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Processo nº 321/96
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - No Tribunal Colectivo do Círculo de Mafra, sob acusação do Ministério Público, foram julgados os arguidos A., B., C., D. e E., vindo o primeiro - o único a que o presente recurso se reporta - a ser condenado, por acórdão de 20 de Julho de 1995, como autor de dois crimes de sequestro previstos e punidos pelo artigo 160º, nºs 1 e 2, alíneas b) e g) e 3, do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão, por cada um; como autor de um crime de rapto de menor, em forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22º, 23º e 163º, nºs 1 e 2 do Código Penal, na pena de 5 anos de prisão; como autor de um crime de furto qualificado previsto e punido pelos artigos 296º, 297º, nº 2, alíneas b), c) e h) do Código Penal, na pena de um ano e 8 meses de prisão; em cúmulo jurídico na pena única de 13 anos de prisão.
2 - No decurso da audiência de julgamento, o primeiro arguido interpôs, além do mais, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do despacho que indeferiu um requerimento no qual se impetrava a leitura do depoimento de uma testemunha lavrado aquando da sua inquirição no inquérito.
Relativamente a este recurso, desenvolveu motivação assim concluída:
'a) A testemunha F. sonegou em audiência factos decisivos para a defesa que referira e ficaram a constar do auto de inquirição lavrado no inquérito; b) Contra-instada, disse ter prestado, anteriormente, depoimento livre; c) Requerido o confronto da testemunha com a referida peça processual do inquérito, o Tribunal indeferiu, invocando o disposto no artigo 356º, nº 5, do C.P.P.; d) Que, no entanto, apenas se aplica aos depoimentos anteriores à audiência de testemunhas não presentes ou que recusem a depôr licitamente; e) Regendo antes, no caso sub judice, os artigos 348º, nº 1, e 138º, nº 4, ambos do C.P.P.; f) Que permitem o deferimento da pretensão do recorrente; g) Por um lado, porque a conveniência de mostrar à testemunha a peça processual do inquérito se justifica, por ter já deposto no sentido da versão da defesa, quando, em audiência, silenciou tal posição; h) Por outro lado, porque o princípio da publicidade da audiência, como sistema mediador, entre a total e pública disponibilidade dos dados da causa e a íntima convicção dos julgadores em ordem à procura objectiva da verdade, sempre se veria prejudicado pela simples leitura do processo pelos juízes; i) Violou, pois, o despacho recorrido as disposições da Lei citadas em último lugar, por erradamente, ter convocado diferente normativo; j) E, assim, também o disposto no artigo 32º, nº 1, e nº 5, da Constituição da República, por entorse dos princípios do acusatório e do contraditório: K) Deve, pois, ser revogado, para que se ordene o pretendido confronto, o qual, por ser essencial à justa decisão e, portanto, como omissão ter revestido a natureza de nulidade, dará lugar à repetição da audiência, já irrecuperável.'
E o mesmo arguido veio a recorrer também da decisão condenatória proferida pelo Tribunal Colectivo havendo para tanto formulado, em conclusão, a seguinte fundamentação motivadora:
'a) O Tribunal deu como provado que o recorrente não estava presente, quando os autores materiais dos crimes, por que foi condenado, decidiram abandonar o local dos delitos, sendo certo que, segundo o plano dito aprovado por todos, tal presença seria essencial, não só para a determinação de todos eles, como para verificação do resultado pretendido; b) Mas não averiguou e não se pronunciou sobre as razões de tal evento; c) Ora, é concebível que, segundo essas razões, possa configurar-se um caso de desistência relevante da tentativa; d) Não devendo omitir-se que foram indeferidas à defesa diligências probatórias em audiência que poderiam servir ao debate e esclarecimento do tema; e) Há, pois, insuficiência da matéria de facto apurada, com vista à prolacção duma solução justa; f) O que, nos termos do artigo 410º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal, conjugado com o artigo 426º do mesmo diploma, impõe o reenvio do processo para novo julgamento; g) Por outro lado, a sentença recorrida limita-se a indicar os meios de prova que serviram à convicção do TRIBUNAL; h) Não refere os elementos que, em razão da regra e da experiência, ou de critérios lógicos, constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse no sentido que foi declarado; i) Ora, o artigo 374º, nº 2, do C.P.P., impõe uma motivação da sentença que cumpra