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Processo n.º 1112/2004
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção
do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 384 foi proferida a seguinte decisão sumária :
1. A. e sua mulher, B., foram condenados, por sentença do 3º Juízo
Cível do Tribunal da Comarca de Guimarães de 10 de Janeiro de 2004, de fls. 237,
a reconhecer que os Autores, C. e mulher, D., são donos e possuidores de um
prédio urbano, devidamente identificado nos autos, que confronta com terreno dos
Réus, e que no referido prédio se integra uma parcela de terreno sobre a qual os
Réus construíram um muro e um portão que impede os autores de usarem e fruírem
em plenitude do seu prédio. Foram ainda os Réus condenados a retirar de imediato
o muro e o portão e a reconstruir o muro no lugar primitivo, bem como a
abster-se de impedir por qualquer forma o livre uso pelos Autores dessa parcela
de terreno.
Inconformados, os Réus interpuseram recurso de apelação para o
Tribunal da Relação de Guimarães, invocando, designadamente, que a pretensão dos
Autores constitui abuso de direito.
Por acórdão de 26 de Maio de 2004, de fls. 292, a Relação de Guimarães decidiu
“pela integral procedência do recurso”, revogando a sentença recorrida e, em
consequência, absolvendo os Réus do pedido.
No mencionado acórdão afirmou-se, designadamente, o seguinte:
“Demonstrando as respostas à matéria de facto a existência de um
acordo de cedência de terrenos, nulo por falta de forma, mas também que se
verificou uma situação de confiança, originada pelo contrato e nas relações de
amizade e familiares que as partes mantinham, um investimento de confiança no
que concerne a efectiva utilização dos tractos de terreno, reciprocamente
cedidos, pelas partes, ao longo de cerca de onze anos, bem como a imputação aos
AA. da confiança na estabilidade do factum proprium, já que eles AA. viram
integrada no seu prédio a parcela cedida pelos RR., agem em abuso de direito os
AA., ao proporem contra os RR. uma acção de reivindicação tendo por objecto a
parcela que eles AA. cederam aos RR., enquanto tal acção deixa incólume o
benefício obtido com o negócio nulo”.
Indeferido o pedido de aclaração do acórdão de 26 de Maio de 2004,
apresentado pelos Autores e então recorridos, por acórdão de 20 de Setembro de
2004, de fls. 322, vieram os mesmos “arguir a nulidade da decisão e a violação
de normas constitucionais de que a mesma padece”. Segundo alegaram,
“Declarando o direito como declarou o Tribunal não está, assim, a interpretar
qualquer normativo, mas sim a criar um novo normativo, por via jurisprudencial.
Ao sustentar que a aquisição de imóveis pode fazer-se por um modo não
taxativamente previsto na lei, o tribunal está a produzir, um novo preceito
legal por via jurisprudencial, ao arrepio do previsto nos artºs 161º n.º 1 al.
c), e 165º n.º 1 al. j), da Constituição, uma vez que a criação de qualquer
normativo é da exclusiva competência da Assembleia da República ou do governo.
Ademais, tal «interpretação» é violadora do princípio da separação de poderes
como emanação do Estado de Direito Democrático (cfr. artº 2º da Constituição),
sendo que, a validade das leis depende da sua conformidade com a Constituição
(cfr. artº 3º n.º 3 da Constituição), violando, ainda, o princípio da segurança
e da confiança jurídica como emanações do princípio do Estado de Direito
Democrático (artºs 2º e 32º n.º 1 da Constituição).
Os tribunais devem, além disso, «administrar justiça» (artº 202º n.º 1 da
Constituição) conforme a «legalidade democrática» (artº 202º n.º 2 da
Constituição) já que o têm de fazer com sujeição à lei (artº 203º da
Constituição), – o que a estranha decisão em crise desrespeita de todo.”
Por acórdão de 3 de Novembro de 2004, de fls. 356 e seguintes, o
Tribunal da Relação de Guimarães julgou improcedente a arguição de nulidades,
afirmando, designadamente, nem contender “a decisão com qualquer norma relativa
a direitos fundamentais (artigos 161º, n.º. 1, al. c) e 165º, n.º 1, al. j)
C.R.P.)”, nem “viola[r] os princípios da separação de poderes, da validade das
leis, o princípio da segurança e da confiança jurídica, ou o princípio da
legalidade (artigos 202º e 203º .R.P.), como emanações do princípio do Estado de
Direito Democrático”.
2. Ainda inconformados, C. e mulher, D., vieram interpor recurso
para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de
3 de Novembro de 2004.
O recurso foi admitido, por decisão que não vincula este Tribunal
(nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82).
Convidados, por despacho da Relatora constante de fls. 378, a
completar o requerimento de interposição de recurso, fornecendo as indicações
exigidas pelos diversos números do artigo 75º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, os recorrente vieram dizer o seguinte:
“a) O recurso vem interposto de normas cuja inconstitucionalidade
foi suscitada durante o processo, na interpretação que as instâncias lhe deram
(artº 70º n.º 1 b) da LTC);
b) No processo os recorrentes suscitaram a inconstitucionalidade da
interpretação dada aos artºs 875º, 939º, 1306º, 1316º, 9º, n.ºs 2 e 3, do Código
Civil e provocaram a exaustão dos meios recursórios ordinários, nos termos a que
a eles alude o artº 70º n.º 2 da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro;
c) Tais normas, interpretadas como o foram, são manifestamente
desconformes com a lei constitucional (artºs 161º n.º 1 c), 165º n.º 1 j), artº
2º, 3º n.º 3, 32º, 202º e 203º da Constituição).
As questões em causa foram suscitadas em requerimento perante o
tribunal a quo, após o surpreendente julgamento de apelação.”
3. O recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de
normas interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da
Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, como é o caso, destina-se a que este Tribunal
aprecie a conformidade constitucional de normas, ou de interpretações
normativas, que foram efectivamente aplicadas na decisão recorrida, não obstante
ter sido suscitada a sua inconstitucionalidade “durante o processo” (al. b)
citada), e não das próprias decisões que as apliquem. Assim resulta da
Constituição e da lei, e assim tem sido repetidamente afirmado pelo Tribunal
(cfr., a título de exemplo, os acórdãos nºs 612/94, 634/94 e 20/96, publicados
no Diário da República, II Série, respectivamente, de 11 de Janeiro de 1995, 31
de Janeiro de 1995 e 16 de Maio de 1996).
É ainda necessário que tais normas tenham sido aplicadas pela decisão recorrida
(cfr., por exemplo, o Acórdão n.º 367/94, publicado no Diário da República, II
Série, de 7 de Setembro de 1994), como estabelece o artigo 79º-C da Lei nº
28/82, com o sentido acusado de ser inconstitucional, como ratio decidendi
(cfr., nomeadamente, os acórdãos nºs 313/94, 187/95 e 366/96, publicados no
Diário da República, II Série, respectivamente, de 1 de Agosto de 1994, 22 de
Junho de 1995 e de 10 de Maio de 1996); e que a inconstitucionalidade haja sido
“suscitada durante o processo” (citada al. b) do nº 1 do artigo 70º), como se
disse, o que significa que há-de ter sido colocada “de modo processualmente
adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este
estar obrigado a dela conhecer” (nº 2 do artigo 72º da Lei nº 28/82).
Conforme o Tribunal Constitucional tem também afirmado, o recorrente só pode ser
dispensado do ónus de invocar a inconstitucionalidade ”durante o processo” nos
casos excepcionais e anómalos em que não tenha disposto processualmente dessa
possibilidade, sendo então admissível a arguição em momento subsequente (cfr., a
título de exemplo, os acórdãos deste Tribunal com os nºs 62/85, 90/85 e 160/94,
publicados, respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol.,
págs. 497 e 663 e no Diário da República, II, de 28 de Maio de 1994).
Para além disso, se apenas questionar uma certa interpretação ou dimensão
normativa de um determinado preceito, o recorrente tem o ónus de indicar, de
forma clara e perceptível, o exacto sentido normativo do(s) preceito(s) que
considera inconstitucional. Como se disse, por exemplo, no Acórdão nº178/95,
“Tendo a questão de constitucionalidade que ser suscitada de forma clara e
perceptível (cfr., entre outros, o Acórdão nº 269/94, Diário da República, II
Série, de 18 de Junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma
certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa
interpretação) em termos que, se este tribunal o vier a julgar desconforme com a
Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o
tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários
daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em
causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a Lei Fundamental”.
Para que se possa considerar cumprido o ónus referido, não basta dizer que se
pretende ver apreciada a inconstitucionalidade de um preceito (ou de uma lista
de preceitos) na interpretação que lhe foi dada pela decisão de que se recorre;
com tal atitude, o recorrente antes está a transferir – de forma inadmissível –
para o Tribunal Constitucional o ónus, que sobre ele impende, de definir o
objecto do recurso e, para além disso, a impossibilitar que o Tribunal verifique
se estão preenchidos os já referidos pressupostos de admissibilidade do recurso.
4. Resulta do exposto que o Tribunal Constitucional não pode conhecer do
presente recurso, por faltarem os pressupostos necessários para o efeito.
Assim, e em primeiro lugar, porque o recurso vem expressamente interposto do
acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 3 de Novembro de 2004, acórdão
esse que julgou improcedentes as nulidades arguidas pelos recorrentes,
naturalmente não aplicando, para decidir, os preceitos indicados como contendo
as normas cuja inconstitucionalidade os recorrentes pretendem que o Tribunal
Constitucional julgue.
Com efeito, o acórdão recorrido limitou-se a decidir com base das normas sobre
nulidades, constantes do artigo 668º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Assim, não terem as disposições em causa sido aplicadas pela decisão recorrida,
não pode o Tribunal conhecer do objecto do recurso.
5. Em segundo lugar, porque, ainda que assim não fosse, ou seja, ainda que se
pudesse entender que o recurso vinha interposto do acórdão que julgou a
apelação, os recorrentes não suscitaram qualquer inconstitucionalidade referida
aos preceitos em causa “durante o processo”, nos termos também já expostos.
Na verdade, o requerimento de arguição de nulidade da decisão recorrida não é,
em princípio – e não é, seguramente, neste caso –, o momento idóneo para que o
recorrente coloque perante o tribunal recorrido a questão da
inconstitucionalidade, pois que “a eventual aplicação de uma norma
inconstitucional não constitui, obviamente, um erro material, não é causa de
nulidade da decisão judicial, nem torna esta obscura ou ambígua”, de forma a
permitir ao tribunal a quo dela conhecer, “por aplicação do disposto no nº 1 do
artigo 666º do Código de Processo Civil” (cit. acórdão nº 62/85).
Note-se, aliás, que, contrariamente ao que afirmam, os recorrentes não
suscitaram, no requerimento de arguição de nulidades, nenhuma questão de
inconstitucionalidade normativa, muito menos referida aos preceitos que
pretendem que o Tribunal Constitucional aprecie.
É certo que, se estivéssemos perante um caso em que o recorrente
pudesse ser dispensado do ónus de invocar a inconstitucionalidade “durante o
processo”, nos moldes já referidos, seria suficiente, para o efeito, que a
inconstitucionalidade fosse colocada no requerimento de interposição de recurso
para o Tribunal Constitucional.
Todavia, não é esse, manifestamente, o caso dos autos, apesar de os ora
recorrentes se referirem ao “surpreendente” julgamento do Tribunal da Relação de
Guimarães.
Basta atentar em que os réus, ao recorrerem da sentença da 1ª instância,
invocaram expressamente nas alegações apresentadas a questão do eventual abuso
de direito por parte dos autores, ao pretenderem invocar a nulidade do contrato
de permuta em causa por falta de forma.
Os autores, ora recorrentes, tiveram plena oportunidade de suscitar perante o
Tribunal da Relação de Guimarães a inconstitucionalidade das normas com base nas
quais o recurso de apelação veio a ser julgado, assim cumprindo a exigência de a
suscitarem “durante o processo”.
6. Finalmente, os recorrentes também não definem de modo suficiente o objecto do
recurso que interpõem, pois se limitam a indicar uma lista de preceitos e a
dizer que, interpretados como foram, são inconstitucionais.
7. Estão, pois, reunidas as condições para que se
proceda à emissão da decisão sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº
28/82.
Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do
recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 8 ucs (em conjunto).»
2. Inconformados, os recorrentes reclamaram para a conferência, ao abrigo do
disposto no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, pretendendo a revogação da
decisão sumária.
Em primeiro lugar, sustentam que era “bastante óbvio” que o recurso de
constitucionalidade não foi interposto do acórdão que julgou a arguição de
nulidades, mas sim “desse acórdão e do acórdão que julgou procedente a
apelação”.
Em segundo lugar, afirmam ser “completamente falso” dizer-se, na decisão
reclamada, que “não suscitaram no requerimento de arguição de nulidades nenhuma
questão de inconstitucionalidade normativa”, transcrevendo, seguidamente, partes
desse requerimento.
Em terceiro lugar, negam que tivesse sido possível suscitar a
inconstitucionalidade nas contra-alegações do recurso de apelação, nestes
termos: “Se a questão a discutir fosse a constitucionalidade da aplicação do
instituto do abuso de direito, teria a decisão sob reclamação inteira razão. Mas
não é: é a de saber se o abuso de direito pode ser usado mesmo em relação a que
actos que não revestem a forma legal, se é possível, como se decidiu, transmitir
verbalmente a propriedade de um imóvel mesmo antes do decurso do prazo de
aquisição por usucapião. Essa insólita decisão foi prolatada ex novo pelo
Tribunal da Relação – e logo após foi suscitada a sua inconstitucionalidade.
Podia ter sido mais cedo? Não podia.”.
Notificados para o efeito, os reclamados não se pronunciaram.
3. A reclamação é improcedente, pelas razões que se indicam.
Começando pela primeira questão colocada – identificação do acórdão recorrido –
cumpre dizer que a decisão reclamada se limitou a considerar recorrido o acórdão
de que os ora reclamantes disseram expressamente que estavam a recorrer, no
requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, a fls.
367: “(...) notificados do douto acórdão de 3/11/2004, com o qual se não
conformam, do mesmo vêm interpor recurso para o Tribunal Constitucional”. Não é,
pois nada óbvio que estivessem a recorrer de outro acórdão.
Seja como for, e admitindo lapso dos ora reclamantes, a decisão reclamada
pronunciou-se sobre a admissibilidade do recurso como se o mesmo houvesse sido
interposto do anterior acórdão.
4. Relativamente ao segundo argumento apresentado na reclamação, o que se
verifica é que os reclamantes, no requerimento de interposição de recurso,
manifestam a sua discordância com a solução a que o acórdão recorrido chega, do
ponto de vista do direito ordinário. Entendem os reclamantes, fazendo apelo ao
princípio da tipicidade dos direitos reais (artigo 1306º do Código Civil) e
pretendendo dele retirar, em conjugação com o artigo 875º do Código Civil, que o
acórdão recorrido “estabelece uma forma de transmissão de bens imóveis que a lei
não contempla”, que o referido acórdão criou “um novo preceito legal por via
jurisprudencial”, o que lhe estaria vedado e infringiria a Constituição, já que
o tribunal estaria a invadir competências reservadas à Assembleia da República e
ao Governo e violando o princípio da separação de poderes (artigos 161º, n.º 1,
c), 165º, n.º 1, j), 2º, 3º, n.º 3 e 32, n.º 1 da Constituição).
Para além disso, o tribunal teria violado o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo
202º, e no artigo 203º, não cumprindo a sua obrigação de administrar justiça,
conforme a legalidade democrática, e som sujeição à lei.
Procede-se a esta descrição porque ela demonstra que, na verdade, os reclamantes
não colocaram ao Tribunal Constitucional qualquer questão de consitucionalidade
de normas susceptível de ser apreciada no âmbito do recurso que interpuseram.
Com efeito, é à decisão recorrida que a inconstitucionalidade é apontada. Os
reclamantes descrevem os erros que consideram existir no acórdão e afirmam que a
conclusão a que este chegou viola diversos preceitos constitucionais.
Em parte alguma os reclamantes definem as normas efectivamente aplicadas no
acórdão recorrido, e que eventualmente seriam inconstitucionais, assim não
definindo um objecto susceptível de ser julgado.
5. Quanto à terceira questão, nada há a acrescentar ao que se disse na decisão
reclamada. É evidente que, ao acusar os reclamantes de ter agido em abuso de
direito para conseguir a improcedência da acção, os ora reclamados estavam a
sustentar que o abuso de direito “pode ser usado mesmo em relação a actos que
não revestem a forma legal”. Os reclamantes tiveram, pois, a oportunidade de
suscitar a inconstitucionalidade das normas respectivas nas contra-alegações que
apresentaram no recurso de apelação, assim provocando a apreciação da questão
pelo acórdão recorrido de forma a que a mesma chegasse ao Tribunal
Constitucional por via de recurso.
Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão de não
conhecimento do recurso.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 ucs.
Lisboa, 29 de Março de 2005
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Artur Maurício