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Processo n.º 881/04
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O Ministério Público interpôs recurso, ao abrigo do artigo 72.º n.º 1 alínea
a) e n.º 3 da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), da decisão do Tribunal de
Trabalho de Vila Real, proferida em processo especial de acidente de trabalho,
em que é autor (sinistrado) A. e réu (responsável) a Companhia de Seguros “B.”,
que recusou a aplicação, por inconstitucionalidade material, da norma constante
do artigo 74.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, quando interpretado
por forma a fazer abranger no conceito de «pensões de reduzido montante» todas
as pensões infortunísticas laborais, incluindo nelas as situações de total ou
elevada incapacidade permanente.
O recurso foi admitido e prosseguiu, apenas tendo alegado o Exmo.
Procurador‑Geral Adjunto, que concluiu nos termos seguintes:
“1º - Não viola qualquer preceito ou princípio constitucional o estabelecimento
da regra da remição obrigatória das pensões vitalícias de reduzido montante,
independentemente do grau de incapacidade laboral que afecta o respectivo
beneficiário ou titular.
2º - Porém, ao concretizar e densificar, no diploma regulamentador da Lei nº
100/97, o conceito legal de pensões de “reduzido valor” não podia o legislador
inovar, nem defini-lo arbitrariamente, já que se trata de matéria atinente a
direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores – e, consequentemente,
incluída na reserva da competência legislativa da Assembleia da República.
3º - Do mesmo modo que – sob pena de violação do princípio da igualdade – não
podia o legislador que editou o referido Decreto-Lei nº 143/99 criar para os
beneficiários de pensões constituídas antes da Lei nº 100/97 um regime
substancialmente mais gravoso – no que toca à obrigatoriedade de remição – do
que o vigente para a remição obrigatória quanto aos acidentes já ocorridos no
âmbito de tal diploma legal.
4º - A norma do artigo 74º do Decreto-Lei nº 143/99, ao instituir um regime
transitório para a remição obrigatória das pensões, impondo-a – sem conferir
qualquer relevância à vontade do beneficiário quanto à forma de as receber – em
função de valores arbitrariamente estabelecidos, sem qualquer conexão com os
valores da remuneração mínima mensal garantida – e permitindo, deste modo que,
mesmo na oposição do beneficiário, sejam remidas pensões que não representem
valores irrisórios ou degradados, na óptica da subsistência mínima do
sinistrado, seria inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade, da
proporcionalidade e da justa indemnização dos acidentes de trabalho.
5º - Tal norma não é, porém, inconstitucional, num caso, como o dos autos, em
que – apesar do grau de incapacidade permanente do sinistrado – é o próprio
titular da pensão que opta expressamente pela via da remição, pedindo-a em
juízo, e sendo o valor anual daquela plenamente conforme com o seu enquadramento
no conceito legal de “pensões de reduzido montante” a que alude o artigo 41º, nº
2, alínea a) da Lei nº 100/97, pelo que deverá proceder o presente recurso.”
2. Entretanto, pelo acórdão n.º 34/2006, ainda não publicado no jornal
oficial, mas de consulta disponível em www.tribunalconstitucional.pt, o Tribunal
Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da
norma constante do artigo 74.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, na
redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 382-A/99, de 22 de Setembro, interpretado no
sentido de impor a remição obrigatória total de pensões vitalícias atribuídas
por incapacidades parciais permanentes do trabalhador/sinistrado, nos casos em
que estas incapacidades excedam 30%, por violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea
f), da Constituição da República Portuguesa.
Cumpre, portanto, averiguar se o sentido normativo a que a decisão recorrida
recusou aplicação é o mesmo que foi objecto desse juízo de
inconstitucionalidade, porque nessa hipótese apenas restará fazer aplicação de
tal declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. A questão
coloca-se uma vez que aquilo que o Ministério Público sustenta quanto à decisão
do presente recurso (conclusões 4ª e 5ª das alegações) equivale, afinal, a dizer
que não existe tal coincidência.
3. Importa, para tanto, reter as seguintes ocorrências processuais:
a) Por sentença de 28 de Setembro de 1998, do Tribunal de Trabalho de Vila Real,
foi fixada a favor de A. e a cargo da Companhia de Seguros B. S.A., em
consequência de acidente de trabalho de que resultou aquele ter ficado afectado
de uma incapacidade permanente parcial (IPP) de 0,505, a pensão anual e
vitalícia de 213.080$00, com início reportado a 20 de Dezembro de 1996,
acrescida, no mês de Dezembro de cada ano, de uma prestação de montante igual ao
duodécimo da pensão anual a que nesse mês o sinistrado tiver direito (fls. 62-63
v.);
b) A Companhia de Seguros “B.” incluiu a situação do recorrente na lista das
pensões obrigatoriamente remíveis no ano de 2003, que remeteu ao Tribunal de
Trabalho de Vila Real, para cumprimento do disposto no artigo 57.º do
Decreto‑Lei n.º 143/99 e no n.º 3 da Portaria n.º 11/2000, de12 de Janeiro (fls.
80);
c) Por despacho de 11 de Junho de 2003, foi decidido não autorizar “a requerida
remição” (fls.83);
d) Em 28 de Abril de 2004, o sinistrado apresentou um requerimento informando
que a seguradora não lhe paga a pensão devida e requerendo a remição da pensão
(fls. 88);
e) Seguidamente, o Ministério Público emitiu parecer, em que tece considerações
sobre o regime jurídico da remição de pensões (fls.90-99), do qual se destaca o
seguinte:
“a)-síntese conclusiva:
A interpretação do art.º 74.º do DL 143/88 de 30/4, por referência ao disposto
no art.º 41.º n.º 2 al. a), II parte, da Lei n.º 100/97 de 13/9 (Lei dos
Acidentes de Trabalho) – norma esta que aquele preceito se limita a
regulamentar, na parte referente ao que deva considerar-se como pensões de
reduzido montante-, com o sentido de impor a remição obrigatória (mesmo contra a
vontade do pensionista) de todas as pensões emergentes de acidente de trabalho
atribuídas a sinistrados, seja qual for a desvalorização funcional de que
ficaram afectados (incluindo, também os casos de elevada incapacidade
permanente), enferma de inconstitucionalidade material
- por um lado por violação do disposto no art.º 59.º n.º 1 al. f) (direito à
justa reparação de acidente de trabalho) em conjugação com o disposto nos 18.º
n.º 2 (proibição da restrição sem previsão constitucional expressa) e n.º 3
(proibição da retroactividade) e art.º 2.º (Estado de direito baseado no
respeito e na garantia de efectivação dos direitos fundamentais) da Constituição
da República Portuguesa;
- pelo outro lado por violação do disposto no art.º 59.º n.º 1 al. f) (direito à
justa reparação do acidente de trabalho) em conjugação com o disposto no art.º
13.º n.º 1 (princípio da igualdade/proibição do arbítrio) da Constituição da
República Portuguesa.
(...)
d)-o caso dos autos:
Ora, tal como temos vindo a promover e este Tribunal doutamente tem vindo a
entender, situações de elevada incapacidade permanente para o trabalho emergente
de sinistro laboral são aquelas em que o sinistrado ficou afectado:
- de incapacidade total e absoluta para todo e qualquer trabalho
- ou incapacidade absoluta para a profissão habitual
- e ainda todos os casos de incapacidade igual ou superior a 50%
Ora, o sinistrado nestes autos ficou afectado de uma IPP de 50,5%.
Promovo, por isso, que a interpretação da norma do art.º 74.º do DL 143/99 de
30/4 na definição que faz do conceito de «pensões de reduzido montante»
constante do art.º 41.º n.º 2 al. a) da Lei n.º 100/97 de 13/9, com o sentido de
também abranger todas as pensões infortunísticas laborais, incluindo, pois,
também as situações de total ou elevada incapacidade permanente, como entendemos
ser o caso dos autos, deva merecer a recusa de aplicação por
inconstitucionalidade material, nos termos inicialmente sumariados e
abundantemente expostos.
Assim, recusada que seja a aludida interpretação daquela norma, deve
indeferir-se à requerida remição.”
f) Em 7 de Junho de 2004, foi proferida a decisão recorrida (fls.102-103), do
seguinte teor:
“Estamos, no fundamental, de acordo com a posição doutamente assumida, atrás,
pelo Distinto Procurador da República.
Remetemos, pois, para a mesma, evitando, assim, a escusada repetição de
argumentos e normas que, aquela peça processual, tão lucidamente explana.
Não obstante sempre se dirá que, revestindo, o escopo reparatório, no quadro do
regime dos acidentes de trabalho, uma função eminentemente social, as
disposições transitórias consubstanciadas, no essencial, no art.º 74.º do DL n.º
143/99, de 30 de Abril, na definição que faz do conceito de “pensões de reduzido
montante”, ínsito na alínea a) do n.º 2 do art.º 41.º da Lei n.º 100/97, de 13
de Setembro, no sentido der abranger todas as pensões infortunísticas laborais,
incluindo, nelas, as situações de total ou elevada incapacidade permanente, não
poderemos deixar de considerá-las como violadoras, para além do mais, dos
princípios da igualdade e proporcionalidade, que a nossa Lei Fundamental
consigna.
É que, só a subsistência de uma pensão vitalícia, poderá precaver o sinistrado
contra o destino, eventualmente aleatório do capital resultante da remição
obrigatória, em casos como o sub judice.
Tão pouco seria consentâneo com o enquadramento do regime, repetimos, que subjaz
à reparação dos acidentes de trabalho, embora, a remição, subsuma algumas e
claras vantagens para as entidades responsáveis pelo pagamento.
Por outro lado, poderá considerar-se absurda a tentativa de assemelhar a
reparação emergente dos acidentes de viação com a que decorre dos acidentes de
trabalho, pois, a aproximação em apreço, equivalerá a querer tirar idêntica
conclusão a partir de premissas profundamente diversas no seu conteúdo.
A interpretação das normas em apreço que foi dada, nestes autos, enferma de
clara inconstitucionalidade material, por violação da alínea f) do n.º 1 do
art.º 59.º, em conjugação com o art.º 18º e 13º da Constituição da República
Portuguesa.
Deste modo, por tudo aquilo que, sumariamente, deixamos exposto e, também, ao
abrigo da alínea a) do n.º 1 do art.º 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,
recusamo-nos a aplicar as sobreditas normas, porque, a nosso ver, enfermam,
elas, sublinhamos, de inconstitucionalidade material.”
4. Começa por notar-se que o facto de a norma sindicada ser aqui definida com
recurso ao elemento “situações de total ou elevada incapacidade permanente”
nenhum obstáculo levanta à decisão do presente recurso por simples aplicação da
declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, dado que a
incapacidade no caso considerada (IPP de 50,5%) se compreende no âmbito da norma
que foi julgada inconstitucional (“nos casos em que estas incapacidades excedam
30%”).
Onde, tendo presente a realidade processual, se depara um factor que, à primeira
vista, se apresenta dissonante é no que respeita ao elemento normativo “ remição
obrigatória”.
Com efeito, para a ratio decidendi do juízo de inconstitucionalidade formulado
no acórdão n.º 36/2004 (bem como dos casos concretos que estiveram na base do
pedido de generalização), foi fundamental a interpretação daquele elemento
normativo como significando que a remição tem lugar independentemente da vontade
do beneficiário da pensão. O caracter impositivo da remição, a privação da
possibilidade de receber a indemnização pela perda da capacidade laboral sob a
forma de uma pensão vitalícia, de uma prestação periódica em vez de um capital,
foi considerada como redundando numa limitação do poder de o trabalhador
ponderar se é menos arriscado continuar a receber a pensão e recusar a remição –
numa imposição do risco do capital a receber –, a qual, com a extensão que a
dimensão normativa admite, tornaria precário e limitaria o direito dos
trabalhadores a uma justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou
doença profissional”.
Ora, no presente processo existe um requerimento do titular da pensão em que
este, pelo menos aparentemente, pretende ou aceita a remição e é dessa realidade
processual que o Ministério Público parte para sustentar que, na especialidade
do caso, a norma do artigo 74.º do Decreto-Lei nº 143/99 não deve ser julgada
inconstitucional.
Não vemos, porém, que a norma do artigo 74.º tenha sido aplicada pela decisão
recorrida com esse específico sentido (Aliás, também não é assim concretizado na
identificação da norma no requerimento de interposição do recurso).
Com efeito, a decisão recorrida tem de ser interpretada em correspondência com o
seu antecedente imediato, a promoção do Ministério Público a que dá concordância
e para cujos fundamentos expressamente remete, onde toda a argumentação vai
dirigida ao carácter impositivo (para o sinistrado) dessa remição e não ao facto
de haver remição nas pensões por total ou elevada incapacidade permanente
fixadas ao abrigo da legislação anterior ao novo regime de acidentes de trabalho
estabelecido pela Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, ainda que com aceitação do
sinistrado. Isto é, foi considerado que a norma determinava a substituição
contra a vontade do beneficiário de uma prestação periódica vitalícia
(financeiramente, uma renda) pelo capital correspondente, pago de uma só vez e
foi por isso ou na medida desse efeito jurídico – a remição ter lugar
independentemente da vontade do sinistrado – que se conclui pela
inconstitucionalidade e se desaplicou a norma e não autorizou a remição. A
síntese conclusiva com que abre a promoção do Mº Pº explicita esse aspecto
impositivo. E não se faz, seja no texto próprio da decisão recorrida, seja no da
promoção de que se apropria, qualquer referência ao requerimento do sinistrado
no sentido de que se proceda à remição da pensão, o que tanto pode resultar de
se ter considerado que, nas circunstâncias em que surgiu, tal requerimento não
corresponde a verdadeira aceitação, quer de ter sido simplesmente ignorado a sua
existência.
Ora, esse é um domínio – o da determinação dos factos relevantes para a decisão
e o da interpretação e aplicação do direito ordinário a esses factos – que
escapa à censura do Tribunal Constitucional.
Consequentemente, nada obsta à confirmação da decisão recorrida mediante a
aplicação da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral
constante do acórdão n.º 34/2006.
5. Decisão
Pelo exposto decide-se negar provimento ao recurso, confirmando a decisão
recorrida no que ao juízo de inconstitucionalidade respeita.
Sem custas.
Lisboa, 8 de Fevereiro de 2006
Vítor Gomes
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Bravo Serra
Gil Galvão
Artur Maurício