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Processo n.º 779/02
2ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
ACORDAM NA 2ª SECÇÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
I. Relatório
1.Em 3 de Janeiro de 2001, A., Lda., melhor identificada nos autos, intentou, no
Tribunal Judicial de Braga, acção de condenação, com processo comum, contra a
B., C.R.L., igualmente identificada nos autos, para “ser declarado nulo o
pagamento dos cheques efectuados pela Ré, com apenas uma assinatura, sem carimbo
comercial ou com duas assinaturas mas sendo a do sócio C. falsificada”, e para
ser paga uma indemnização correspondente ao valor dos cheques e à violação do
bom nome da autora (por lapso escrevia-se ré).
Na sua contestação e reconvenção, a demandada suscitou, para o que ora importa,
a intervenção provocada do signatário singular dos cheques, D. sócio gerente da
autora que se ausentara para parte incerta, e de E., o seu funcionário
encarregue de conferir as assinaturas nos cheques a que se reportam os autos.
Em 4 de Junho de 2001, por despacho do Juiz titular, foi julgado procedente o
incidente de intervenção provocada e foi determinada a citação de ambos os
chamados, “com as consequências previstas nos art.ºs 327.º e 328.º do citado C.
P. Civil” por carta registada com aviso de recepção. O funcionário da ré veio
apresentar pedido de improcedência da intervenção principal provocada, ou, caso
assim se não entendesse, “absolvição do pedido por não recair sobre ele qualquer
responsabilidade”, mas a carta dirigida ao gerente da autora veio devolvida.
Foi, então, emitido mandado de citação para a morada indicada pela autora, mas,
em 18 de Setembro de 2001, tal diligência gorou-se por, segundo informação da
ex-mulher do citando, proprietária e única residente do imóvel há cerca de três
anos, este nunca aí ter residido e se encontrar, à altura, no estrangeiro.
Foi solicitado ao comando da PSP de Braga informação sobre o domicílio do
citando, sendo a resposta a de que se desconhecia o seu paradeiro desde o ano de
2000.
Consultadas as bases de dados da Segurança Social, da Direcção-Geral de
Impostos, e da Direcção-Geral de Viação sobre as moradas do dito sócio da
autora, foram apuradas três diferentes moradas, para todas elas se expedindo
cartas simples, que vieram devolvidas.
Por despacho de 8 de Novembro de 2002, o Juiz titular decidiu
“- desaplicar, por inconstitucionalidade material (violação do princípio da
indefesa, consagrado no art.º 20.º da C.R.P.) o art.º 236.º-A, n.ºs 6 e 7, e
art.º 238.º, n.º 3, do C.P.C.
- determinar se proceda à citação edital do interveniente D..”
Pode ler-se nesse despacho:
«(…)
A estrutura dialéctica ou polémica do processo – radicada nos interesses
contrastantes dos pleiteantes –, ou seja, a fisionomia contraditória do
processo, está expressamente consagrada no art.º 3.° do C.P.C..
Uma vez que o processo tem natureza contraditória, o acto de chamar a juízo o
réu para se defender[1] deve merecer grande atenção da lei. Como ensinava o
Prof. Alberto dos Reis[2], uma “vez que a citação condiciona o exercício do
direito de defesa, justificam-se perfeitamente as cautelas que a lei entendeu
fazer observar. Importa sobremaneira que a citação seja um acto sério e
eficiente, isto é, que ao réu seja dado conhecimento da existência do pleito e
colocado assim em condições de se defender; mas importa igualmente que seja um
acto, quanto possível, rápido, isto é, que sejam postos à disposição do tribunal
meios suficientes para obstar a que o réu procure fugir à acção da justiça,
furtando-se sucessivamente à diligência da citação”. E continua o Ilustre
Professor afirmando que toda “a disciplina da citação há-de inspirar-se na
conciliação destes dois interesses em conflito: o interesse da seriedade do acto
e o interesse da rapidez”, sendo tanto mais perfeita a disciplina de tal acto
quanto mais justo for o equilíbrio entre os dois interesses opostos. Perfeita
será assim a lei que discipline a citação por forma a conseguir proteger o réu
contra manobras tendentes a substituir a citação real e verdadeira por um
simulacro de citação que o deixe, de facto, na ignorância da existência do
pleito e que proteja também o autor contra tentativas ou estratagemas maliciosos
empregues pelo réu para evitar ou retardar a citação[3].
Quando o legislador não consegue tal equilíbrio entre estes dois interesses
antagónicos, dando prevalência a um sobre o outro, a sua produção legislativa
pode vir a sofrer a censura constitucional.
