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Processo n.º 441/05
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A., cidadão turco de etnia curda, requereu contra o Ministério da
Administração Interna, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, a
“suspensão da eficácia do Acto Administrativo da decisão da inaplicabilidade do
artigo 8º da Lei 15/98, de 26 de Março, proferida pelo Comissariado Nacional
para os Refugiados, por despacho de 16 de Novembro de 2004”, bem como que fosse
“permitido ao recorrente permanecer no País enquanto estiver pendente o recurso
que se interporá de imediato” (fls. 1 e seguintes).
Por despacho de fls. 100 e seguinte, foi ordenada a notificação do
requerente para especificar “a data em que foi apresentado o pedido de protecção
jurídica a que se reporta o ofício do Instituto da Segurança Social, I.P.”, bem
como “a data em que foi notificado do resultado da consulta jurídica para que
foi designado o ilustre advogado subscritor do requerimento inicial”.
Na sequência da resposta ao referido despacho de aperfeiçoamento
(fls. 103 e seguintes), foi proferido despacho de admissão liminar do
requerimento de suspensão de eficácia de acto administrativo, do seguinte teor
(fls. 139 e seguintes):
“Notificado do despacho de aperfeiçoamento de fls. 100-101, veio o Requerente,
reafirmando que foi notificado do despacho suspendendo em 16.11.2004, declarar
que o pedido de protecção jurídica foi formulado em 26.11.2004, juntando os
correspondentes documentos comprovativos.
Sobre a data da notificação do resultado da consulta jurídica, declara que, na
impossibilidade de se realizar tal consulta sem a presença de um intérprete, por
virtude de o Requerente apenas dominar a língua turca, foi requerida a
prorrogação do prazo para a propositura da acção. A consulta teve lugar – e o
seu resultado foi notificado ao Requerente – em 11.02.2005. Juntou documentos.
A presente providência cautelar e a acção administrativa especial de que é
instrumental – distribuída sob o n.º 113.05.2BELRS – deram entrada neste
Tribunal em 09.03.2005.
Assim;
Ao abrigo do disposto no art. 116º, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais
Administrativos (CPTA) [aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro, com
as alterações introduzidas pela Lei n.º 4-A/2003, de 19 de Fevereiro], admito
liminarmente o presente requerimento de suspensão de eficácia de acto
administrativo, por se mostrarem reunidos os pressupostos previstos nos art.ºs
112º n.ºs 1 e 2, a), e 114º, todos do CPTA, uma vez que não se verifica qualquer
fundamento de rejeição (art.º 116º, n.º 2, do CPTA) e se trata de acto
administrativo de carácter negativo com efeitos positivos (consubstanciados,
além do mais, na expulsão imediata do território nacional uma vez transcorrido o
prazo de dez dias sobre a notificação).
Com efeito, nos termos e para os restritos efeitos do disposto no citado art.º
116º do CPTA sobre admissão ou rejeição liminar de providência cautelar, e
verificando-se que entre a notificação do despacho suspendendo e o pedido de
protecção jurídica (que tem por efeito fazer retroagir a essa data a propositura
da acção – art.º 33º, n.º 4, da Lei n.º 34/2004, de 29.07) decorreram dez dias,
julgo inconstitucional, por violação do princípio da tutela jurisdicional
efectiva consagrado no art.º 268º, n.º 4, da Constituição a norma revista no
art.º 16º, n.º 2, da Lei n.º 15/98, de 26 de Março, segundo a qual é de 8 (oito)
dias o prazo de impugnação contenciosa da decisão de não admissão do pedido de
asilo ou de autorização de residência por razões humanitárias, quando
interpretada e aplicada a uma situação em que o requerente de asilo, sem domínio
da língua portuguesa, formula pedido de protecção jurídica no âmbito do acesso
ao direito e aos tribunais, a qual vai assim desaplicada nos termos do disposto
no art.º 204º da Constituição, com as consequentes tempestividade da impugnação
contenciosa e admissibilidade da providência de suspensão de eficácia de acto
administrativo.
[…].”.
2. Ordenada a citação do Ministério da Administração Interna,
na pessoa do Comissário Nacional para os Refugiados, para deduzir oposição (fls.
140-141), veio este pedir o indeferimento do pedido de suspensão de eficácia
(fls. 150 e seguintes), concluindo do seguinte modo:
“1 - A suspensão da eficácia do acto proferido pela C.N.A.R., em 11 de Novembro
de 2004, prejudica gravemente o interesse público.
2 - Tal suspensão a concretizar-se viabilizaria o acesso ao recurso abusivo ao
instituto de asilo, por quem claramente dele não carece.
3 - O interesse público seria gravemente prejudicado com a suspensão do acto,
uma vez que tal conduta não impediria a utilização abusiva do instituto de
asilo, viabilizando antes a entrada em território nacional mediante a utilização
de meios legais impróprios, o que causaria grave prejuízo para o interesse
público e para a confiança pública.
4 - Porém, no caso em análise, verifica-se desde logo que ocorre o preenchimento
de factores e circunstâncias que obstaculizam a adopção da providência requerida
– cfr. artigo 120° n.º 1 alínea b), n.º 2 e 5 da Lei n.º 13/2002 de 19 de
Fevereiro –, pelo que a pretensão do requerente não pode proceder.
5 - Ponderados os interesses públicos e privados em jogo, conclui-se que os
danos que resultariam da concessão da providência requerida, se mostrariam muito
superiores, àqueles que poderiam eventualmente resultar da sua recusa – cfr.
artigo 120° n.º 1 alínea b) e n.º 2 da Lei n.º 13/2002 de 19 de Fevereiro.
[…].”.
3. Por sentença de 9 de Maio de 2005, o juiz do Tribunal Administrativo
e Fiscal de Lisboa decidiu “recusar a aplicação da norma do art.º 16.º, n.º 2
[da Lei n.º 15/98, de 26 de Março], no caso dos autos, por violação do princípio
da tutela jurisdicional efectiva consagrado no art.º 268º, n.º 4, da
Constituição”, bem como “decretar a suspensão da eficácia do acto administrativo
praticado pela Comissária Nacional-Adjunta para os Refugiados, datado de
16.11.2004, pelo qual foi confirmada a recusa ao requerente da autorização de
residência por razões humanitárias prevista no art.º 8º da Lei n.º 15/98, de
26.03” (fls. 182 e seguintes).
Pode ler-se no texto da sentença, para o que aqui releva, o seguinte:
“[…]
A inconstitucionalidade da norma do art.º 16º, n.º 2, in fine, da Lei n.º 15/98
de 26.03
[…]
A questão foi equacionada no despacho liminar, que é decisão interlocutória, não
fazendo caso julgado, não se enquadrando em qualquer dos casos em que o recurso
sobe imediatamente (art.º 142º, n.º 5, do CPTA), mas apenas com vista à decisão
sobre a admissibilidade do requerimento inicial.
Todavia, agora no âmbito da decisão sobre o fundo da causa cautelar, cumpre
fundamentar a desaplicação da indicada norma, agora necessária para efeitos de
eventual recusa da providência por eventual manifesta improcedência da pretensão
principal, além de se tornar necessário conformar, em concreto, os efeitos da
decisão de inconstitucionalidade (designadamente no que respeita ao disposto no
art.º 282º, n.º 1, da CRP).
Concretizando.
O direito de asilo encontra-se consagrado, com vocação universalizante, no art.º
14º da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948. A sua regulação
básica consta da Convenção de Genebra de 28 de Julho 1951, aprovada para adesão
pelo Decreto-Lei n.º 43201, de 01.10.1960.
É expressamente acolhido como direito fundamental no art.º 33º, n.º 8, da
Constituição, inserido no catálogo de direitos, liberdades e garantias, gozando,
por isso, do regime de protecção previsto no art.º 18º. Isto, sem prejuízo de se
constituir como direito fundamental desde logo à face da cláusula aberta
prevista no art.º 16º, n.º1, da CRP.
Na Lei n.º 15/98, de 26.03 (Lei de Asilo e Refugiados), prevê-se a concessão de
autorização de residência por razões humanitárias aos estrangeiros e apátridas a
quem não seja aplicável o regime de direito de asilo (stricto sensu).
[…].
A autorização de residência de estrangeiros e apátridas por razões humanitárias,
ainda que temporalmente limitada (cfr. n.º 2 do art.º 8º), ainda que concedida
pelo Ministro da Administração Interna sob proposta do Comissariado Nacional
para os Refugiados (cfr. n.º 3 do art.º 8º), até pela sua umbilical ligação à
dignidade da pessoa humana, não deixa, por isso, de se traduzir, mais do que o
exercício de um «poder vinculado» […], num verdadeiro e autónomo direito
fundamental, constante de acto legislativo mas acolhido ao abrigo da cláusula
aberta, já referida, do art.º 16º, n.º 1, da Lei Fundamental.
Tal o horizonte compreensivo em que deverá perspectivar-se a (subsequente)
argumentação sobre a questão de constitucionalidade suscitada.
