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Processo n.º 179/05
1.ª Secção Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em 10 de Março de 2005, foi proferida, a fls. 1337 e seguintes, decisão sumária que não tomou conhecimento do objecto dos recursos interpostos para este Tribunal por A., pelos seguintes fundamentos:
“[...]
6. Quanto ao primeiro recurso (o recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que tem como objecto a apreciação da inconstitucionalidade das normas dos artigos 374º, n.º 2, 379º, n.º 1, e 425º, n.º 4, do Código de Processo Penal):
Como resulta do artigo 76.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, é ao tribunal que tiver proferido a decisão recorrida que compete apreciar a admissão do respectivo recurso.
No presente caso, era ao Tribunal da Relação de Lisboa, por intermédio do respectivo Desembargador Relator, que competia apreciar a admissibilidade do recurso interposto para o Tribunal Constitucional do seu referido acórdão.
O que significa que, tendo o requerimento de interposição de recurso sido endereçado ao Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça e sendo este quem veio a admitir o recurso, é de concluir, tal como na Decisão Sumária n.º 129/2003, que «não só a pretensão de recurso foi dirigida a entidade incompetente, como a sua admissão foi levada a efeito por um juiz a non domino».
Não pode por isso o Tribunal Constitucional conhecer do objecto do recurso.
O entendimento de que a apresentação de requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional perante órgão diverso do tribunal que proferiu a decisão recorrida e de que a decisão de admissão de recurso por órgão incompetente constituem obstáculo ao conhecimento do objecto do recurso de constitucionalidade tem sido reiteradamente subscrito por este Tribunal: vejam-se, por último, as Decisões Sumárias n.ºs 178/2004, 558/2004 e
53/2005 e os Acórdãos n.ºs 613/2003, 129/2004 e 622/2004, e demais jurisprudência neles citada.
7. Quanto ao segundo recurso (o recurso interposto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que tem como objecto a apreciação da inconstitucionalidade da norma do artigo 400º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal):
Como o próprio recorrente refere no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, não foi por ele suscitada, durante o processo, qualquer questão de inconstitucionalidade. Todavia, em sua opinião, a aplicação do artigo 400º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal pelo STJ teria sido «inesperada», pelo que não era exigível a invocação da questão de inconstitucionalidade antes de esse tribunal ter decidido o recurso.
Não pode porém proceder a argumentação do recorrente, uma vez que o recorrente teve oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade antes de ser proferida a decisão aqui sob recurso. Com efeito, e independentemente de outras razões que pudessem invocar-se, o certo é que foi notificado ao recorrente o parecer emitido pelo representante do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça que se pronunciara no sentido da inadmissibilidade do recurso para aquele tribunal, precisamente com fundamento na referida norma. O recorrente não respondeu a tal parecer, mas, tendo-lhe sido permitido fazê-lo, não pode agora vir invocar o carácter surpreendente da decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Não tendo sido suscitada pelo recorrente, durante o processo, a inconstitucionalidade do artigo 400º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal – sendo certo que teve oportunidade processual para o fazer –, conclui-se que não pode dar-se como verificado, no caso em apreço, um dos pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.”.
2. Em 14 de Março de 2005, foi proferido, a fls. 1360 e seguintes, o seguinte despacho que indeferiu um requerimento entretanto apresentado, via fax, por A. (junto aos autos a fls. 1351-1353; o respectivo original consta de fls.
1356-1358):
“1. A., recorrente no processo acima referenciado, veio apresentar o requerimento de fls. 1351 e seguintes/1356 e seguintes, através do qual, invocando o disposto no artigo 77º da Lei do Tribunal Constitucional, pretende
«reclamar para as secções do Tribunal Constitucional do despacho de fls. 1334 que admite o recurso de fls. ...».
Neste requerimento, A. afirma que «era ao Tribunal da Relação de Lisboa, por intermédio do respectivo Desembargador Relator, que competia apreciar a admissibilidade do recurso interposto para o Tribunal Constitucional contra o seu referido acórdão», pelo que «andou mal o Sr. Juiz Conselheiro ao admitir o aludido recurso, quando deveria remetê-lo para o Exmo. Sr. Juiz Relator Desembargador da Relação de Lisboa no sentido de este decidir da sua admissibilidade».
Conclui que «deve a presente reclamação obter provimento e em consequência o recurso de fls. ... ser remetido ao Exmo. Sr. Juiz Desembargador Relator da Relação de Lisboa, para que este aprecie da sua admissibilidade».
2. Notificado da reclamação deduzida, o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional respondeu (fls. 1355):
«1 - Como está perfeitamente sedimentado na jurisprudência deste Tribunal Constitucional, não lhe compete declarar ou suprir pretensas nulidades ou irregularidades, ocorridas durante a tramitação do processo nos tribunais judiciais.
2 - Assim, não compete obviamente ao Tribunal Constitucional apreciar a
‘nulidade’ decorrente de indevida apreciação do requerimento de interposição de recurso no Tribunal ‘a quo’ ou determinar a remessa do processo para apreciação de tal requerimento pelo órgão jurisdicional que seria competente – cabendo naturalmente tal ónus inteiramente ao recorrente, invocando, no Tribunal ‘a quo’, as nulidades ou irregularidades que tivesse por cometidas, na sequência da notificação que lhe foi feita, aliás, a fls. 1334 verso.».
Cumpre apreciar.
3. O artigo 77º da Lei do Tribunal Constitucional – a norma invocada como fundamento da reclamação agora deduzida – refere-se ao julgamento de reclamação de despacho que indefira o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional ou que retenha a subida de recurso interposto para este Tribunal, tal como se admite no artigo 76º, n.º 4, da mesma Lei.
O mecanismo previsto na norma invocada não constitui portanto meio idóneo para impugnar o despacho do Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça que, no presente processo, admitiu o recurso interposto pelo ora reclamante de acórdão proferido nos autos pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
4. Como bem refere na sua resposta o Senhor Procurador-Geral Adjunto, não compete ao Tribunal Constitucional declarar ou suprir pretensas nulidades ou irregularidades, ocorridas durante a tramitação do processo nos tribunais judiciais.
Assim, se o ora reclamante pretendia invocar uma eventual nulidade ou irregularidade processual – decorrente da indevida apreciação, pelo Conselheiro Relator, no Supremo Tribunal de Justiça, da admissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto ou da não remessa, para o Tribunal da Relação de Lisboa, do requerimento de interposição de tal recurso a fim de ser apreciada a respectiva admissibilidade pelo Desembargador Relator –, deveria tê-lo feito perante o Supremo Tribunal de Justiça, na sequência da notificação do despacho de fls. 1334 (cfr. fls. 1334 v.º), e durante o prazo fixado na norma pertinente do Código de Processo Penal.
Não tendo o reclamante deduzido oportunamente qualquer nulidade ou irregularidade perante o órgão jurisdicional que proferiu o despacho impugnado, não compete agora ao Tribunal Constitucional apreciar uma eventual deficiência processual ou supri-la através da remessa do processo para o Tribunal da Relação de Lisboa a fim de permitir a apreciação do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade pelo Desembargador Relator.
5. Tendo em conta o exposto, indefere-se o requerimento de fls. 1351 e seguintes/1356 e seguintes.”.
3. A. vem agora reclamar para a conferência, nos termos do artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, através do requerimento de fls. 1365 e seguintes, remetido por fax, em que conclui do seguinte modo:
“[...] Quanto ao primeiro recurso: a) Deve o recurso ser redistribuído e em consequência ser primeiro decidida a reclamação de fls. 1351 e ss/1356 e ss (do despacho de admissão do STJ) e só depois ser aferida a admissibilidade do recurso neste douto Tribunal; ou se assim não se entender b) Deve o recurso ser remetido para o tribunal competente para apreciar a admissibilidade do mesmo, ou deve ser admitido mesmo tendo a sua admissibilidade sido apreciada por tribunal incompetente. Quanto ao segundo recurso: c) Deve dar-se como verificado, no caso em apreço, os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC.
[...].”.
4. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional respondeu à reclamação apresentada (fls. 1374 e seguinte), nos seguintes termos:
“[...]
1º- A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2º- Assim – e quanto ao primeiro recurso – são plenamente procedentes os argumentos expendidos no douto despacho de fls. 1360, cabendo naturalmente ao recorrente e seu defensor o ónus de reagir atempadamente a qualquer irregularidade que considerassem ter sido cometida, nomeadamente no acto de admissão, no tribunal «a quo», do recurso de fiscalização concreta interposto.
3º- Quanto ao segundo recurso, é por inteiro descabida a argumentação do recorrente, já que – ao ser confrontado com o teor do parecer exarado nos autos pelo Ministério Público – teve obviamente plena oportunidade de colocar ao Supremo as questões de constitucionalidade que tivesse por pertinentes.”.
Cumpre apreciar e decidir.
II
5. A decisão sumária reclamada, que não tomou conhecimento do objecto dos recursos, assentou, em síntese, nos seguintes fundamentos:
– Quanto ao primeiro recurso (o recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que tem como objecto a apreciação da inconstitucionalidade das normas dos artigos 374º, n.º 2, 379º, n.º 1, e 425º, n.º 4, do Código de Processo Penal), entendeu-se, de acordo com a jurisprudência reiterada deste Tribunal, que a pretensão de recurso foi dirigida a entidade incompetente e que a sua admissão foi levada a efeito por um juiz a non domino.
– Quanto ao segundo recurso (o recurso interposto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que tem como objecto a apreciação da inconstitucionalidade da norma do artigo 400º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal), verificou-se não ter sido suscitada pelo recorrente, ora reclamante, durante o processo, a inconstitucionalidade do artigo 400º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, sendo certo que ele teve oportunidade processual para o fazer, em resposta ao parecer emitido pelo representante do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça que se pronunciara no sentido da inadmissibilidade do recurso para aquele tribunal, precisamente com fundamento na referida norma.
6. Na reclamação apresentada, e reportando-se à decisão de não conhecimento do primeiro recurso, o reclamante vem repetir a argumentação que utilizou no requerimento de fls. 1351-1353 (1356-1358) para impugnar, perante o Tribunal Constitucional, o despacho de admissão do recurso proferido pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça.
Ora, tal argumentação foi já refutada no despacho da Relatora, de fls. 1360 e seguintes, que o Tribunal agora confirma. Na verdade:
– O artigo 77º da Lei do Tribunal Constitucional – a norma invocada como fundamento da reclamação então deduzida – refere-se ao julgamento de reclamação de despacho que indefira o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional ou que retenha a subida de recurso interposto para este Tribunal, tal como se admite no artigo 76º, n.º 4, da mesma Lei, não constituindo portanto meio idóneo para impugnar o despacho do Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça que, no presente processo, admitiu o recurso interposto pelo ora reclamante de acórdão proferido nos autos pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
– O Tribunal Constitucional não tem competência para declarar ou suprir pretensas nulidades ou irregularidades, ocorridas durante a tramitação do processo nos tribunais judiciais, pelo que se o ora reclamante pretendia invocar uma eventual nulidade ou irregularidade processual – decorrente da indevida apreciação, pelo Conselheiro Relator, no Supremo Tribunal de Justiça, da admissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto ou da não remessa, para o Tribunal da Relação de Lisboa, do requerimento de interposição de tal recurso a fim de ser apreciada a respectiva admissibilidade pelo Desembargador Relator –, deveria tê-lo feito perante o Supremo Tribunal de Justiça, na sequência da notificação do despacho de fls. 1334 (cfr. fls. 1334 v.º), e durante o prazo fixado na norma pertinente do Código de Processo Penal.
– Não tendo o reclamante deduzido oportunamente qualquer nulidade ou irregularidade perante o órgão jurisdicional que proferiu o despacho impugnado, não compete agora ao Tribunal Constitucional apreciar uma eventual deficiência processual ou supri-la através da remessa do processo para o Tribunal da Relação de Lisboa a fim de permitir a apreciação do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade pelo Desembargador Relator.
7. Quanto à decisão de não conhecimento do segundo recurso, vem o reclamante insistir em que não teve oportunidade processual para suscitar a inconstitucionalidade do artigo 400º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal antes de proferida a decisão recorrida, pois que, em seu entender, tal questão “coloca-se verdadeiramente quando o STJ profere acórdão que decide não admitir o recurso”.
Os argumentos aduzidos na reclamação em apreciação nada trazem de inovatório relativamente aos que foram considerados na decisão sumária reclamada e não são, por isso, susceptíveis de alterar a jurisprudência deste Tribunal no sentido de considerar que, ao ser confrontado com o teor do parecer exarado nos autos pelo Ministério Público, teve obviamente o então recorrente plena oportunidade de colocar ao Supremo as questões de inconstitucionalidade que tivesse por pertinentes.
Nada mais resta pois do que confirmar o decidido.
III
8. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando a decisão reclamada que não tomou conhecimento do objecto dos recursos.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em vinte unidades de conta.
Lisboa, 5 de Abril de 2005
Maria Helena Brito Maria João Antunes Rui Manuel Moura Ramos Carlos Pamplona de Oliveira (Com declaração de voto.) Artur Maurício
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Concordo com a decisão, pois, em minha opinião, o recorrente não suscitou adequadamente qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
2. Todavia, o Tribunal não pode recusar-se a conhecer do recurso interposto do acórdão da Relação de Lisboa com o fundamento de haver sido admitido “por um juiz a non domino”.
E isto pelas razões que, em planos de valência subsidiária, passo brevemente a expor.
Em primeiro lugar, o Tribunal está vinculado ao entendimento – que o próprio acórdão assume – de que “não compete ao Tribunal Constitucional declarar ou suprir pretensas nulidades ou irregularidades ocorridas durante a tramitação do processo nos tribunais judiciais”. Ou seja, não lhe compete conhecer da irregularidade eventualmente resultante de o despacho a admitir o recurso haver sido proferido em tribunal diverso daquele que emitiu a decisão recorrida.
Em segundo lugar, é preciso deixar bem claro que, ao contrário do que se afirma, não estamos perante uma actuação de “um juiz a non domino”. O Ex.mo Conselheiro que proferiu o despacho aqui em causa era o juiz do processo, aquele que, naquele momento, detinha o poder jurisdicional para regular os termos processuais, e aquele a quem cabia conhecer dos pedidos ou requerimentos formulados, incluindo o de interposição do recurso de inconstitucionalidade, tanto mais que, neste último caso, a decisão não vincula o tribunal ad quem. Ora, uma das decorrências do princípio do juiz natural consiste justamente na circunstância de o juiz do processo ser aquele a quem cabe deferir os seus termos e de ser o único com competência para o fazer.
Depois, é igualmente imperioso deixar claro que, ao contrário do que se afirma, o recorrente não tem forma de reagir contra a decisão que no Supremo Tribunal de Justiça lhe admitiu o recurso interposto de acórdão da Relação. E não tem, porque a decisão lhe é favorável, defere a sua pretensão, e estas decisões não pode o beneficiário impugnar, conforme regra de que constitui afloramento o n. 1 do artigo 680º do Código de Processo Civil.
Finalmente, se o Tribunal entender que ocorre a dita irregularidade e que dela deve tomar oficiosamente conhecimento, então deveria ordenar a remessa do processo à competente Relação, para que seja conhecido o requerimento do recorrente. Na verdade, por força do dever de adequação dos actos do juiz a um processo justo e leal, deve aceitar-se que o particular interveniente no processo não deve ser penalizado pelas irregularidades de competência praticadas pela máquina judiciária, designadamente quando se está em presença de um pedido formulado por arguido em processo crime, ainda que essa pretensa irregularidade haja sido provocada pelo pedido do interessado.
Pamplona de Oliveira