o programa escamoteado da recorrida; j) E o artigo 379º do mesmo Código sanciona com a nulidade a sentença tirada à revelia do dito programa; k) É, pois, a sentença recorrida nula, por violação das sobreditas normas legais; l) Que devem ser interpretadas e aplicadas no sentido de prescreverem a obrigatoriedade de, na motivação, de facto da sentença se fazer constar, não só os meios de prova, mas os elementos directores da razoabilidade da convicção do Tribunal; m) Por fim, mesmo que não procedam as conclusões precedentes, o que se alega apenas por dever de patrocínio, as penas parcelares e unitária, aplicadas ao recorrente, estão sobregraduadas; n) Na verdade, atendendo às circunstâncias do caso, ao grau da ilicitude e da culpa, segundo o critério do artigo 72º, do Código Penal, não se justifica usar outro critério que não seja acrescentar menos que uma unidade aos mínimos legais; o) Sendo certo que a matéria comprovada integra não o crime de rapto de menor mas o crime de extorsão p. p. no artigo 317º, nº 2, e 306º, nº 3, alínea a) do Código Penal; p) Pelo que as penas parcelares justas e adequadas são aquelas a que se fez referência em 44º e 45º da presente motivação.'
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3 - Por acórdão de 28 de Fevereiro de 1996, o Supremo Tribunal de Justiça não teve por procedente o primeiro recurso, concedendo parcial provimento ao segundo e fixando, em cúmulo jurídico, a pena única a cumprir pelo arguido em 12 anos de prisão.
Inconformado com o assim decidido interpôs então o arguido, sob invocação do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, recurso para o Tribunal Constitucional 'no que diz respeito à improcedência do recurso interlocutório, em que discordou do indeferimento do confronto duma testemunha ouvida em audiência com o auto de inquirição da mesma incluído no inquérito e ainda no que diz respeito ao não atendimento das razões alegadas no recurso da sentença de 1ª instância quanto à nulidade desta, por imotivação de facto'.
Notificado depois, nos termos do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, para indicar quais as normas cuja inconstitucionalidade pretendia ver apreciadas no recurso, veio referir como tais as normas dos artigos 356º, nº 5 e 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, na interpretação que lhes foi dada pelo Supremo Tribunal de Justiça, ajuntando, relativamente à
última das normas indicadas, que a sua inconstitucionalidade apenas foi suscitada no requerimento de interposição do recurso por ter sido 'questão que surpreendeu o Recorrente na decisão recorrida, já que o Recorrente havia alegado a nulidade da sentença de 1ª instância por imotivação, nulidade que não foi acolhida, devido à interpretação feita pelo S.T.J. da norma em crise'.
Nas alegações entretanto oferecidas concluiu assim:
'a) O entendimento de que o artigo 356º, nºs 2 b) e 5, do C.P.P., no sentido de consagrar a proibição do confronto da testemunha, ouvida em audiência, com o depoimento que prestou no inquérito, este último mais favorável à defesa, é inconstitucional; b) Na verdade, prejudica o amplo âmbito e alcance do artigo 32º, nº 1, da C.R.P., perante o qual as verdadeiras proibições do citado artigo do Código de Processo Penal devem ceder; c) É que a defesa, como princípio constitucional, é de melhor hierarquia que a geométrica ordem do processo; d) Por outro lado, o referido entendimento sempre violaria o princípio do contraditório previsto no nº 5 do artigo 32º da C.R.P., pois, estabelecido este como modalidade exponencial do 'favor libertatis', não se compadece com quaisquer entorces da possibilidade dum mais largo e agudo debate cruzado das provas, por parte do arguido e defensor; e) Por fim, é também inconstitucional o artigo 374º, nº 2, do C.P.P., no entendimento que lhe foi dado pelo S.T.J., já que a motivação da convicção
íntima dos juízes, por simples enunciação dos meios de prova, inviabiliza o ajuizamento, no Tribunal de Recurso, do erro de convicção, tanto porque este seria indemonstrável, tanto porque o Tribunal Superior apenas pode conhecer da matéria de facto, para a criticar, através do texto sentencial. f) Em todo o caso, a dita interpretação do preceito legal em causa contraria directamente o artigo 208º, nº 1, da C.R.P., pois este exige, segundo a sua história e funcionalidade, uma justificação racional das sentenças, que não se alcançaria, remetendo a convicção íntima para o apoio na mera nominação dos depoentes, sem se dizer como depuseram e porque são credíveis.'
Por seu turno, o senhor Procurador-Geral Adjunto, em contralegação, desenvolvendo argumentação contrária, rematou com o seguinte quadro conclusivo:
' 1 - Não é inconstitucional, por não violar as garantias de defesa do arguido, o disposto no artigo 356º, nº 5, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que não é permitida a leitura em audiência de declarações prestadas por testemunha perante um órgão de polícia criminal no decurso do inquérito, depoimento esse alegadamente favorável à defesa, quando os sujeitos processuais indicados na alínea b) do nº 2 do mesmo preceito, para que o seu nº 5 remete, não estiveram de acordo na sua leitura.
2 - Deve, assim, negar-se provimento ao recurso, confirmando-se o acórdão recorrido na parte impugnada.'
Os autos correram depois os vistos de lei, cabendo agora apreciar e decidir.
Mas, porque a questão de constitucionalidade da norma do artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, apenas foi suscitada no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, alegando-se impossibilidade processual de invocação anterior, cumpre averiguar desde já se, quanto a tal matéria, se mostram reunidos os pressupostos de que depende o conhecimento do recurso.
Vejamos então.
4 - Em conformidade com o disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b) da Constituição e 70º, nº 1, alínea b) da Lei nº 28/82, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Vem este Tribunal entendendo, em jurisprudência uniforme e reiterada, que o pressuposto de admissibilidade deste tipo de recurso - do qual o recorrente se serviu - no atinente ao exacto significado da locução 'durante o processo' utilizado em ambos os normativos, deve ser tomado não num sentido puramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância), mas num sentido funcional, tal que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão. Ou seja: a inconstitucionalidade haverá de suscitar-se antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de inconstitucionalidade) respeita. Um tal entendimento decorre do facto de se estar justamente perante um recurso para o Tribunal Constitucional, o que pressupõe, obviamente, uma anterior decisão do tribunal a quo sobre a questão
(de constitucionalidade) que é objecto do mesmo recurso.
Deste modo, porque o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação da sentença e porque a eventual aplicação de uma norma inconstitucional 'não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna esta obscura ou ambígua', há-de ainda entender-se que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de inconstitucionalidade (cfr. sobre este tema, por todos, os Acórdãos nºs 62/85 e 94/88, Diário da República, II série, respectivamente, de 31 de Maio de 1985 e de 22 de Agosto de 1988).
Todavia, a orientação geral assim definida, não será de aplicar em determinadas situações de todo excepcionais, em que os interessados não disponham de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes do proferimento da decisão, caso em que lhes deverá ser salvaguardado o direito ao recurso de constitucionalidade.
Na verdade, este Tribunal tem vindo a entender, num plano conformador da sua jurisprudência genérica, que naqueles casos anómalos em que o recorrente não disponha de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade durante o processo, isto é, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo sobre a matéria a decidir, ainda assim existirá o direito ao recurso de constitucionalidade (cfr. por todos os acórdãos nºs
136/85 e 479/89, o primeiro, no Diário da República, II série, de 28 de Janeiro de 1986, e o segundo, no Boletim do Ministério da Justiça, nº 389, pp. 222 e ss.).
Será que a situação posta no presente processo poderá reconduzir-se à condição de 'caso excepcional' para dispensa daquele pressuposto de admissibilidade do recurso?
Seguramente que a resposta há-de ser negativa.
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5 - Nos termos do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, que rege sobre os requisitos gerais da sentença, 'ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal'.
Em conformidade com este preceito, na fundamentação passou a ser obrigatória a indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Como assinala Maia Gonçalves (cfr. Código de Processo Penal Anotado, 7ª ed., 1996, pp. 547) 'trata-se aqui de um sistema semelhante ao que vigora no processo civil desde 1961 e que alguma doutrina a partir de então sustentou ser aplicável em processo penal, entendimento que porém não teve acolhimento nos tribunais superiores'.
O recorrente, na motivação desenvolvida perante o Supremo Tribunal de Justiça, depois de aduzir que a sentença se limitou 'a indicar os meios de prova que serviram à convicção do Tribunal' não referindo 'os elementos que, em razão da regra e da experiência, ou de critérios lógicos, constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse no sentido que foi declarado' concluiu no sentido da sua nulidade por ofensa do princípio contido no artigo 379º do Código de Processo Penal.
Mas, no desenvolvimento lógico da argumentação assim expendida, não suscitou perante o tribunal recorrido a inconstitucionalidade da norma do artigo 374º, nº 2, na eventualidade de aquele entendimento não vir ali a ser perfilhado.
Com efeito, o acórdão sob recurso rejeitou a interpretação propugnada pelo recorrente, suportando-se para tanto, além de outras, nas considerações seguintes:
'Quanto à indicação do substracto racional que conduziu à convicção do Tribunal pretendida pelo recorrente há que reconhecer que o mesmo resulta da fundamentação apontada. Esta destinava-se a esclarecer as partes de que o Tribunal se não serviu de meios ilegais de prova e de que a sua convicção resultou de um processo lógico e racional com base em dados concretos, não sendo uma decisão arbitrária. E dela resulta seguramente que o Tribunal alcançou a sua convicção apoiando-se nas declarações e depoimentos que aponta.
E sempre se dirá que não há que relatar os motivos de facto e de direito determinantes da convicção adquirida quanto aos factos, mas sim e diversamente, que fundamentar a decisão através da exposição dos respectivos motivos de facto e de direito. Isto é, a injunção legal é a da subsunção dos factos provados ao direito que se lhe tem como aplicável, com expressa indicação de um e do outro'.
Ora, na hipótese em apreço, nada impedia o recorrente de confrontar o Supremo Tribunal de Justiça com a questão da inconstitucionalidade daquela norma, na eventualidade de dela vir a ser feita a interpretação que lhe foi concedida. E nada impedia, não só por logo haver sido questionado o entendimento interpretativo que lhe foi dado pelo Tribunal Colectivo, arguindo-se a nulidade da sentença, como era inteiramente previsível, dada a orientação reiteradamente estabelecida na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça a propósito do sentido daquela norma, que a mesma viesse a ser aplicada com o alcance que lhe veio a ser fixado.
É que, terá de ponderar-se, desde logo, que não pode deixar de recair sobre as partes em juízo, o ónus de considerarem as várias possibilidades interpretativas das normas de que se pretendem socorrer, e de adoptarem, em face delas, as necessárias cautelas processuais (por outras palavras, o ónus de definirem e conduzirem uma estratégia processual adequada). E isso - acentuar-se-á - também logo mostra como a simples 'surpresa' com a interpretação dada judicialmente a certa norma não será de molde (ao menos, certamente, em, princípio) a configurar uma dessas situações excepcionais em que seria justificado dispensar os interessados da exigência da introdução 'prévia' da questão de inconstitucionalidade perante o tribunal a quo (cfr. neste sentido o Acórdão nº 479/89, cit).
A interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça à norma do artigo 374º, nº 2, era de todo em todo previsível, cabendo por isso ao recorrente o ónus de suscitar a respectiva questão de constitucionalidade por forma a confrontar aquele tribunal com a obrigatoriedade de se pronunciar sobre tal matéria.
Não havendo assim procedido há-de concluir-se no sentido da inverificação de um dos pressupostos de admissibilidade do recurso, não se tomando por isso, nesta parte, conhecimento do seu objecto.
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II - A fundamentação
1 - O julgamento de mérito circunscreve-se assim à questão da constitucionalidade da norma do artigo 356º, nºs 2, alínea b) e 5, do Código de Processo Penal [o recorrente quando notificado nos termos do artigo 75º-A para indicar as normas cuja inconstitucionalidade pretendia ver apreciada referiu apenas a norma do artigo 356º, nº 5, vindo posteriormente na alegação de recurso a acrescentar a este preceito o do artigo 356º, nº 2, alínea b). Tendo em conta a íntima conexão existente entre estas duas normas, que entre si se interpenetram, considera-se que ambas se integram no objecto do recurso].
Para melhor compreensão dos desenvolvimentos ulteriores transcreve-se na íntegra a disposição em que aquela norma se acha inscrita:
Artigo 356º
(Leitura permitida de autos e declarações)
1. Só é permitida a leitura em audiência de autos:
a) Relativos a actos processuais levados a cabo nos termos dos artigos 318º,
319º e 320º, ou b) De instrução ou de inquérito que não contenham declarações do arguido, do assistente, das partes civis ou de testemunhas.
2. A leitura de declarações do assistente, das partes civis e de testemunhas só é permitida, tendo sido prestadas perante o juiz, nos casos seguintes:
a) Se as declarações tiverem sido tomadas nos termos dos artigos
271º e 294º;
b) Se o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo na sua leitura;
c) Tratando-se de declarações obtidas mediante precatórias legalmente permitidas.
3. É também permitida a leitura de declarações anteriormente prestadas perante o juiz:
a) Na parte necessária ao avivamento da memória de quem declarar na audiência que já não recorda certos factos; ou
b) Quando houver, entre elas e as feitas em audiência, contradições ou discrepâncias sensíveis que não possam ser esclarecidas de outro modo.
4. É ainda permitida a leitura de declarações prestadas perante o juiz ou o Ministério Público, se os declarantes não tiverem podido comparecer por falecimento, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade duradoura.
5. Verificando-se o pressuposto do nº 2, alínea b), a leitura pode ter lugar mesmo que se trate de declarações prestadas perante o Ministério Público ou perante órgãos de política criminal.
6. É proibida, em qualquer caso, a leitura de depoimento prestado em inquérito ou instrução por testemunha que, em audiência, se tenha validamente recusado a depor.
7. Os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado da sua recolha, não podem ser inquiridas como testemunhas sobre o conteúdo daquelas.
8. A permissão de uma leitura e a sua justificação legal ficam a constar da acta, sob pena de nulidade.
Regulam-se neste artigo os casos em que, na audiência de julgamento, é autorizada a leitura de autos lavrados no processo. (Sobre a leitura das declarações do arguido rege o artigo 357º).
No domínio do Código de Processo Penal de 1929, a matéria correspondente achava-se regulada nos artigo 438º (leitura do depoimento prestado na instrução de testemunha que comparece no julgamento) e 439º (leitura do depoimento prestado na instrução de testemunha que não compareceu no julgamento).
A norma do artigo 438º proibia a leitura desses depoimentos
'salvo depois de elas haverem deposto, a fim de esclarecerem ou completarem os depoimentos prestados na audiência de julgamento'.
E a norma do artigo 439º autorizava a leitura do depoimento
'se o houver escrito nos autos, e quando quem o produziu o requeira ou o tribunal o ordene'.
Como assinala Maia Gonçalves (cfr. Código de Processo Penal, cit., p. 523) o bom entendimento do regime contido nos artigos 356º e 357º do Código em vigor é iluminado pela doutrina fixada no parecer da Comissão Constitucional nº 18/81, de 27 de Junho de 1981 (Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 16, pp. 147 e ss) em que se fundou a Resolução nº 146-A/81, do Conselho da Revolução, publicada no Diário da República, I Série, de 3 de Julho de 1981.
Esta resolução, aceitando por inteiro o parecer atrás referenciado declarou 'com força obrigatória geral, por violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 439º do Código de Processo Penal, na medida em que permite a leitura em audiência de julgamento de depoimentos de testemunhas de acusação que não compareçam naquela audiência e às quais o arguido não tenha tido previamente a possibilidade jurídica de interrogar ou fazer interrogar'.
No essencial, o parecer da Comissão Constitucional ateve-se à seguinte fundamentação:
'Não, pois, tanto o princípio do contraditório quanto - isso sim - os princípios da oralidade e da imediação, é o que uma regulamentação como a do artigo 439º do Código de Processo Penal põe irremediavelmente em causa. É esta uma conclusão à volta da qual se reúne, aliás, pode dizer-se, a totalidade da doutrina estrangeira e que não deixa de ser acompanhada pelo doutrina nacional. Lendo o depoimento da testemunha faltosa, o juiz nem assume oralmente o material probatório respectivo, nem obtém a sua percepção de forma imediata, nem utiliza um meio de prova imediato.
Logo se dirá, porém, e com razão, não serem os princípios da oralidade e da imediação, em si mesmos considerados, princípios jurídico-constitucionais do processo penal. Mas se o não são em si mesmos podem sê-lo - e são-no efectivamente - nos seus reflexos sobre outros princípios constitucionalmente impostos. É o que aqui sucede.
Com efeito, quando em Tribunal se lê o depoimento de uma testemunha de acusação que ainda poderia ter sido ouvida oralmente, e quando, para mais, o depoimento tenha sido obtido em condições que não permitiram à defesa estar presente ou, inclusivamente, interrogá-la - quando isto suceda, tem de concluir-se que o regime do artigo 439º encurta inadmissivelmente e sem justificação bastante, as garantias de defesa do arguido e, nesta medida, viola o disposto no artigo 32º, nº 1, da Constituição.
Não se trata pois, a esta luz, de considerar por inteiro e irremissivelmente inconstitucional o artigo 439º do Código de Processo Penal - ao contrário do que sucederia v.g., se nele se visse uma violação do princípio do contraditório. Não haverá porventura, por exemplo, razão bastante para o considerar inconstitucional na parte em que permite a leitura de depoimentos de testemunhas de defesa (sem prejuízo de também essa solução poder ou dever considerar-se processualmente inconveniente). Mas há razão para tal o considerar, repete-se, quando, tratando-se de depoimentos de testemunhas de acusação, estas ainda pudessem vir a ser ouvidas e o tivessem sido anteriormente em condições que não permitiam ao arguido o exercício prático e efectivo do seu direito de defesa.'
A norma em apreço, respeitando embora à leitura de declarações de testemunha presente na audiência de julgamento, deve ser apreciada na sua vertente jurídico-constitucional à luz destes mesmos princípios.
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2 - Como é sabido, o princípio rector de todas as regras sobre produção de prova na audiência de julgamento consta do artigo 355º, nº 1, do Código de Processo Penal, segundo o qual 'não valem em julgamento nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tivessem sido produzidas ou examinadas em audiência'.
Por influxo deste princípio, como aliás resulta do nº 2 daquele dispositivo, a prova constante de actos processuais praticados anteriormente muito embora esteja à disposição do tribunal, não pode por este ser utilizada para efeitos de decisão se os respectivos autos não forem lidos em audiência.
A leitura dos autos e declarações autorizada pelo artigo 356º representa uma emanação da oralidade e publicidade da audiência, traduzindo-se porém em excepção ao princípio da imediação da prova, excepção justificada pela impossibilidade ou grande dificuldade da sua produção directa ou por outras razões pertinentes.
Mas, nas situações que, a título taxativo, são previstas naquele preceito houve o evidente propósito de acautelar as garantias de defesa do arguido, nomeadamente o princípio do contraditório estabelecendo-se um regime diferenciado em função, não só da natureza dos actos processuais, como também da autoridade judiciária ou de polícia criminal perante quem foram praticados.
Com efeito, destinguem-se ali, sucessivamente: (1) os actos processados com observância das formalidades estabelecidas para a audiência
[artigos 356º, nº 1, alínea a) e 318º, 319º e 320º]; (2) autos de instrução ou de inquérito que não contenham declarações do arguido, do assistente, das partes civis ou de testemunhas [artigo 356º, nº 1, alínea b)]; (3) declarações do assistente, das partes civis e de testemunhas prestadas perante o juiz quando destinadas a memória futura ou obtidas mediante precatórias legalmente permitidas [artigo 356º, nº 2, alíneas a) e c)]; (4) declarações anteriormente prestadas perante o juiz na parte necessária ao avivamento da memória de quem declarar na audiência que já não se recorda de certos factos ou quando houver entre elas e as feitas em audiência, contradições ou discrepâncias sensíveis que não possam ser esclarecidas de outro modo [artigo 356º, nº 3]; (5) declarações prestadas perante o juiz ou o Ministério Público se os declarantes não tiverem podido comparecer por falecimento, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade duradoura [artigo 356º, nº 4]; (6) declarações do assistente, das partes civis e das testemunhas prestadas perante o juiz e perante o Ministério Público ou órgãos de polícia criminal se o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo na sua leitura [artigo 356º, nºs 2, alínea b) e 5].
A diferenciação de tratamento estabelecida para a leitura em audiência dos diversos actos ali previstos radica na sua particular natureza e conteúdo mas também, e é esse um ponto que aqui importa sublinhar, nas maiores ou menores garantias processuais com que os mesmos foram praticados (com as formalidades estabelecidas para a audiência, levadas a cabo perante o juiz, perante o Ministério Público ou perante órgãos de polícia criminal).
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3 - Como se extrai da respectiva acta de audiência (a fls.
729 e ss) aquando do depoimento de uma testemunha arrolada pela acusação, o senhor advogado do recorrente requereu que as suas declarações prestadas nos autos de inquérito perante um agente da Polícia Judiciária fossem lidas em audiência.
Ao assim requerido foi deduzida oposição pelo assistente, havendo então sido proferido despacho de indeferimento, fundado, com base em tal oposição, no artigo 356º, nºs 2, alínea b) e 5 do Código de Processo Penal.
Sustenta o recorrente que esta norma, assim entendida,
'prejudica o amplo âmbito e alcance do artigo 32º, nº 1, da Constituição' violando, por outro lado o princípio do contraditório 'estabelecido este como modalidade exponencial de 'favor libertatis', não se compadece com quaisquer entorses da possibilidade dum mais largo e agudo debate cruzado das provas, por parte do arguido e defensor'.
Mas não tem razão.
Em conformidade com o disposto no artigo 32º da Constituição
'o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa' (nº 1), revestindo
'estrutura acusatória' e 'estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório'
(nº 5).
Quando aquele preceito se reporta a 'todas as garantias de defesa', considera indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. O posicionamento do arguido num processo de tipo acusatório há-de revestir uma situação de reciprocidade dialética face à acusação, pelo que, em conformidade, devem ser-lhe atribuídos aqueles meios legais de intervenção que compensem o desequilíbrio, que é pressuposto indispensável de uma correcta administração de justiça. O princípio do contraditório é, afinal, expressão, ao nível jurídico-processual do princípio da igualdade. (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, pp. 202 e ss e José António Barreiros, Processo Penal, vol. 1º, pp. 401 e ss).
A norma posta em crise só consente a leitura do depoimento da testemunha - presente na audiência de julgamento - prestado no inquérito perante um órgão de polícia criminal, desde que se verifique acordo por parte do Ministério Público, do arguido e do assistente.
Este condicionamento acha-se fundado, desde logo, na circunstância de as declarações cuja leitura se pretende não terem sido prestadas com observância das formalidades estabelecidas para a audiência ou perante juiz, não existindo quanto a elas as garantias dialéticas de contraditoriedade constitucionalmente asseguradas.
Por outro lado, achando-se presente na audiência a testemunha em causa, há-de dizer-se que quanto ao seu depoimento e à sua razão de ciência o arguido tem a possibilidade legal de exercer um pleno direito de defesa (the accused has the right [...] to meet witnesses face to face, como se escreve no artigo 1º, secção 9, da Constituição dos Estados Unidos da América).
A exigência de um consentimento alargado ao Ministério Público, ao arguido e à defesa, para que a leitura das declarações seja possível não se apresenta como encurtamento ou restricção inadequada ou inadmissível das garantias de defesa, traduzindo-se, ao contrário, numa linha de concretização do princípio geral sobre a produção de prova em audiência constante do artigo 355º, nº 1, o qual visa essencialmente a garantia da posição processual do arguido.
Não se tem assim por existente qualquer violação constitucional daquela norma.
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III - A decisão
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar, no que à questão de constitucionalidade respeita, o acórdão recorrido.
Lisboa, 10 de Outubro de 1996
Antero Alves Monteiro Diniz
Maria Fernanda Palma
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Alberto Tavares da Costa
José Manuel Cardoso da Costa