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Processo n.º 697/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de Abril de 2004, foi concedido provimento ao recurso interposto por A. do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que confirmara a sentença da 6ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, a qual havia julgado improcedente a acção declarativa intentada por aquela contra o Centro Nacional de Pensões e a Caixa Geral de Aposentações, em que pedia o reconhecimento “da sua qualidade de titular do direito às prestações por morte de B., falecido em 30/04/97, no estado de viúvo, com quem vivia em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos relativamente à data do seu óbito”. Consequentemente, o acórdão recorrido foi revogado e a acção julgada
“integralmente procedente relativamente ao pedido formulado pela Autora, e, assim, reconhecida a esta a qualidade de titular do direito às prestações sociais por morte de B.”. Pode ler-se no referido aresto:
«(...) III - No Acórdão objecto da presente impugnação foi considerado como fundamento para a improcedência da apelação interposta, a falta de alegação, e subsequente prova, de factos que preenchessem os requisitos do art.º 2020°, n.º 1, conjugado com o art.º 2009°, als. a) a d), ambos do CC, vindo a recorrente, na presente revista, invocar que tal alegação e prova apenas colheria justificação, no caso de não ter intentado, previamente, acção contra a herança. Temos, portanto, que, perante a matéria de facto apurada pelas instâncias, é inquestionável que a situação em que coabitavam a A. e o falecido B., configura uma união de facto - Curso de Direito de Família dos Profs. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, vol. I, pág. 84. Ora, à data da propositura da presente acção - 15/12/1999 -, encontrava-se em vigor a Lei n.º 135/99, de 28/08 (LUF), diploma este onde se contêm a regulamentação relativa à protecção jurídica das uniões de facto, com duração superior a dois anos - art.º 1°, n.º 1 -, e do qual consta a atribuição a cada um dos seus membros, entre outros direitos, do correspondente à protecção decorrente do regime geral da segurança social e da lei, em caso de morte do respectivo beneficiário - art. 3°, al. f) -, pelo que, embora no diploma regulamentador das prestações a atribuir por morte dos beneficiários abrangidos pelo regime de segurança social - DL n.º 322/90, de 18/10 - se estatua que as condições de atribuição das pensões são definidas à data da morte do beneficiário - art.º 15° -, entendemos ser de dar prevalência ao conteúdo do diploma emanado do órgão legislativo próprio da República, em detrimento do estatuído no diploma emanado do órgão executivo, no caso da ocorrência de colisão entre o conteúdos dos mesmos - art.ºs 112°, n.º 2, 161°, al. c) e 165°, n.º 1, al. b), da CRP e 1°, n.º 2, da LUF. Assim, e no que respeita ao regime de segurança social, tal direito desdobra-se na atribuição de uma pensão de sobrevivência e de um subsídio por morte - art.ºs
3°, n.º 1, e 8°, n.º 1, do DL n.º 322/90, de 18/10, e 41°, n.º 2, do DL n.º
142/73, de 31/03, na redacção que lhe foi dada pelo DL n.º 191-A/79, de 25/06,
(Estatuto das Pensões de Sobrevivência, aplicável aos funcionários e agentes da Administração Pública) -, enquanto que, por outro lado, e no que diz respeito aos direitos conferidos pela lei aos membros das uniões de facto, tal referência se reporta ao direito de exigir alimentos à herança do falecido, nos termos do preceituado no art.º 2020°, n.º 1 do CC. Temos, portanto, que, em caso de decesso de um dos membros da união de facto, é conferido ao sobrevivo o direito de cumular as pensões sociais com a pensão de alimentos a cargo da herança, constituindo, todavia, directo e imediato pressuposto para a atribuição daquelas prestações sociais, que se tenha verificado o reconhecimento judicial da titularidade do direito às mesmas, mediante a propositura de acção declarativa contra a instituição competente para a sua atribuição, ou através da prolação da sentença judicial que fixe aquela indicada pensão de alimentos, uma vez que o documento indispensável à apreciação pelas instituições da segurança social do pedido do respectivo interessado reside, única e exclusivamente, na certidão da decisão final, independentemente da acção, de entre as indicadas, em que tal sentença haja sido proferida - art.ºs 6° da LUF, 3° e 5° do Dec. Reg. n.º 1/94, de 18/01. Ora, ainda que, verificando-se a inexistência ou insuficiência de bens da herança, a acção tenha obrigatoriamente de ser instaurada contra a instituição de segurança social, também, por outro lado, na acção de alimentos, e caso se verifique a ocorrência, nomeadamente no decurso da lide, daquelas indicadas situações, pode, igualmente, haver lugar ao reconhecimento do direito às prestações sociais a favor do respectivo demandante, desde que, para tal, aquela instituição intervenha na acção, então como associada da herança, nomeadamente através do recurso ao incidente processual da intervenção provocada - n.º 4 do citado art.º 6° da LUF e art.º 325° do CPC -, já que, a não se considerar a referida intervenção limitada àquelas apontadas situações de carência económica da herança, ficaria desprovida de justificação, face ao preceituado no art.º 5° do Dec. Reg. n.º 1/94, a necessidade da ocorrência, na acção de alimentos, daquele indicado litisconsórcio, pelo lado passivo, quanto à herança e à instituição de segurança social. Assim, e embora tenha ficado provado, na situação em análise, que, na acção instaurada contra a herança do falecido B. foi declarada a inexistência, na mesma, de bens susceptíveis de permitir a prestação à ora recorrente de uma pensão de alimentos, naquela não se verificou a intervenção das ora recorridas, na qualidade processual de demandadas, pelo que, consequentemente, inexiste qualquer situação de caso julgado material, susceptível de permitir a invocação, nos presentes autos, da relevância, sob o ponto de vista jurídico, da prova dos factos, objecto da decisão antecedentemente proferida – art.ºs 497°, 498° e 673° do CPC e n.º 4 do art.º 6° da LUF - não podendo, portanto, merecer acolhimento deste Supremo, a pela recorrente alegada prova já efectuada na acção anteriormente instaurada, relativamente aos requisitos a que alude o art.º 2020° do CC. IV - Todavia, e apesar do explanado, sempre não está vedado a este Supremo Tribunal proceder ao enquadramento jurídico da matéria de facto tida como provada pelas instâncias, quando se tenha verificado uma decisão incorrecta, sob o ponto de vista do direito aplicável- art.ºs 664°, 713°, n.º 2, 726° e 729°, n.º 1, do CPC. Assim, e na situação que nos vem presente, a acção foi instaurada contra as instituições a quem incumbe a atribuição das prestações sociais a conceder, em consequência do óbito de um beneficiário da segurança social, ao membro sobrevivo de uma união de facto. Ora, para a atribuição de tais prestações, torna-se necessária a prova, traduzida em sentença judicial, que declare que o respectivo requerente preenche as condições previstas no art.º 2020° do CC, no que respeita à titularidade das mesmas - art.ºs 6°, n.º 1 da LUF, 8° do DL n.º 322/90, e 3° e 5° do Dec. Reg. n.º 1/94. Com efeito, aquele apontado normativo da codificação substantiva civil dispõe, no seu n.º 1, que:
“Aquele que, no momento da morte de pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens, vivia com ela há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges, tem direito a exigir alimentos da herança do falecido, se os não puder obter, nos termos das alíneas a) a d) do art.º 2009°.” Porém, comparando estes requisitos com os exigíveis no diploma regulamentador da atribuição das prestações por morte do regime da segurança social, ao membro sobrevivo da união de facto, constata-se que, em nosso entender, os mesmos apenas se podem confinar à prova relativa ao estado civil do beneficiário falecido e à existência de uma relação parafamiliar de união de facto, que perdure há mais de dois anos - art.º 2° do Dec. Reg. n.º 1/94 -, não impendendo, portanto, sobre o respectivo interessado o ónus da prova, quer da sua necessidade de alimentos - art.º 2004° do CC -, quer da impossibilidade para os pagar por parte da herança ou dos familiares indicados nas als. a) a d) do art.º
2009° daquela codificação. Temos, assim, que, apenas nas acções em que seja peticionada à herança uma pensão de alimentos, se terão de provar aqueles últimos indicados requisitos. Na verdade, decorrente da publicação da Lei n.º 135/99 (LUF), foi estabelecida, em matéria de protecção social do companheiro, uma total equiparação da união de facto ao casamento, através da aplicação, a ambas aquelas situações, dos mesmos princípios já existentes relativamente à protecção do cônjuge - art.º 3°, als. b), c), f), g) e h). Por outro lado, tal tendência de equiparação dos casais que vivessem naquelas duas indicadas situações, relativamente às prestações concedidas em razão da morte dos beneficiários do regime geral de segurança social, decorria já do preceituado no DL n.º 322/90 - art.ºs 1°, 3°, 7° e 8° -, bem como do Dec. Reg. n.º 1/94, em cujo preâmbulo se pode ler, a dado passo:
“II Em matéria de pensões de sobrevivência, o acolhimento do princípio da relevância das uniões de facto de alguma forma equiparáveis, para efeitos sociais, à sociedade conjugal tem por objectivo a harmonização dos regimes internos de protecção social, bem como a adequação a recomendações formuladas no
âmbito das instâncias internacionais.” Ora, no que se reporta às prestações decorrentes do decesso dos beneficiários do regime geral da segurança social - pensão de sobrevivência e subsídio por morte
-, a sua atribuição ao cônjuge do falecido não está dependente das necessidades económicas do mesmo, nem da existência de familiares cuja situação económica seja susceptível de lhe poderem prestar alimentos - art.ºs 24°, 25°, 32° a 5° do DL n.º 322/90, e art.ºs 26°, 27° e 40°, n.º 1, al. a) do Estatuto das Pensões de Sobrevivência -, o que se adequa à natureza dos referidos benefícios, que, quanto às pensões de sobrevivência, se traduzem numa prestação pecuniária, de natureza continuada, destinada a compensar os familiares do beneficiário da perda dos rendimentos do trabalho, decorrente do óbito daquele, enquanto que, por seu turno, o subsídio por morte tem a finalidade de minorar o acréscimo de encargos decorrentes de tal evento, facilitando, dessa forma, a reorganização da vida familiar - art.º 4° do DL n.º 322/90 -, situações estas das quais se mostra totalmente excluída qualquer eventual correlação com os meios económicos do cônjuge do beneficiário. Assim, e se dos enunciados diplomas - LUF, DL n.º 322/90, e Dec. Reg. n.º 1/94 - decorre uma total equiparação relativamente às medidas de protecção social que são atribuídas aos membros de um agregado familiar unido pelo vínculo do matrimónio e aos que vivam em união de facto, não será de exigir, em nosso entender, e na falta de disposição legal em contrário, a prova da verificação de requisitos diversos para a atribuição de prestações sociais análogas, conforme se trate de interessados ligados ao beneficiário pelo casamento ou cuja titularidade aos referidos benefícios resulte da existência de uma situação de união de facto. Por outro lado, e ainda que, no n.º 2 do art.º 41° do Estatuto das Pensões de Sobrevivência se estabeleça que, para efeitos da concessão da pensão de sobrevivência, só será considerado herdeiro hábil o membro sobrevivo da união de facto a favor de quem haja sido proferida sentença judicial fixando-lhe o direito a alimentos, tal segmento daquele apontado normativo, quando interpretado no sentido de fazer depender a atribuição das prestações sociais, da verificação dos requisitos exigíveis pela lei civil para a concessão da pensão de alimentos, está ferido de inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito nas disposições conjugadas dos art.ºs 2°,
18°, n.º 2, 36°, n.º 1 e 63°, n.ºs 1 e 3 da CRP , como, aliás, se decidiu já no Acórdão n.º 88/2004 do TC de 10/02, publicado no DR - II série - n.º 90, de
16/04/2004. Temos, portanto, que, contrariamente ao que vem sendo sustentado na jurisprudência, em nosso entender, os requisitos exigíveis ao membro sobrevivo da união de facto, para que possa aceder às prestações sociais decorrentes do
óbito de um beneficiário de um qualquer regime público de segurança social, reconduzem-se, apenas, à prova relativa ao estado civil de solteiro, viúvo ou separado judicialmente de pessoas e bens do referido beneficiário e à circunstância do respectivo interessado ter vivido em união de facto, há mais de dois anos, com o falecido. V - Assim, vindo provado das instâncias, na situação exposta nos autos, que o B. faleceu no estado de viúvo, tendo vivido, desde 1982 até à data do seu óbito -
30/04/1997 -, em comunhão de cama, mesa e habitação com a ora recorrente, suportando as despesas da vida em comum, bem como as respeitantes especificamente àquela, torna-se manifesto que se mostram reunidos os requisitos referidos nos art.ºs 2020°, n.º 1 do CC, 8° do DL n.º 322/90 e 2° do Dec. Reg. n.º 1/94, o que conduz à procedência do pedido formulado pela recorrente. VI - Perante o que vem de expor-se, acorda-se em conceder a requerida revista e, em consequência, revoga-se o Acórdão proferido, julgando-se a acção integralmente procedente relativamente ao pedido formulado pela A, e, assim, reconhecida a esta a qualidade de titular do direito às prestações sociais por morte de B..»
2.A Caixa Geral de Aposentações veio interpor recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional), pretendendo ver a apreciada a constitucionalidade da
“1ª parte do n.º 2 do art.º 41º do Estatuto das Pensões de Sobrevivência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/73, de 31 de Março, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 191-B/79, de 25 de Junho, segundo a qual o reconhecimento da qualidade de herdeiro hábil a companheiro depende daquele estar nas condições do art.º 2020º do Código Civil, isto é, de carecer de alimentos e de não os poder obter da herança (por falta de bens ou rendimentos desta) ou das pessoas referidas no art.º 2009º do mesmo Código, na interpretação que dela foi feita no douto acórdão do S.T.J. que antecede, que recusou a sua aplicação com fundamento em inconstitucionalidade”. Notificada para produzir alegações, a recorrente conclui dizendo:
«1ª Os estados civis de casado e solteiro (na situação de unido de facto) não são idênticos nem de facto, nem de direito;
2ª A Lei Fundamental limita-se, nesta matéria, a estabelecer que “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual” (artigo 13.º - Princípio da igualdade) e que “Todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade” (artigo 36.° - Família, casamento e filiação);
3ª Do primeiro dos artigos colhe-se que a opção que os cidadãos tomam sobre o seu estado civil não é considerada irrelevante pelo legislador constitucional. Do segundo, que deve ser lido articuladamente com o primeiro, que tal facto decorre, com naturalidade, de estar a todos assegurado contrair matrimónio, pelo que cabe, em última instancia, a cada cidadão decidir sobre o seu estado civil, não restando ao Estado senão respeitar tal decisão;
4ª A opção que cada um, conscientemente, toma nessa matéria prende-se, frequentemente, com o nível de solenidade que pretende dar à união de facto, bem como, amiúde, com objectivos de ordem patrimonial mais ou menos confessáveis
(ex.: evitar a transmissibilidade de dívidas ao património do casal);
5ª A equiparação judicial (com fundamento em imperativo constitucional que não se descortina) do unido de facto ao casado para efeitos patrimoniais - mas só para aqueles que sejam de valor positivo (não se conhece jurisprudência no mesmo sentido para efeitos de comunicabilidade de dívidas ou de efeitos fiscais, por exemplo) - resulta numa ousadia paternalista inaceitável;
6ª O legislador ordinário (no Estatuto das Pensões de Sobrevivência) entendeu numa opção que a Constituição acomoda sem dificuldade - aproximar o estatuto do unido de facto do ex-cônjuge com direito a alimentos. O que haverá de inconstitucional em condicionar o direito do companheiro de contribuinte falecido a uma pensão vitalícia de sobrevivência à carência de alimentos? Não partilham ambas as situações o desejo de o contribuinte falecido não estar casado à data da morte com aquela que se apresenta a habilitar-se a uma pensão de sobrevivência?;
7ª O esgotar da via trilhada pelo Acórdão recorrido, em coerência, deverá levar a equiparar os efeitos da união de facto aos do casamento, sendo legítimo questionar o que se salvará deste, para além da cerimónia religiosa, quando a religiosidade dos noivos a admita;
8ª Também não se afigura inconstitucional a coexistência de vários regimes de pensões, cada um com regras próprias (aliás, não se conhece um único País com um só regime de pensões para todos os trabalhadores). E se o regime geral da segurança social (aplicável à generalidade dos trabalhadores do sector privado)
é, eventualmente, mais generoso neste aspecto, o que é certo é que as pensões que atribui têm valor muito inferior às que são pagas pelo regime gerido pela CGA (abrange os funcionários públicos e alguns trabalhadores do sector privado);
9ª Não é admissível é que se ensaie, por via jurisprudencial, uma fusão dos dois regimes, aproveitando-se de cada um os aspectos julgados mais interessantes para os pensionistas, não cuidando de saber se o regime de financiamento de cada um comporta tão ousada ingerência do poder judicial numa esfera por natureza e - o que não é despiciendo - por lei reservada ao poder legislativo, naturalmente mais vocacionado para efectuar tal ponderação;
10ª Nada autoriza o julgador - que deve resistir a todo o custo à tentação de se assumir como criador - a compor um tertium genus a partir de sistemas pré-existentes;
11ª Será, por fim, uma violência obrigar alguém a casar para poder beneficiar da plenitude dos direitos associados a esse estatuto jurídico? Ou, colocando a questão ao contrário, não será uma violência - uma fraude à lei, mesmo - reconhecer a alguém o estatuto de unido de facto para efeito de fuga às responsabilidades patrimoniais pessoais e aquele que é próprio dos casados quando os encargos financeiros são da responsabilidade de terceiros (de todos, afinal, uma vez que as pensões são, cada vez mais, pagas pelos impostos dos contribuintes)? Não será esta uma maior ofensa ao princípio da proporcionalidade, conexo do da responsabilidade individual? Será admissível um entendimento do tipo do que se sindica, que objectivamente favorece a tese que parece ganhar adeptos, de privilegiar os direitos em detrimento dos deveres mais básicos de cidadania?
12ª Quanto à alegada ofensa do princípio da proporcionalidade, se não existe qualquer ofensa do princípio da igualdade, como, de resto, o Tribunal Constitucional já esclareceu devidamente, também nos parece não haver qualquer violação do princípio da proporcionalidade. A mesma legitimidade que tem de reconhecer-se ao legislador ordinário de excluir os unidos de facto dos herdeiros do de cujus, parece que terá de se reconhecer quanto ao elenco de herdeiros hábeis para efeitos de pensão de sobrevivência, que não são assim tão diferentes.
13ª Não se compreende como possa desonerar-se a herança do de cujus de prestar alimentos ao ex-companheiro com o fundamento de que o legislador entendeu não o incluir no elenco de herdeiros hábeis daquele e depois, em situação assimilável
àquela (os elencos são quase idênticos), chegar a conclusão oposta quando se coloca a questão da pensão...
14ª Como também não se compreende por que razão deve a sociedade - através dos impostos (que pagam fatia cada vez maior das pensões) - ser solidária com o companheiro de contribuinte falecido quando este - através da sua herança - não tem idêntica obrigação;
15ª Por outro lado, se é verdade que os fundamentos e a natureza dos direitos a alimentos e à pensão de sobrevivência são, em princípio, diversos, o que é facto
é que o regime jurídico desta última remete expressamente para o do primeiro (o EPS remete para o regime alimentar)!
