Imprimir acórdão
Processo n.º 190/05
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é
recorrente A., S.G.P.S., S.A. e recorrida B., Lda., foi proferida decisão
sumária, nos termos previstos no artigo 78º-A, nº 1, da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), por se ter entendido
que não podia conhecer-se do objecto do recurso, interposto ao abrigo do
disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição da República
Portuguesa (CRP) e 70º, nº 1, alínea b) da LTC. Considerou-se, então, não
estarem presentes dois pressupostos de admissibilidade do recurso: a suscitação
atempada de uma questão de constitucionalidade e a suscitação de uma questão de
inconstitucionalidade normativa.
São os seguintes os fundamentos da decisão:
“(...) no caso presente, a questão de constitucionalidade foi suscitada, como
admite expressamente a recorrente no requerimento de interposição de recurso
para este Tribunal, ‘na Reclamação apresentada pela recorrente, em 8 de Novembro
de 2004, respeitante às nulidades e obscuridades de que padece o douto acórdão
de fls. 468 e seg.s.’, ou seja, após a prolação do acórdão do Supremo Tribunal
de Justiça que negou a revista.
Conforme jurisprudência uniforme e reiterada do Tribunal Constitucional, ‘a
inconstitucionalidade de uma norma jurídica só se suscita durante o processo,
quando tal se faz a tempo de o tribunal recorrido poder decidir essa questão - o
que, salvo casos excepcionais e anómalos, em que, por o recorrente não ter
oportunidade processual de cumprir esse ónus, ele deve ser dispensado do seu
cumprimento (cf., entre outros, o acórdão nº 391/89, publicado no Diário da
República, II série, de 10 de Setembro de 1989), exige que essa suscitação se
faça antes de ser proferida decisão sobre a matéria a que respeita a questão de
constitucionalidade (...).
Há, assim, um tempo e um modo processualmente adequados de suscitar a questão de
constitucionalidade’ (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 155/95, Diário da
República, II, de 20 de Junho de 1995).
No caso presente, quando a questão de constitucionalidade foi suscitada já havia
sido proferida decisão final, justamente com a utilização da norma cuja
constitucionalidade a recorrente indica pretender ver sindicada (o artigo 713º,
nº 5, do Código de Processo Civil). Ora, ‘o pedido de aclaração de uma decisão
judicial ou a arguição da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e
atempados para suscitar – em vista de ulterior recurso para o TC – a questão de
inconstitucionalidade relativa a matéria sobre a qual o poder jurisdicional do
juiz ‘a quo’ se esgotou com a decisão e num momento em que já não lhe é possível
tomar posição sobre a mesma’ (Guilherme da Fonseca e Inês Domingos, Breviário de
Direito Processual Constitucional, Coimbra Editora, 2ª edição, p. 46).
Importa, pois, concluir pela não suscitação atempada de uma questão de
inconstitucionalidade, circunstância que obsta ao conhecimento do objecto do
recurso e justifica a presente decisão sumária (artigos 70º, nº 1, alínea b) e
78º-A, nº 1, da LTC).
2. Sem prejuízo do que fica dito e que, por si só, impede o conhecimento do
recurso, importa ainda realçar que uma outra circunstância sempre determinaria,
no caso, idêntico desfecho. Na verdade, da análise do requerimento de arguição
de nulidade (...) resulta que, quando a recorrente suscitou (como se viu,
extemporaneamente), uma questão de constitucionalidade, o que fez foi arguir a
inconstitucionalidade da decisão, e não de qualquer norma ou sentido normativo.
Nesta peça processual, que a recorrente identifica, face à exigência contida no
nº 2 do artigo 75º-A da LTC, como aquela em que suscitou a questão da
inconstitucionalidade, encontram-se os seguintes trechos, demonstrativos da
conclusão referida:
‘Escudando-se a tomar posição sobre a aplicação do direito aos factos, levada a
cabo pela R./recorrente, o douto Acórdão recorrido acaba por lançar mão do n° 5
do artº 713°, ex vi artº 726° do C.P.C.
Sucede, porém, que, (...) o douto Acórdão estava obrigado a conhecer e
pronunciar-se acerca desta questão.
Bem assim como estava obrigado a fundamentar devidamente a sua decisão, porque
tal lhe é legal e constitucionalmente imposto e por que se encontrava a aplicar
o direito em definitivo.
Entende, pois, a Recorrente que o douto Acórdão ao não se pronunciar sobre as
questões, exclusivamente de direito, suscitadas no recurso, incorre na violação
do art. 660° nº2 do Código de Processo Civil (...), o que constitui nulidade,
por omissão de pronuncia, e por violação do dever de fundamentação das decisões,
nulidade que expressamente se argui, ao abrigo do disposto no art. 668° n° 1.
alíneas d) e b) do Código de Processo Civil.
Ao que acresce que o douto Acórdão ao lançar mão do n° 5 do artº 713° do CPC,
remetendo para o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação, e, assim, não se
pronunciando sobre as questões que deveria conhecer, nem fundamentando a sua
decisão, consubstancia também uma violação dos artºs 205°, 202° n° 2 e 204° da
Constituição da República Portuguesa (...)’ (itálico aditado).
Analisado o teor do requerimento de interposição de recurso para este Tribunal,
vem a verificar-se que tal vício se mantém:
‘Ao lançar mão do n° 5 do artº 713° do CPC, remetendo para o Acórdão do
Venerando Tribunal da Relação, e, assim, não se pronunciando sobre as questões
que deveria conhecer, nem fundamentando a sua decisão, o Supremo Tribunal de
Justiça incorre em patente violação dos artºs 205°, 202° n° 2 e 204° da
Constituição da República Portuguesa (...)’ (itálico aditado).
A recorrente entende, como resulta das passagens transcritas, que o Supremo
Tribunal de Justiça incorreu em omissão de pronúncia e que, por via dessa
omissão e da falta de fundamentação de que, no seu entender, a decisão enferma,
violou a Constituição da República Portuguesa, que impõe às decisões judiciais o
dever de fundamentação.
Trata-se, pois, de situação em que, para além do mais, o que de facto se
sustentou sempre foi a inconstitucionalidade da decisão recorrida (por omissão
de pronúncia e falta de fundamentação) e não de qualquer norma. As questões
identificadas pela recorrente, em crítica à decisão recorrida, situam-se, como
decorre da delimitação efectuada pelos artigos 280º e 281º da CRP e 70º da LTC,
em campo não sindicável por este Tribunal, pois que o ‘Tribunal Constitucional
português é concebido essencialmente como um órgão jurisdicional de controlo
normativo – de controlo da constitucionalidade e da legalidade’ (Cardoso da
Costa, ‘A jurisdição constitucional em Portugal’, Estudos em Homenagem ao Prof.
Doutor Afonso Rodrigues Queiró, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra, p. 223). O recurso para o Tribunal Constitucional é um recurso
normativo, pelo que ‘apenas as normas e não já as decisões judiciais podem
constituir objecto de tal recurso’ (cf. Acórdão nº 361/98, não publicado e,
entre outros, os Acórdãos nºs 286/93, não publicado, 178/95, 20/96, Diário da
República, II Série de 21 de Junho de 1995 e de 16 de Maio de 1996, 702/96,
27/98 e 223/03, não publicados).
No caso presente, importa, pois, concluir pela não verificação deste outro
requisito do recurso que se pretendeu interpor – o da suscitação de uma questão
de inconstitucionalidade normativa – circunstância que, acrescendo à da
suscitação extemporânea, sempre inviabilizaria o conhecimento do objecto do
recurso”.
2. Da decisão sumária vem agora a então recorrente reclamar para a conferência,
ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da LTC, invocando o seguinte:
“(...) à Recorrente era impossível suscitar a inconstitucionalidade de
determinada interpretação de uma norma, antes de tal interpretação ser adoptada,
afirmada e plasmada em decisão judicial.
Aliás, a própria Meritíssima Juiz Conselheira Relatora afirma que ‘quando a
questão de constitucionalidade foi suscitada já havia sido proferida decisão
final, justamente com a utilização da norma cuja constitucionalidade indica
pretender sindicada’ (sublinhado da responsabilidade do signatário).
Ora, como muito bem resulta do trecho supra transcrito, só com a prolação do
acórdão pelo STJ – em que foi efectuada interpretação de uma norma,
materialmente inconstitucional – é que a recorrente pode reagir à mesma.
O que fez mediante a interposição de recurso para esse Tribunal Constitucional.
Acresce que também não existe fundamento para se alegar que ‘a questão de
constitucionalidade’ respeita a ‘a matéria sobre a qual o poder jurisdicional do
juiz ‘a quo’ se esgotou com a decisão e num momento em que já não lhe é possível
tomar posição sobre a mesma.’
Ora, tanto assim não é, que o Supremo Tribunal de Justiça tomou posição acerca
da questão de constitucionalidade suscitada pela recorrente, o que fez tal qual
se encontra transcrito sob o ponto I. 4. da douta decisão da Mmª Conselheira
Relatora.
Face ao exposto, decorre que só após a prolação do douto acórdão do STJ é que a
recorrente poderia suscitar a questão de constitucionalidade, pois só nesse
momento lhe foi dada a conhecer a interpretação de norma materialmente
inconstitucional.
Acresce que, não tem, outrossim, razão a Mmª Conselheira Relatora, no segundo
fundamento que apresenta para não conhecer do recurso, porquanto a Recorrente
suscitou a ‘inconstitucionalidade da norma, na interpretação que lhe foi dada
pelo Supremo Tribunal de Justiça’, a qual, aliás, suscitou devida e
oportunamente, na Reclamação apresentada respeitante às nulidades e obscuridades
de que padecia o douto acórdão do STJ.
Aliás, a própria Mmª Conselheira Relatora refere, nomeadamente no trecho supra
transcrito, a ‘norma cuja constitucionalidade [a recorrente] indica pretender
sindicada’
Ora, é evidente que a questão de constitucionalidade suscitada respeita a uma
norma, na interpretação que lhe é dada pelo Supremo Tribunal de Justiça”.
3. Notificado à recorrida o requerimento de reclamação para a conferência, não
foi apresentada qualquer resposta.
II. Fundamentação
Independentemente da questão de saber se a reclamante suscitou ou não
atempadamente a inconstitucionalidade da norma, no que diz respeito ao problema
da não suscitação de uma questão de inconstitucionalidade normativa, da análise
do teor da reclamação não resultam infirmadas as razões que sustentaram a
decisão sumária. Na verdade, não basta salientar, para ter por preenchido o
mencionado requisito, que, do requerimento de interposição de recurso, constava
a frase “A questão da inconstitucionalidade da norma, na interpretação que lhe
foi dada pelo Supremo Tribunal de Justiça”.
Do mero confronto quer com o restante teor de tal requerimento quer com a peça
processual na qual se afirma ter sido suscitada a questão de
inconstitucionalidade resulta, expressamente, como se demonstrou na decisão
sumária, pretender a recorrente sindicar a conformidade constitucional da
própria decisão judicial. De facto, “colocar uma questão de constitucionalidade
normativa, em termos de poder ser objecto do recurso previsto na alínea b) do
nº1 do art.70º da LTC, não é apenas afirmar que um determinado preceito, na sua
aplicação a uma situação concreta que se descreve, é inconstitucional (...).
Colocar verdadeiramente uma questão de constitucionalidade reportada a um
determinado sentido normativo de um preceito é, muito mais do que isso,
identificar esse sentido normativo que se considera inconstitucional (...)
enunciar um critério normativo susceptível de generalização” (Acórdão do
Tribunal Constitucional nº 501/04, não publicado). A falta de enunciação de um
tal critério, no caso presente, confirma que, verdadeiramente, o objecto de
crítica da reclamante em matéria de constitucionalidade foi sempre a decisão
recorrida.
Resta, pois, concluir pelo indeferimento da reclamação.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do
recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 8 de Junho de 2005
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício