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Processo n.º 439/2005
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Bravo Serra
1. Em 6 de Junho de 2005, o relator proferiu decisão com o
seguinte teor:-
“1. Pelo 9º Juízo Cível do Porto, intentou em 18 de Setembro
de 1996 A., contra a Companhia de Seguros B. (posteriormente, por fusão com a
Companhia de Seguros C., vindo a adoptar a sociedade assim constituída a firma
Companhia de Seguros D.) acção, seguindo a forma de processo ordinário, na qual
solicitou a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de Esc. 12.939.624$00
relativos a determinados sinistros de furto que foram por esta participadas
àquela, pois que, segundo invocou, não obstante esta última, por contrato de
seguro firmado entre ambas, ter assumido o pagamento dos prejuízos decorrentes
de eventos tais como roubo e falta de entrega de mercadorias, recusou-se a ré a
pagar os montantes referentes àqueles sinistros, invocando que o contrato de
seguro se encontrava anulado.
Em 27 de Novembro de 2000 foi proferida sentença pelo Juiz do
1º Juízo do Tribunal de comarca da Maia (para onde os autos foram remetidos após
se ter declarado territorialmente incompetente aquele 9º Juízo Cível), sentença
essa que julgou improcedente, por não provada, a acção, em consequência
absolvendo a ré do pedido.
Do assim decidido apelou a autora para o Tribunal da Relação
do Porto.
Na sequência de requerimento formulado pela autora, o Juiz do
2º Juízo do Tribunal de comarca da Maia, por despacho de 12 de Julho de 2001,
declarou nulo o julgamento na parte relativa à recolha de depoimentos de sete
testemunhas, cuja gravação audio era inaudível.
Desse despacho agravou a ré para o Tribunal da Relação do
Porto.
O Desembargador Relator deste Tribunal de 2ª instância, por
despacho de 23 de Abril de 2003, proferido ao abrigo do artº 705º do Código de
Processo Civil, concedeu provimento ao recurso de agravo e negou-o quanto à
apelação.
Desse despacho arguiu a autora a respectiva nulidade, do mesmo
passo que interpôs recursos de agravo em segunda instância e de revista.
O Tribunal da Relação do Porto, em face da circunstância de
ter sido arguida a nulidade do despacho prolatado em 23 de Abril de 2003 pelo
Desembargador Relator, proferiu, em 19 de Janeiro de 2004, acórdão no qual,
conquanto reconhecesse que naquele despacho se não enfrentaram directamente as
questões atinentes à ‘interpretação funcional da nova Lei’ (queria reportar-se
ao Decreto-Lei nº 105/94, de 23 de Abril) e à ‘conformidade à Constituição do
entendimento’ que foi nele foi sufragado, manteve ‘todavia a solução final do
litígio’.
Tendo o Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça,
por despacho de 18 de Março de 2004, convertido o recurso em reclamação para a
conferência no tribunal da 2ª instância, o Tribunal da Relação do Porto, por
acórdão de 4 de Julho de 2005, decidiu revogar a sentença proferida na 1ª
instância, condenando a ré no pagamento à autora da quantia de € 64.542,58 e
juros.
Desse acórdão pediu a ré revista para o Supremo Tribunal de
Justiça.
Na resposta à alegação, a autora formulou as seguintes
«conclusões»:-
‘1ª A formalidade do envio do aviso previsto no artº 4º do DL 105/94, de 23 de
Abril, tem a natureza de documento ad substanciam, insubstituível por outro meio
de prova ou por documento que não seja de força probatória superior (artºs 364º,
nº 1, e 294º, do CC), por ser imprescindível para determinar a certeza do dies a
quo do prazo de resolução do contrato, na esteira do ac. STJ de 19.3.2002, in
CJ, 2002, tomo I, p. 142, e do ac. da RL de 6.3.96, in CJ, 1996, tomo 2, pgs.
