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Processo n.º 500/04
1.ª Secção Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
A. recorre do acórdão da Relação do Porto, proferido em 5 de Janeiro de 2004, com invocação das alíneas b) e g) do n. 1 do artigo 70º da LTC.
Nos termos da citada alínea b) do n. 1 do artigo 70º, pretende o recorrente ver apreciada a constitucionalidade das normas constantes do n. 2 do artigo 67º do Código de Processo de Trabalho de 1981 e n. 4 do artigo 653º do Código de Processo Civil e, ainda, da alínea c) do n.º 3 do artigo 12º da LCCT.
Com fundamento na alínea g) do n. 1 do artigo 70º da LTC, visa impugnar norma constante do artigo 519º n. 3 alínea b) do Código de Processo Civil, já declarada inconstitucional em anterior aresto do Tribunal Constitucional.
Porém, o Tribunal recusou-se – nos termos do n. 1 do artigo 78º-A da LTC – a conhecer do recurso, com fundamento na seguinte ordem de razões:
Acontece que o Tribunal recorrido não aplicou as normas constantes do n. 2 do artigo 67º do Código de Processo de Trabalho de 1981 e n. 4 do artigo 653º do Código de Processo Civil com o sentido impugnado pelo recorrente; mas ainda que assim fosse, certo é que o recorrente questiona não uma determinada interpretação normativa mas a própria decisão recorrida, ao apontar-lhe um erro na fundamentação da matéria de facto provada. Ou seja, a interpretação impugnada não se refere ao critério legal generalizante empregue pelo julgador para decidir, mas à actividade de subsunção da norma ao caso concreto, que preenche tipicamente a natureza da própria decisão jurisdicional.
Ora, tal como tem sido repetidamente afirmado, o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade reporta-se a normas efectivamente aplicadas na decisão recorrida, mas não às próprias decisões que as apliquem.
Quanto à alínea c) do n.º 3 do artigo 12º da LCCT, cumpre notar que a decisão recorrida assentou, nesta parte, numa fundamentação plural, cujo motivo determinante não tem a ver com esta norma, pois apenas se assim se não entender
é que se aplica a norma em causa com o sentido censurado pelo recorrente.
Quando a decisão recorrida assenta numa pluralidade de fundamentos, cada um deles suficiente para conduzir ao mesmo resultado, a não impugnação de algum determina a inutilidade do respectivo julgamento uma vez que a subsistência desse fundamento determina a não repercussão, na decisão, do julgamento da questão de constitucionalidade. No caso em apreço permanece intocada, no recurso, a decisão de considerar ter já transitado em julgado o decidido quanto
à nulidade do processo disciplinar. Não pode, pois, conhecer-se desta parte do recurso.
O recurso previsto na alínea g) do n. 1 do artigo 70º da LTC tem, como condição de admissibilidade, a aplicação na decisão recorrida de norma (ou de interpretação normativa) anteriormente já julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional.
O requisito exige uma coincidência efectiva entre a norma aplicada e a norma julgada inconstitucional. Mas tal não acontece na situação objecto deste recurso.
No referido Acórdão n. 241/2002 julgou-se “inconstitucional a norma ínsita no artigo 519º n.º 3 alínea b) do Código de Processo Civil quando interpretada no sentido de que, em processo laboral, podem ser pedidas, por despacho judicial, aos operadores de telecomunicações informações relativas aos dados de tráfego e
à facturação detalhada de linha telefónica instalada na morada de uma parte, sem que enferme de nulidade a prova obtida com a utilização dos documentos que veiculam aquelas informações, por infracção ao disposto nos artigos 26º n.º 1 e
34º n.ºs 1 e 4 da Constituição”.
Ora, a decisão recorrida não aplicou aquela norma na interpretação referida. É o que decorre do texto do acórdão, que após citar a sentença da 1ª instância conclui: “Ora, de tal extracto da sentença conclui-se que o Tribunal a quo não atendeu aos ditos documentos para fundamentar a resposta ao facto 12. Aliás, tal já resulta da “fundamentação” dada em audiência.”
Em suma, falta o pressuposto de admissibilidade do recurso previsto na alínea g) do n. 1 do artigo 70º da LTC. Não pode, também, conhecer-se desta parte do pedido.
Em consequência, decide-se, ao abrigo do artigo 78-A n. 1 da LTC, não conhecer dos recursos.
Inconformado, reclama o recorrente nos seguintes termos:
Sobre a fundamentação da matéria de facto da sentença.
(art. 67°, n° 2, do CPT de 1981 e art. 653°, n° 2, do C PC)
1° Constitui jurisprudência do Tribunal Constitucional, firmada em diversos acórdãos, que a fundamentação da decisão sobre o facto não pode ser nem discricionária nem arbitrária: A convicção do julgador tem de basear-se numa fundamentação razoável, assente em critérios objectivos e que, relativamente a cada facto provado, seja explicitada e criticamente apreciada pelo julgador .
2° Dar como motivação de uma resposta o depoimento de uma testemunha que nada disse ou que não afirmou o facto, corresponde à existência de uma fundamentação arbitrária e/ou discricionária.
3° Não se trata, no caso, de uma hipótese de subsunção do caso concreto à norma, mas, antes, de uma aplicação da norma ou das normas com um sentido verdadeiramente inconstitucional, pois resulta numa fundamentação arbitrária.
4° O que o reclamante questiona no recurso interposto é que as normas em questão
(art. 67°, n° 2, do CPT de 1981 e art. 653°, n° 2, do CPC) possam ser interpretadas como permitindo qualquer tipo de fundamentação da decisão sobre matéria de facto.
5° Logo, salvo o muito respeito, não respeita à actividade de subsunção da norma ao caso concreto, mas sim ao critério legal generalizante empregue pelo julgador para decidir. Processo disciplinar.
[art. 12°, n° 3, alínea c), da LCCT]
6° A douta decisão segue na esteira da jurisprudência do Tribunal Constitucional, segundo a qual, no caso de decisão com pluralidade de fundamentos e ser o julgamento da questão de constitucionalidade meramente instrumental, a não impugnação de um dos fundamentos toma inútil o julgamento da questão de constitucionalidade.
7° Cremos, no entanto, que, no caso concreto em apreço, é de pôr em causa a bondade deste entendimento.
8°
É que, em processo contencioso laboral, o procedimento disciplinar não só é uma exigência legal para poder existir um despedimento, mas a lei também exige que, previamente a qualquer despedimento, os fundamentos do despedimento sejam averiguados através de um procedimento disciplinar, com regras de observância obrigatória definidas legalmente. O que significa que a inexistência ou nulidade manifesta do procedimento disciplinar leva à necessária procedência da acção judicial proposta para efeito de declarar a improcedência do despedimento, entretanto comunicado.
9° A questão foi suscitada previamente à acção e objecto de decisão favorável pela própria Relação do Porto.
10° Será de repensar também a douta decisão neste campo e até a própria jurisprudência do Tribunal Constitucional.
Violação do acórdão do Tribunal Constitucional.
11º Onde, cremos, assiste razão indeclinável ao reclamante é na violação do acórdão do Tribunal Constitucional proferido nestes autos. Vejamos :
12° Como reproduzimos no requerimento de interposição do recurso, a sentença proferida diz expressamente no parágrafo 7° de fls. 552 (corpo da sentença) que a questão do anonimato dos textos for resolvida com toda clareza na audiência de julgamento, e com o apoio dos documentos juntos aos autos - sic. Precisamente o mesmo fundamento e expressão verbal usados na sentença anterior e que levou a que fosse sublinhada, para ponderação e decisão, com chaveta a lápis, denunciadora do seu exame pelo Excelentíssimo Juiz Conselheiro relator do anterior acórdão e que conduziu à declaração do juízo de inconstitucionalidade.
13° Dizer, como refere a Relação no acórdão recorrido, que a sentença da 1ª instância não atendeu aos documentos para fundamentar o facto questionado (tão só o teria feito para justificar a condenação como litigante de má fé) é no mínimo grave distracção. Seja como for, não pode o Tribunal Constitucional aceitar o desvio, conducente à manutenção da sentença tal como foi proferida, pois que não há a mínima dúvida de que a decisão da 1ª instância desrespeitou o acórdão do TC e que o acórdão recorrido, ao confirmar a decisão, incorre na mesma situação.
14° E porque não tivemos dúvida nenhuma sobre a falta de prova do facto 12, que imputava a autoria ao A., ora reclamante, é que nos servimos do princípio constitucional do dever de fundamentar, claro e aberto, de molde a fazer demonstrar a falta de prova.
15° E conseguimo-lo, como o demonstramos no recurso de agravo (e no recurso de apelação), tendo a senhora juiz a quo andado à volta na resposta dada à reclamação feita na acta do julgamento, refugiando-se na convicção do tribunal e acabando por demonstrar, ao redigir a sentença. que a sua convicção se apoiou, afinal, nos documentos juntos aos autos, de que o acórdão do Tribunal Constitucional lhe vedava a utilização.
16° Salvo o devido respeito, não é tolerável, como faz a Relação, que se tente tapar com uma das mãos o que a outra destapou.
17° Há, pois, violação pela decisão recorrida de norma ou interpretação normativa já julgada inconstitucional pelo Tribunal ao dar guarida e manter a decisão da 1ª instância que afronta declaradamente o acórdão do Tribunal Constitucional. Termos em que, deve a reclamação ser atendida e ser proferido acórdão que admita o recurso a mandar prosseguir o processo para decisão de fundo.
O recorrido entende que a reclamação é improcedente.
Importa decidir.
Os argumentos invocados pelo recorrente na sua reclamação revelam que o recurso interposto visa, afinal, um fim não autorizado pelas disposições legais que o disciplinam. Na verdade, torna-se necessário ter em conta que estamos em presença de um recurso de carácter exclusivamente normativo, uma vez que o Tribunal Constitucional não tem competência para sindicar as próprias decisões dos Tribunais, pois apenas lhe é lícito sindicar as normas jurídicas que nelas são aplicadas. Deve, por isso, partir-se do princípio que a tarefa tipicamente jurisdicional dos tribunais – o apuramento dos factos e a escolha do direito aplicável – escapa, enquanto tal, ao controlo de constitucionalidade levado a cabo pelo Tribunal Constitucional. Ora, quando o recorrente questiona, por exemplo, a aquisição processual de um facto pelo Tribunal recorrido, sem seleccionar uma regra jurídica de cujo funcionamento inconstitucional decorra necessariamente esse resultado, está a tentar colocar no âmbito do recurso a própria decisão recorrida e não uma norma porventura ofensiva da Constituição. O que não é admissível. Assim, a impugnação de normas constantes do n. 2 do artigo
67º do Código de Processo de Trabalho de 1981 e n. 4 do artigo 653º do Código de Processo Civil, com o sentido invocado pelo recorrente, revela-se totalmente desrazoável, uma vez que o Tribunal recorrido efectivamente não aplicou estas normas na decisão em causa. E tanto assim é que uma eventual pronúncia do Tribunal sobre a conformidade constitucional destas normas, no caso concreto, nunca dispensaria o juízo de apuramento da realidade do facto – realizado mediante exame crítico das demonstrações realizadas em julgamento – da exclusiva competência do Tribunal comum. Isto é: ao dar como provado um determinado facto, desfavorável ao recorrente, o Tribunal recorrido não se socorreu das normas impugnadas; o Tribunal serviu-se, apenas, da sua própria percepção para determinar essa aquisição, no que usou o seu próprio poder jurisdicional. Não tem, pois, razão o recorrente.
Igual sorte merece o recurso no que se reporta à norma do artigo 12º n. 3 alínea c) da LCCT. Nesta parte, a jurisprudência é bem sólida no sentido do entendimento sufragado na decisão sumária. Na verdade, o carácter instrumental do recurso de constitucionalidade, que ninguém recusa, impõe a solução adoptada: quando a decisão recorrida assenta numa pluralidade de fundamentos, cada um deles suficiente para conduzir ao mesmo resultado, a não impugnação de algum determina a inutilidade do respectivo julgamento uma vez que a subsistência desse fundamento determina a não repercussão, na decisão, do julgamento da questão de constitucionalidade. Também aqui falece razão ao recorrente; no presente caso, a Relação partiu mesmo do entendimento de que a alegada nulidade do processo disciplinar se achava definitivamente decidida, abrangida por caso julgado já formado no processo.
Finalmente, sustenta-se que deveria prosseguir o recurso fundado na alínea g) do n. 1 do artigo 70º da LTC, por “violação do acórdão do Tribunal Constitucional”. Mais uma vez se detecta a errada perspectiva pela qual é observado o recurso de constitucionalidade, pois o que verdadeiramente aqui se questiona continua a ser a própria decisão do Tribunal recorrido e não qualquer norma que este haja aplicado para decidir. Aliás, é mesmo sintomático que neste capítulo da reclamação não haja uma única referência a uma qualquer norma jurídica, mas apenas à tarefa jurisdicional do Tribunal comum. A questão, para efeito desta alínea g), ficou resolvida quando a convicção do Tribunal recorrido deixou de se apoiar no documento cujo uso foi proibido no anterior acórdão (n.º 241/02). É quanto basta para, em sede deste tipo de recurso, se concluir pela não verificação do respectivo pressuposto. Não tem, por isso, razão o recorrente.
Termos em que se decide negar procedência à reclamação. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 8 de Março de 2005
Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Rui Manuel Moura Ramos