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Processo n.º 13/05
1.ª Secção Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
Em 27 de Janeiro de 2005 foi proferida a seguinte decisão sumária:
A sociedade comercial denominada A. recorre ao abrigo da alínea b) do n. 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC) impugnando o acórdão proferido em 17 de Dezembro de 2004 no Tribunal Central Administrativo Norte pelo qual improcedeu a impugnação judicial que deduzira junto da 1ª Repartição de Finanças de Aveiro, contra actos de liquidação adicional de IRC, IRS e IVA e juros compensatórios praticados pelo Director Distrital de Finanças de Aveiro. No seu requerimento, a recorrente acusa de inconstitucional “a norma dos artigos
3º e 4º do Código do IRC e 4º do Código do IVA, com a interpretação e aplicação que lhes foi dada no acórdão recorrido”, por violação dos artigos 2º, 103º e
104º da Constituição. O recurso foi admitido (“com dúvidas”, de resto) no Tribunal recorrido. No Tribunal Constitucional a recorrente foi convidada a enunciar concretamente a norma que pretende impugnar, pois cabendo ao recorrente o ónus de definir o objecto do recurso, seria inadmissível que esse ónus se transferisse para o próprio Tribunal mediante uma remissão genérica para uma indefinida norma alegadamente aplicada no acórdão recorrido. Esclareceu, assim, a recorrente que o objecto do recurso consiste na interpretação dos artigos 3º e 4º do Código do IRC e 4º do Código do IVA, “com o sentido de sujeitarem a tributação, por aplicação analógica, uma denúncia de um contrato de arrendamento que não deu origem a qualquer rendimento por parte do sujeito passivo de imposto”.
É, portanto, esta a norma acusada de inconstitucional por violar, segundo se diz, os princípios constitucionais da legalidade, da capacidade contributiva e da tributação do rendimento real.
Acontece que o recurso não pode ser admitido, por falta dos seus pressupostos. O recurso em análise, fundado na alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC, cabe das decisões que apliquem norma inconstitucional como sua ratio decidendi. Isto
é, exige-se que a norma que constitui o objecto do recurso seja determinante na decisão em causa, pois de outro modo o julgamento de inconstitucionalidade nenhum efeito prático alcançaria; a reformulação da decisão recorrida por efeito do julgamento de inconstitucionalidade da norma representa o único objectivo deste recurso. Daqui decorre que não é sindicável a determinação jurídica que constitui globalmente o processo de julgamento [selecção da matéria de facto, escolha do direito aplicável e sua aplicação aos factos relevantes] pois apenas pode equacionar-se uma questão de inconstitucionalidade normativa, sindicando uma determinada regra abstracta na fase de aplicação ao caso concreto. Ora é aqui que se encontra o obstáculo que impede o conhecimento deste recurso: a “norma” que vem acusada de ofender a Constituição não foi aplicada na decisão recorrida. Na verdade, o alvo da crítica da recorrente é o próprio acórdão do TCAN e não qualquer norma que este haja aplicado. Vejamos: No ponto 25 da sua petição inicial, logo a recorrente denunciou a inconstitucionalidade resultante de uma aplicação das aludidas normas dos artigos 3º e 4º do Código do IRC e 4º do Código do IVA com o efeito de sujeitarem à tributação “a denuncia do contrato de arrendamento”, porquanto
(ponto 26) “a impugnante nunca recebeu os 60 mil contos”. A abordagem desta questão na sua contra-alegação (v.g. a fls. 102) apresenta os mesmos contornos: a sociedade nunca teria recebido a aludida importância em dinheiro, e por isso, uma norma que faça imputar-lhe, para efeitos fiscais, esse enriquecimento, seria inconstitucional, por ofensa dos aludidos princípios da legalidade, da capacidade contributiva e da tributação do rendimento real. Mas o certo é que o acórdão recorrido trata esta matéria de forma bem diferente, pois parte do princípio, oposto, de que a impugnante recebeu efectivamente aquela importância:
“aquela verba de 60 mil contos representou um proveito seu do respectivo exercício, por ter denunciado o arrendamento mediante indemnização a receber de terceiro” (fls. 121); mais à frente (fls. 122): “a impugnante recebeu um valor que constitui proveito seu e por ele deveria ser pago IRC e IVA e não IRS a pagar pelos seus dois sócios”. Estes trechos demonstram, portanto, que a divergência que a recorrente tem com o acórdão recorrido não se situa, como erradamente invoca, em norma inconstitucional nele aplicada, mas no julgamento da matéria de facto, por ter apurado um facto que a recorrente sustenta não ter ocorrido.
Mais não será preciso dizer para explicar que o acórdão não aplicou a interpretação normativa enunciada pela recorrente como ofensiva da Constituição e que, portanto, não é possível conhecer do presente recurso, por lhe faltar este pressuposto essencial.
Inconformada, reclama para a conferência nos seguintes termos:
1. Na decisão ora reclamada julgou-se que o recurso não pode ser admitido, por lhe faltar um pressuposto essencial: o acórdão recorrido não teria - segundo entende o Senhor juiz Conselheiro relator - aplicado a interpretação normativa enunciada pela recorrente como ofensiva da Constituição.
2. Isto porque, como refere esta decisão sumária (a fls. 3), o acórdão recorrido 'parte do princípio, oposto, de que a impugnante recebeu efectivamente aquela importância', ou seja, que 'a impugnante recebeu um valor que constitui proveito seu e por ele deveria ser pago IRC e IVA e não IRS a pagar pelos seus dois sócios'.
3. E daí retira o Senhor relator a conclusão que 'a divergência que a recorrente tem com o acórdão recorrido não se situa, como erradamente alega, em norma inconstitucional nele aplicada, mas no julgamento da matéria de facto, por ter apurado um facto que a recorrente sustenta não ter ocorrido'.
4. Salvo o devido respeito, só uma leitura menos atenta da decisão recorrida e do requerimento da recorrente é que terá levado a essa conclusão precipitada.
5. Por dois motivos:
6. Desde logo, porque o acórdão recorrido admite expressamente que a sociedade recorrente nunca recebeu o valor pago pela denúncia do contrato.
7. É assim que, a fls. 7 do acórdão do TCA se escreve que 'a sociedade ficou privada de um proveito obtido com a denúncia do arrendamento'.
8. Isto depois de já ter admitido, a fls. 6, que 'é irrelevante que os cheques tivessem sido emitidos a favor e recebidos pelos dois sócios em causa, uma vez que estes poderiam e deveriam ter dado entrada do respectivo valor na impugnante'.
9. Poderiam, mas não deram...
10. Aliás, o mesmo acórdão vai ao ponto de afirmar que o comportamento daqueles
2 sócios 'prejudicou, como é óbvio, os outros sócios, sociedade e o Estado', dado que sendo a sociedade privada de proveitos, obviamente deixaram de receber os lucros correspondentes'.
11. Em face disto, não parece legítimo afirmar que o TCA partiu do princípio que a recorrente recebeu a importância em causa.
12. Pelo contrário, o tribunal recorrido tem presente que recorrente nada recebeu, mas acha - numa interpretação inconstitucional dos arts. 3° e 4° do CIRC e 4° do CIVA- que isso não impede a tributação em IRC e em IVA!!!
13. Por isso, está preenchido - e claramente preenchido - o pressuposto de admissibilidade do presente recurso, que a decisão sumária entendeu inexistir. Mesmo que assim não fosse,
14. Ainda assim haveria uma segunda questão a apreciar pelo Tribunal Constitucional, e que nunca seria afectada pela errada conclusão de que partiu o Senhor relator:
15. Trata-se da violação do princípio da legalidade fiscal na forma como foi interpretado e aplicado o art. 4° do CIVA - que só prevê a tributação da transmissão de um contrato de arrendamento e não da mera denúncia desse contrato
(que não cabe na previsão legal).
16. Como se explicou no requerimento de 24.01.05, só fazendo uma aplicação analógica do art. 4° do CIVA (norma de incidência real) é que poderá tributar-se como se fosse transmissão de um contrato de arrendamento a mera denúncia desse contrato - o que colide com o princípio da legalidade, consagrado pelo art.
103°/2 da CRP, que proíbe que as lacunas de normas tributárias abrangidas na reserva de lei da A. R. sejam objecto de integração analógica.
17. Pois bem: o conhecimento desta segunda questão, pelo Tribunal Constitucional, não depende do entendimento do TCA quanto ao recebimento pela recorrente do valor pago pela denúncia do contrato.
18. Ou seja, tenha ou não tenha a recorrente recebido o valor pago aos seus sócios, é inquestionável que ocorreu uma denúncia do contrato de arrendamento (e não um trespasse).
19. Isto, nem sequer o TCA se permitiu pôr em dúvida...
20. Por isso, sempre continuaria a colocar-se a questão da constitucionalidade da norma de incidência real do CIVA (art. 4°) quando interpretada de forma analógica, de modo a abranger uma operação que não está contida na respectiva facti-species.
21. Portanto, também por este motivo nunca deveria ter sido proferida a decisão reclamada. Termos em que, julgada procedente a presente reclamação, deverá ser revogada a decisão sumária que rejeitou este recurso, e ser proferido douto acórdão admitindo-o a julgamento desse Tribunal Constitucional.
Cumpre decidir.
Na transcrita reclamação, afirma a recorrente, em suma, que “o acórdão recorrido admite expressamente que a sociedade recorrente nunca recebeu o valor pago pela denúncia do contrato”, razão pela qual a decisão sumária ora reclamada errara ao arrancar deste dado de facto para se decidir pelo não conhecimento do recurso. Sem razão, porém. O acórdão é bem explícito ao afirmar (fls. 121):
Ora, conjugando o teor deste documento e da parte transcrita com os dados das alíneas A) e B) do probatório, desde logo se vê que a tese da impugnante não merece qualquer apoio legal ou factual, já que se demonstra, sem margem para quaisquer dúvidas, que aquela verba de 60.000 contos representou um proveito seu do respectivo exercício, por ter denunciado o arrendamento mediante indemnização a receber de terceiro. Deste modo, tal verba estava sujeita a IRC, por se enquadrar no disposto no artigo 23º do CIRC, bem como a IVA, por força do disposto nos artigos 4º e 7º do respectivo Código.
E, mais à frente:
Na verdade, sendo a arrendatária a impugnante só ela poderia ser indemnizada, como foi, pela denúncia do arrendamento.
É irrelevante que os cheques tivessem sido emitidos a favor e recebidos pelos dois sócios em causa, uma vez que estes poderiam e deveriam ter dado entrada do respectivo valor na impugnante.
Esta, a matéria de facto em que assentou o acórdão recorrido. Nenhuma razão assiste, portanto, à reclamante.
Na mesma reclamação é ainda colocada uma segunda questão, que tem a ver com a norma impugnada no presente recurso; pretende-se que “sempre continuaria a colocar-se a questão da constitucionalidade da norma de incidência real do CIVA
(art.4º) quando interpretada de forma analógica, de modo a abranger uma operação que não está contida na respectiva facti-species”. Também sem razão. Na verdade, a recorrente definiu a norma impugnada como sendo a resultante da interpretação dos artigos 3º e 4º do Código do IRC e 4º do Código do IVA, “com o sentido de sujeitarem a tributação, por aplicação analógica, uma denúncia de um contrato de arrendamento que não deu origem a qualquer rendimento por parte do sujeito passivo de imposto”. Ora, se efectivamente o Tribunal recorrido deu como provado que a denúncia do contrato deu origem a rendimento por parte do sujeito passivo de imposto, e foi assim que aplicou os preceitos em causa, torna-se bem patente que a norma impugnada pela recorrente não foi aplicada no acórdão em causa e que, portanto, é insusceptível de análise neste Tribunal.
Falece, por isso, razão à recorrente na presente reclamação. Em consequência, decide-se manter a decisão de não conhecimento do recurso. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 8 de Março de 2005
Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Rui Manuel Moura Ramos