161/2, pelo que o quesito 7º não podia ser dado como provado com base num
depoimento testemunhal;
2ª À seguradora cabe o ónus de provar que o segurado foi avisado por carta
registada (comunicação formal) e in casu não foi feita essa prova nem
apresentado o registo do envio do aviso escrito, pelo que a falta de observância
das formalidades prescritas na lei quanto à resolução do contrato é a prevista
no artº 220º do CC e determina a manutenção da sua vigência;
3ª O DL 162/84 é o antecessor do DL 105/94, aplicável in casu, e este diploma
apenas veio substituir ou «alterar o regime vigente por forma a diminuir os
prazos», como resulta do seu preâmbulo: Em nada mais alterou o regime do DL
162/84, mormente em termos de reduzir as garantias dos segurados quanto ao
regime do envio e de prova das formalidades de rescisão do contrato de seguro
até porque nem o poderia fazer, sob pena de inconstitucionalidade, por reduzir
as garantias de defesa dos cidadãos (artº 2º e 20º, nº 1, da CRP) e os direitos
dos consumidores (artº 60º, nº 1, da CRP), matérias que são da competência da
Assembleia da República [artº 165º, nº 1, alínea b) da CRP];
4ª Mantendo-se o seguro vigente e tendo a recorrida feito prova perante a
recorrente dos sinistros, com o envio dos competentes justificativos, devia a
recorrente satisfazer a indemnização do respectivo valor, pois que os sinistros
estão cobertos pela apólice contratada;
5ª O douto acórdão recorrido fez correcta apreciação dos factos e aplicação das
normas jurídicas citadas nas conclusões anteriores’.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 1 de Fevereiro
de 2005, concedeu a revista, por forma a ficar prevalecente a decisão da
‘improcedência da acção decretada na 1ª instância’.
Em síntese, nesse aresto foi considerado:-
- que os Decretos-Leis números 105/94 (seus artigos 1º, nº 1,
4º, 5º, 11º e 12º) e 142/2000, de 15 de Julho (seus artigos 7º e 8º)
estabeleceram clara diferença, referentemente ao Decreto-Lei nº 162/84, de 18 de
Maio, na regulamentação da matéria ligada:
- à obrigação das seguradoras em avisar por escrito
os tomadores do seguro da data em que os prémios de seguro ou as fracções eram
devidos;
- à obrigatoriedade de dos «avisos» constarem as
consequências da falta de pagamento dos prémios, nomeadamente a data a partir da
qual o contrato era automaticamente resolvido;
- ao estabelecimento do ónus, a cargo das
seguradoras, de, em caso de dúvida, provarem o envio do «aviso»;
- ao estabelecimento, no caso de falta de pagamento
dos prémios ou fracções nas datas indicadas, da constituição em mora dos
tomadores do seguro e da automática resolução dos contratos de seguro, sem
possibilidade de reposição em vigor, nas situações em que hajam decorrido
sessenta dias desde a constituição em mora;
- que, se, perante o Decreto-Lei nº 162/84, se poderia
defender a natureza da formalidade ad substanciam do aviso de recepção da carta
registada que comunicava a suspensão da garantia decorrente do seguro, isso já
não era defensável no domínio do Decreto-Lei nº 105/84, pelo que as seguradoras
podem agora demonstrar o ónus de envio do «aviso» por qualquer forma,
nomeadamente por intermédio de prova testemunhal;
- que, como pelo Decreto-Lei nº 105/94 foi revogada toda a
anterior legislação que contrariasse o disposto nesse diploma, não se podia
sustentar que ele apenas veio alterar os prazos, mantendo o anterior regime de
«avisos» e seu registo;
- que se não via como podia ‘afrontar o estado de direito
democrático e o princípio da confiança que nele está ínsito, impedir o acesso ao
direito e aos tribunais ou atentar contra os interesses e direitos dos
consumidores’, ‘a exigência, ou não, de um aviso de recepção na indicação da
data do pagamento do prémio de seguro - data já fixada na apólice - ’.
Notificada deste aresto, veio a autora interpor recurso para o
Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, o que fez por intermédio de requerimento onde disse:-
‘(...)
O recurso visa a apreciação do regime do DL
105/94, de 23 de Abril (maxime dos seus artºs 4º e 5º), que sucedeu ao DL
162/84, de 18 de Maio.
A questão foi suscitada na resposta à
alegação do recurso de revista nos seguintes termos:
- O DL 162/84 é o antecessor do DL 105/94,
aplicável in casu. E o DL 105/94 apenas veio substituir ou «alterar o regime
vigente por forma a diminuir os prazos», como resulta do seu preâmbulo. Era essa
a sua preocupação: «que as garantias do seguro sejam válidas sem que o prémio
tenha sido pago, para além de um determinado período de tempo considerado
razoável». Em nada mais alterou o regime do DL 162/84, mormente em termos de
reduzir as garantias dos segurados quanto ao regime do envio e de prova das
formalidades de rescisão do contrato de seguro.
- E nem o poderia fazer, sob pena de
inconstitucionalidade, por reduzir as garantias de defesa dos cidadãos (artº 2º
e 20º, nº 1, da CRP) e os direitos dos consumidores (artº 60º, nº 1, da CRP),
matérias que são da competência da Assembleia da República [artº 165º, nº 1,
alínea b) da CRP] . É um caso paralelo ao da citação postal simples implantada
pelo DL 183/2000, só que muito mais frágil e perigoso (no caso do DL 105/94),
porque a expedição ou envio do aviso não estão sequer rodeados das cautelas
mínimas que o legislador colocou na citação (artº 236º-A).
Conclusão 3ª :O DL 162/84 é o antecessor do
DL 105/94, aplicável in casu, e este diploma apenas veio substituir ou «alterar
o regime vigente por forma a diminuir os prazos», como resulta do seu preâmbulo:
Em nada mais alterou o regime do DL 162/84, mormente em termos de reduzir as
garantias dos segurados quanto ao regime do envio e de prova das formalidades de
rescisão do contrato de seguro até porque nem o poderia fazer, sob pena de
inconstitucionalidade, por reduzir as garantias de defesa dos cidadãos (artº 2º
e 20º, nº 1, da CRP) e os direitos dos consumidores (artº 60º, nº 1, da CRP),
matérias que são da competência da Assembleia da República [artº 165º, nº 1,
alínea b) da CRP].
O STJ, conhecendo da questão, entendeu que
não ver laivo de inconstitucionalidade.
O problema tinha sido levantado em termos
idênticos na apelação’.
O Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, por
despacho de 3 de Maio de 2005, admitiu o recurso, tendo os autos sido remetidos
ao Tribunal Constitucional em 23 seguinte.
2. Entende-se ser de proferir decisão ex vi do nº 1 do artº
78º-A da Lei nº 28/82.
Como se viu, pretende a ora recorrente que este Tribunal
aprecie o «regime» do Decreto-Lei nº 195/94, nomeadamente os seus artigos 4º e
5º.
Em primeiro lugar, não pode, de todo em todo, ser considerado
como objecto adequado de um recurso de fiscalização concreta a apreciação da
globalidade de um regime constante de um dado diploma legal se, como na situação
sub specie acontece, a ratio juris da decisão pretendida impugnar se esteou tão
só em determinado ou determinados preceitos desse diploma.
É certo que, no requerimento de interposição do recurso, a
impugnante utilizou a menção ‘(maxime artºs 4º e 5º)’, reportados ao Decreto-Lei
nº 105/94.
Todavia, como resulta do resumo da fundamentação carreada pelo
aresto ora querido colocar sob a censura deste Tribunal, a questão por ele
decidida prendeu-se com a de saber se, em face do que se consagra naqueles
preceitos, conexionadamente com o artº 1º e com a revogação, operada pelo artº
11º, este como aquele, ainda do mesmo diploma, de toda a legislação anterior
sobre a matéria e que contrariasse o nele disposto, era de considerar que ainda
era de exigir que o «aviso», por escrito, da seguradora ao tomador (e esse
«aviso» unicamente se podia consubstanciar naquele a que se refere o nº 1 do
artº 4º), havia de ser expedido por correio registado com aviso de recepção.
Ora sobre esta questão, o Alto Tribunal a quo entendeu, num
primeiro passo, que a regulação posterior à revogação do Decreto-Lei nº 162/84
apontava no sentido de o «aviso» a expedir pelas seguradoras para os tomadores
do seguro («aviso» esse no qual se haveriam de dar as indicações da data em que
os prémios ou fracções era devidos e das consequências da falta do respectivo
pagamento - que eram as de os tomadores, para além daquela data, se constituírem
em mora e, decorridos 60 dias, ficarem os contratos de seguro automaticamente
resolvidos sem possibilidade de serem repostos em vigor) não tinha de o ser por
meio de correio registado com aviso de recepção. Num segundo passo, considerou o
acórdão que com aquela regulação se eliminou qualquer prazo de suspensão tal
como o previsto no artº 5º do Decreto-Lei nº 162/84. E, num terceiro, ponderou
que, atento o que se estipula no nº 3 do artº 4º, a prova do mencionado «aviso»
(ainda que se entendesse que, no domínio do falado Decreto-Lei nº 162/84, era
uma formalidade ad substanciam dever ser o «aviso» remetido por correio
registado com aviso de recepção) poderia ser feita pela seguradora por qualquer
meio de prova, incluindo a prova testemunhal.
Foi, pois, com esta dimensão interpretativa que a questão foi
decidida.
E, como deflui das cabidas pelas processuais elaboradas pela
recorrente e de que acima se fizeram as pertinentes transcrições, um tal sentido
interpretativo nunca por ela foi, qua tale, equacionado do ponto de vista da sua
conformidade constitucional.
2.1. Todavia, mesmo que, com benevolência, se entenda o
contrário, ou seja, que, efectivamente, foi desiderato da impugnante suscitar a
questão da inconstitucionalidade do já citado sentido, e que é a ele que se
refere no requerimento de interposição do vertente recurso, então haverá de
concluir-se que este é manifestamente infundado.
Anotando-se desde logo que não compete a este Tribunal
sindicar se, a nível do direito ordinário, a interpretação sufragada na decisão
recorrida é, ou não, a mais defensável - já que os seus poderes cognitivos se
circunscrevem a saber se a interpretação concretamente prosseguida é
constitucionalmente censurável - o que é certo é que não é concebível que uma
disposição de carácter meramente procedimental, tal como a estabelecida no nº 1
do artº 5º do Decreto-Lei nº 162/84 (ou seja, a de o «aviso» dever ser remetido
por correio registado com aviso de recepção), possa ser visualizada como sendo
inerente à consagração inarredável de qualquer direito ou garantia fundamentais
dos cidadãos, inserindo-se essa matéria (e, note-se, o próprio Decreto-Lei
nº162/84, que prescreveu essa formalidade, não foi emitido pelo órgão
parlamentar) na competência legislativa da Assembleia da República.
Sequentemente, também a alteração de tal procedimento não se lobriga que
houvesse de ser reservada a esse órgão legiferante.
E, mesmo tomando como parâmetro o nº 1 do artigo 60º da
Constituição, na perspectiva de terem os consumidores direito à informação,
igualmente se não divisa em que é que, com a regulação vigente após o
Decreto-Lei nº 150/94 - e dado que nela se continua a exigir que as seguradoras
informem por escrito os tomadores dos seguros, com, pelo menos, dez dias de
antecedência, das datas de pagamento dos prémios ou fracções e das consequências
do não pagamento -, a alteração procedimental sobre a forma de expedição do
«aviso» haveria de ser incluída na reserva de competência relativa do
Parlamento.
É que, não existe nenhuma «diminuição» da garantia dos
«consumidores/tomadores» dos seguros, pois que, como se viu, continua a
exigir-se a dação de informação das datas de pagamento dos prémios e fracções e
da totalidade das consequências do não pagamento. Aliás, o não pagamento não
redunda numa imediata resolução dos contratos de seguro, mas sim, em primeiro
lugar, na constituição em mora por banda dos tomadores e, só passados sessenta
dias, é que operará a automática resolução.
Não é, desta arte, «tocado», «constrito» ou restringido pela
alteração «adjectiva» em causa, qualquer «núcleo» essencial do direito à
informação dos «consumidores/tomadores» dos seguros, sendo certo que (e
independentemente de, como se assinalou, a formalidade consistente no envio do
aviso por correio registado anteriormente constar de diploma também não emanado
da Assembleia da República) o ónus de prova do envio do aviso recai sobre as
seguradoras, não incumbindo, pois, aos tomadores efectuarem o que poderia, em
abstracto, ser considerado como uma «prova diabólica», no sentido de sobre eles
incidir o ónus de demonstração de que não foram avisados das datas de pagamento
dos prémios ou fracções e das consequências da conduta omissiva.
Por outro lado, não se lobriga minimamente em que é que -
ainda que se admita que, no âmbito do Decreto-Lei nº 162/84, o envio do aviso
por via de correio registado fosse considerado uma formalidade as substanciam -
o diverso procedimento no tocante ao aviso (e mesmo a supressão da suspensão da
garantia concedida pelos contratos de seguro) introduzido a partir da vigência
do Decreto-Lei nº 105/94 vai, por qualquer forma, coarctar os
«consumidores/tomadores» dos seguros num direito de acesso aos tribunais
(ilustrativo desta asserção é, aliás, a existência dos presentes autos), quando,
como já se expôs, o ónus da prova do envio do aviso recai sobre as seguradoras.
2.1.1. Esgrime ainda a recorrente com a ofensa do artigo 2º da
Lei Fundamental, pela circunstância de, com a nova regulamentação, serem
«reduzidas» ‘as garantias de defesa dos cidadãos’.
Para além de já se ter visto que essa redução não operava,
sempre se poderia impostar a questão de saber se, com a invocação do indicado
artigo 2º, não quereria a impugnante brandir com um argumento segundo o qual os
tomadores de seguro foram «surpreendidos» com a alteração da regulamentação no
que se reporta à anterior exigência de o «aviso» ser expedido por via de correio
registado com aviso de recepção (e de ter desaparecido o período de suspensão do
contrato de seguro), pelo que a sua confiança na manutenção do anterior satus
quo, adveniente do pretérito regime, se mostraria abalada.
Ora, mesmo que fosse este o hipotético desiderato da
recorrente, ao fazer a invocação do artigo 2º do Diploma Básico, também neste
particular a questão se mostraria manifestamente infundada.
Na realidade, como tem sido jurisprudência deste Tribunal, o
princípio da confiança ínsito no Estado de direito democrático não aponta, sem
mais, para que não seja permitido ao legislador ordinário proceder à alteração
nos regimes jurídicos existentes, ainda que com repercussão nas situações
jurídicas (ou nos efeitos das situações) constituídas à sombra do antecedente
regime.
O que aquele princípio da protecção da confiança condensado no
falado artigo 2º postula é ‘uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e
da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo
de certeza e de segurança no direitos das pessoas e nas expectativas que a elas
são juridicamente criadas’ (cfr., por entre muitos outros, o Acórdão nº 303/90,
publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 17º volume, 65 a 95).
E, para se continuarem a utilizar as palavras do citado
aresto, em face daquela ideia, ‘a normação que, por sua natureza, obvie de forma
intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva, àqueles mínimos de certeza e
segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como
dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida
como não consentida pela Lei Básica’.
Também teve o Tribunal ocasião de dizer, no Acórdão nº 17/84
(citados Acórdãos ... , 2º volume, 375 a 382), que ‘o cidadão deve poder prever
as intervenções que o Estado poderá levar a cabo sobre ele ou perante ele e
preparar-se para se adequar a elas. Ele deve poder confiar em que a sua actuação
de acordo com o direito seja reconhecida pela ordem jurídica e assim permaneça
em todas as suas consequências jurídicas relevantes’.
Porém, porque a ordem jurídica não é, nem pode ser, imutável,
há que reconhecer ao legislador uma ampla margem de liberdade conformadora, como
será o caso da adopção de medidas que, no domínio procedimental ou adjectivo,
tornem este mais eficaz e célere, com os inerentes benefícios para a
prossecução do próprio interesse público geral, medidas essas que, sob pena de
perder de em vista a consecução desses objectivos, haverão de aplicar-se a
situações já passadas ou em curso.
Ponto é que, como se depara límpido e resulta da
jurisprudência deste Tribunal, a normação posterior (cfr., por exemplo, Acórdão
nº 86/84, nos Acórdãos ... , 4º volume, 81 a 133) não venha, acentuada ou
patentemente, a alterar o conteúdo das situações de facto já alcançadas como
consequência do direito anterior.
E, por isso, em casos, quer de retroactividade, quer de
retrospectividade (e afora as situações em que, constitucionalmente, está vedada
a retroactividade, como são os domínio penal e da proibição de criação de
impostos retroactivos), o que o princípio de que curamos obstacula é que as
alterações impostas represente algo de intolerável, arbitrário ou patentemente
opressivo.
O que, seguramente, se não verifica com a mera supressão da
formalidade de envio da comunicação por meio de correio registado com aviso de
recepção, ficando a cargo das seguradoras o ónus de provar que tal comunicação
foi efectuada.
Neste contexto, nega-se provimento ao recurso, condenando-se a
impugnante nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em seis unidades
de conta.”
Da transcrita decisão reclamou, ao abrigo do nº 3 do artº
78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, a A., fazendo-o nos seguintes termos:-
“(...)
1. Resulta evidente do recurso que o que se visa é a
fiscalização concreta dos artºs 4º e 5° do DL 105/94, de 23 de Abril, e não de
todo um regime legal (fls. 552), e que o problema nada tem a ver com a alteração
inesperada da legislação (fls. 555).
2. A redução das garantias fundamentais dos cidadãos
(f1s. 553/4) resulta precisamente do facto de, não se exigindo o aviso de
recepção para a prova das formalidades de rescisão do seguro, a prova poder ser
feita por qualquer meio, nomeadamente testemunhal, como foi neste processo, por
um qualquer funcionário da companhia de seguros, que nada teve a ver com o caso
e que se baseou única e exclusivamente nas rotinas e no sistema informático (ver
fundamentação de facto de fls. 314 c segs.).
E nem se diga o não pagamento não redunda numa
imediata resolução dos contratos, mas apenas na constituição em mora (f1s. 554),
pois que o aviso é feito simultaneamente da mora e da resolução é feito
simultaneamente no mesmo documento e por isso não se recebendo a resolução não
deixa de ser automática (doc. de 16.6.95, junto na 1.ª audiência de julgamento).
Não se trata, pois de uma questão de informação dos
consumidores, mas de prova do envio e da comunicação dessa informação.
Ora, como é óbvio, ao deixar de se exigir o envio
registado do aviso, automaticamente são diminuídas as garantias de defesa do
consumidor, seja quanto ao envio efectivo, seja quanto à própria prova de que
essa formalidade foi cumprida.
Nessa medida se arguiu oportunamente a inconstitucionalidade”.
Ouvida sobre a reclamação, a Companhia de Seguros D., não veio
a efectuar qualquer «pronúncia».
Cumpre decidir.
2. Diz a reclamante que com o presente recurso se visa a
fiscalização concreta da compatibilidade com a Constituição por parte dos
artigos 4º e 5ºdo Decreto-Lei nº 105/94, de 23 de Abril e não de todo o regime
legal estabelecido por aquele diploma e que a questão «nada tem a ver com a
alteração inesperada da legislação».
Ora, a decisão agora impugnada não deixou de se pronunciar,
quer sobre a disciplina introduzida pelos citados artigos 4º e 5º, com a
projecção decorrente da revogação do Decreto-Lei nº 162/84, acarretando uma
eventual violação do princípio da confiança, quer sobre a também eventual
diminuição sobre os «direitos dos consumidores» que aquela disciplina poderia
consequenciar, diminuição essa resultante de se ter deixado de exigir que o
«aviso» fosse expedido por correio registado, ficando, porém, a cargo das
seguradoras a prova do envio do aviso.
Entende o Tribunal que a decisão ora reclamada não merece
censura, seja em relação ao seu teor decisório, seja em relação à fundamentação
a ela carreada, não se vislumbrando que a peça reclamatória tenha aduzido
qualquer argumento susceptível de infirmar aquela decisão, sendo evidente que,
no tocante ao ónus da prova a cargo das seguradoras, é estranho à competência
deste órgão de administração de justiça a questão da forma concreta e específica
como foi, pela ordem dos tribunais judiciais, dado como provado o envio do
«aviso» à tomadora do seguro.
Em face do exposto, indefere-se a reclamação, condenando-se a
impugnante nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em vinte
unidades de conta.
Lisboa, 13 de Julho de 2005
Bravo Serra
Gil Galvão
Artur Maurício