Na verdade, importa não perder de vista que, se a autorização de residência por
razões humanitárias se configura como direito fundamental de natureza análoga a
direitos, liberdades e garantias (dada a sua estrutura, os valores protegidos e
a ligação à dignidade da pessoa humana), então a exigência da sua tutela é
agravada.
Por outro lado, está fora de dúvida, antes é sublinhado de modo constante na
jurisprudência e na doutrina (v., por todos, J.J. Gomes Canotilho e Vital
Moreira, CRP anotada, 3ª ed., 1993, p. 934), que a tutela jurisdicional efectiva
dos direitos ou interesses legalmente protegidos e a sua concretização no
direito de impugnação contenciosa dos actos administrativos que os lesem e
adopção das medidas cautelares adequadas à salvaguarda da sua efectividade
constituem direitos de natureza análoga a direitos, liberdades e garantias.
Confluem, pois, no caso dos autos, dois direitos fundamentais que beneficiam da
protecção qualificada constitucionalmente dedicada aos direitos, liberdades e
garantias. O direito à impugnação contenciosa dos actos administrativos que
lesem direitos ou interesses legalmente protegidos, o qual é concretização do
direito de acesso ao direito e aos tribunais que está garantido «a todos» e, no
domínio do direito de asilo (em sentido amplo), o direito à autorização de
residência por razões humanitárias, consagrado no art.º 8º da Lei n.º 15/98, de
26.03, mas ainda ligado ao direito de asilo (stricto sensu) proclamado no art.º
33º, n.º 8, da Constituição […].
Assim é que a previsão de um prazo de oito dias para impugnar contenciosamente o
despacho de indeferimento do pedido de reapreciação apresentado ao abrigo do
disposto no art.º 16º, n.º 1, da LAR, embora se encontre inserido no termo de
procedimento administrativo caracterizado pela celeridade e por prazos curtos
para o exercício de direitos (assim o prazo de oito dias para apresentar o
pedido de asilo contados da entrada em território nacional para tal fim ou da
verificação ou conhecimento dos factos que servem de fundamento ao pedido –
art.º 11º, n.º 1 – ou o prazo de cinco dias para solicitar a reapreciação ao
Comissário Nacional para os Refugiados do eventual indeferimento daquele pedido
– art.º 16º, n.º 1, ambos da LAR), o certo é que se trata de um prazo de
impugnação judicial de decisão administrativa e, portanto, se acha abrangido,
distintamente do que possa suceder com os prazos procedimentais, pela garantia
de tutela efectiva consagrada no art.º 268º, n.º 4, da Constituição.
Assim, ainda que devam sopesar-se as garantias consagradas na mesma LAR, no
âmbito do designado «apoio social», em especial, o direito a beneficiar dos
serviços de intérprete e de apoio jurídico, quer através do Alto-Comissariado
das Nações Unidas para os Refugiados, quer, como no caso dos autos, do Conselho
Português para os Refugiados, quer ainda beneficiando, como também sucedeu, do
regime geral de apoio judiciário – cfr. art.º 52º, respectivamente, n.ºs 1, 2 e
3, da LAR –, tais garantias apresentam-se sempre como instrumentais da garantia,
com assento constitucional, de tutela jurisdicional dos direitos.
Assim é que, em face das circunstâncias concretas do caso, mas de todo o modo
generalizáveis em termos de configurarem uma dimensão normativa da disposição
que prevê um prazo de oito dias para o exercício do direito de impugnação
contenciosa da decisão «final» de indeferimento a que alude o art.º 16º, n.º 2,
quais sejam as de que se trata de estrangeiro sem domínio da língua portuguesa,
que formula pedido de protecção jurídica no âmbito do acesso ao direito e aos
tribunais, se afigura dimensão normativa violadora da garantia de tutela
jurisdicional efectiva, consagrada no art.º 268º, n.º 4, da Constituição.
Devendo, em face da conclusão alcançada, ser recusada a aplicação da norma, na
descrita dimensão normativa, em obediência ao disposto no art.º 204º da Lei
Fundamental, sobra, ainda assim, a questão do apuramento dos efeitos de tal
decisão. Desconsiderando outros desenvolvimentos impertinentes na economia da
presente decisão, trata-se de apurar então qual a norma aplicável, para que
assim se possa eventualmente sustentar um juízo de admissibilidade da
providência cautelar, apoiado na tempestividade da impugnação contenciosa
deduzida […].
Dispõe o art.º 282º, n.º 1, da Constituição – aplicável, apesar da referência
exclusiva à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral,
também à fiscalização concreta, difusa […] – que a decisão de
inconstitucionalidade é retroactiva e determina a repristinação das normas
eventualmente revogadas.
Na parte que aqui interessa exclusivamente desenvolver, há que determinar que
norma é então aplicável ao caso concreto (art.º 282º da CRP). Para tanto, serve
de apoio o Ac. do TC n.º 226/94, de 08.03.1994, Rel. Cons. António Vitorino […].
As considerações antecedentes ilustram de forma eloquente as dificuldades
colocadas pelo princípio, só aparentemente linear, de repristinação das normas
eventualmente revogadas pela norma «desaplicada» no caso concreto.
Desde logo, entre as restrições ao efeito repristinatório impostas pela lógica,
encontramos a situação em que a norma inválida não revogou norma alguma anterior
[…].
[…]
Mostra-se, pois, suficientemente demonstrada a dificuldade de actuar, no caso
concreto, o princípio da repristinação da norma revogada, o que não surpreende
se atentarmos que o legislador constituinte português «não quis impor que a
decisão de inconstitucionalidade tivesse sempre um efeito repristinatório» […].
Como sustentar, então, a tempestividade da impugnação contenciosa e, por
extensão, a admissibilidade, ou a inexistência de fumus malus, do processo
cautelar sub judice?
A consideração cabal do problema enunciado implicaria aprofundamentos
incompatíveis, e porventura rigorosamente desnecessários para o caso dos autos,
na já sobrecarregada fundamentação da presente decisão.
Fixemos os termos propostos no Ac. do TC n.º 226/94, de 08.03.1994, citado e
acima parcialmente reproduzido com vista à resolução da questão.
Com efeito, no âmbito da protecção devida e à força vinculante própria de
direitos, liberdades e garantias, justifica-se a directa invocação e aplicação
da Constituição para «criar» o «direito» aplicável ao caso concreto. Assim, na
(pelo menos aparente) impossibilidade de repristinar a norma revogada, por
dificuldade em apurar qual seja, nem por isso deixa a força irradiante da norma
constitucional de protecção do direito de tutela jurisdicional efectiva se fazer
sentir, projectada, na «situação da vida» em apreço neste autos.
É, pelos menos na economia da presente decisão cautelar, quanto basta para se
considerar tempestiva a impugnação deduzida pelo requerente, ainda que por força
da retroacção dos efeitos da propositura da acção à data da apresentação do
pedido de protecção jurídica (de acordo com o art.º 33º, n.º 4, da Lei n.º
34/2004, de 29.07), e, por isso mesmo, insubsistente a «evidente improcedência
do processo principal», nos termos do disposto no art.º 120º, n.º 1, a), a
contrario sensu […].
[…].”.
4. Notificada desta sentença, a magistrada do Ministério Público junto
do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa juntou cópia certificada do
recurso para o Tribunal Constitucional que interpusera do despacho de fls. 139 e
seguintes – no qual se recusara a aplicação, por inconstitucionalidade, da norma
do artigo 16º, n.º 2, da Lei n.º 15/98, de 26 de Março (supra, 1.) –,
solicitando concomitantemente que se esclarecesse a sua não junção ao processo
(fls. 235 e seguintes).
Por requerimento de fls. 238 e seguinte, a mesma magistrada interpôs
ainda recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do
artigo 72º da Lei do Tribunal Constitucional, da mencionada sentença, embora por
lapso manifesto refira, a certo passo, que o objecto do recurso é a “decisão
proferida no dia 15.03.2005, pelo Mmº Juiz «a quo», em que declarou
inconstitucional a norma contida no art. 16º n.º 2 da Lei n.º 15/98, de 26 de
Março, tendo recusado a sua aplicação”.
Por despacho de fls. 245, foram admitidos ambos os recursos.
5. Nas alegações (fls. 255 e seguintes), concluiu assim o representante
do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional:
“1 – A norma do nº 2 do artigo 16º da Lei nº 15/98, de 26 de Março, no segmento
em que estabelece um prazo de oito dias para recorrer para o tribunal
administrativo da decisão final proferida pelo Comissário Nacional para os
Refugiados, não se apresenta como limitadora do exercício do direito de defesa
do requerente, não se afigurando tal prazo como exíguo ou temporalmente
desproporcionado.
2 – Usufruindo o requerente de assistência jurídica e de intérprete para o
exercício do direito tutelado, não há violação do direito de acesso à justiça,
nem do princípio da tutela efectiva consagrado no artigo 26[8]º nº 4 da
Constituição, na fixação legal do assinalado prazo.
3 – Termos em que deverá proceder o presente recurso.”.
O recorrido A. contra-alegou (fls. 269 e seguintes), formulando as
seguintes conclusões:
“1. Em nosso entender, a norma prevista no art. 16º, n.º 2, da Lei 15/98, de 26
de Março, ao estipular que é de 8 dias o prazo para de impugnação contenciosa da
decisão de não admissão do pedido de asilo ou de autorização de residência por
razões humanitárias, quando interpretada e aplicada, sem mais, a uma situação
concreta em que o requerente de asilo não tem conhecimento da língua portuguesa,
nem de qualquer outra que não seja o Turco (como é o caso em apreciação),
formula pedido de protecção jurídica no âmbito do acesso à informação jurídica e
à protecção jurídica (acesso ao direito e aos tribunais), viola, claramente o
Princípio da Tutela Jurisdicional Efectiva consagrado no art. 268º, n.º 4, da
C.R.P.;
2. Tal norma, aplicada a caso concreto (cidadão Turco de origem Curda cuja única
língua que fala é o TURCO), é manifestamente limitadora do exercício do direito
de defesa do recorrido, afigurando-se tal prazo como exíguo, acabando por
banalizar, e consequentemente, violar o Princípio do Acesso ao Direito e aos
Tribunais e, bem assim, o Princípio da Tutela Jurisdicional Efectiva, consagrado
no art. 268º, n.º 4, da Constituição Portuguesa
3. O sistema de acesso ao direito e aos tribunais destina-se a assegurar que a
ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou
cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício
ou a defesa dos seus direitos (cfr. n.º 1 do art. 1º da Lei 34/2004);
4. O acesso à informação jurídica e à protecção jurídica para o pleno exercício
dos direitos consagrados na Constituição da República Portuguesa só se iniciou
com a nomeação do patrono nomeado ao recorrido;
5. Antes o recorrido beneficiou, tão-somente, do apoio habitual prestado aos
refugiados que se encontram em situações semelhantes.
6. Acresce que a notificação da decisão final de indeferimento foi efectuada ao
recorrido sem a presença de intérprete;
7. Logo, sem salvaguarda das condições exigíveis para que este pudesse ter
entendido a referida notificação;
8. Assim, nos termos do art. 224º, n.º do Código Civil, a declaração recebida
pelo destinatário em condições de, sem culpa sua, não poder ser conhecida é
INEFICAZ;
8. Logo, a notificação da decisão final de indeferimento ao pedido de
reapreciação, proferida em 16.11.2004 é INEFICAZ.
9. E o Princípio do Acesso ao Direito e aos Tribunais e o Princípio da Tutela
Jurisdicional Efectiva, consagrado no art. 268º, n.º 4, da Constituição
Portuguesa foi violado;
10. Termos em que deverá improceder o presente Recurso.”.
Cumpre apreciar e decidir.
II
6. A Lei n.º 15/98, de 26 de Março, que estabelece um novo regime
jurídico-legal em matéria de asilo e de refugiados, dispõe o seguinte no seu
artigo 16º:
“Artigo 16º
Reapreciação e recurso
1 – No caso de não se conformar com a decisão [de recusa do pedido de asilo:
cfr. artigo 15º da mesma Lei] o requerente pode, no prazo de cinco dias a contar
da notificação, solicitar a sua reapreciação, com efeito suspensivo, mediante
pedido dirigido ao Comissário Nacional para os Refugiados, que poderá
entrevistar pessoalmente o peticionário, se o considerar necessário.
2 – No prazo de quarenta e oito horas, a contar da data da recepção do pedido de
reapreciação ou da entrevista ao requerente, o Comissário Nacional para os
Refugiados profere a decisão final da qual cabe recurso para o tribunal
administrativo de círculo a interpor no prazo de oito dias.”.
O tribunal recorrido apenas recusou a aplicação, com fundamento em
inconstitucionalidade, da norma contida na parte final do n.º 2 deste artigo
16º: na verdade, objecto de censura na sentença recorrida foi somente o prazo de
interposição do recurso, para o tribunal administrativo de círculo, da decisão
final proferida pelo Comissário Nacional para os Refugiados.
Aliás, o Ministério Público, nas alegações que produziu junto do Tribunal
Constitucional (supra, 5.), reporta-se sempre ao segmento da norma do n.º 2 do
artigo 16º da Lei n.º 15/98, de 26 de Março, que estabelece o prazo de oito dias
para interpor tal recurso.
Portanto, e em síntese, o objecto do presente recurso só pode ser
constituído pela norma do n.º 2 do artigo 16º da Lei n.º 15/98, de 26 de Março,
na parte em que estabelece um prazo de oito dias para recorrer para o tribunal
administrativo da decisão final proferida pelo Comissário Nacional para os
Refugiados.
Mas torna-se necessário introduzir ainda uma outra delimitação no
objecto do presente recurso.
É que, se bem se reparar, o tribunal recorrido recusou a aplicação
da referida norma, na parte indicada, apenas numa certa interpretação: na
interpretação segundo a qual tal norma abrangeria os casos em que o requerente
de asilo, sem domínio da língua portuguesa, formulasse pedido de protecção
jurídica no âmbito do acesso ao direito e aos tribunais.
Tendo o tribunal recorrido recusado a aplicação de uma determinada
interpretação normativa, só esta pode constituir o objecto do presente recurso.
Trata-se de saber se será inconstitucional (nomeadamente, por violação do
princípio da tutela jurisdicional efectiva consagrado no artigo 268º, n.º 4, da
Constituição) a norma do n.º 2 do artigo 16º da Lei n.º 15/98, de 26 de Março,
na parte em que estabelece um prazo de oito dias para recorrer para o tribunal
administrativo da decisão final proferida pelo Comissário Nacional para os
Refugiados, na interpretação segundo a qual abrange os casos em que o requerente
de asilo, sem domínio da língua portuguesa, formula pedido de protecção jurídica
no âmbito do acesso ao direito e aos tribunais.
Esta a questão que se passará a apreciar.
7. Não obstante o tribunal recorrido não o referir expressamente, a
recusa de aplicação da mencionada norma, na interpretação identificada, deveu-se
à consideração de que era exíguo o prazo de impugnação judicial da decisão
administrativa facultado ao ora recorrido.
Segundo o tribunal recorrido, e em síntese, não dominando o ora recorrido a
língua portuguesa, seria exíguo um prazo de oito dias para impugnar
judicialmente uma decisão do teor daquela que o afectara: uma decisão que lhe
indeferiu o pedido de reapreciação da recusa da autorização de residência por
razões humanitárias.
Esse prazo de oito dias conta-se, como aliás explica o tribunal recorrido, a
partir da data da notificação da mencionada decisão de indeferimento (proferida,
no caso dos autos, pela Comissária Nacional-Adjunta para os Refugiados).
E, como também explica o tribunal recorrido, o referido prazo de oito dias
considera-se cumprido mesmo que a impugnação judicial (que actualmente se traduz
na proposição de acção administrativa especial de pretensão conexa com actos
administrativos) não tenha efectivamente lugar nesse prazo. É que, conforme
decorre do disposto no artigo 33º, n.º 4, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho
(que contém o regime do acesso ao direito e aos tribunais), a acção considera-se
proposta na data em que for apresentado o pedido de nomeação de patrono – ou
seja, o pedido de protecção jurídica tem por efeito fazer retroagir a proposição
da acção à data em que o próprio pedido foi formulado –, o que significa que
basta que o pedido de protecção jurídica seja formulado no prazo de oito dias a
contar da data da decisão de indeferimento para que a impugnação judicial desta
decisão seja tempestiva.
No caso dos autos, o pedido de protecção jurídica foi formulado dez dias após a
notificação da decisão de indeferimento do pedido de reapreciação da recusa da
autorização de residência por razões humanitárias, o que teria como
consequência, caso não tivesse sido recusada a aplicação da norma objecto do
presente recurso com fundamento em inconstitucionalidade, a não tempestividade
da impugnação judicial.
Vejamos, então, se o referido prazo de oito dias deve considerar-se
exíguo.
8. Para a apreciação da exiguidade do prazo de oito dias consagrado no
artigo 16º, n.º 2, da Lei n.º 15/98, de 26 de Março, não pode ser indiferente a
circunstância de que, nos termos do artigo 52º, n.º 1, da mesma Lei, “[o]
requerente de asilo beneficia, sempre que necessário, dos serviços de um
intérprete para o assistir na formalização do pedido e durante o respectivo
procedimento”.
Com efeito, beneficiando o requerente de asilo dos serviços de um
intérprete durante o respectivo procedimento – que se inicia com a apresentação
do próprio pedido de asilo e abrange naturalmente a decisão final do
procedimento administrativo (que pode ser, como foi no caso dos autos, de
indeferimento do pedido de reapreciação da recusa da autorização de residência
por razões humanitárias) –, a sua falta de domínio da língua portuguesa não
constitui, em si mesma considerada, uma desvantagem a ser a ponderada na
avaliação da razoabilidade de um prazo que lhe é facultado.
Dito de outro modo, a falta de domínio da língua portuguesa, à qual
foi dada particular relevância pelo tribunal recorrido aquando da formulação do
juízo de inconstitucionalidade, não pode constituir fundamento – pelo menos,
exclusivo – desse juízo, atendendo a que o requerente de asilo beneficia, nos
termos da lei, de um intérprete.
Não se desconhece que o recorrido alega, a este propósito, que a
notificação da decisão de indeferimento do pedido de reapreciação lhe foi
efectuada sem a presença de intérprete (supra, 5.).
Trata-se, porém, de circunstância cuja verificação escapa
completamente aos poderes de apreciação do Tribunal Constitucional – cuja
competência se cinge num caso como o dos autos à apreciação da conformidade
constitucional de normas, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei
do Tribunal Constitucional – e que, além disso, não foi ponderada pelo tribunal
recorrido quando emitiu o juízo de inconstitucionalidade agora em análise.
Ora, não tendo o Tribunal Constitucional competência para verificar
tal circunstância, nem sendo ela susceptível, na medida em que não foi ponderada
pelo tribunal recorrido, de delimitar o objecto do presente recurso, a questão
de constitucionalidade que cumpre apreciar terá de ser resolvida abstraindo da
eventualidade – alegada pelo recorrido – de este ter sido notificado da decisão
que pretendeu impugnar judicialmente sem a presença de intérprete.
Ou seja, deve apreciar-se a questão de constitucionalidade que
constitui o objecto do presente recurso tendo em conta a única circunstância
ponderada pelo tribunal recorrido: a de que o requerente de asilo não dominava a
língua portuguesa. E como, nos termos da lei, esse requerente beneficiava dos
serviços de um intérprete, tal circunstância não pode, como se disse, assumir um
peso decisivo na formulação de um juízo de inconstitucionalidade.
Acrescente-se aliás, a este propósito, que o Tribunal Constitucional
não pode ponderar também, na apreciação da questão de constitucionalidade que
constitui o objecto do presente recurso, as demais circunstâncias invocadas pelo
recorrido nas suas contra-alegações (cfr. fls. 269 e seguintes), nomeadamente a
de que o processo que lhe possibilitou o acesso a consulta jurídica e a
protecção jurídica “só se iniciou em 26 de Novembro de 2004, data em que o
recorrido, com todas as dificuldades inerentes ao não entendimento de qualquer
outra linguagem que não seja o turco, apresentou o seu requerimento nos serviços
da Segurança Social” (cfr. fls. 271).
Com efeito, essas circunstâncias não foram ponderadas pelo tribunal
recorrido – que, além do mais, considerou inexistente o justo impedimento para a
apresentação tardia do pedido de protecção jurídica (cfr. fls. 207) –, pelo que
não podem sequer integrar o objecto do presente recurso.
Concluindo quanto a este ponto, dir-se-á, então, o seguinte: a
circunstância de o ora recorrido não dominar a língua portuguesa não pode ser
decisiva na formulação de um juízo de inconstitucionalidade da norma ora em
apreciação, pois que, nos termos da lei, o requerente de asilo beneficia dos
serviços de um intérprete; as demais circunstâncias alegadas pelo recorrido nas
contra-alegações (algumas das quais seriam susceptíveis de configurar justo
impedimento) não podem, no contexto do julgamento do presente recurso de
constitucionalidade, ser sequer ponderadas, não só porque a sua verificação
escapa completamente aos poderes de apreciação do Tribunal Constitucional, como
também porque o juízo de inconstitucionalidade que constitui o objecto do
presente recurso não se fundou nessas circunstâncias.
9. O que importa averiguar é se será exíguo o prazo a que nos vimos
referindo, atendendo, não à circunstância de o ora recorrido não dominar a
língua portuguesa – que, pelas razões que se apontaram, não pode ser decisiva –,
mas quando confrontado com o direito fundamental de asilo consagrado no artigo
33º, n.º 8, da Constituição, que, em última análise, a impugnação judicial
prevista no artigo 16º, n.º 2, da Lei n.º 15/98, de 26 de Março, visa tutelar.
De acordo com o citado preceito constitucional, “é garantido o direito de asilo
aos estrangeiros e aos apátridas perseguidos ou gravemente ameaçados de
perseguição, em consequência da sua actividade em favor da democracia, da
libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos
da pessoa humana”.
E imporá a tutela jurisdicional efectiva deste direito fundamental –
materializada no direito de impugnação contenciosa dos actos administrativos que
o lesem, consagrado no artigo 268º, n.º 4, da Constituição – um prazo de
impugnação mais longo do que aquele que se encontra consagrado na lei, que é de
oito dias?
Em suma, está em causa averiguar se do direito de asilo e do direito de
impugnação contenciosa de actos administrativos lesivos de direitos fundamentais
decorre o direito de impugnar judicialmente o despacho de indeferimento do
pedido de reapreciação da recusa de autorização de residência por razões
humanitárias num prazo que será necessariamente superior a oito dias.
Atendendo a que a Constituição não estabelece, como é óbvio, qualquer prazo para
a impugnação de um despacho deste teor, a resposta a esta questão só pode ser
encontrada tomando como referência a natureza do procedimento em causa e, bem
assim, utilizando alguns prazos como termos de comparação (usados, aliás, pelo
Ministério Público nas alegações, a fls. 265).
No que diz respeito à natureza do procedimento, cumpre salientar que o mesmo se
caracteriza pela urgência (artigo 62º da Lei n.º 15/98, de 26 de Março). O que
bem se compreende, não só na perspectiva do interesse do requerente, vítima de
perseguições ou ameaças, em obter a protecção do Estado português o mais
rapidamente possível, como também na perspectiva do interesse do próprio Estado
português em clarificar o mais depressa possível situações que eventualmente
podem ser fraudulentas ou abusivas (cfr. artigo 13º da mesma Lei).
Caracterizando-se compreensivelmente o procedimento tendente a
aferir da admissibilidade do pedido de asilo pela urgência, não repugna que os
prazos respectivos sejam tendencialmente mais curtos que os de outros processos.
Portanto, e em princípio, o prazo que vimos apreciando justifica-se pela própria
natureza do procedimento em que se insere.
Interessa estão apurar se esse prazo de oito dias, agora em apreciação, é
desrazoável, quer por comparação com outros prazos estabelecidos na própria Lei
n.º 15/98, de 26 de Março, quer por comparação com prazos, constantes de outros
diplomas, para impugnar judicialmente certos actos lesivos de direitos,
liberdades e garantias.
Comparando o referido prazo de oito dias com outros prazos da Lei n.º 15/98, de
26 de Março, próprios do procedimento relativo à admissibilidade do pedido de
asilo, verifica-se que muitos desses prazos são ainda mais curtos. Assim, e a
título exemplificativo, fixam-se os seguintes prazos: oito dias para apresentar
o pedido de asilo (artigo 11º, n.º 1), cinco dias para prestar declarações
(artigo 11º, n.º 4), vinte dias para proferir decisão de recusa ou admissão do
pedido de asilo (artigo 14º, n.º 1), cinco dias para formular o pedido de
reapreciação da decisão de recusa do pedido de asilo (artigo 16º, n.º 1),
quarenta e oito horas para proferir certas decisões (artigo 18º, n.º 1), cinco
dias para proferir outras decisões (artigo 18º, n.º 3), vinte e quatro horas
para formular certos pedidos (artigo 19º, n.º 1), vinte e quatro horas para
formular certos pareceres (artigo 19º, n.º 2), quarenta e oito horas para
solicitar o adiamento do regresso (artigo 20º, n.º 4).
Refira-se ainda, a propósito, que à margem da Lei n.º 15/98, de 26
de Março, existem outros prazos de oito dias (ou mais curtos) para impugnar
actos lesivos dos direitos dos particulares, prazos estes que o Tribunal
Constitucional não tem considerado exíguos.
Como realça o Ministério Público nas suas alegações (cfr. fls. 265),
o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 186/92, de 20 de Maio (publicado no
Diário da República, II Série, n.º 216, de 18 de Setembro de 1992, p. 8789), não
considerou inconstitucional um prazo de quatro dias para apresentação de
alegações num recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, em processo por crime
de imprensa, na medida em que tal não daria origem a um encurtamento
inadmissível das possibilidades de defesa. E, no Acórdão n.º 482/00, de 22 de
Novembro (publicado no Diário da República, II Série, n.º 3, de 4 de Janeiro de
2001, p. 133), o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional a norma do
artigo 97º, § único, do Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto sobre
as Sucessões e Doações, na parte em que fixa para impugnação contenciosa pelo
contribuinte um prazo de oito dias contados desde a data em que a avaliação
tiver sido notificada.
Em síntese, nem atendendo à natureza urgente do procedimento relativo à
admissibilidade do pedido de asilo, nem atendendo a outros prazos, inseridos na
Lei n.º 15/98, de 26 de Março, ou noutros diplomas, se pode concluir que o prazo
de oito dias estabelecido no n.º 2 do artigo 16º desta Lei é demasiado curto. O
mesmo é dizer que esta norma, na interpretação em análise, não viola o princípio
da tutela jurisdicional efectiva consagrado no artigo 268º, n.º 4, da
Constituição (nem, acrescente-se, o próprio direito fundamental de asilo).
III
10. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional
decide conceder provimento ao presente recurso.
Lisboa, 2 de Novembro de 2005
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício