Imprimir acórdão
Processo n.º 931/03
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A., melhor identificada nos autos, intentou no Tribunal de Trabalho de Lisboa,
em 13 de Julho de 1998, acção emergente de contrato de trabalho, em processo
comum sob a forma ordinária, contra B. e C., melhor identificados nos autos,
para obter, como pedido principal, da 1.ª demandada, a quantia de 5 258 992$00,
com juros de mora à taxa legal, e da 2.ª, a sua reintegração, sob cominação de
sanção pecuniária compulsória, 1 958 650$00 de importâncias já vencidas e ainda
as importâncias vincendas, com juros de mora, e ainda, a título subsidiário, a
condenação da 1.ª demandada no pagamento da quantia de 7 217 642$00, vencida até
31 de Maio de 1998, e remunerações vincendas, acrescidas de juros de mora à taxa
legal e, como segundo pedido subsidiário, a condenação da 1.ª demandada a
pagar-lhe a compensação de caducidade do contrato de trabalho no valor de 2 762
100$00, férias e subsídio de férias no valor de 356 400$00, acrescidos de juros
de mora à taxa legal desde a citação.
Seguidos os trâmites legais, foi em 23 de Junho de 2000 proferida sentença no
2.º Juízo do Tribunal de Trabalho de Lisboa, que julgou a acção (resultante das
repercussões sobre o contrato de trabalho da destruição, em virtude de incêndio,
do estabelecimento onde prestava a sua actividade de caixeira) totalmente não
provada e improcedente, absolvendo as demandadas dos pedidos formulados.
A autora conformou-se com a sentença na parte que julgou improcedente o pedido
principal, mas recorreu dela quando aos dois pedidos subsidiários que formulara,
encerrando assim as suas alegações:
«1. A Ré B. após o incêndio de 25.8.88 emitiu e fez entrega no CRSS de várias
declarações comprovando que estava impossibilitada em consequência do incêndio
de pagar à trabalhadora recorrente as remunerações devidas.
2. Declarações que repetiu sucessivamente pelo menos até ao mês de Junho de
1989.
3. E salvo tais declarações, a Ré B. nunca mais voltou a entrar em contacto com
a A., nunca mais lhe deu quaisquer instruções, lhe fez qualquer comunicação ou a
notificou do que quer que fosse (n.° 5 da matéria de facto da sentença).
4. Aquelas declarações entregues pela recorrida no CRSS significam
inequivocamente o reconhecimento pela recorrida que com o incêndio o contrato de
trabalho se não extinguiu e permaneceu plenamente em vigor.
5. Com efeito só faz sentido declarar que se está impossibilitada de “pagar a
retribuição devida”, se ela se reportar a um contrato de trabalho em vigor que
obriga ao pagamento da retribuição.
6. O incêndio só poderia ser causa de caducidade de contrato de trabalho no
momento imediatamente a seguir, nunca decorrido um ano ou mesmo vários anos
sobre a sua ocorrência, pois lhe faltaria de todo o requisito da actualidade.
7. Mesmo para os autores que não exigem um comportamento declarativo da entidade
empregadora para que a caducidade possa operar, não podem deixar de convir que
se ela fizer declarações em que silencia a caducidade e se afirma a manutenção
em vigor do contrato de trabalho, tal não pode deixar de constituir causa de
exclusão da caducidade.
8. Aliás a recorrida não estava impedida de substituir o estabelecimento que
ardera, de abrir outro ou outros novos, tanto mais quanto dinheiro lhe não
faltava uma vez que por virtude do incêndio recebeu vultuosa indemnização da sua
companhia seguradora.
9. Até por isso a definitividade da impossibilidade suposta pela caducidade
nunca é óbvia e notória e exige sempre que seja expressamente declarada pela
entidade empregadora, como sustenta e bem Bernardo Lobo Xavier.
10. O contrato da recorrente, parece-nos incontroverso, permaneceu em vigor para
além do incêndio de 25.8.88, pelo que ela tem direito a todas as retribuições
que entretanto se venceram e a entidade empregadora, relapsa, lhe não pagou.
11. Na hipótese remota, cremos, de o 1.° pedido subsidiário não proceder, a
recorrente tem direito à indemnização de antiguidade como compensação pela
caducidade resultante de facto surgido na esfera da entidade empregadora.
12. Indemnização que se reconhecia já no art.º 113.º da LCT de 1969 e que,
embora silenciada no Dec.-Lei n.º 372-A/75, não pode deixar de entender-se que
subsiste, tanto mais que, como salienta Bernardo Lobo Xavier, tratando-se de um
problema de risco “não pode deixar de entender-se a cargo da entidade patronal”.
13. Aliás tal resulta hoje, cremos que em termos inequívocos, do n.º 2 do art.º
6.° da LCCT em vigor, que reconhece ao trabalhador, em caso de extinção da
entidade colectiva empregadora, o direito a uma compensação, que por igualdade
de razão não pode deixar de aplicar-se aos demais casos de caducidade por facto
da esfera da entidade empregadora.
14. Com efeito, se por força do n.° 3 do art.º 43.º da LCCT, a caducidade do
contrato a termo por denúncia da entidade empregadora dá direito a uma
compensação a favor do trabalhador, por maioria de razão tal compensação não
poderá deixar de ser devida no caso de caducidade de contrato sem termo.
15. De resto o n.° 2 do art.º 62.º da CR consagra o princípio da justa
indemnização que tem sido entendido com carácter de generalidade extensível a
todos os casos de extinção de direitos, incluindo os decorrentes dos contratos
de trabalho.
16. A antiguidade a considerar para cálculo da compensação deverá reportar-se à
data da sentença da 1.ª instância, no mínimo à data da contestação da Ré
recorrida, ou seja quando ela pela 1.ª vez invocou a caducidade do contrato de
trabalho.”
Contra-alegou a 1.ª recorrida, concluindo deste modo as suas alegações:
“I – No primeiro pedido subsidiário, regressa-se à tese de que as declarações
emitidas pela Recorrida para a Segurança Social, a seguir ao incêndio do Chiado
em 25 de Agosto de 1988, ao atestarem até 14.08.89, conforme o modelo exigido,
que a sua incapacidade para receber os trabalhadores era absoluta sem
acrescentar, para além do modelo-impresso, que era definitiva, significaram a
continuidade do vínculo laboral até à presente data…
Além de que jamais a Recorrida comunicou aos seus ex-trabalhadores que os seus
contratos de trabalho tinham cessado por caducidade a não ser no decurso de
várias acções judiciais que alguns intentaram contra a ora Recorrida.
Donde o direito de a trabalhadora demandante receber todas as retribuições
vencidas entretanto e vincendas.
II – Ora, e em primeiro lugar, as normas de natureza temporária e excepcional
resultantes do referido incêndio foram evoluindo, acabando por serem
disciplinadas pelo D.L. n.° 79-A/89 de 13/03 (Regime Geral de Protecção no
Desemprego), reconhecendo que as situações de impossibilidade definitiva
decorriam da primitiva situação. Aliás, o D.L. n.° 13/2000, de 21/02, ao
atribuir um subsídio a fundo perdido, segundo critério a adoptar pela C.M.L.,
aos trabalhadores à data do incêndio do Chiado, reconheceu a impossibilidade
absoluta e definitiva de certos empregadores terem recebido prestações de
trabalho.
III – Nos casos de força maior, que implicam a destruição notória e total do
estabelecimento, jamais a jurisprudência portuguesa exigiu um comportamento
declarativo do empregador manifestando aos trabalhadores a caducidade dos
respectivos contratos de trabalho, até porque os próprios o verificam de
imediato e a própria entidade patronal em relação a parte deles nem sabe onde se
encontram.
IV – Por consequência, o contrato individual de trabalho com a Recorrente não
subsistiu a partir de 25/08/88, não devendo a Recorrida à Recorrente
retribuições vencidas ou vincendas a partir daquela data.
V – Também quanto a indemnizações por antiguidade (2.° pedido subsidiário) não
são devidas aos trabalhadores, não se aplicando, a tais casos de força maior, a
teoria do risco imputável ao empregador.”
Por acórdão de 21 de Fevereiro de 2001, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu
anular o julgamento e actos subsequentes no que toca aos pedidos subsidiários
formulados contra a 1.ª demandada, determinando a ampliação da matéria de facto,
com formulação de novos quesitos.
Procedido a novo julgamento, e ampliada essa matéria de facto, foi proferida
nova sentença no 2.º Juízo do Tribunal do Trabalho de Lisboa em 21 de Janeiro
de 2002, que julgou improcedente o 1.º pedido subsidiário e procedente o 2.º,
condenando os B., a pagar à demandante € 13 777,30 a título de compensação pela
cessação do contrato de trabalho, € 888,90 a título de férias e subsídio de
férias, e € 888,90 relativos aos proporcionais de férias, subsídio de férias e
de Natal.
Recorreram a referida demandada, e, a título subordinado, a autora, para o
Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 20 de Novembro de 2002,
julgou procedente a apelação da primeira e improcedente a apelação da segunda,
absolvendo a demandada também do 2.º pedido subsidiário.
Ainda inconformada, recorreu a demandante para o Supremo Tribunal de Justiça
suscitando a inconstitucionalidade do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 372-A/75, de
16 de Julho, na interpretação que negue ao trabalhador o direito à compensação
pela extinção do contrato de trabalho por caducidade, por facto surgido na
esfera da entidade empregadora.
Contra-alegou a demandada, pugnando pela improcedência do recurso.
Por acórdão de 26 de Novembro de 2003 foi negada a revista, considerando-se não
terem sido violados os princípios constitucionais invocados: o do Estado de
direito democrático, o da segurança no emprego, o do direito ao trabalho e o
direito à justa indemnização.
2.Trouxe então a autora recurso para o Tribunal Constitucional para ver
apreciada a conformidade constitucional da norma do artigo 8.º do Decreto-Lei
n.º 372-A/75, em face do “princípio geral do direito à justa indemnização que se
consagra no artigo 62.º/2 da CRP”, recurso, esse, “interposto ao abrigo da al.
b) do n.º 1 do art.º 70.º da LTC”.
Determinada a produção de alegações, a recorrente encerrou as suas com
conclusões do seguinte teor:
«1. Cremos poder afirmar que é uma constante do nosso ordenamento laboral o
direito de compensação do trabalhador pela caducidade do seu contrato em
resultado de facto surgido na esfera da entidade empregadora, ainda que sem
culpa deste.
2. Aflorava no art.º 113.º da LCT aprovada pelo Dec.-Lei n.º 49408, e era
expressamente afirmado no n.° 2 do art.º 29.º do Dec.-Lei n.º 372-A/75.
3. A revogação desta norma pelo legislador do Dec.-Lei n.º 84/76, foi apenas
aparente, visto que só pode ter-se devido a lapso, uma vez que a intenção
daquele era apenas e tão-só, para além de integrar os despedimentos colectivos,
suprimir o despedimento por motivo atendível.
4. Não reparou que o n.° 2 do dito 29.º só na aparência tinha a ver com o
despedimento por motivo atendível, mas ia bem além deste concretizando o
principio da justa indemnização do trabalhador pela caducidade do seu contrato.
5. A confrontar com o procedimento do legislador do Dec.-Lei n.º 874/76 ao
revogar por só manifesto e indubitável a Secção IV, do Cap. III, da LCT, como
desde logo jurisprudência e doutrina não deixaram de reconhecer.
6. Tal princípio ressurge por forma expressa no RJCCT aprovado pelo Dec.-Lei n.º
64-A/89, art.º 6.º, n.ºs 2 e 3, e nem o legislador pró-patronal do recente
Código do Trabalho ousou tocar-lhe pelo que o manteve no seu art.º 390.º.
7. Entendemos pois que o princípio explicitado na norma do n.° 2 do art.º 29.º
do Dec.-Lei n.º 372-A/75, não obstante a sua revogação expressa, se manteve, até
porque a não ser assim se criaria uma lacuna sem disposição expressa que a
colmatasse, e cujo preenchimento se teria de fazer recorrendo a princípios
gerais do direito laboral.
8. Aliás tal princípio voltou a ser explicitado logo na Lei dos Despedimentos
que se lhe seguiu, aprovada pelo Dec.-Lei n.º 64-A/89, art.º 6.º, n.ºs 2 e 3.
9. De qualquer modo a compensação à trabalhadora sempre seria devida por
aplicação do princípio geral da justa indemnização de que se faz eco o art.º
62.º, n.º 2, da CRP.
10. Devendo ainda entender-se que como bem diz Bernardo Gama Lobo Xavier
(Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XX, n.° 1, Janeiro/Março de 1973)
é sobre o empresário que recai “o risco da contraprestação devida pelas
prestações perdidas, e cuja expectativa era juridicamente tutelável”.
11. Conforme aliás o princípio geral da justa indemnização que, afirmado no
art.º 62.º/2 da CRP relativamente à propriedade privada, se entende como valendo
com carácter de generalidade, no sentido amplo de “direitos patrimoniais
privados” (Meneses Cordeiro, Manual …, p. 845).
12. O que significa que não obstante a revogação aparente pelo legislador do
Dec.-Lei n.º 84/76 o princípio da justa indemnização se considera se manteve
ínsito no art.º 8.º do Dec.-Lei n.º 372-A/75.
13. Deste modo não pode deixar de se reconhecer à trabalhadora direito a ser
compensada pela perda da sua longa antiguidade ao serviço, em resultado da
extinção por caducidade do seu contrato de trabalho.
14. Pelo que a sua negação envolve uma interpretação inconstitucional do
preceito que viola frontalmente o principio do art.º 62.º/2 da CRP e
reflexamente ainda os princípios dos art.ºs 2.º, 53.º, 58.º e 59.º da CRP.»
Por sua vez, a recorrida apresentou as seguintes conclusões para as suas
alegações:
«a) O princípio da justa indemnização ínsito n.° 2 do art.º 62.º da C.R.P.,
respeita à requisição e à expropriação por utilidade pública de propriedade
privada. Ainda que se entenda dever enquadrar o conceito de propriedade privada
no sentido amplo de “direitos patrimoniais privados”, sempre a justa
indemnização decorre de actos da autoridade pública ou privada, mas nunca de
meros factos imprevisíveis e insuperáveis como é a situação de força maior.
b) Do princípio do Estado de direito democrático (art.º 2.° da C.R.P.) apenas se
pode postular que o Estado e outras entidades públicas intervenham no apoio a
trabalhadores, cujas empresas viram a sua capacidade produtiva destruída por
situação de força maior. Aliás, assim aconteceu no caso sub iudice.
c) O princípio da segurança no emprego (art.º 53.° da C.R.P.) verte-se na
proibição de despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou
ideológicos. Mas não há segurança que prevaleça sobre a destruição do
estabelecimento sem culpa do empregador.
d) O direito ao trabalho (art.º 58.° da C.R.P.) e à justa retribuição (art.º
59.°) pressupõe que os meios produtivos não sejam destruídos por razões alheias
à vontade do empregador.»
Cumpre agora apreciar e decidir.
II. Fundamentos
3.É a seguinte a redacção da norma impugnada, que constitui o único artigo do
Capítulo III do Decreto-Lei n.º 372-A/75, de 16 de Julho (Regime da Cessação do
Contrato de Trabalho), epigrafado “Cessação do contrato individual de trabalho
por caducidade”:
“Artigo 8.°
1. O contrato de trabalho caduca nos casos previstos nos termos gerais de
direito, nomeadamente:
a) Expirando o prazo por que foi estabelecido;
b) Verificando-se impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva, de o
trabalhador prestar o seu trabalho ou de a empresa o receber;
c) Com a reforma do trabalhador.
2. Nos casos previstos na alínea b) do n.° 1, só se considera verificada a
impossibilidade quando ambos os contraentes a conheçam ou devam conhecer.”
Do teor desta norma parece resultar que ela é alheia à questão substantiva em
discussão nos autos: a da existência, ou não, de um direito de compensação do
trabalhador pela extinção do contrato de trabalho.
Porém, tendo em conta que a norma de onde tal direito se podia directamente
derivar – a do n.º 2 do artigo 29.º do mesmo diploma – fora expressamente
revogada pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 84/76, de 28 de Janeiro, e também se
discutiu nos autos a validade dessa revogação (invocando-se como paralelo a
revogação – sem “razões plausíveis”, como reconheceu o legislador do Decreto-Lei
n.º 398/93, de 2 de Novembro – da Secção IV do Capítulo IV da Lei do Contrato
Individual de Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 49 408, de 24 de Novembro
de 1969), admitiu-se que, na ausência de outro suporte legal, a questão da
indemnização, qualquer que fosse a fórmula do seu cálculo, podia ser discutida a
propósito dos efeitos da caducidade aí prevista. Até porque a autora invocou que
é “uma constante de todo o nosso direito laboral a consagração do direito de
compensação do trabalhador que vê extinguir-se o seu contrato de trabalho por
facto surgido na esfera da entidade empregadora, ainda que sem culpa desta”. A
demandada, por sua vez, contrapôs que “não se está perante uma situação de
encerramento definitivo do estabelecimento em sentido estrito e técnico, mas
perante a destruição de um estabelecimento por caso de força maior. Ora, a
doutrina sempre veio distinguindo esses dois tipos de situações, subsumíveis na
figura da impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de o trabalhador
prestar a sua actividade ou de a empresa o receber”. E reconheceu, mais adiante,
que a solução podia estar inscrita no próprio instituto da caducidade: “A
caducidade do contrato de trabalho, pela verificação da impossibilidade
superveniente, absoluta e definitiva de o trabalhador prestar o seu trabalho ou
de a empresa o receber, determina a obrigação de indemnizar a contraparte se
houver culpa da parte que o originou; caso contrário, não se gera o dever de
indemnizar, salvo nos casos expressamente previstos na lei, e que devem ser
encarados como excepções”.
Tomar-se-á, pois, conhecimento do recurso quanto à interpretação relativa à
atribuição de indemnização, a propósito da norma do artigo 8.º do Decreto-Lei
n.º 372‑A/75, sendo, aliás, que a tal norma se reduzia, como se disse, o
Capítulo referente à cessação do contrato de trabalho por caducidade.
Por outro lado, importa notar que não cumpre a este Tribunal Constitucional
tomar posição sobre qual a solução preferível, face ao direito aplicável, ou
sobre a qualificação jurídica da situação de facto feita no tribunal a quo.
Antes, como se escreveu no acórdão n.º 186/2000,
“O que compete a este Tribunal esclarecer é, pois, tão-só se a interpretação,
melhor ou pior, adoptada pelas instâncias, formulada na decisão recorrida e
identificada pelo recorrente como objecto de recurso, padece da
inconstitucionalidade que lhe foi imputada - ou, eventualmente, de outra (cfr.
artigo 79.°-C da Lei do Tribunal Constitucional - Lei n.° 28/82, de 15 de
Novembro).”
Assim, apenas se apreciará a conformidade constitucional de uma certa
interpretação das normas aplicadas à situação dos autos, vigentes à data da
caducidade do contrato de trabalho da recorrente. Não está em causa,
nomeadamente, o confronto da situação dos autos com regimes posteriores – como o
resultante do “Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho e
da Celebração e Caducidade do Contrato de Trabalho a Termo”, aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 64‑A/89, de 27 de Fevereiro, ou o do Código de Trabalho, em
vigor.
Na verdade, do quadro legal aplicável nos autos resultava, conforme se decidiu,
a não atribuição de uma compensação pela extinção do contrato de trabalho na
sequência da destruição do local onde esse trabalho era prestado, por razões não
imputáveis a qualquer das partes – mais concretamente, a impossibilidade
superveniente, absoluta e definitiva, resultante de caso fortuito (incêndio do
Chiado) de a empresa receber a prestação laboral. É a esta razão que se refere a
recorrente quando alude a “facto surgido na esfera da entidade empregadora,
ainda que sem culpa desta”.
Por outras palavras, está em causa a constitucionalidade da norma do artigo 8.º
do Decreto-Lei n.º 372‑A/75, de 16 de Julho, interpretada no sentido de que a
caducidade do contrato de trabalho por impossibilidade superveniente, absoluta e
definitiva, resultante de caso fortuito, de a empresa receber a prestação
laboral não tem como efeito uma obrigação de indemnização dos trabalhadores, a
cargo da entidade empregadora.
4.Para a referida apreciação da constitucionalidade não se afigura decisiva a
invocada existência, no nosso ordenamento jurídico-laboral, de um “direito de
compensação do trabalhador pela caducidade do seu contrato em resultado de facto
surgido na esfera da entidade empregadora, ainda que sem culpa deste”. Na
verdade, o que poderia ser decisivo, isso sim, era a circunstância de esse
invocado princípio ter consagração no nosso ordenamento constitucional –
designadamente, na “Constituição laboral”.
Porém, no plano constitucional, o que a recorrente invoca é, antes, um
“princípio geral da justa indemnização de que se faz eco o art.º 62.º da CRP”.
Tendo presente que esta disposição se refere expressamente à “requisição e
expropriação por utilidade pública”, fácil é perceber, dada a evidente falta de
analogia de situações, que não é nesta norma que se poderá encontrar expressão
para tal regra jurídico-laboral. Tal falta de analogia resulta evidente, quer
considerando que o artigo 62.º se refere ao direito de propriedade (e não à
impossibilidade da prestação laboral, ou da sua recepção), quer que prevê
uma obrigação de indemnização por requisição ou expropriação por utilidade
pública. Existem diferenças significativas entre esta e a obrigação de
indemnização em resultado da perda de postos de trabalho por caso fortuito ou de
força maior não imputável ao empregador, as situações em questão, que não podem
deixar de ser relevantes: a requisição e a expropriação são voluntariamente
actuadas, e justificadas por um fim de interesse público, ao passo que a causa
da perda do posto de trabalho é involuntária e injustificada; a obrigação de
indemnização que se invoca recai sobre o Estado (que, aliás, também indemnizou
os afectados pelo incêndio do Chiado), ou, mais precisamente, sobre quem
requisita ou expropria, ao passo que a que se pretende obter recai sobre a
entidade empregadora, a quem se não pode imputar o desaparecimento do local de
trabalho; na requisição e na expropriação interfere-se com o direito de
propriedade (como referido na epígrafe do artigo 62.º da Constituição), sem
prejuízo da sua extensão a outros direitos patrimoniais, e priva-se o seu
titular desse direito ou da sua fruição, ao menos temporariamente, ao passo que
a perda de um emprego contende, não com um direito, mas com uma posição num
contrato sinalagmático, em que se perde uma prestação mas se evita igualmente a
contra-prestação.
Conclui-se, pois, pela inexistência de qualquer violação do artigo 62.º da
Constituição, pela interpretação normativa em análise.
5.A conclusão a que se chegou quanto à causa, quanto ao devedor, e quanto à
justificação da obrigatoriedade constitucional da indemnização, não impedem o
Tribunal de confrontar a norma em análise com outros princípios ou dispositivos
constitucionais – nomeadamente os dos artigos 58.º e 59.º da Lei Fundamental
(cfr. artigo 79.º-C da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, aditado pela Lei n.º
85/89, de 7 de Setembro). Ponto é que deles se possa fazer derivar uma obrigação
de indemnização, a cargo do empregador, em resultado da perda de postos de
trabalho por caso fortuito ou de força maior não imputável a este. Nesse
sentido, a alusão que a recorrente faz aos artigos 2.º (“Estado de direito
democrático”), 53.º (“Segurança no emprego”), 58.º (“Direito ao trabalho”) e
59.º (“Direito dos trabalhadores”), poderia servir de indicação quanto a
possíveis fundamentações alternativas de um princípio indemnizatório
constitucionalmente consagrado para situações de perda de postos de trabalho por
causas não imputáveis nem ao trabalhador, nem à entidade patronal.
Entende-se, porém, que também não se verifica violação destes parâmetros
constitucionais.
Assim, quanto ao princípio do Estado de direito democrático, para além de haver
que recordar, como o Tribunal tem repetido, que este tem uma sua função
essencialmente reassuntiva do que a Constituição prevê em outros dispositivos
constitucionais, mesmo que se pudesse ainda fundar nele a necessidade de
previsão de um “direito geral à reparação de danos” (assim Gomes Canotilho/Vital
Moreira, Constituição da República Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 63,
anotação V ao artigo 2.º), ou, genericamente, de um mecanismo geral de reparação
de danos, sempre a imposição de tal obrigação de indemnização, para se poder
afirmar a sua obrigatoriedade constitucional, haveria de pressupor, pelo menos,
um comportamento do obrigado a ressarcir, para poder sobre ele recair, e não de
resultar de um caso fortuito (ou, mesmo, de um motivo de força maior).
6.Em segundo lugar, quanto à garantia da segurança no emprego, a própria
Constituição a concretiza proibindo os despedimentos sem justa causa ou por
motivos políticos ou ideológicos. Ora, ainda que o princípio não se esgote
nessas dimensões negativas (e como dizem Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob.
cit., p. 289, anotação X ao artigo 53.º), é certo que “[o] seu âmbito de
protecção abrange todas as situações que se traduzem em precariedade da relação
de trabalho”. Trata-se “de proibir acções ou comportamentos (nomeadamente: o
despedimento)” (ibidem, p. 287, anotação IV ao mesmo artigo 53.º), não de
impedir efeitos decorrentes de factores ou circunstâncias incontroláveis e não
imputáveis à entidade empregadora, mas antes de um caso fortuito como um
incêndio. De resto, o que a recorrente invoca e pretende, depois de se ter
conformado com a improcedência dos seus pedidos principais, é, já não a
manutenção do seu emprego, mas antes uma indemnização pela sua perda – e é,
pois, algo que já se encontra como que “a jusante” do que é garantido pelo
princípio, por se admitir que se extinguiu o seu contrato de trabalho.
No que toca à invocação do direito ao trabalho, é certo que nele se contempla,
de facto, “um direito a uma compensação por não satisfação do direito ao
trabalho, o que abrange não só o direito ao subsídio de desemprego (…) mas
também às indemnizações em caso de encerramento definitivo do estabelecimento,
de rescisão pelo trabalhador em virtude da violação das suas garantias, etc.”
(ob. cit., p. 315, anotação II ao artigo 58.º da Constituição). Porém, na
ausência de determinação constitucional sobre o alcance e limites de tal
indemnização, em caso de encerramento definitivo do estabelecimento, é sem
dúvida ao legislador que cabe a sua configuração, designadamente, delimitando as
situações (atendendo, por exemplo, aos fundamentos do encerramento) em que ela é
de impor. Ora, o legislador do Decreto-Lei n.º 84/76, mal ou bem, decidiu
suprimir a norma que regulava tal indemnização em caso de perda de posto de
trabalho “por encerramento da empresa”. E, na medida em que essa opção
legislativa não está sujeita a parâmetros constitucionais específicos mais
limitadores, e na medida em que da existência de obrigações indemnizatórias em
situações imputáveis à entidade patronal se não pode extrair argumento algum em
favor da sua atribuição em situações que lhe não são imputáveis, também deste
princípio constitucional se não pode fazer derivar o pretendido juízo de
desconformidade com a Constituição.
Por último, também as disposições do artigo 59.º da Constituição se revelam
alheias à construção de um direito indemnizatório com fundamento não imputável à
entidade empregadora, tal como pretendido pela recorrente. É verdade que a
alínea e) do n.º 1 desse artigo prevê a existência de um direito à assistência
material, quando os trabalhadores se encontrem involuntariamente em situação de
desemprego – mas esse direito foi efectivado no caso, mercê da intervenção do
Estado, até 22 de Dezembro de 1990. A previsão, a favor dos trabalhadores, do
direito a uma outra indemnização – pela perda de uma espécie de “direito real
sobre o posto de trabalho adquirido” – é algo que está para além da previsão do
legislador constitucional, e que o legislador ordinário não estava, portanto,
obrigado a contemplar à altura dos factos.
Improcedendo a argumentação da recorrente na parte em que pretendeu transferir
para o plano constitucional a consagração de um suposto princípio
jurídico-laboral – que não compete a este Tribunal decidir se existe ou não
nesse ordenamento –, improcede também, para o fim em vista, que é a obtenção de
um juízo de inconstitucionalidade, a alegação da existência de um lapso do
legislador (revogatório), que implicaria a manutenção do regime previsto no n.º
2 do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 372-A/75, de 16 de Julho. Isto, não porque o
Tribunal não se pudesse pronunciar sobre essa questão, mas, simplesmente, porque
essa questão lhe não foi dirigida enquanto questão de constitucionalidade, e
dela não pode cuidar noutra sua dimensão.
E conclui-se, assim, que deve ser negado provimento ao presente recurso.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º
372‑A/75, de 16 de Julho, na interpretação de que da caducidade do contrato de
trabalho por impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva, resultante de
caso fortuito, de a empresa receber a prestação laboral não decorre uma
obrigação de indemnização dos trabalhadores, a cargo da entidade empregadora;
b) Por conseguinte, confirmar a decisão recorrida e condenar a recorrente em
custas, fixando-se em 20 (vinte) unidades de conta a taxa de justiça.
Lisboa, 2 de Novembro de 2005
Paulo Mota Pinto
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma (vencida, nos termos de
declaração de voto junta)
Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto
Apesar de a presente pronúncia do Tribunal Constitucional se referir apenas ao
plano da constitucionalidade – não se atendo à polémica sobre a interpretação
correcta do direito ordinário – tem sentido considerar‑se que não existia ao
tempo, de acordo com os princípios gerais do Direito do Trabalho e com a
polémica doutrinal que se configurava em redor dos efeitos da caducidade do
contrato de trabalho, uma lógica interpretativa estabilizada e pacífica que
permitisse subtrair as consequências da perda do posto de trabalho devido a
facto (embora fortuito) proveniente da esfera de risco da empresa a uma
protecção idêntica à que resultaria da caducidade devida a despedimento
colectivo ou falência.
Nestes termos, entendo que razões de igualdade na protecção jurídica deveriam
levar a não isolar as situações de caso fortuito na esfera de risco do
empregador‑empresa a qualquer compensação indemnizatória, em situações de grande
desequilíbrio entre a entidade empresarial e os trabalhadores, pelo menos quando
não estejam em causa micro‑empresas.
É esta lógica que levará, segundo me parece, o Código do Trabalho actualmente em
vigor a não distinguir, para efeitos de compensação indemnizatória, as várias
situações de caducidade imputáveis à esfera do empregador (artigos 401º, 404º e
409º do Código do Trabalho).
A redução do problema de constitucionalidade à tónica do caso fortuito
corresponde a uma descrição do problema a partir de uma distinção que não se
justifica em termos de igualdade na protecção jurídica.
Maria Fernanda Palma