16ª Por fim, haverá que esclarecer o equivoco subjacente ao Acórdão do STJ que esteve na origem do Acórdão do TC n.º 88/2004: a prova de que a herança não tem bens para prestar alimentos ao unido de facto não carece de ser efectuada em acção autónoma, como a generalidade dos tribunais de 1ª instância bem sabe, actuando, de resto, em conformidade. Não se descortina, assim, que essa prova onere desproporcionadamente quem se apresenta a requerer uma pensão de sobrevivência;
17ª Aliás, nessa ordem de ideias, parece mais violento ter como requisito a impossibilidade de obter alimentos dos familiares - muitas vezes sem qualquer relação com o requerente de penso - do que da herança do ex-companheiro!» Contra alegando, concluiu a recorrida:
«O referido art.º 41º [do Estatuto das Pensões de Sobrevivência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 143/73, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º
191-B/75, de 25 de Junho] viola claramente o princípio da proporcionalidade, ao restringir o direito constitucional à segurança social, e à protecção nas
“situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho”. Como resulta de todo o alegado a garantia dos direitos fundamentais envolve o princípio da proporcionalidade, a qual “se eleva mesmo o verdadeiro principio axiológico fundamental”, sendo que, As restrições aos direitos, liberdades e garantias devem “limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos ( art.º 18º, n.° 2- 2ª parte). No caso sub iudice, a norma restritiva em análise viola o princípio da proporcionalidade, não só na vertente da proibição de excesso mas também a que resulta do princípio geral de Estado de Direito ( art.º 2° Const.) Na verdade,
“Estando em causa um direito consagrado na Constituição, o condicionamento apontado não pode considerar-se legítimo, pois não respeita as exigências Constitucionais: é, no mínimo, de muito duvidosa adequação ao fim que porventura visa atingir; não é indispensável e excede manifestamente o que seria necessário. Deve, por conseguinte ser qualificado como desnecessário e desproporcionado não respeitando, por isso, o princípio de proibição do excesso”
(cfr. Ac. 88/2004)”.» Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3.O presente recurso de constitucionalidade vem interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, visando, portanto, a apreciação da conformidade constitucional de uma norma cuja aplicação tenha sido recusada com fundamento na sua inconstitucionalidade. Nos termos do requerimento de recurso, tal norma seria a “1ª parte do n.º 2 do art.º 41º do Estatuto das Pensões de Sobrevivência (...), segundo a qual o reconhecimento da qualidade de herdeiro hábil a companheiro depende daquele estar nas condições do art.º 2020º do Código Civil, isto é, de carecer de alimentos e de não os poder obter da herança (por falta de bens ou rendimentos desta) ou das pessoas referidas no art.º 2009º do mesmo Código”.
É o seguinte o teor dos preceitos do Estatuto das Pensões de Sobrevivência
(aprovado pelo Decreto-Lei n.º142/73, de 31 de Março, e na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 191-B/79, de 25 de Junho), em que se baseia a interpretação normativa questionada:
“Artigo 40º
(Herdeiros hábeis)
1 – Têm direito à pensão de sobrevivência como herdeiros hábeis dos contribuintes, verificados os requisitos que se estabelecem nos artigos seguintes: a) Os cônjuges sobrevivos, os divorciados ou separados judicialmente de pessoas e bens e as pessoas que estiverem nas condições do artigo 2020.º do Código Civil; [...] Artigo 41.º
(Ex-cônjuge e pessoa em união de facto)
(...)
2 – Aquele que no momento da morte do contribuinte estiver nas condições previstas no artigo 2020.º do Código Civil só será considerado herdeiro hábil para efeitos de pensão de sobrevivência depois de sentença judicial que lhe fixe o direito a alimentos e a pensão de sobrevivência será devida a partir do dia 1 do mês seguinte àquele em que a requeira, enquanto se mantiver o referido direito.” Por sua vez, o n.º 1 do artigo 2020º do Código Civil (na redacção do Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro) dispõe:
“1. Aquele que, no momento da morte de pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens, vivia com ela há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges, tem direito a exigir alimentos da herança do falecido, se os não puder obter nos termos das alíneas a) a d) do artigo 2009º.
(...)” E este artigo 2009º, n.º 1, do Código Civil, por sua vez, enumera as “pessoas obrigadas a alimentos”, indicando, nas alíneas a) a d), o cônjuge ou o ex-cônjuge, os descendentes, os ascendentes e os irmãos. Com interesse para o enquadramento normativo do caso (e citados na decisão recorrida), importa ainda referir a norma do artigo 8º do Decreto-Lei n.º
322/90, de 18 de Outubro (diploma que definiu a protecção na eventualidade da morte dos beneficiários do regime geral de segurança social). Sob a epígrafe
“situação de facto análoga à dos cônjuges”, dispõe este artigo 8º:
“1 – O direito às prestações previstas neste diploma e o respectivo regime jurídico são tornados extensivos às pessoas que se encontrem na situação prevista no n.º 1 do artigo 2020.º do Código Civil.
2 – O processo de prova das situações a que se refere o n.º 1, bem como a definição das condições de atribuição das prestações, consta de decreto regulamentar.” O diploma mencionado neste n.º 2 é o Decreto Regulamentar n.º 1/94, de 18 de Janeiro (veio regular o acesso às prestações por morte por parte das pessoas que se encontram na situação de união de facto), cujos artigos 2º e 3º preceituam:
“Artigo 2.º
Âmbito pessoal Tem direito às prestações a que se refere o número anterior a pessoa que, no momento da morte de beneficiário não casado ou separado judicialmente de pessoas e bens, vivia com ele há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges. Artigo 3.º Condições de atribuição
1 – A atribuição das prestações às pessoas referidas no artigo 2.º fica dependente de sentença judicial que lhes reconheça o direito a alimentos da herança do falecido nos termos do disposto no artigo 2020.º do Código Civil.
2 – No caso de não ser reconhecido tal direito, com fundamento na inexistência ou insuficiência de bens da herança, o direito às prestações depende do reconhecimento judicial da qualidade de titular daquelas, obtido mediante acção declarativa interposta, com essa finalidade, contra a instituição de segurança social competente para a atribuição das mesmas prestações.” Por fim, o artigo 3º, alínea f), da Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto (a qual não diverge, neste aspecto, da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio), atribui a quem vive em união de facto direito a “[p]rotecção na eventualidade de morte do beneficiário, pela aplicação do regime geral da segurança social e da lei”.
4.Importa, preliminarmente, apurar se a ratio decidendi do acórdão recorrido integrou a recusa de aplicação da dimensão normativa impugnada. O acórdão recorrido começou, como se viu, por (considerando não existir caso julgado material invocável nos presentes autos) não acolher a prova
(alegadamente já efectuada pela recorrente, em acção anteriormente instaurada) dos requisitos referidos no artigo 2020° do Código Civil. Todavia, entendeu a remissão para estes requisitos confinada “à prova relativa ao estado civil do beneficiário falecido e à existência de uma relação parafamiliar de união de facto, que perdure há mais de dois anos”, sem que impenda sobre o interessado o
ónus de provar, quer a sua necessidade de alimentos, quer a impossibilidade de os obter da herança ou dos familiares indicados nas alíneas a) a d) do artigo
2009° daquele Código. Para alcançar esta conclusão, a decisão recorrida invocou argumentos de ordem infra-constitucional (designadamente, da Lei n.º 135/99, do Decreto-Lei n.º 322/90 e do Decreto Regulamentar n.º 1/94 decorreria “uma total equiparação relativamente às medidas de protecção social que são atribuídas aos membros de um agregado familiar unido pelo vínculo do matrimónio e aos que vivam em união de facto”). Mas tais argumentos não bastaram, revelando-se indispensável, no discurso fundamentador da decisão recorrida, o afastamento da interpretação do artigo 41º, n.º 2, do Estatuto das Pensões de Sobrevivência “no sentido de fazer depender a atribuição das prestações sociais, da verificação dos requisitos exigíveis pela lei civil para a concessão da pensão de alimentos”, a qual foi considerada ferida “de inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito nas disposições conjugadas dos art.ºs 2°, 18°, n.º 2, 36°, n.º 1, e 63°, n.ºs 1 e 3, da CRP, como, aliás, se decidiu já no Acórdão n.º 88/2004 do TC de 10/02, publicado no DR - II série
- n.º 90, de 16/04/2004.” Tal recusa de aplicação foi, portanto, essencial para a conclusão de que os requisitos exigíveis ao membro sobrevivo da união de facto para obter prestações sociais decorrentes do óbito de um beneficiário de qualquer regime público de segurança social se referem “apenas, à prova relativa ao estado civil de solteiro, viúvo ou separado judicialmente de pessoas e bens do referido beneficiário e à circunstância do respectivo interessado ter vivido em união de facto, há mais de dois anos, com o falecido.” Verificam-se, assim, os requisitos para se tomar conhecimento do presente recurso, tendo por objecto a apreciação da constitucionalidade da dimensão normativa, nos termos enunciados no respectivo requerimento e acima transcritos. Em relação a estes termos, importa ainda, todavia, precisar dois pontos. O primeiro é o de que, apesar de na decisão recorrida se dizer que o n.º 2 do art.º 41° do Estatuto das Pensões de Sobrevivência estabelece que, para efeitos da concessão da pensão de sobrevivência, “só será considerado herdeiro hábil o membro sobrevivo da união de facto a favor de quem haja sido proferida sentença judicial fixando-lhe o direito a alimentos”, a norma cuja aplicação foi recusada inclui simplesmente a interpretação “no sentido de fazer depender a atribuição das prestações sociais, da verificação dos requisitos exigíveis pela lei civil para a concessão da pensão de alimentos”, e não a questão de saber se a prova destes requisitos, exigidos no artigo 2020º do Código Civil, carece ou não de ser feita em acção autónoma (o que é contestado pela própria recorrente no presente recurso), ou pode ser feita na própria acção em que se reclama a atribuição da pensão (podendo reportar-se a esta a “sentença judicial” a que se refere a norma citada). No presente caso, aliás, aquela acção contra a herança existiu, tendo sido nela declarada a inexistência, na herança, de bens que permitissem a prestação de uma pensão de alimentos. Foi apenas porque em tal acção se não verificara a intervenção das recorridas, enquanto demandadas, que o acórdão recorrido considerou não existir caso julgado material, que permitisse invocar a prova dos factos nessa acção, assim concluindo pela impossibilidade de acolhimento pelo Supremo, da “alegada prova já efectuada na acção anteriormente instaurada, relativamente aos requisitos a que alude o art.º 2020° do CC.”. Mas nada permite retirar desta impossibilidade de acolhimento da prova anterior um entendimento no sentido de que a prova em causa não teria sido possível na própria acção relativa à prestação social, ou, ainda, que tal ponto fosse incluído no segmento normativo cuja aplicação foi recusada por inconstitucionalidade. Antes pelo contrário, o acórdão recorrido parece pressupor a possibilidade da prova dos requisitos (cuja exigência entende ser inconstitucional) na própria acção contra a segurança social – e no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa recorrido disse-se mesmo, expressamente, que
“[t]eria a A. de alegar e provar nesta acção, contra o Centro Nacional de Pensões e a Caixa Geral de Aposentações, factos que preenchessem os requisitos estabelecidos no art. 2020º, n.º 1, do C. Civil.” O segundo ponto refere-se ao preciso alcance da remissão em causa, para os requisitos previstos no artigo 2020º, n.º 1, do Código Civil. Consultando o acórdão recorrido, verifica-se que não mereceu acolhimento a prova efectuada relativamente a quaisquer requisitos, mas concluiu-se que tal prova era irrelevante, pois os requisitos exigíveis “reconduzem-se, apenas, à prova relativa ao estado civil de solteiro, viúvo ou separado judicialmente de pessoas e bens do referido beneficiário e à circunstância do respectivo interessado ter vivido em união de facto, há mais de dois anos, com o falecido.” E, assim, foi recusada a aplicação do n.º 2 do artigo 41° do Estatuto das Pensões de Sobrevivência “interpretado no sentido de fazer depender a atribuição das prestações sociais, da verificação dos requisitos exigíveis pela lei civil para a concessão da pensão de alimentos”. Pode, pois, dizer-se que, também no presente caso, não está em causa o entendimento preciso do alcance da referida remissão no sentido de que a obtenção do direito à pensão passa sempre pela prova de se não poder efectivamente obter alimentos da herança. Antes o requerimento de recurso se refere simplesmente à exigência de o companheiro do falecido “estar nas condições do art.º 2020º do Código Civil, isto é, de carecer de alimentos e de não os poder obter da herança (por falta de bens ou rendimentos desta) ou das pessoas referidas no art.º 2009º do mesmo Código”
(itálico aditado) – possibilidade de prova alternativa conducente à conclusão
(realçada já num dos votos de vencido apostos ao acórdão n.º 88/2004) de que, para obter alimentos da herança ou para conseguir o reconhecimento do direito à pensão seria necessário, “em ambos os casos, provar não os conseguir dos familiares referidos”. Está, pois, em causa o citado o artigo 41º, n.º 2, 1ª parte, do Estatuto das Pensões de Sobrevivência, na interpretação segundo a qual a titularidade de pensão de sobrevivência em caso de união de facto depende de o companheiro do falecido estar nas condições do artigo 2020º do Código Civil, isto é, de ter direito a obter alimentos da herança, por não os poder obter das pessoas referidas no artigo 2009º do mesmo Código.
5.Conforme se nota na decisão recorrida, o Tribunal Constitucional teve já ocasião de apreciar esta norma. Assim, o acórdão n.º 88/2004, tirado na 3ª Secção, pronunciou-se (por maioria) no sentido da sua inconstitucionalidade, por violação do “princípio da proporcionalidade, tal como resulta das disposições conjugadas dos artigos 2º, 18º, n.º 2, 36º, n.º 1, e 63º, n.ºs 1 e 3, todos da Constituição da República Portuguesa”. Solução normativa substancialmente idêntica a esta, embora reportada a outra norma, fora já, anteriormente apreciada por este Tribunal, pelo acórdão n.º
195/2003, tirado na 2ª Secção (invocado, aliás, num dos votos de vencido apostos ao referido acórdão n.º 88/2004), no qual, igualmente por maioria, se não julgou inconstitucional a norma do artigo 8º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro, “na parte em que faz depender a atribuição da pensão de sobrevivência por morte do beneficiário da segurança social, a quem com ele convivia em união de facto, de todos os requisitos previstos no n.º 1 do artigo
2020º do Código Civil” (itálico aditado). Estava aqui em causa a dimensão normativa segundo a qual a atribuição da pensão de sobrevivência por morte de beneficiário da Caixa Geral de Aposentações, a quem com ele convivia em união de facto, dependia, também, da prova do direito do companheiro sobrevivo a receber alimentos da herança do companheiro falecido, implicando a demonstração prévia da impossibilidade da sua obtenção, nos termos das alíneas a) a d) do art. 2009° do Código Civil”. Disse-se na fundamentação deste acórdão n.º 195/2003:
«(...) Ora, será que a distinção entre cônjuges (contemplados como titulares do direito
às prestações em questão no artigo 7º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º
322/90) e pessoas em situação de união de facto, para efeitos de fixação das condições de atribuição da pensão de sobrevivência, requerendo para estas que não possam exigir alimentos aos seus familiares mais próximos, é violadora do princípio da igualdade? A perspectiva da recorrente parece ser a de que a distinção entre pessoas casadas e pessoas em situação de união de facto, para efeitos de atribuição da pensão de sobrevivência, viola o princípio da igualdade por ser destituída de fundamento razoável, constitucionalmente relevante, considerando, designadamente, que “sempre será necessário fazer prova da já referida vivência há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges”. Cumpre, porém, reconhecer que este último argumento dá por pressuposto o reconhecimento de uma imposição constitucional, por força do princípio da igualdade, de um mesmo tratamento para cônjuges e pessoas que vivem em união de facto (ainda que há mais de dois anos). Ora, numa certa perspectiva pode, é certo, admitir-se que uma certa caracterização da situação de união de facto, pela sua duração e por outras circunstâncias (por exemplo, a existência de filhos comuns) a aproxima da situação típica dos cônjuges. No caso, porém, a exigência de uma convivência há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges serve apenas para caracterizar de forma mínima a situação de união de facto que poderá ser juridicamente relevante, para lhe serem reconhecidos – embora, segundo o Código Civil, em medida bastante limitada e muito distinta da relação entre os cônjuges – alguns efeitos jurídicos. É que, diversamente do que acontece com a relação matrimonial, em que um acto revestido de uma forma jurídica solene marca a criação de uma nova relação jurídica, no caso da convivência entre pessoas não casadas, justamente por estar em causa uma situação de união de facto, o tempo mínimo de convivência é considerado relevante pelo legislador para o efeito de reconhecimento de efeitos jurídicos
(assim, por exemplo, o artigo 1º, n.º 1, das citadas Lei n.ºs 135/99 e 7/2001 condicionam ambos os efeitos jurídicos que reconhecem à circunstância de se tratar de pessoas “que vivem em união de facto há mais de dois anos”). O problema não pode, pois, ficar resolvido logo com a mera invocação da existência de uma convivência há mais de dois anos, em condições análogas às dos cônjuges. Antes está, precisamente, em saber se uma situação de união de facto, assim caracterizada, pode ser tratada de forma diversa do casamento, para o efeito em causa. Ora, como este Tribunal tem reconhecido, existem diferenças importantes, que o legislador pode considerar relevantes, entre a situação de duas pessoas casadas, e que, portanto, voluntariamente optaram por alterar o estatuto jurídico da relação entre elas – mediante um “contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código”, como se lê no artigo 1577º do Código Civil –, e a situação de duas pessoas que (embora convivendo há mais de dois anos “em condições análogas às dos cônjuges”) optaram, diversamente, por manter no plano de facto a relação entre ambas, sem juridicamente assumirem e adquirirem as obrigações e os direitos correlativos ao casamento. Assim, como se salientou, por exemplo, também no referido Acórdão n.º 275/2002,
“não se pode excluir a liberdade do legislador de prever um regime jurídico específico para os cônjuges, visando, por exemplo, a prossecução de objectivos políticos de incentivo ao matrimónio”. Pelo que, “considerando desde logo a existência de especiais deveres entre os cônjuges”, se pode dizer, como se afirmou no citado Acórdão n.º 14/2000, que “(...) de harmonia com o nosso ordenamento (ainda suportado constitucionalmente), o regime das pessoas unidas pelo matrimónio confrontadamente com a união de facto não permite sustentar que nos postamos perante situações idênticas à partida e, consequentemente, que requeiram tratamento igual.” Ora, um dos pontos em que o tratamento jurídico diverso entre ambas as situações pode relevar é, justamente, o das condições, ora em causa, para o reconhecimento do direito à pensão de sobrevivência no caso da união de facto. Importa, aliás, recordar que, por exemplo, quem vive em situação de união de facto também não é herdeiro (nem legitimário, nem legítimo) do de cujus com quem convivia, apenas tendo um direito a exigir alimentos da herança, se não os puder obter das pessoas referidas no artigo 2009º, n.º 1, alíneas a) a d) do Código Civil. E, se é certo poder sustentar-se que os fundamentos e a natureza dos direitos à pensão de sobrevivência e a alimentos são distintos, não pode deixar de notar-se o paralelo entre a situação sucessória do convivente em união de facto – reduzida ao referido direito a exigir alimentos da herança – e a situação decorrente da norma em causa, quanto à condição questionada para atribuição da pensão de sobrevivência. Ora, nem esta diferenciação de tratamento pode considerar-se destituída de fundamento razoável ou arbitrária, nem, por outro lado, se baseia num critério que tenha de ser irrelevante, considerando o efeito jurídico visado. Na verdade, trata-se, aqui, tal como na distinção da posição sucessória do cônjuge e do convivente em união de facto, justamente de um daqueles pontos do regime jurídico em que o legislador trata mais favoravelmente a situação dos cônjuges, não só visando objectivos políticos de incentivo ao matrimónio – enquanto instituição social que tem por criadora de melhores condições para assegurar a estabilidade e a continuidade comunitárias –, mas também como reverso da inexistência de um vínculo jurídico, com direitos e deveres e um processo especial de dissolução, entre as pessoas em situação de união de facto. Tal diverso tratamento jurídico não pode considerar-se destituído de fundamento constitucionalmente relevante, não podendo divisar-se na norma em apreço violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Lei Fundamental.
5. A conclusão a que chegámos é certamente sufragada também por quem não considere que o legislador constitucional dispensa no artigo 36º, n.º 1, protecção à família, enquanto 'elemento fundamental da sociedade', distinguindo-a, no n.º 1 e no n.º 2 desse artigo, do casamento, incluindo igualmente uma família não fundada no casamento – e que, portanto, pode retirar-se desta imposição, em conjugação com o princípio da proporcionalidade, um parâmetro autónomo, susceptível de conduzir a decisões de inconstitucionalidade, como foi o caso do citado Acórdão n.º 275/2002. Mesmo, porém, à luz de outro entendimento do artigo 36º, n.º 1, da Constituição conjugado com o princípio da proporcionalidade – como o que fundou o citado aresto –, não se é, porém, conduzido a um juízo de inconstitucionalidade da norma ora em causa. É que, no presente caso, não se está perante uma exclusão de plano, e em abstracto, do direito do convivente, por contraposição ao direito do cônjuge, e antes a norma em questão (que não trata de qualquer indemnização, ou
“compensação” de danos pessoais), o artigo 8º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro, visou justamente, pelo contrário, conceder também protecção, pela extensão de prestações na eventualidade da morte dos beneficiários do regime geral de segurança social, “às pessoas que se encontrem na situação prevista no n.º 1 do artigo 2020.º do Código Civil”. Mesmo o condicionamento da pensão à impossibilidade de obter alimentos (nos termos da norma em causa e do citado artigo 3º do Decreto Regulamentar n.º 1/94) representa, ainda, a prova, justamente, da necessidade de protecção da pessoa em causa, por não a poder obter dos seus familiares directos. E já se viu que existe fundamento constitucionalmente relevante para a distinção de tratamento em causa. Não pode, pois, afirmar-se que, desse condicionamento do direito à pensão de sobrevivência (tal como, por exemplo, da não atribuição da qualidade de herdeiro legítimo ou legitimário), resulte violação de um “dever de não desproteger, sem uma justificação razoável, a família que se não fundar no casamento”, que se afirmou no citado Acórdão n.º 275/2002, quanto àqueles pontos do regime jurídico que directamente contendam com a protecção dos seus membros
“e que não sejam aceitáveis como instrumento de eventuais políticas de incentivo
à família que se funda no casamento” (itálico aditado).»
6.Importa frisar que não pode estar aqui em causa apurar se a dimensão interpretativa enunciada corresponde, ou não, ao melhor entendimento do direito infra-constitucional, mas, apenas, apreciar a sua conformidade com a Constituição da República. Neste plano, considera-se que o entendimento expresso no acórdão transcrito é de reiterar no presente recurso, em que está igualmente em causa a dependência da atribuição da pensão de todos os requisitos previstos no n.º 1 do artigo 2020º do Código Civil (também no sentido da não inconstitucionalidade, cfr., entretanto, Rita Lobo Xavier, “Uniões de facto e pensões de sobrevivência. Anotação aos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs
195/03 e 88/04”, in Jurisprudência constitucional, n.º 3, Julho-Stembro, de
2004, pp. 16 e segs.). Assim, na óptica do princípio da igualdade, a situação de duas pessoas que declaram a intenção de conceder relevância jurídica à sua união e a submeter a um determinado regime (um específico vínculo jurídico, com direitos e deveres e um processo especial de dissolução) não tem de ser equiparada à de quem, intencionalmente, opta por o não fazer. O legislador constitucional não pode ter pretendido retirar todo o espaço à prossecução, pelo legislador infra-constitucional, cujo programa é sufragado democraticamente, de objectivos políticos de incentivo ao matrimónio enquanto instituição social, mediante a formulação de um regime jurídico próprio – por exemplo, distinguindo entre a posição sucessória do convivente em união de facto (reduzida ao referido direito a exigir alimentos da herança) e a do cônjuge. A diferenciação de tratamento em causa na presente norma não pode, assim, ser considerada como destituída de fundamento razoável ou arbitrária, verificando-se, por outro lado, um indiscutível paralelo entre ela e o tratamento sucessório de ambas as situações (introduzido pela reforma de 1977 e cuja conformidade com a Lei Fundamental não é aqui questionada).
7.Superada a objecção que se pudesse pretender extrair do princípio da igualdade, e admitida a presente diferenciação à luz da política legislativa que o legislador democrático entenda dever prosseguir, não ficam, porém, dissipados todos os argumentos conducentes a uma conclusão de inconstitucionalidade. Aliás, o acórdão recorrido baseou o seu julgamento de inconstitucionalidade, decisivamente, na invocação do princípio da proporcionalidade (conjugado com o reconhecimento constitucional da “família não fundada no casamento”), tal como o havia feito (e invocando) o citado acórdão n.º 88/2004. Também neste plano se considera, porém, que é de reiterar a fundamentação transcrita, do acórdão n.º 195/2003. Com efeito, o que está em causa no confronto de uma solução normativa com o princípio da proporcionalidade não é simplesmente a gravidade ou a dimensão das desvantagens ou inconvenientes que pode acarretar para os visados (com, por exemplo, a necessidade da prova da carência de alimentos, ou, mesmo a exclusão total de certos direitos). O recorte de um regime jurídico – como o da destruição do vínculo matrimonial ou o dos seus efeitos sucessórios – pela hipótese do casamento, deixando de fora situações que as partes não pretenderam intencionalmente submeter a ele, tem necessariamente como consequência a exclusão dos respectivos efeitos jurídicos. O que importa apurar é se tal recorte é aceitável – se segue um critério constitucionalmente aceitável – tendo em conta o fim prosseguido e as alternativas disponíveis – sem deixar de considerar a ampla margem de avaliação de custos e benefícios e como de escolha dessas alternativas, que, à luz dos objectivos de política legislativa que ele próprio define dentro do quadro constitucional, tem de ser reconhecida ao legislador (e que este Tribunal reconheceu, por exemplo, no acórdão n.º 187/01, publicado no Diário da República, II série, de 26 de Junho de 2001). Ora, como revela o paralelo da solução normativa em causa com a posição sucessória do cônjuge sobrevivo e da união de facto – não equiparada, aliás, pelas Leis n.ºs 135/99 e 7/2001 –, o tratamento post mortem do cônjuge é, justamente, um daqueles pontos do regime jurídico em que o legislador optou por disciplinar mais favoravelmente o casamento. Esta distinção entre a posição post mortem do cônjuge e a do companheiro em união de facto – que, aliás, podem concorrer entre si depois da morte do beneficiário – é adequada à prossecução do fim de incentivo à família fundada no casamento, que não é constitucionalmente censurável – e antes recebe até (pelo menos numa certa leitura) particular acolhimento no texto constitucional. A conveniência de tal distinção de tratamento post mortem, com os concomitantes reflexos patrimoniais, pode ser, e será com certeza, diversamente apreciada a partir de diversas perspectivas, no debate político-legislativo – em que poderão vir a encontrar acolhimento argumentos como o da distinção entre o direito a alimentos e a pensão de sobrevivência, a existência e o sentido dos descontos efectuados pelo companheiro falecido, à luz do regime então vigente e da sua situação pessoal, ou a maior ou menor conveniência em aprofundar consequências económicas específicas de uma relação familiar como o casamento. Mas a Constituição não proscreve essa distinção, ainda quando ela tem como consequência deixar de fora do regime estabelecido para a posição sucessória do cônjuge o companheiro em união de facto.
8.Entende-se ser justamente isto o que se passa com a interpretação em causa, segundo a qual os requisitos para o direito à pensão de sobrevivência são diversos, dependendo, no caso de união de facto, e tal como em geral para o direito a alimentos nos termos do artigo 2020º do Código Civil, de aquele ter direito a obter alimentos da herança, por não os poder obter das pessoas referidas no artigo 2009º do mesmo Código. Aliás, não é só para o companheiro sobrevivo que existem condições específicas para ser reconhecido o direito à pensão: o ex-cônjuge ou cônjuge separado de pessoas e bens só dela beneficia se tiver sido casado com o beneficiário pelo menos um ano e se na data da morte tiver direito a uma pensão de alimentos; os pais e os avós têm de estar “a cargo” do contribuinte à data da morte para terem direito a pensão, etc.. E a pensão cessa quando os titulares do direito obtiverem outras fontes de rendimento. Apenas ao cônjuge não são exigidas condições adicionais, pois os cônjuges estão ligados por específicos deveres de solidariedade patrimonial – o dever de assistência e, na constância do casamento, o dever de contribuir para os encargos da vida familiar (artigos
1672º e 1675º do Código Civil). Diversamente, a união de facto não implica forçosamente, por opção das partes, deveres patrimoniais, ou uma geral solidariedade patrimonial, admitindo-se mesmo que quem vive em união de facto continue a ter direito a alimentos do ex-cônjuge ou, até, mantenha uma pensão de sobrevivência (e podendo, mesmo ser este o motivo para continuar na situação de união de facto, e não casar). Recorde-se, aliás, que os próprios diplomas que introduziram medidas de protecção das pessoas que vivem em união de facto (Leis
135/99, de 28 de Agosto e 7/2001, de 11 de Maio) não obrigaram os membros da união de facto a deveres de assistência recíprocos ou a deveres de alimentos em caso de ruptura, ou, sequer, alteraram os preceitos do Código Civil sobre alimentos em caso de morte. Por outro lado, e como se notou no acórdão n.º 195/2003, na solução normativa em apreço não se verifica qualquer “exclusão de plano, e em abstracto, do direito do convivente, por contraposição ao direito do cônjuge”. Antes a norma em questão (que não disciplina qualquer ressarcimento, ou “compensação” de danos pessoais) “visou justamente, pelo contrário, conceder também protecção, pela extensão de prestações na eventualidade da morte dos beneficiários do regime geral de segurança social, ‘às pessoas que se encontrem na situação prevista no n.º 1 do artigo 2020.º do Código Civil’”. O sentido da remissão para o artigo
2020º do Código Civil, com a exigência de provar os requisitos exigidos neste normativo, como “condicionamento da pensão à impossibilidade de obter alimentos”, mais não é do que “a prova, justamente, da necessidade de protecção da pessoa em causa, por não a poder obter dos seus familiares directos”, sendo, portanto, coerente com o objectivo visado pela prestação social em causa: para o cônjuge, considerando os deveres de solidariedade patrimonial e a obrigação de alimentos em caso de ruptura, presume-se essa situação; para o caso da união de facto, é necessário fazer prova da necessidade de protecção, tal como quando se pretende obter alimentos. Da exigência daqueles requisitos (tal como, por exemplo, do não reconhecimento da qualidade de herdeiro legítimo ou legitimário) não resulta, pois, qualquer violação do princípio da proporcionalidade – sendo de notar, aliás, que, para além da possível conveniência em distinguir a posição do cônjuge, pode verificar-se também, no caso concreto, um problema de concurso entre aquele e o companheiro em união de facto. E conclui-se, por conseguinte, que deve ser concedido provimento ao presente recurso. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 41º, n.º 2, 1ª parte, do Estatuto das Pensões de Sobrevivência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º142/73, de
31 de Março, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 191-B/79, de 25 de Junho, na interpretação segundo a qual a titularidade de pensão de sobrevivência em caso de união de facto depende de o companheiro do falecido estar nas condições do artigo 2020º do Código Civil, isto é, de ter direito a obter alimentos da herança, por não os poder obter das pessoas referidas no artigo 2009º, n.º 1, alíneas a) a d), do mesmo Código; b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo sobre a questão de constitucionalidade.
Lisboa, 29 de Março de 2005 Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta) Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto
Votei vencida essencialmente pelas razões que justificaram posição já assumida no Acórdão nº 195/2003. Entendo que neste tipo de casos é desproporcionada e não justificada constitucionalmente a diferenciação entre a posição do cônjuge sobrevivo e a do companheiro em união de facto. Não encontro na Constituição, nesta específica matéria, qualquer indício bastante de valorização do casamento relativamente à unidade “familiar” constituída a partir da união de facto. Nada permite concluir que a Constituição tenha pressuposto que o casamento deva ser um modo privilegiado de garantir a situação patrimonial por uma pensão do cônjuge sobrevivo. Aliás, a Constituição refere contrair casamento como expressão do direito a “constituir família” (artigo 36º da Constituição), não definindo
“constituir família” nem desconsiderando a constituição de família através da união de facto. Em todo o caso, entendo ser pelo menos desproporcionada a diferenciação de regimes quanto à pensão do companheiro sobrevivo, vivendo com o falecido em condições análogas às dos cônjuges. Não me parece que, nesta situação, o legislador ordinário possa estabelecer critérios diferenciadores sem apoio explícito em valores constitucionais positivos, apenas em nome de uma liberdade concedida ao legislador ordinário de incentivar o casamento ou o papel do casamento na sociedade.
Maria Fernanda Palma