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Processo n.º 858/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Em 25 de Maio de 1999 A., melhor identificado nos autos, interpôs, no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, contra a Comissão Instaladora da Associação dos Técnicos Oficiais de Contas “ou a Direcção da mesma Associação se já estiver constituída”, acção para reconhecimento do direito a ser inscrito como Técnico Oficial de Contas ao abrigo do disposto na Lei n.º 27/98, de 3 de Junho, porquanto tinha sido responsável pela contabilidade de empresas que eram obrigadas a ter contabilidade organizada, como se previa naquela lei. Alegou ter requerido essa inscrição em 23 de Junho de 1998 e ter recebido, em 12 de Agosto seguinte, uma carta do Presidente da Comissão de Inscrição da Associação dos Técnicos Oficiais de Contas a informá-lo de que, nos termos de um Regulamento aprovado por essa Associação, a prova da responsabilidade directa por essa contabilidade teria de ser feita “através da entrega de cópias autenticadas de declaração do modelo 22 do IRC e/ou o anexo C às declarações do modelo 2 do IRS”; no dia seguinte o demandante respondeu, manifestando reservas a um Regulamento que dispunha “muito para além” do exigido por lei e dando conta de que teria dificuldade em cumprir o por ele exigido; por carta datada de 2 de Setembro de 1998, o Presidente da Comissão Instaladora da Associação dos Técnicos Oficiais de Contas reafirmou a necessidade dos documentos previstos no Regulamento, que o recorrente lhe enviou a 10 de Setembro “dois dias após a recepção daquela última carta”; por carta de 25 de Setembro o Presidente da Comissão de Inscrição confirmou “a deliberação de não proceder-se à sua inscrição nos termos do artigo 2.º da Lei n.º 27/98, de 3 de Junho” com fundamento em não ter o recorrente junto a documentação requerida na “carta de 6
[de] Agosto [de] 98”. Por despacho de 18 de Outubro de 1999, o juiz do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa declarou esse tribunal supervenientemente incompetente, em razão do território, por força da criação do Tribunal Administrativo do Círculo do Funchal pelo Decreto-Lei n.º 302-A/99, de 5 de Agosto, e da sua instalação, em 15 de Setembro desse ano, determinando a remessa dos autos a esse tribunal.
2.Já no Tribunal Administrativo e Fiscal agregado do Funchal foi proferido despacho de rejeição liminar da acção, em 3 de Julho de 2000, por a acção para reconhecimento de um direito ter “um carácter residual e complementar em relação ao recurso contencioso, no sentido de que se se chegar à conclusão de que o recurso é o meio adequado à tutela judicial efectiva, não pode o particular, sem mais, optar pela acção de reconhecimento”. E concluía ser esse o caso, porquanto:
“Este tipo de acção visou preencher o espaço deixado vago pelos outros meios de impugnação judicial contra a Administração Pública, pelo que não pode ser instaurada acção quando existe um acto administrativo (art.º 120.º do CPA) contenciosamente recorrível em relação ao qual o recurso assegura a efectiva tutela dos direitos invocados. Ora, no caso presente, o A. não alega qualquer facto que nos leve a considerar que esta acção (que pode ser proposta a todo o tempo) surge como complementar do recurso contencioso fracassado ou não interposto (cujo prazo de interposição se mostra ultrapassado). Falta, pois, este pressuposto processual negativo, excepção dilatória de conhecimento oficioso.” Não se conformando com o decidido, o demandante interpôs recurso para o Tribunal Central Administrativo, que, em conferência, se considerou incompetente e deferiu o pedido de remessa dos autos ao Supremo Tribunal Administrativo, formulado em resposta ao despacho do relator que antecipou o sentido da decisão de 29 de Janeiro de 2004. As conclusões que encerravam as alegações do recorrente eram as seguintes:
“1 – O despacho liminar de indeferimento só é admissível em casos de manifesta ilegalidade ou incompetência do tribunal (artigos 838.º do CA e 70.º da LPTA);
2 – O artigo 69.º, n.º 2, da LPTA deve ser entendido face à actual redacção do artigo 268.º da CRP como uma norma de ordenamento processual que implica uma análise casuística e funcional no sentido de saber se a acção para o reconhecimento de direito é o mais adequado à defesa do interesse invocado pelo Autor;
3 – A adequação processual da acção ao interesse do Autor é julgamento que escapa ao despacho liminar, tal qual é concebido pelo artigo 838.º do CA;
4 – O Autor pede ao Tribunal Administrativo o reconhecimento do seu direito a ser inscrito na ATOC, pedido que é mais completo e amplo do que a mera anulação da deliberação nula que rejeitou a sua inscrição.
5 – O pedido do Autor reveste a forma de acção de reconhecimento de direito por ser esta a mais adequada ao seu interesse.” Por acórdão de 27 de Maio de 2004, a 1.ª Subsecção da 1.ª Secção de Contencioso Administrativo daquele Supremo Tribunal decidiu negar provimento ao recurso, considerando ter ficado suficientemente demonstrada a existência de um acto administrativo que o recorrente não impugnou e ponderando que o “uso, se necessário, do meio processual acessório da execução de julgado, previsto no art.º 95.º da LPTA”, negaria o argumento do recorrente de que “o recurso contencioso não asseguraria para o direito invocado tutela eficaz”.
3.O recorrente trouxe então recurso de constitucionalidade a este Tribunal, baseando-se nas alíneas b) e i) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional), procurando ver apreciada a norma do artigo 69.º, n.º 2, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho, e alterada pelo Decreto-Lei n.º 229/96, de 29 de Novembro. No despacho que determinou a produção de alegações, o recorrente foi advertido da impossibilidade de o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do recurso interposto ao abrigo da alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, “por não se verificarem os respectivos pressupostos”. O recorrente concluiu as suas alegações nos seguintes termos:
«1. O Autor dirigiu à Ré, a 23 de Junho de 1998, a sua inscrição na Associação dos Técnicos Oficiais de Contas.
2. A Lei n.º 27/98, de 3 de Junho, no seu artigo 2.º, n.º 2, estipula que se a ATOC não proceder a inscrição dos interessados que satisfaçam os requisitos do artigo 1.º, no prazo de 15 dias após a apresentação do respectivo pedido, os mesmos considerar-se-ão automaticamente inscritos naquela Associação.
3. A Lei n.º 27/98 instituiu, para este caso, a figura do deferimento tácito.
4. No dia 8 de Julho de 1998, o A. estava inscrito como TOC, 15 dias após a data do seu pedido de inscrição.
5. Porém, a 13 de Agosto de 1998, fora de tempo o A. recebe, pela primeira vez, uma resposta da ATOC ao seu pedido, dizendo que, nos termos do Regulamento da Associação, ainda faltavam documentos e que tinha de enviar.
6. Entre o dia 23 de Junho e o dia 13 de Agosto passaram-se 51 dias.
7. O Recorrente tinha preenchido todos os requisitos previstos do art.º 1.º da referida Lei.
8. Para efectivar este seu direito, o Recorrente intentou acção para reconhecimento de direitos.
9. Só a acção para reconhecimento de direito permite que a inscrição do A. como Técnico Oficial de Contas se reporte à data do deferimento tácito.
10. O pedido foi rejeitado liminarmente pelo Tribunal Administrativo de Primeira Instância, com fundamento no art.º 69.º, n.º 2, da então Lei de Processo dos Tribunais Administrativos.
11. O Tribunal Administrativo de Primeira Instância para justificar a rejeição invocou “a teoria do alcance médio” quando, na realidade, aplicou “a teoria do alcance mínimo”.
12. Inconformado com esta decisão, o A. interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, que decidiu da mesma forma que o Tribunal Administrativo de Primeira Instância, ou seja, aplicando a teoria do alcance mínimo, sob a capa da teoria do alcance médio.
13. A interposição prévia do recurso contencioso de anulação não permitiria uma tutela jurisdicional mais eficaz do direito do Recorrente, já que apenas anularia o acto revogatório sem que assegurasse o reconhecimento da inscrição pretendida, no tempo legalmente efectivado.
14. Decorre da garantia constitucional do artigo 268.º, n.º 4, que a utilização da Acção para Reconhecimento se justifica sempre que os outros meios processuais do contencioso administrativo não conduzam a uma tutela plena ou a uma tutela efectiva dos direitos dos particulares.
15. Por causa disso, entendeu o A. que o Supremo Tribunal Administrativo aplicou uma decisão inconstitucional, na medida em que a interpretação feita por este douto Tribunal do art.º 69.º, n.º 2, da L.P.T.A. viola o art.º 268.º, n.º 4, da Constituição.
16. Para além do mais, o Supremo Tribunal Administrativo decidiu em desconformidade com o decidido anteriormente pelo Tribunal Constitucional.
17. O Tribunal Constitucional tem admitido a Acção para Reconhecimento de Direitos quando se demonstre que o recurso contencioso de anulação seja insuficiente para garantir a tutela jurisdicional efectiva das garantias do particular.» Por sua vez, a Direcção da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas veio alegar
“falta de fundamentos para o provimento do recurso”, referindo, no que à questão de constitucionalidade concerne, que:
“no Acórdão recorrido não se decidiu em desconformidade com o decidido anteriormente sobre idêntica questão pelo Tribunal Constitucional, (…) nem aquele Acórdão fez uma interpretação inconstitucional do art.º 69.º, n.º 2, da LPTA, violando o art.º 268.º, n.º 4, da CRP.” Cumpre apreciar e decidir, começando por delimitar o âmbito do recurso, pois que, não obstante se ter preliminarmente excluído o seu conhecimento ao abrigo da alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, recorrente e recorrido continuaram a invocar, em sentidos opostos, anteriores decisões do Tribunal Constitucional. II. Fundamentos
4.Como se referiu, foram recorrente e recorrida advertidos de que o recurso interposto ao abrigo da alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional não poderia ser considerado, por se não verificarem os seus requisitos – recusa de aplicação de norma constante de acto legislativo com fundamento em contrariedade com convenção internacional, ou sua aplicação em desconformidade com o anteriormente decidido sobre a questão pelo Tribunal Constitucional. Ora, a invocação de anteriores decisões do Tribunal Constitucional – que nem um nem outra identificaram – sobre questões de constitucionalidade poderia, eventualmente, relevar para o efeito, isso sim, de um recurso interposto ao abrigo do disposto na alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional. Só que nem esse recurso foi interposto, nem, em todo o caso, se verificavam os seus pressupostos (cfr. artigo 75.º-A, n.º 3, da mesma Lei; bem pelo contrário, o precedente juízo do Tribunal Constitucional é, como se verá, desfavorável à posição defendida pelo recorrente). De resto, o despacho de restrição do tipo de recurso a considerar não foi objecto de reclamação, nem foi contestado nas alegações, pelo que só do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional há que tomar conhecimento.
5.Quanto a este recurso, importa preliminarmente sublinhar que não cabe ao Tribunal Constitucional sindicar a aplicação do direito infra-constitucional em si mesma, com independência da questão de constitucionalidade normativa (cfr., v.g., acórdãos n.ºs 577/94, 18/96 e 186/00, publicados em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 29.º, pp. 119-128, o primeiro, e vol. 46.º, pp. 745-758, o
último, e no Diário da República, II Série, de 15 de Maio de 1996, o segundo), pelo que fica prejudicada boa parte das alegações do recorrente (designadamente quanto aos diferentes alcances da articulação da acção para o reconhecimento de um direito com os restantes meios contenciosos). Como se escreveu na última decisão citada, “[n]ão compete a este Tribunal sopesar, para além do controlo da constitucionalidade do resultado normativo a que se chegar, os argumentos esgrimidos a favor de uma ou outra interpretação (...). Cfr. vg., os Acórdãos n.ºs 44/85, 21/87, 339/87 e 279/92, publicados, o primeiro, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 5.º, 1985, págs. 403-409, e os restantes no Diário da República, II Série, de 31 de Março de 1987, de 19 de Setembro de 1987 e de
23 de Novembro de 1992, respectivamente – naquele primeiro aresto escreveu-se, designadamente, que ‘para o Tribunal Constitucional a norma de direito infra-constitucional que vem questionada no recurso é um dado (...) Saber se essa norma era ou não aplicável ao caso, se foi ou não bem aplicada –, isso é da competência dos tribunais comuns, e não do Tribunal Constitucional. Em princípio, o Tribunal Constitucional não pode censurar o modo como os restantes tribunais aplicam o direito infra-constitucional; apenas lhe compete controlar o modo como eles aplicam (ou não) o direito constitucional’. E acrescentou-se: ‘Em matéria de fiscalização concreta da constitucionalidade – repita-se – o dado normativo a ser submetido ao parâmetro constitucional chega já definido ao Tribunal Constitucional, não lhe cabendo pô-lo em causa’ ”. Assim, no presente caso o que este Tribunal apenas pode apreciar é se é ou não desconforme com as normas e os princípios constitucionais o entendimento professado na decisão recorrida para a norma do artigo 69.º, n.º 2, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos – o de que a acção para reconhecimento de direitos e interesses legalmente protegidos é uma acção residual e complementar em relação ao recurso contencioso de anulação, no sentido em que se não admite em situações em que este não foi interposto, podendo ter sido, e não há elementos que permitam concluir que não teria permitido a tutela efectiva do direito invocado (pois na verdade não foram apresentadas razões para que o juiz a quem primeiro foi presente o caso pudesse ponderar sobre se o recurso contencioso seria ou não suficiente para assegurar a tutela efectiva do direito que o recorrente pretendia fazer valer judicialmente). Em contrapartida, já não pode este Tribunal apreciar, por tal não ser decorrente dessa única norma impugnada (mas sim do artigo 838.º do Código Administrativo), se é constitucionalmente conforme que um tal juízo possa ser formulado “antes de apresentados os articulados e as alegações das partes, por só então ser viável a formulação de um juízo seguro sobre a necessidade de uso desse meio processual.” E não pode apreciar este sentido interpretativo, embora constitua igualmente entendimento adoptado na decisão recorrida, e que, como se viu, chegou a ser impugnado durante o processo – no recurso da decisão da primeira instância -, porque ele nem sequer foi impugnado perante o Tribunal Constitucional, no presente recurso de constitucionalidade, nem impugnada foi a norma invocada na decisão recorrida para justificar tal entendimento.
6.Circunscrito assim o objecto do recurso, e entendido o sentido da indagação a que se há-de proceder, logo se conclui que não padece a norma do n.º 2 do artigo
69.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos de qualquer desconformidade constitucional, designadamente com a norma do artigo 268.º, n.º
4, da Constituição.
É isto resulta do que já se considerou no acórdão n.º 104/99 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), no qual se escreveu
«4.1. A revisão constitucional de 1989 - para além de continuar a garantir aos interessados “recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos, independentemente da sua forma, que lesem os seus direitos ou interesses legalmente protegidos” (cf. artigo 268.º, n.º 4) – aditou um n.º 5 a este artigo 268.º, assim redigido:
5. É igualmente sempre garantido aos administrados o acesso à justiça administrativa para tutela dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos. Na expressão de J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 1993, página 942), o texto constitucional reconhece aos administrados “uma protecção jurisdicional administrativa sem lacunas”. No que concerne à questão de saber quando é que o administrado pode lançar mão da acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido, têm sido defendidas, essencialmente, três posições. Para uma delas, designada por teoria do alcance mínimo, a acção constitui um meio puramente residual, que o particular só pode utilizar quando, no ordenamento jurídico processual administrativo, não exista, em abstracto, outro meio de que ele possa lançar mão para uma tutela eficaz da sua posição jurídica. Para outra, colocada no pólo oposto - e, por isso mesmo, conhecida como teoria do alcance máximo - a acção é um instrumento de que o particular pode lançar mão, sempre que o recurso contencioso de anulação ou os outros meios processuais não forneçam, em concreto, uma tutela plena, é dizer, uma protecção máxima, como sucede, por exemplo, em matéria de direitos, liberdades e garantias, em que a condenação da Administração é seguramente mais eficaz do que a declaração de nulidade do acto administrativo. Para este entendimento, a acção em causa assume um carácter funcional. Para uma terceira posição, intermédia - conhecida como teoria do alcance médio – a acção deve ser entendida como um meio complementar, mas não residual, dos outros meios processuais, em especial do contencioso de anulação: ela seria, desde logo - nos dizeres de JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE (A Justiça Administrativa, Lições, Coimbra, 1998, página 108) – “o meio próprio e adequado para os casos em que não existisse (e não tivesse que existir) um acto administrativo (por exemplo, situações de incumprimento de deveres relativos a direitos subjectivos dos particulares, de prática ou omissão de actos materiais lesivos de direitos, ou de dúvida, de incerteza ou de receio fundado de mau entendimento pela Administração relativamente à existência ou ao alcance de um direito)”; e seria também o meio a utilizar “nos casos em que, embora existindo ou havendo lugar à prática de um acto, o recurso de anulação se revelasse, no caso, manifestamente inapto para assegurar uma tutela efectiva dos direitos do particular (por exemplo, no caso de ser decisiva a prova testemunhal, que não é legalmente admitida nos processos de recurso contra actos da Administração estadual) ou implicasse comportamentos que não fossem exigíveis a um particular normalmente diligente”. Como a teoria do alcance mínimo nem sempre é capaz de assegurar uma tutela efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados; e como a teoria do alcance máximo pode implicar uma subversão do sistema de justiça administrativa; o acórdão recorrido, seguindo na esteira de alguma doutrina que cita [além de VIEIRA DE ANDRADE (ob. cit., página 88), SOUSA FÁBRICA (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 365, página 60 e seguintes) e JOSÉ EDUARDO O. F. DIAS (Tutela Ambiental e Contencioso Administrativo, página
295)], optou, justamente, como decorre do que se disse atrás, pela teoria do alcance médio e concluiu que a norma do artigo 69.º, n.º 2, da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos não é inconstitucional, antes, é perfeitamente compatível com o artigo 268.º, n.º 5, da Constituição (hoje, artigo 268.º, n.º
4). Este Tribunal também já teve oportunidade de abordar esta questão. Fê-lo no acórdão n.º 452/95 (publicado no Diário da República, II série, de 21 de Novembro de 1995). Nesse aresto, o Tribunal, depois de ponderar que “o recurso contencioso de anulação possibilita [...] aos tribunais administrativos o controlo da observância, em todos os ‘momentos estruturais’ do acto administrativo (sujeito, objecto, procedimento, conteúdo, forma e fim) e dos princípios gerais de direito administrativo”; e de sublinhar que, na execução das sentenças que anulam ou declaram a nulidade de actos administrativos, os poderes dos tribunais administrativos são de plena jurisdição, pois que o tribunal “não se limita a reafirmar o que já tinha decidido no processo de recurso, antes redefine a situação jurídica em função da situação, em grande medida nova, que resulta da intervenção administrativa intermédia”; disse: No ordenamento jurídico positivo, existe um instrumento de protecção jurisdicional dos cidadãos, que, apesar de ter surgido ainda no domínio da vigência do artigo 268.º, n.º 3, da Constituição, na versão de 1982, constitui uma concretização da garantia consagrada no n.º 5 do artigo 268.º da Lei Fundamental: é a acção para reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido, prevista nos artigos 69.º e 70.º da LPTA. Mas a força irradiante e conformadora deste preceito constitucional exige que o nº 2 do artigo 69.º da LPTA – norma que estabelece o âmbito de aplicação daquelas acções, estatuindo que elas 'só podem ser propostas quando os restantes meios contenciosos, incluindo os relativos à execução de sentenças, não assegurem a efectiva tutela jurisdicional do direito ou interesse em causa' - seja interpretado, em termos de consentir ao particular, mesmo na hipótese de existir um acto administrativo, a propositura de uma acção de reconhecimento de um direito ou de um interesse legítimo, desde que demonstre que o recurso contencioso não é susceptível de assegurar, num determinado caso concreto, uma adequada e efectiva tutela jurisdicional dos direitos ou interesses legítimos afectados. De facto, a doutrina administrativa mais representativa vem defendendo que a acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo pode ser utilizada não apenas nos casos em que não exista ou não tenha de existir um acto administrativo (por exemplo, situações de incumprimento de deveres relativos a certos direitos subjectivos dos particulares - direitos ao pagamento de uma quantia em dinheiro,
à entrega de uma quantia certa ou a uma prestação de facto determinada -, de prática ou omissão de actos materiais lesivos de direitos, ou de dúvidas, de incerteza ou de receio fundado de mau entendimento pela Administração relativamente à existência ou ao alcance de um direito ou interesse legítimo), mas também nos casos em que, embora existindo ou havendo lugar à prática de um acto administrativo, o recurso contencioso se revele manifestamente inadequado para assegurar uma tutela efectiva dos direitos do particular [cfr., sobre este ponto, embora nem sempre com posições idênticas às expostas, Rui Machete, “A Garantia Contenciosa para Obter o Reconhecimento de um Direito ou Interesse Legalmente Protegido”, in Estudos de Direito Público e Ciência Política, Lisboa, Fundação Oliveira Martins, 1991, p. 423 ss.; Rui Medeiros, “Estrutura e Âmbito da Acção para o Reconhecimento de um Direito ou Interesse Legalmente Protegido”, in Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXXI (1989), Nºs 1/2, p.60 ss.; L. M. Sousa Fábrica, “A Acção para o Reconhecimento de Direitos e Interesses Legalmente Protegidos”, in Boletim do Ministério da Justiça, 365 (1987), p. 21 ss.; e D. Freitas do Amaral, Direito Administrativo, Vol. IV, cit., p. 288-297. Cfr. também A. Barbosa de Melo, Direito Administrativo II, cit., p. 94]. A interpretação que vem de ser exposta do artigo 69.º, n.º 2, da LPTA corresponde à denominada teoria do alcance médio da acção para o reconhecimento de um direito ou de um interesse legítimo, nos termos da qual este meio processual assume um carácter complementar dos outros meios processuais – e não um carácter puramente residual, como pretende a teoria do alcance mínimo, utilizável apenas quando não existisse, em abstracto, no ordenamento processual outro meio à disposição do particular para obter uma tutela eficaz da sua posição jurídica, nem um carácter funcional, como defende a teoria do alcance máximo, que admite a utilização do referido instrumento processual sempre que o contencioso de anulação ou os outros meios não fornecessem em concreto ao particular uma protecção máxima. J. C. Vieira de Andrade, depois de referir que uma interpretação do artigo 69.º, n.º 2, da LPTA em conformidade com o princípio da tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 268.º, n.º 5, da Constituição, apontará, pelo menos, para a teoria do alcance médio e de considerar excessivas as soluções dos Acórdãos da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo de 4 de Maio de 1993, 13 de Julho de 1993 e 19 de Abril de 1994, proferidos nos Recursos nºs. 31976, 31754 e 33191, nos quais aquele Tribunal entendeu que, após a revisão constitucional de 1989, o nº 2 do artigo 69º da LPTA deve ter-se por revogado, com a consequência de o direito de acção jurisdicional perante os tribunais administrativos para reconhecimento de direito e interesse legítimo perante (contra) a Administração não encontrar hoje obstáculos de natureza processual, fundados em erro na forma de processo, ilegitimidade ou excepção dilatória inominada que se pretendiam consagradas naquele preceito, justifica do seguinte modo a interpretação acima avançada do
âmbito de aplicação da “acção de reconhecimento de um direito ou interesse legítimo”:
“A posição a adoptar deve, quanto a nós, ser uma de equilíbrio, aproveitando todas as potencialidades do recurso contencioso e respeitando a estrutura do sistema de administração executiva, quando exista ou haja lugar à prática de um verdadeiro acto administrativo (tese estrutural), mas não hesitando em preconizar o uso de outros meios, quando se prove que eles sejam necessários a uma protecção judicial efectiva do particular (tese funcional) - em suma, destruído o dogma da impossibilidade de os tribunais condenarem a Administração, devem alargar-se ao máximo os poderes de fiscalização jurisdicional, mas, em contrapartida, tem de respeitar-se o núcleo essencial da autonomia do poder administrativo, isto é, a estabilidade do caso decidido e a discricionaridade quanto ao mérito das decisões” (cfr. ob. cit., p. 99,100). Significa isto que, nesse aresto, conquanto se não tivesse que decidir a questão de constitucionalidade que constitui objecto do presente recurso – a saber: a questão da constitucionalidade da norma que se contém no n.º 2 do artigo 69.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, interpretada em termos de que, estando em causa um acto administrativo, o particular pode lançar mão da acção para o reconhecimento de um direito ou de um interesse legítimo, mas apenas desde que demonstre que, no caso concreto, o recurso contencioso não é susceptível de assegurar uma adequada e efectiva tutela jurisdicional dos direitos ou interesses legítimos afectados – o Tribunal acabou por se pronunciar no sentido de que uma tal interpretação era compatível com o artigo 268.º, n.º
5, da Constituição.
É essa interpretação que aqui se reitera. E, justamente, pelas razões já aduzidas [cf., neste sentido, o acórdão n.º 435/98 (Diário da República, II série, de 10 de Dezembro de 1998)].
4.2. Claro é que, na revisão constitucional de 1997, esta matéria foi reformulada, achando-se, hoje, o n.º 4 do artigo 268.º assim redigido:
4. É garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares adequadas. Não se vê, porém, que, no que diz respeito às acções para o reconhecimento de um direito ou um interesse legalmente protegidos, se deva hoje concluir diferentemente. O que o preceito constitucional fez foi deixar claro que o princípio da plenitude da garantia jurisdicional administrativa – a mais do que obrigar o legislador a manter um meio processual, visando a impugnação de actos administrativos, que pode bem ser o clássico recurso contencioso, e a manter, bem assim, um meio processual de acesso à justiça administrativa para tutela dos direitos ou interesses legalmente protegidos (nomeadamente, as acções para o reconhecimento desses direitos ou interesses) – obriga-o a prever meios processuais que permitam ao administrado exigir da Administração a prática de actos administrativos legalmente devidos (acções cominatórias) e, quando for o caso, poder lançar mão de medidas cautelares adequadas.
É que tudo são manifestações (concretizações) do direito de acesso aos tribunais para defesa, por banda dos administrados, dos “seus direitos e interesses legalmente protegidos”, como dispõe o n.º 1 do artigo 20º da Constituição. As formas processuais de que os particulares se hão-de socorrer relevam, obviamente, das opções do legislador, pois que o texto constitucional não as impõe. A este propósito, é significativa a intervenção do deputado BARBOSA DE MELO, que o Diário da Assembleia da República (VII legislatura, 2ª sessão legislativa, reunião plenária de 30 de Julho de 1997) regista na página 3955. Disse ele: O sistema de tutela jurisdicional que hoje pretendemos constitucionalizar nestes dois números assenta na ideia de que a providência jurisdicional garantida aos cidadãos é que é aqui consagrada e não, como, de algum modo, vem sendo tradicional desde 1971, a forma processual através da qual essa providência há-de ser concretizada. Assim, o texto constitucional garante aos cidadãos a possibilidade de obterem dos juízes da Administração cinco providências que se traduzem no seguinte: a primeira, no reconhecimento dos seus direitos; a segunda, na eliminação de actos administrativos em sentido técnico e próprio, portanto individuais e concretos; a terceira, a determinação ou a imposição da prática de actos administrativos legalmente devidos – é um passo fundamental; a quarta, a tomada de medidas cautelares; e a quinta, a eliminação de normas regulamentares. Agora, as formas processuais ou tipos de acção através dos quais estas providências hão-de ser pedidas e, sendo caso disso, decretadas, não fazem parte da previsão constitucional, tudo isso é devolvido para o legislador ordinário. Assim se compreende que o texto constitucional abandone a referência ao recurso contencioso, que a Constituição de 1933, após a revisão de 1971, já continha e se mantém no texto vigente. Aliás, nada impede e tudo aconselha que a lei ordinária conserve o recurso contencioso, que, na configuração histórica que entre nós assumiu, é o meio processual através do qual podem ser implementadas várias das providências jurisdicionais que passam a estar previstas nos nºs 4 e 5 agora em discussão. E concluiu, afirmando: Termino com uma reflexão geral. Essas alterações, em si mesmo, pouco mudam no direito ordinário vigente, o que lembram é ao legislador o seu dever de melhorar continuamente as garantias jurisdicionais dos administrados e o seu dever – é um outro dever também – de racionalizar, tornando cada vez mais compreensível para todos o sistema destas garantias.
4.3. Conclusão: conclui-se, assim, que o n.º 2 do artigo 69.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, interpretado como foi pelo acórdão recorrido, não
é inconstitucional.» E também os acórdãos n.ºs 105/99 e 187/04 (todos disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt), para além do citado acórdão n.º 435/98
(publicado também em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 40.º, pp.
441-454), concluíram pela não inconstitucionalidade da norma do artigo 69º, nº
2, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, “interpretada no sentido de não ser admissível a acção para reconhecimento de um direito quando, havendo acto administrativo recorrível, o recurso de anulação se apresentar como via adequada a uma tutela jurisdicional eficaz dos direitos e interesses legitimamente protegidos”. No caso presente, existiu uma decisão do Presidente da Comissão de Inscrição da Associação dos Técnicos Oficiais de Contas (ou desta) que poderia ter sido impugnada judicialmente, e nenhuma razão foi apresentada para que o juiz a quem primeiro foi presente o caso pudesse ponderar sobre se tal recurso contencioso seria ou não suficiente para assegurar a tutela efectiva do direito que o recorrente se arrogava (embora tal tivesse sido feito, sem sucesso, perante o tribunal recorrido, e sem que um correspondente entendimento das normas aplicáveis ao caso fosse trazido à apreciação deste Tribunal). E, de todo o modo, não está excluído que o meio processual que foi deixado ao ora recorrente
(o recurso contencioso conjugado com a execução de julgado) lhe permitisse a obtenção do mesmo nível de tutela que decorreria da acção para reconhecimento de direitos. Conclui-se, assim, não obstante as diferentes circunstâncias e normas que estiveram em apreciação na decisão citada, haver similitude com aquele caso, valendo aqui as mesmas considerações. E pode, assim, concluir-se pela não inconstitucionalidade da norma em questão: isto é, da norma do n.º 2 do artigo 69.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos interpretado no entendimento de que a acção para reconhecimento de direitos e interesses legalmente protegidos é acção complementar em relação ao recurso contencioso de anulação, no sentido de se não admitir em situações em que este não foi interposto, podendo tê-lo sido, e não existem elementos que permitam concluir que não seria via adequada para a tutela dos direitos e interesses legitimamente protegidos. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso e condenar o recorrente em custas, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 5 de Abril de 2005
Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos