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Processo n.º 1087/04
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto
na alínea b) do n.º 1 do art. 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua
actual versão (LTC), do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 26 de
Novembro de 2004, que negou a revista pedida do Acórdão do Tribunal da Relação
de Lisboa, acórdão este que, por seu lado, negou provimento ao recurso
contencioso interposto pelo ora recorrente do despacho do Secretário de Estado
da Administração Interna que lhe indeferiu o pedido de concessão da
nacionalidade portuguesa por naturalização.
2 – Na parte relevante à apreciação do pedido do recurso de
constitucionalidade, o acórdão recorrido discreteou do seguinte jeito:
«[…]
2. As conclusões úteis da minuta [das alegações de recurso] podem
resumir-se assim:
1ª) - ….
2ª) – Ao exigir que o recorrente disponha de “rendimentos estáveis e
superiores ao ordenado mínimo nacional” como condição de preenchimento do
requisito consignado naquele preceito a entidade recorrida está a violar o
princípio da igualdade estabelecido no art. 13º, n.º 2, da Constituição da
República.
[…]
«Análise da 2ª conclusão:
Quanto à questão de constitucionalidade suscitada, é manifesta a sua
improcedência.
Em primeiro lugar, e como já vimos, a Relação considerou não preenchido o
requisito do art. 6º, n.º 1, alínea f), da Lei da Nacionalidade, não porque o
recorrente não disponha de rendimentos estáveis e superiores ao ordenado mínimo
nacional, mas sim, concretamente, por estar desempregado desde 14.10.98 e por se
desconhecerem no momento actual os seus meios de subsistência, o que é
substancialmente diferente.
Depois, não pode ignorar-se aquilo para que logo de início se chamou a atenção:
o interessado na naturalização não é titular de um direito a ela e o poder do
Estado na sua concessão é discricionário, nos termos que atrás se delimitaram,
facto que torna deslocada a invocação do art. 13º, n.º 2, da Constituição. Por
um lado, porque o que aí se proíbe são as vantagens e as desvantagens
ilegítimas, tanto na atribuição de direitos como na imposição de deveres; e,
como se viu, não é disto que se trata quando alguém pede a naturalização. Por
outro lado, porque a discricionariedade com que a Administração actua neste
domínio permite-lhe recusar legitimamente a naturalização, mesmo que o
interessado possa assegurar a sua subsistência; isso sucederá, por exemplo,
quando entenda que não se verifica qualquer um dos outros requisitos cumulativos
indicados na lei e nisso baseie a sua decisão. É verdade que uma das dimensões
essenciais do princípio da igualdade consiste na proibição do arbítrio; e também
é certo que a vinculação da Administração àquele princípio inclui esta sua
dimensão, mesmo no âmbito dos poderes discricionários, o que significa, na
prática, que a Administração deve 'utilizar critérios substancialmente idênticos
para a resolução de casos idênticos, sendo a mudança de critérios, sem qualquer
fundamento material, violadora do princípio da igualdade' (G. Canotilho e Vital
Moreira – Constituição Anotada, 3ª edição, pág. 130). Porém, o relato dos
momentos essenciais do presente processo a que anteriormente se procedeu mostra
à evidência que nada disto está em causa na presente situação. O art. 13º, n.º
2, da Constituição proíbe de igual modo diferenciações de tratamento entre
cidadãos baseadas em categorias meramente subjectivas ou em razão dessas
categorias (proibição de discriminação). Mas é evidente que esta questão nem
sequer se coloca aqui; o recorrente, de resto, não logrou concretizar com um
mínimo de verosimilhança a sua alegação, por forma a demonstrar, ou que o art.
6º, n.º 1, e), da Lei da Nacionalidade é materialmente inconstitucional, ou que
foi interpretado e aplicado violando a Lei Fundamental.
3. Nestes termos, nega-se a revista».
3 – Alegando sobre o recurso de constitucionalidade, o recorrente
concluiu o seu discurso argumentativo do seguinte modo:
«1 - O recorrente interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça
do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, confirmativo da 1ª instância, num
processo em que foi indeferido um pedido de aquisição da nacionalidade
portuguesa por naturalização,
2 - O pedido foi indeferido por considerarem que o recorrente não preenchia um
dos requisitos previstos no artigo 6º da Lei da Nacionalidade,
3 - Pelo que o recorrente apresentou o competente recurso contencioso para o
Tribunal da Relação de Lisboa,
4 - Tendo o mesmo sido julgado improcedente e sido confirmado o despacho
recorrido.
5 - Não se conformando com a referida decisão, foi interposto recurso de revista
para o Supremo Tribunal de Justiça,
6 - No recurso de revista o recorrente alega a inconstitucionalidade da alínea
f) do n.º 1 do artigo 6º da Lei da Nacionalidade, por violação do n.º 2 do
artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.
7 - Alega que o despacho do Exmo. Senhor Secretário de Estado da Administração
Interna violou o artigo 13º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
8 - O recurso para o Supremo Tribunal de Justiça foi negado, pelo que o
recorrente apresenta o presente recurso que é interposto ao abrigo da alínea b)
do n.º 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela
Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, e pela Lei n.º 13-A/98 de 26 de Fevereiro.
9 - No qual pretende ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 6º
da Lei da Nacionalidade, quando aplicada no despacho do Exmo. Senhor Secretário
de Estado da Administração Interna,
10 - Por violação, entre outros, salvo melhor opinião, do princípio da
igualdade, consagrado no artigo 13º, n.º 2, da Constituição da República
Portuguesa.
11 - O recorrente apresentou um pedido de aquisição da nacionalidade portuguesa
por naturalização, nos termos do disposto no artigo 6º da Lei da Nacionalidade,
12 – Mas, para que lhe fosse concedida a nacionalidade portuguesa, era
necessário que preenchesse os requisitos previstos no n.º 1 do mesmo artigo,
13 - Acontece que alguns dos requisitos são verdadeiros conceitos
indeterminados, cujo preenchimento é deixado ao intérprete, como o caso do
requisito que foi considerado que o recorrente não preenchia,
14 - No caso concreto, apesar de o recorrente considerar que preenche o
requisito previsto na alínea f) do n.º 1 do artigo 6º da Lei da Nacionalidade,
15 - Estamos aqui perante um requisito que varia consoante as variações
políticas e do facto de em cada momento a pessoa ter ou não rendimentos que,
segundo os critérios da Administração, são considerados suficientes,
16 - Se efectivamente, numa determinada data se podia considerar que o
recorrente podia não ter meios de subsistência, a realidade é que à data da
interposição do recurso o recorrente dispunha de meios de subsistência e isso
não foi tido em consideração nem pelo Exmo. Senhor Secretário de Estado da
Administração Interna, nem pelos Mui Ilustres Juízes Desembargadores.
17 - É inúmeras vezes referido que está desempregado desde 1998, quando na
realidade tal não corresponde à verdade, uma vez que consta dos autos que este
comprou casa com recurso ao crédito à habitação em 1999 e apresenta rendimentos
em 2002 e 2003.
18 - Desconhecem-se os motivos porque é afirmado que este está desempregado
desde 1998, quando consta do Relatório Final do Serviço de Estrangeiros e
Fronteiras o seguinte: 'No que se refere ao preenchimento do requisito revisto
na alínea f) do n.º 1 do artigo 6º da Lei da Nacionalidade o requerente em sede
de alegações vem juntar os seguintes documentos:
- Comprovativo do reinício da actividade a
fls. 96;
- 3 Recibos verdes, referentes a Outubro e
Dezembro de 2002;
- Inscrição na Segurança Social de Outubro
de 2002;
- Declaração da entidade patronal
(fls.103);
- Recibo de vencimento da mesma empresa
(fls.101);
- Declaração de rendimentos referente ao
ano de 2002 referente ao casal (fls.102).'
19 - O recorrente alegou a inconstitucionalidade do despacho do Exmo. Senhor
Secretário de Estado da Administração Interna, por se exigir que os requerentes
de pedidos de aquisição da nacionalidade portuguesa por naturalização tenham
determinados tipos de rendimentos para obterem a referida nacionalidade,
20 - É a entidade recorrida e os Mui Ilustres Juízes Desembargadores que quem
apesar de ter sobrevivido durante alguns anos em Portugal, não aufira
rendimentos estáveis e superiores ao ordenado mínimo nacional, não tem direito à
nacionalidade portuguesa,
21 - Está é sem dúvida uma situação violadora do princípio da igualdade, uma vez
que a nacionalidade do recorrente foi-lhe negado pois este não dispunha de
rendimentos estáveis e superiores ao ordenado mínimo nacional.
22 - Como aliás refere o relatório final de indeferimento: 'verifica-se que o
requerente não comprova de maneira segura e efectiva a sua capacidade para reger
e assegurar a sua subsistência, uma vez que apresenta rendimentos irregulares,
não possui uma actividade profissional estável....'3,
23 - Desconhecem-se os motivos porque os Mui Ilustres Juízes Desembargadores
referem no seu acórdão que o recorrente está desempregado desde 1998, uma vez
que a prova produzida refere uma situação substancialmente diferente,
24 - Talvez seja por considerarem que a Constituição da República Portuguesa não
se aplica aos cidadãos estrangeiros residentes em Portugal, como consta do
referido acórdão, onde inclusive referem o seguinte: “o despacho do Ex.mo Senhor
Secretário de Estado da Administração Interna não violou qualquer disposição
legal e, muito menos, o Art. 13º, n.º 2, da CRP, que tem aplicação aos cidadãos
portugueses, sendo certo que o requerente não goza dessa qualidade”.
25 - Não se pode é esperar que a prova seja bem apreciada quando inclusive se
quer negar a aplicação da Constituição da República Portuguesa ao recorrente por
ser cidadão estrangeiro,
26 - Estamos perante uma clara violação do princípio da igualdade,
27 – Ora, salvo o devido respeito, se alguém, durante os dez anos de residência
em Portugal sobreviveu e conseguiu comprar uma casa com o recurso ao crédito à
habitação tem sem dúvida capacidade para se reger,
28 - Mas o que efectivamente está aqui em causa é que têm a entidade recorrida e
os tribunais entendido que quem não tem um rendimento superior a X, ou quem não
tem um emprego estável não tem capacidade para se reger e isto é sem dúvida uma
violação do princípio da igualdade, pois estão a fazer depender a aquisição da
nacionalidade portuguesa de uma situação económica em concreto,
29 - Esta situação faz-nos lembrar o tempo das Cortes em que existia o voto
censitário, em que quem não dispunha de meios para se sustentar não podia
votar4.
30 – Será que quem tem mais rendimentos tem direito a adquirir a nacionalidade
portuguesa, quem tem menos, não tem direito,
31 - Estamos aqui numa situação violadora do Princípio da Igualdade, em que o
despacho do Exmo. Senhor Secretário de Estado da Administração Interna faz
depender a aquisição da nacionalidade da situação económica do requerente num
dado momento,
32 - Esta é sem dúvida uma situação injusta e violadora, entre outros, do
Princípio da Igualdade, que não permite este tipo de discriminação, em razão da
situação económica de cada um.
33 - Daí resultando, salvo melhor opinião, uma flagrante violação do princípio
da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.
34 - A questão da inconstitucionalidade foi suscitada nos autos a fls. ...
(recurso contencioso para o Tribunal da Relação de Lisboa e recurso para o
Supremo Tribunal de Justiça)
Nestes termos e nos mais de direito, deve ser declarada a inconstitucionalidade
da alínea f) do n.º 1 do artigo 6º da Lei da Nacionalidade, por violação do n.º
2 do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa e consequentemente ser
revogada a decisão recorrida.»
4 – Através do Procurador-Geral Adjunto no Tribunal Constitucional,
o Ministério Público contra-alegou, concluindo:
«1 - A norma constante da alínea f) do nº 1 do artigo 6º da Lei da Nacionalidade
vigente, ao estabelecer como condição de deferimento da pretensão de
nacionalização, por parte de cidadão estrangeiro, uma efectiva e estável
integração na comunidade nacional - expressa, desde logo, na demonstração pelo
interessado de que possui capacidade para autonomamente reger a sua pessoa e
assegurar a sua subsistência - não ofende qualquer norma ou princípio
constitucional.
2 - Termos em que deverá improceder o presente recurso.»
Tudo visto, cumpre decidir.
B – Fundamentação
5 – Antes de mais importa notar que não cabe nos poderes do Tribunal
Constitucional conhecer, nem da (in)correcção do juízo probatório sobre a
matéria de facto susceptível de ser relevada normativamente que foi efectuado
pela Relação, nem do (des)acerto do juízo subsuntivo dessa realidade de facto à
norma aplicável, nem, finalmente, da existência do vício de
inconstitucionalidade que é assacado directamente ao despacho administrativo que
indeferiu o pedido de concessão da nacionalidade portuguesa ao requerente, que é
cidadão angolano.
O Tribunal Constitucional, como vem sendo constantemente repetido na
sua jurisprudência, apenas conhece de questões de inconstitucionalidade
normativa.
Deste modo, ao Tribunal Constitucional apenas cumpre conhecer da
questão sintetizada no n.º 6 das conclusões, ou seja, da questão de saber se a
exigência estabelecida na parte final da alínea f) do n.º 1 do art. 6º da Lei da
Nacionalidade – capacidade para assegurar a sua subsistência – afronta a
Constituição, nomeadamente, por violação do disposto no seu artigo 13º, n.º 2. E
apenas se conhece dessa dimensão normativa, por apenas ela ter constituído
fundamento normativo do decidido, não estando em causa o requisito, definido na
primeira parte do preceito, de os estrangeiros, requerentes da nacionalidade
portuguesa, “possuírem capacidade para reger a sua pessoa”.
6.1 – O preceito constitucionalmente impugnado dispõe do seguinte
jeito (transcreve-se a totalidade do artigo para melhor compreensão do conjunto
normativo global em que ele se integra, sendo a redacção das alíneas b), d), e)
e f) do n.º 1 e o n.º 2 na redacção dada pela Lei n.º 25/94, de 19 de Agosto, e
a restante parte na redacção constante da Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro):
«Artigo 6º
(Requisitos)
«1 – O Governo pode conceder a nacionalidade portuguesa, por
naturalização, aos estrangeiros que satisfaçam cumulativamente os seguintes
requisitos:
a) Serem maiores ou emancipados à face da lei portuguesa;
b) Residirem em território português ou sob administração portuguesa,
com título válido de autorização de residência, há, pelo menos, 6 ou 10 anos,
conforme se trate, respectivamente, de cidadãos nacionais de países de língua
oficial portuguesa ou de outros países;
c) Conhecerem suficientemente a língua portuguesa;
d) Comprovarem a existência de uma ligação efectiva à comunidade
nacional;
e) Terem idoneidade cívica;
f) Possuírem capacidade para reger a sua pessoa e assegurar a sua
subsistência.
2 – Os requisitos constantes das alíneas b) a d) podem ser dispensados em
relação aos que tenham tido a nacionalidade portuguesa, aos que forem havidos
como descendentes de portugueses, aos membros de comunidades de ascendência
portuguesa e aos estrangeiros que tenham prestado ou sejam chamados a prestar
serviços relevantes ao Estado Português.»
6.2 - O recorrente sustenta que o requisito exigido na alínea f) do n.º
1 deste artigo para que o Governo possa conceder a nacionalidade portuguesa, por
naturalização, a cidadãos estrangeiros, como o recorrente que tem a
nacionalidade angolana, ofende o princípio da igualdade, por afrontar o disposto
no art. 13º, n.º 2, da Constituição.
6.3 - Pode afirmar-se existir grande concordância entre a doutrina
quanto à definição de nacionalidade, mormente quanto ao seu entendimento
enquanto situação jurídica geral, status, direito de personalidade, vínculo
pessoal jurídico-público, direito fundamental, tudo isso associado
intrinsecamente à integração em uma comunidade nacional.
Assim, josé dias marques define-a como “situação jurídica geral cuja
atribuição resulta de certos factos a que o legislador atribui o valor de
índices sociais reveladores de integração na comunidade nacional” (“Conceito e
Natureza Jurídica da Nacionalidade”, in Separata da Revista da Ordem dos
Advogados, ano 12, nºs 3 e 4, pp. 101).
Por seu lado, abordando a temática à face da Lei n.º 37/81, de 3 de
Outubro, rui manuel moura ramos escreve a este propósito:
«Assim, se a lei segue de certa forma a concepção clássica, segundo a
qual a nacionalidade é um vínculo jurídico-público em que a presença dos
interesses do Estado enquanto unidade política tem por força de se fazer sentir,
ela não deixa de, ao mesmo tempo, reconhecer à nacionalidade a condição de um
autêntico direito do indivíduo, direito esse que se deve considerar como
fundamental» (Do Direito Português da Nacionalidade, Biblioteca Jurídica Coimbra
Editora, 1984, pp. 116).
E um pouco mais adiante:
«Se a nacionalidade é o vínculo que delimita o povo estadual, o suporte
humano do Estado, ela é a relação fundamental que intercede entre o indivíduo e
a entidade política a que este se encontra privilegiadamente ligado. Ao ser
essencial à definição do Estado ela torna-se, verdadeiramente, para além do
direito público, um domínio materialmente constitucional».
Dentro da mesma linha discorre António Marques dos Santos (Estudos de
Direito de Nacionalidade, Coimbra, 1998, pp. 11), dizendo que “o conceito de
nacionalidade, na sua acepção mais lata, como vínculo jurídico-político de
pertença de um sujeito de direito a um Estado, corresponde a uma realidade
sociológica, factual, que lhe está subjacente e que, por isso mesmo, é
extrajurídica”. E com referência ao direito nacional, o mesmo a utor acrescenta
que “além de ser um elemento do estado das pessoas, isto é, um status, e até
mesmo um direito de personalidade, a nacionalidade é um direito fundamental
(…)”.
Abordando a mesma matéria, diz, por sua vez, ian brownlie (Princípios
de Direito Internacional Público, trad., Lisboa, 1997, pp. 418) que “de acordo
com a prática dos Estados (…), a nacionalidade é um vínculo jurídico que tem por
base um facto social de pertença, uma conexão genuína de vivência, de interesses
e de sentimentos, em conjunto com a existência de direitos e deveres recíprocos.
Pode dizer-se que constitui a expressão jurídica do facto de o indivíduo ao qual
é conferida ope legis ou em resultado de um acto das autoridades estaduais,
estar, na realidade, mais intimamente ligado à população do Estado que lhe
confere a nacionalidade do que à de qualquer outro Estado”.
6.4 - Seguindo os passos das Constituições de 1911 e de 1933, a
Constituição de 1976 não define quem são os cidadãos portugueses.
Na verdade, esta limita-se a dizer, no seu artigo 4º, que “são cidadãos
portugueses todos aqueles que como tal sejam considerados pela lei ou por
convenção internacional”.
Quer isto dizer que o diploma básico remeteu a regulação da matéria
para as convenções internacionais de que Portugal seja parte contratante e para
a lei ordinária. Não pode, porém, sustentar-se que a Constituição se tenha
alheado da regulação da matéria.
Na verdade, e desde logo, a Constituição subordinou-a a apertadas
exigências formais e procedimentais ao integrar o regime da “aquisição, perda e
reaquisição da cidadania portuguesa” entre as matérias da reserva absoluta de
competência legislativa da Assembleia da República [alínea f) do art. 164º], ao
exigir que a definição do respectivo regime seja feita sob a forma de lei
orgânica, com o intrínseco postulado da sua subordinação a um regime especial de
tramitação parlamentar e de maioria absoluta de aprovação bem como de
fiscalização de constitucionalidade (art. 168º, nºs 4 e 5, e 278º, nºs 4, 5 e
6).
Mesmo quando definido em convenção internacional, o regime de
aquisição, perda e reaquisição da cidadania portuguesa não escapa à aprovação
parlamentar, dado tratar-se de matéria incluída na sua competência reservada.
6.5 - Embora o diploma básico se refira várias vezes à cidadania, nem
sempre este conceito está tomado na acepção de cidadania portuguesa.
Assim, é seguro que ao estabelecer o limite negativo dos efeitos da
declaração do estado de sítio ou do estado de emergência (n.º 6º do art. 19º) ou
ao enunciar os direitos dos trabalhadores (art. 59º), o conceito surge aplicado
num sentido de abranger quer os cidadãos nacionais quer os estrangeiros, atenta
a sua radical imbricação com o princípio da dignidade humana do qual brotam
directamente esses direitos.
Por seu lado, no art. 33º, a Constituição distingue bem, a propósito
dos institutos relativos à expulsão, extradição e direito de asilo, entre a
cidadania nacional e a cidadania estrangeira.
Mas é no artigo 26º, n.º 1, que a Constituição consagra o direito de
cidadania portuguesa como direito fundamental ao dispor que “a todos são
reconhecidos os direitos (…) à cidadania, (…)”.
Uma tal conclusão resulta evidente do confronto do disposto neste
número com a prescrição constante do n.º 4 do mesmo artigo, segundo o qual “a
privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efectuar-se
nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos
políticos”.
Na verdade, “considerando que compete aos Estados, embora dentro dos
parâmetros (cada vez mais apertados) do direito internacional, definir quem são
os seus próprios cidadãos, seria descabido e internacionalmente irrelevante –
senão mesmo tido como uma interferência inaceitável – que o direito interno de
um Estado se pronunciasse sobre a obtenção, conservação ou perda de cidadanias
de outros países” (jorge pereira da silva, Direitos de Cidadania e Direito à
Cidadania, Observatório da Imigração, ACIME, Alto Comissariado para a Imigração
e Minorias Étnicas, Lisboa, 2004, pp. 91).
Por outro lado, sendo certo que “o direito interno do Estado português,
independentemente de se tratar de preceitos constitucionais ou de leis
ordinárias, só pode dispor sobre o regime da sua própria cidadania”, não pode
deixar de concluir-se que os preceitos em causa se referem à cidadania
portuguesa (cf. jorge pereira da silva, op. cit., pp. 91).
É também como direito de natureza fundamental que a doutrina nacional
referida qualifica o direito de nacionalidade portuguesa [António Marques dos
Santos, op. cit. pp. 294, diz a esse respeito, que, “além de ser um elemento do
estado das pessoas, isto é, um status, e até mesmo um direito de personalidade,
a nacionalidade é um direito fundamental, como já resultava, ainda antes da
entrada em vigor da Constituição da República Portuguesa de 1976, do artigo 15º
da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), de 10.12.1948; no plano do
direito constitucional positivo português, se tal conclusão se poderia inferir
do texto da Constituição, na sua versão original, segundo alguns (…), ela ficou
claramente estabelecida após a primeira revisão constitucional, ao ser incluída
a cidadania no elenco dos outros direitos, liberdades e garantias pessoais
(artigo 26º, n.º 1 da CRP), para além do direito à vida (artigo 24º), do direito
à integridade pessoal (artigo 25º), bem como dos demais direitos referidos no
artigo 27º e seguintes da Lei fundamental, que têm igualmente carácter
pessoal”].
A natureza de direito fundamental do direito de cidadania portuguesa
postula a sua subordinação a alguns corolários garantísticos que
constitucionalmente enformam os direitos fundamentais, nomeadamente, aos
princípios da sua universalidade e da igualdade, a vocação para a sua
aplicabilidade directa, a vinculação de todas as autoridades públicas e privadas
e a sujeição das restrições legais ao regime exigente constante dos nºs 2 e 3 do
artigo 18º da CRP.
Tendo, porém, o legislador constitucional remetido a definição do
regime do direito à cidadania portuguesa para o direito internacional pactício e
para a legislação ordinária, daí decorre que será, nesse terreno, que tais
fontes iluminarão a concreta densificação do seu estatuto jurídico.
Sem embargo, não poderá deixar de inferir-se do referido art. 4º da
Constituição, conjugadamente, quer com outros preceitos constitucionais (por
exemplo, os artigos 36º, 67º e 68º, relativos ao estatuto constitucional da
família, casamento e filiação, maternidade e paternidade), quer com os
princípios de direito internacional, um certo conteúdo mínimo que o legislador
ordinário não poderá postergar na definição do regime de acesso ao direito em
causa, que é a questão que aqui se coloca.
Assim, cingindo-nos ao campo em que a questão se coloca, o “legislador
não poderá deixar de se ater ao princípio derivado do direito internacional da
ligação efectiva (e genuína) entre a pessoa em causa e o Estado português,
tomado aquele princípio tanto no sentido negativo – irrelevância da cidadania
atribuída ou adquirida à margem de qualquer ligação efectiva – como no seu
sentido positivo – preferência da ligação mais efectiva sobre as demais,
conformando a propósito da cidadania originária e da cidadania derivada, os
critérios que são comummente utilizados na concretização daquele princípio
jusinternacional: isto é, o ius sanguinis e o ius soli, em relação à cidadania
originária; a filiação, a adopção, o casamento e a residência, no que respeita à
cidadania derivada” (jorge pereira da silva, op. cit. pp. 97).
Ao legislador ordinário está pois cometida a tarefa de densificar o
acesso à cidadania portuguesa, sendo que nessa densificação não poderão deixar
de relevar essencialmente as relações que desvelem as situações de uma ligação
efectiva entre o indivíduo e o Estado português e a comunidade nacional.
Face ao que vem sendo dito, tanto se pode olhar para a cidadania
portuguesa do ponto de vista de quem já detém esse status, constituindo então um
direito subjectivo, como do ângulo de quem não a detém, mas pretende tê-la, caso
em que apenas se está perante uma simples expectativa jurídica.
A quem se encontra na primeira situação, a Constituição reconhece (art.
26º, nºs 1 e 4) o direito de não ser privado dele, de forma arbitrária. Mas a
Lei fundamental, quer pela via da assumpção do direito internacional sobre a
matéria estabelecida no seu art. 4º, quer através do princípio da interpretação
e da integração do sentido dos direitos fundamentais constante do art. 16º, de
acordo com a regra relativa à nacionalidade afirmada no art. 15º da DUDH, não
pode deixar de reconhecer a todos os demais a expectativa jurídica de adquirirem
a nacionalidade portuguesa, observados que sejam determinados pressupostos que o
legislador interno entende como expressando aquele vínculo de integração
efectiva na comunidade nacional.
Lembre-se aqui que este artigo 15º dispõe que: “1. Todo o indivíduo tem
direito a ter uma nacionalidade. 2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da
sua nacionalidade nem do direito de mudar de nacionalidade”.
E no mesmo sentido poderá ainda convocar-se o art. 24º, n.º 3, do Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), onde se prescreve que
“toda a criança tem direito a adquirir uma nacionalidade”, cuja força
vinculativa, no direito interno português, se impõe, não só por força da
referida remissão do artigo 4º da Constituição, como por via do princípio da
recepção automática do direito internacional convencional, estabelecido no art.
8º, n.º 2, da Constituição.
Nesta última dimensão, o acesso à cidadania portuguesa representa,
assim, uma expectativa jurídica de obtenção de um direito cujo conteúdo é o
direito subjectivo ou pessoal da cidadania portuguesa com todo o amplexo dos
poderes e deveres com que o direito interno (constitucional e direito ordinário)
o reveste.
Nesta perspectiva, o “direito de aceder” à cidadania portuguesa tem uma
estrutura jurídica muito diferente do direito subjectivo de cidadania
portuguesa. “Com efeito – escreve Jorge Pereira da Silva (op. cit., pp. 94) – ao
passo que o primeiro é um direito positivo, exigindo dos poderes públicos uma
atitude interventiva, no sentido de criar as condições jurídicas para a sua
efectivação, o segundo é um direito negativo (se não mesmo uma simples garantia
daquele primeiro), que visa a defesa contra as intervenções arbitrárias dos
mesmos poderes públicos, exigindo-se destes, apenas, que não atentem contra o
status dos cidadãos portugueses”.
No caso de aquisição da nacionalidade portuguesa por naturalização,
o seu facto constitutivo é “uma decisão da autoridade pública – no nosso caso, o
Governo – que mediante solicitação dos interessados, pode ou não conceder-lhes a
nacionalidade portuguesa”.
Tratando-se, todavia, de um poder discricionário do Governo, tal não
impede que a lei ordinária o tenha subordinado à verificação cumulativa de
certos requisitos que “funcionam como autênticos pressupostos legais do
exercício do poder (discricionário) governamental de determinar a aquisição da
nacionalidade, e que visam (…) evitar que ele possa ser exercido em situações em
que tal aquisição se afigura ao legislador, prima facie, como desaconselhável”
(rui manuel moura ramos, op. cit., pp. 168).
A definição dos pressupostos do “direito de aceder” á nacionalidade
portuguesa surge deste modo como um postulado da sua natureza de direito
fundamental, de conteúdo não completamente determinado a nível constitucional, e
das referidas exigências formais e procedimentais. Não estando o conteúdo
imediato desse direito densificado na Constituição, torna-se imprescindível e
necessária uma “imposição legislativa concreta ao legislador ordinário das
medidas necessárias para tornar exequíveis os preceitos constitucionais” (cf.
josé carlos vieira de andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976, 3ª edição, pp. 393).
Tendo em conta a natureza do vínculo em que se expressa a
nacionalidade, tais pressupostos não poderão deixar de constituir índices de
desvelação do tipo, natureza e intensidade da relação que concretamente
intercede entre o indivíduo, o Estado português e a comunidade nacional em que
se pretende integrar.
Por mor da força vinculativa da natureza de direito fundamental de
que comunga o direito em causa, hão-de essas exigências estabelecidas pelo
legislador ordinário passar o crivo da adequação, necessidade e
proporcionalidade, tendo em vista precisamente a preservação do núcleo essencial
de tal direito que, por natureza, há-de corresponder à evidenciação de um
específico vínculo de integração na comunidade portuguesa.
Com o estabelecimento do requisito aqui impugnado pretende-se evitar
que “sejam integrados na comunidade portuguesa indivíduos (…) que apareçam
apenas com um encargo para esta” ou “a sociedade visa evitar que a presença
desse elemento seja afastada de uma contribuição efectiva para o tecido social e
apenas apareça como um fardo para os restantes” [membros da comunidade] (cf. rui
manuel moura ramos, op. cit., pp. 168, e garcia pereira, Lei da nacionalidade
anotada, Lisboa, 1984, pp. 14, anotação ao art. 6º).
Antes de mais cumpre notar que o estabelecimento deste requisito
para aceder à nacionalidade portuguesa não se afigura desadequado e
desproporcionado, tendo em vista a sua função de não constituir obstáculo social
ou político à integração do cidadão estrangeiro na comunidade portuguesa e à sua
aceitação por parte da mesma comunidade.
Na verdade, tendendo o vínculo da nacionalidade a dar expressão aos
valores sociológicos, culturais, económicos, jurídicos, políticos e outros que
constituem o património da comunidade nacional, compreende-se que essa
comunidade nacional não queira assumir sacrifícios económicos, financeiros e
sociais com quem não está em condições de não onerar essa comunidade: o vínculo
não seria então expressão de uma ligação sociológica afectiva e intensa entre os
dois elementos, mas a resultante de um “casamento de conveniência”.
Por outro lado, embora, no seu conteúdo essencial, o “direito de
acesso” à cidadania portuguesa se expresse em uma expectativa jurídica a um
direito ou, recte, a um status, não poderá desconhecer-se que se encontram
associados a esse status diversos direitos pessoais, cuja satisfação está
cometida à comunidade, que se realiza mediante a efectivação de prestações
materiais que demandam recursos financeiros.
Ora, tendo em conta esta projecção de efeitos, pode entender-se
estar essa expectativa jurídica sujeita a “tarefa de concretização e de mediação
do legislador ordinário”.
Mas, sendo assim, não se afigura sustentável o estabelecimento de
qualquer relação de comparação, como demanda, por natureza, o princípio da
igualdade, restringido este aqui à dimensão de proibição de discriminação em
razão da situação económica (art. 13º, n.º 2, da Constituição), entre quem já é
titular do vínculo da nacionalidade portuguesa e aquele em vista de cuja
concessão ou atribuição de nacionalidade portuguesa a capacidade de subsistência
é funcionalmente exigida.
Nesta linha de pensamento, os princípios da universalidade e da
igualdade no direito de aceder à cidadania portuguesa apenas obrigam a que o
legislador ordinário, pressuposta a existência dos demais requisitos, não trate
diferentemente os cidadãos estrangeiros, requerentes da nacionalidade portuguesa
por naturalização, que tenham igual capacidade para reger a sua pessoa e
assegurar a sua subsistência.
O que eles seguramente não demandam (ao contrário do que, embora
dubitativamente sustenta, impressionada possivelmente pelo concreto entendimento
administrativo que foi seguido, no caso, relativamente à avaliação
administrativa da referida capacidade para reger a sua pessoa e assegurar a sua
subsistência, cristina de sousa machado, “Concessão da nacionalidade portuguesa,
limites intrínsecos da discricionariedade”, in XX Aniversário do Provedor de
Justiça, Estudos, Lisboa, 1995, pp. 23), é que o legislador nacional não possa,
para justificar a diferença de tratamento, ao nível da conformação normativa
autónoma dos pressupostos do direito de aceder à nacionalidade portuguesa,
destrinçar entre quem está em condições de não importar encargos para a
comunidade nacional e quem o não está.
7 – O acórdão recorrido, ao entender que o recorrente não satisfazia
o requisito da capacidade para assegurar a sua subsistência, “por estar
desempregado e por se desconhecerem no momento actual os seus meios de
subsistência”, moveu-se, assim, dentro de um critério normativo que não ofende a
Lei fundamental.
8 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide:
a) não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 6º, n.º 1,
alínea f), segunda parte, da Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro, na redacção dada
pela Lei n.º 25/94, de 19 de Agosto, enquanto entendida no sentido de exigir que
os estrangeiros que pretendam obter a cidadania portuguesa possuam capacidade
para assegurar a sua subsistência;
b) negar provimento ao recurso;
c) condenar o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 2 de Novembro de 2005
Benjamim Rodrigues
Paulo Mota Pinto
Maria Fernanda Palma
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos
3 Fls. 105 do processo administrativo
4 Vide pág. 278, Direito Constitucional de Gomes Canotilho - Almedina