, diz:
1 - Nos termos do C.P.P. art. 63.º,n.º 2, é retirada eficácia a qualquer acto
realizado pelo defensor em nome do signatário desta peça.
2 - O disposto na LTC, art.83.º, n.º l, quando aplicável a recursos interpostos
em processo penal, padece de inconstitucionalidade, pelas mesmíssimas razões já
expostas ao longo de todo este processo e que o signatário ampliará em sede
própria - o Tribunal Constitucional!
3 - Por ora, vai já adiantando:
4 - Ou os arguidos têm legitimidade para se defenderem a si próprios, ou não
têm. Mas se lhes assiste esse direito, ele há-de integrar a faculdade de ir até
ao vértice da pirâmide.
5 - E esse vértice é ocupado pelo Tribunal Constitucional, pois “a decisão do
recurso faz caso julgado no processo quanto à questão da inconstitucionalidade
ou ilegalidade suscitada.”(LTC,art.80.º, n.º l).
6 - Fazer depender o acesso àquele Tribunal do cumprimento de um pressuposto
processual, de constitucionalidade tão duvidosa quanto é a daquelas normas que,
atacadas por inconstitucionais, trouxeram os presentes autos ao ponto em que se
encontram, equivale a julgar uma questão prévia antes de apreciada a questão de
fundo.
7 - De resto, essa questão prévia é informada por um pressuposto processual que
o signatário, consoante já disse, considera inconstitucional, quando aplicável a
recursos interpostos em processo penal.
8 - Ora o Tribunal Constitucional também está vinculado ao dever imposto pelo
art. 204.º da nossa Lei Fundamental.
9 - Essa obrigação, aliás evidente, aparece sustentada por Gomes Canotilho -
Vital Moreira, quando sustentam que “(...) a obrigação de não aplicar normas
inconstitucionais vale para todos os tribunais, (...), sem excluir naturalmente
o próprio TC, (...), quer quando ele funciona como tribunal de instância, (...),
quer nos processos de inconstitucionalidade quanto às respectivas normas
processuais.” (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed. revista,
Coimbra Editora, p.797. O último sublinhado é do signatário.)
10 –À laia de conclusão, o signatário participa que não dará cumprimento ao
disposto num preceito, que também combate por inconstitucional, e, por mera
cautela, reitera que reduzirá a nada a intervenção nesse ou em qualquer outro
sentido do seu defensor oficioso. [...]”.
6. Por parte do Desembargador Relator do processo no Tribunal da Relação de
Lisboa foi, em seguida, proferido o seguinte despacho:
“Face ao teor do requerimento que antecede, tendo em atenção o disposto no
artigo 33º do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 69º da Lei
nº 28/82 de 15 de Novembro, o recurso interposto a fls. 59 não pode ter
seguimento, por isso que declaro sem efeito o respectivo requerimento de
interposição.
Notifique-se o recorrente e o seu ilustre defensor identificado nos autos”.
7. É desta decisão que, subscrita pelo próprio arguido, ora reclamante, vem
interposta a presente reclamação, onde se afirma, nomeadamente, o seguinte:
“[...] QUESTÃO PRÉVIA
1.º Para escapar a um indeferimento liminar como o que foi proferido no acórdão
n.º 694/2005 desse Tribunal, o reclamante discorre já sobre o mérito da sua
pretensão.
ENTRA-SE, POIS, NA QUESTÃO DE MÉRITO:
2º O reclamante pretende exercer, em toda a plenitude, a sua própria defesa
3.º Tomou essa posição desde que foi constituído arguido nos autos e, sem uma
única falha, vem-na mantendo ao longo do processado até ao presente.
4.º Arroga-se esse direito com base no disposto na C.E.D.H.art.6.º,n.º 3,al.c) e
al.d).
5.º Esse normativo faz parte do direito interno português (C.R.P.art.8.º,n.º 2).
NÃO OBSTANTE:
6.º A decisão reclamada indeferiu o recurso interposto pelo reclamante a fls.59.
7.º Fê-lo com fundamento no disposto “no artigo 33.º do Código de Processo
Civil, aplicável por força do artigo 69.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro
(...).” (Fls.70).
8.º Mas, ao invocar esse preceito do Código de Processo Civil, a decisão
reclamada aplicou implicitamente a norma contida na L.T.C.art.83.º, n.º 1, já
atacada de inconstitucional no requerimento, que antecedeu a decisão de que se
reclama.
9.º E isto pelas razões apontadas nesse requerimento e que, aqui, se repetem.
10.º O disposto na L.T.C. art.83.º, n.º 1, quando aplicável a recursos
interpostos em processo penal, padece de inconstitucionalidade, pelas
mesmíssimas razões já expostas ao longo de todo este processo.
11.º Na realidade, ou os arguidos têm legitimidade para se defenderem a si
próprios, ou não têm.
12.º Mas se lhes assiste esse direito, ele há-de integrar a faculdade de ir até
ao vértice da pirâmide.
13.º E esse vértice é ocupado pelo Tribunal Constitucional, pois “a decisão do
recurso faz caso julgado no processo quanto à questão da inconstitucionalidade
ou ilegalidade suscitada.”(L.T.C.art.80,n.º1).
14.º Fazer depender o acesso a este Tribunal do cumprimento de um pressuposto
processual, de constitucionalidade tão duvidosa quanto é a daquelas normas que,
atacadas por inconstitucionais, trouxeram os presentes autos ao ponto em que se
encontram, equivale a julgar uma questão prévia antes de apreciada a questão de
fundo.
15.º De resto, essa questão prévia é informada por um pressuposto processual que
o reclamante, consoante já disse, considera inconstitucional, quando aplicável
recursos interpostos em processo penal.
16.º É que o Tribunal Constitucional também está vinculado ao dever imposto pelo
art.204.º da nossa Lei Fundamental.
[...]
40.º Pelo que deve ser reconhecido ao reclamante o direito, por ele invocado de
se defender a si mesmo.
[...]
51.º Em suma: esta pretensão tem, categoricamente, apoio na lei C.E.D.H.art.6.º,
n.º3, al.c) e al.d), regra esta que é válida no direito português
(C.R.P.art.8.º, n.º2); já foi sufragada, pelo menos uma vez no Tribunal Europeu
de Direitos do Homem (Caso Pobornikoff c. Áustria, Acórdão de 3 de Outubro de
2000, citado pela R.O.A., do Conselho Distrital do Porto, ano 2001, n.º 20.
p.44); e nem é repelida pela dogmática jurídica (C.P.P. art.61.º, n.º1, al.f),
conjugada com o art.98.º, n.º1 do mesmo código; ib.art.63.º, n.º 2; ib.art.64.º,
n.º1.al.f); ib. art. 343.º; e ib. art.361.º.
52.º Pelo que deve o reclamante ser admitido a intervir, nos autos, com toda a
latitude por ele desejada.
53.º O reclamante funda a sua pretensão na convicção de que está ferida de
inconstitucionalidade a interpretação da norma ínsita na L.T.C. art.83.º,n.º1,
se se entender que é vedado aos arguidos alegarem por si próprios, bem como das
normas que surgem no C.P.P.art.64.º, n.º1, al.d); ib.art.62.º,n.º2; ib.art.64.º,
n.º 3;e ib.art.287.º, n.º4, implicitamente aplicadas, na decisão reclamada,
quando essa leitura exclua a possibilidade de os arguidos recusarem a
assistência ali prevista.
54.º A inconstitucionalidade ora suscitada resulta da violação das garantias de
defesa, consagradas na C.R.P.art.32.º, n.º1. [...]
CONCLUINDO:
65.º A vida é uma sucessão de opções, todas elas apresentando prós e contras.
66.º Mesmo a entender-se que a autodefesa dos arguidos constitui para estes um
risco, a questão está em saber se é um risco que se possa correr sem contumélia
da lei.
67.º E a resposta parece que não pode ser senão afirmativa, até porque a solução
oposta também não está isenta de perigos.[...]”
8. Já neste Tribunal foram os autos com vista ao Ministério Público, que se
pronunciou nos seguintes termos:
“A presente reclamação é manifestante improcedente, já que a exigência de
patrocínio judiciário em processo constitucional não afronta qualquer norma ou
princípio constitucional.
Aliás, persistindo ele próprio em assinar o requerimento que consubstancia a
presente reclamação, afigura-se que deverá cumprir-se, quanto a ele, o
preceituado no art. 33º do CPC, notificando-se o reclamante para constituir
advogado, com a cominação de que, não o fazendo no prazo fixado, não se
conhecerá da reclamação deduzida.”
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentação.
9. A decisão reclamada não admitiu um requerimento de interposição de recurso
para o Tribunal Constitucional por o mesmo não vir subscrito por advogado.
Acontece que nos recursos para este Tribunal a constituição de advogado é
obrigatória, conforme expressamente dispõe o artigo 83º, nº 1, da Lei nº 28/82,
de 15 de Novembro, valendo essa obrigatoriedade, como se disse no acórdão nº
38/2002 (disponível na Internet em
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/index.html) “não apenas para o momento
da apresentação de alegações, mas para o próprio requerimento de interposição do
recurso […]”. Por outro lado, como se concluiu já, por exemplo, nos acórdãos
deste Tribunal nºs 17/95 e 112/01 (também disponíveis na página Internet do
Tribunal), para efeitos desta exigência são de equiparar aos recursos as
reclamações para o Tribunal Constitucional.
Ora, no presente caso, o reclamante tem defensor oficioso nomeado. Acresce que,
tendo sido notificado, quer pessoalmente, quer na pessoa do seu defensor, para
“dar cumprimento para ao disposto no artigo 83º, nº 1, da Lei nº 28/82, de 15 de
Novembro”, o seu defensor nada fez e o reclamante veio participar que “não dará
cumprimento ao disposto num preceito, que também combate por inconstitucional,
e, por mera cautela, reitera que reduzirá a nada a intervenção nesse ou em
qualquer outro sentido do seu defensor oficioso” (itálico aditado). Está assim
prejudicada a repetição de uma notificação já efectuada e que teve a resposta
que antecede.
Assim sendo, não obstante o Tribunal Constitucional já ter decidido, por exemplo
no acórdão nº 554/99 (igualmente disponível na página Internet deste Tribunal),
bem como em jurisprudência anterior para a qual se remete naquele acórdão, que a
exigência de constituição de advogado nos processos que correm os seus termos
neste Tribunal não é inconstitucional, no caso dos autos nem um tal juízo é
possível reiterar. Com efeito, apesar de ao reclamante estar nomeado defensor
oficioso, a presente reclamação não está subscrita por advogado – passo
imprescindível para que se pudesse admitir a discussão da questão da
admissibilidade do recurso para este Tribunal – pelo que nada mais resta do que
concluir que dela se não pode sequer conhecer.
III. Decisão.
Nestes termos, decide-se não tomar conhecimento da presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de
conta.
Lisboa, 14 de Fevereiro de 2006
Gil Galvão
Bravo Serra
Artur Maurício