Na verdade, quer o direito de acção do autor[4], quer o direito a uma decisão
judicial sem dilações e demoras indevidas[5], quer o direito de defesa do réu[6]
(além de expressamente referidos na nossa lei ordinária – art.ºs 2.° e 3.° do
C.P.C.) merecem reconhecimento e protecção constitucional (art.º 20.° da
C.R.P.).
Em casos como o dos autos, o art.º 236.º-A do C.P.C. parece-nos merecedor da
censura constitucional por força da proibição da indefesa.
Efectivamente, a “violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o ponto de
vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não
observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a
impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar”[7], a
possibilidade de fazer valer em juízo os seus direitos.
Com o DL n.º 183/2000 o legislador, confessadamente, fez prevalecer sobre o
interesse do réu na seriedade da citação o interesse do autor na rapidez.
Não se pode sequer dizer que o legislador tornou rápido o acto de citação,
devendo antes concluir-se que o legislador “apenas” conseguiu tomar mais rápida
a fase processual da citação, por ser de ficcionar em certos casos a citação do
réu. Ou seja, para ultrapassar um problema de morosidade processual sentido na
nossa sociedade, e cuja causa estará muitas vezes na fase da citação, o
legislador entendeu que em certos casos se justifica supor e/ou ficcionar a
citação do réu, dando de barato que a este foi dada notícia da propositura da
acção (e em certos casos tal suposição ou ficção de citação nem sequer pode ser
ilidida através de prova em contrário apresentada pelo réu – como é o caso do
art.º 236.°-A, n.º 2, do C.P.C. –, situação esta que não está em questão no caso
que nos ocupa).
É assim para nós de linear clareza que a citação do réu através do aviso deixado
na caixa de correio, nos termos dos art.ºs 236.°-A, n.ºs 6 e 7, art.º 238.°, n.º
3, e 238.°-A, n.ºs 3 e 4, do C.P.C., padece de inconstitucionalidade material,
por violação rude, grosseira e crassa da proibição da indefesa estabelecida no
art.º 20.° da C.R.P.[8].
Tal forma de citação não dá a garantia mínima de que o réu foi intimado e
advertido de que contra si foi instaurado um processo, tanto mais quanto é certo
que nos autos existe informação policial que refere ser desconhecido o paradeiro
do citando desde o ano de 2000.
Efectivamente (e apesar de observadas estrita e rigorosamente as regras dos
referidos artigos), não se pode, em boa fé, concluir que ao interveniente foi
dado conhecimento do processo e que foi chamado para se defender – uma carta
simples depositada na caixa do correio de residências onde a informação policial
constante nos autos refere que ele não reside. Não pode assim o tribunal
fundadamente concluir ou sequer presumir[9] que o interveniente tomou
conhecimento da intimação que lhe foi dirigida.
No nosso ordenamento jurídico, a citação é um acto dotado da autoridade própria
do poder judicial, pois além de conter uma intimação, contém também efeitos
cominatórios.
Desta forma, entende-se que a proibição da indefesa consagrada no art.º 20.º da
C.R.P. implicará que sejam desaplicadas (art.º 207.° da C.R.P.) as normas
relativas à citação por via postal simples. Tal desaplicação por
inconstitucionalidade material implicará assim, no caso dos autos, e havendo já
a notícia de que a morada do interveniente é desconhecida, que se recorra à sua
citação edital (pois que se deve concluir que a citação feita pela secretaria, e
uma vez que o interveniente não interveio no processo, não obedece às
formalidades legais – considerando a desaplicação dos mencionados art.ºs
236.°-A, n.ºs 6 e 7, e art.º 238.°, n.º 3, do C.P.C.).»
2.De tal despacho trouxe o Ministério Público junto daquele Tribunal recurso de
constitucionalidade, interposto ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do
artigo 70.º e n.ºs 1 e 3 do artigo 72.º da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional), para
reapreciação do juízo de inconstitucionalidade material aí proferido sobre as
indicadas normas.
Admitido o recurso, o Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal
encerrou assim as suas alegações:
“1 – São inconstitucionais, por violação dos princípios da ‘proibição da
indefesa e da garantia do processo equitativo’, contidos no artigo 20.º da
Constituição da República Portuguesa, as normas constantes dos artigos 238.º,
n.º 3, e 236.º-A, n.ºs 6 e 7, do Código de Processo Civil, na versão emergente
do Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto, enquanto ficcionam a residência do
citando nos vários locais referenciados nas bases de dados a que alude o n.º 1
do artigo 238.º, bastando-se a citação pessoal do réu com o mero depósito de
carta simples nos respectivos receptáculos postais, sujeitando-o a todas as
preclusões e cominações decorrentes de uma eventual revelia, ainda que aí
efectivamente não resida.
2 – E constituindo obviamente sanção desproporcionada para a eventual não
actualização de residência naquelas bases de dados a respectiva condenação ‘de
preceito’, em acção civil que se não relaciona minimamente com as finalidades
subjacentes a tais bases, por a relação material controvertida nada ter a ver
com matéria tributária, circulação automóvel ou relações atinentes à segurança
social.
3 – Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado
pela decisão recorrida.”
Cumpre decidir.
II. Fundamentos
A) Questões prévias
3.A primeira questão prévia que cabe dilucidar prende-se com a revogação,
ulteriormente à decisão recorrida (efectuada pelo artigo 4.º do Decreto-Lei n.º
38/2003, de 8 de Março), do regime de citação por via postal simples. Ora, é
jurisprudência pacífica que os recursos de constitucionalidade mantêm interesse
apesar da revogação dos preceitos a que dizem respeito (v.g. acórdãos n.ºs
354/91, 221/92 e 460/99, publicado, o primeiro, em Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 19.º vol., págs. 577‑584, e os outros disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt), mas pode não ser esse o caso se a decisão a
proferir poder ficar, por força da revogação, destituída de qualquer efeito
útil. Importa, assim, perguntar se a decisão a proferir, uma vez que o regime de
citação por via postal simples se encontra já revogado, não implicará sempre a
mesma sequência procedimental, pois o regime desaplicado já não poderá voltar a
ter aplicação, ainda que a decisão a proferir seja no sentido da não
inconstitucionalidade.
Ora, uma vez que no novo regime, agora em vigor, a inviabilização da citação
postal por carta registada (como ocorre no caso) implica – mesmo em situações de
ausência do citando em parte incerta – outras formalidades para além da citação
edital, não pode dizer-se que da decisão da questão de constitucionalidade não
venham a decorrer diferentes efeitos consoante se conclua no sentido da
constitucionalidade ou da inconstitucionalidade. E tanto basta para justificar a
manutenção do interesse no conhecimento do presente recurso de
constitucionalidade.
4.É a seguinte a redacção das normas impugnadas do Código de Processo Civil:
“Artigo 236.º-A
Citação por via postal simples
1....
2....
3....
4....
5....
6 – O distribuidor do serviço postal procede ao depósito da referida carta na
caixa de correio do citando e lavra uma declaração indicando a data e
confirmando o local exacto desse depósito, remetendo-a de imediato ao tribunal.
7 – Se não for possível proceder ao depósito da carta na caixa de correio do
citando, o distribuidor do serviço postal lavrará nota do incidente, datando-a e
remetendo-a de imediato ao tribunal, excepto no caso do depósito ser inviável em
virtude das dimensões da carta, caso em que deixará um aviso nos termos do n.º 5
do artigo anterior.”
(redacção do Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de
Agosto)
“Artigo 238.º
Frustração da citação por via postal
1....
2....
3 – Se a residência, local de trabalho, sede ou local onde funciona normalmente
a administração do citando, para o qual se endereçou a citação, não coincidir
com o local obtido nas bases de dados de todos os serviços enumerados no n.º 1,
ou se nestas constarem várias residências, locais de trabalho ou sedes,
procede-se à citação por via postal simples para cada um desses locais. ”
(redacção da Lei n.º 30-D/2000, de 20 de Dezembro)
Tal como acontecia no recurso decidido por este Tribunal pelo acórdão n.º
287/2003 (publicado no Diário da República [DR], II Série, de 12 de Julho de
2003), no presente caso “nenhuma delimitação do objecto do recurso é feita no
requerimento de interposição para além da mera indicação da norma (...)”, mas já
“não assim nas alegações produzidas pelo Ministério Público neste Tribunal – com
a síntese feita na conclusão 1.ª”. Todavia, ao contrário do que aí ocorria – em
que no despacho recorrido se não encontrava expressamente a interpretação
questionada sub specie constitutionis pelo Ministério Público –, é, no presente
caso, de aceitar que a interpretação da norma aqui apresentada pelo Ministério
Público corresponda à que foi expressamente perfilhada, e cuja aplicação
recusada por inconstitucionalidade, no despacho sub judice: ou seja, a
interpretação no sentido de que se ficciona “a residência do citando nos vários
locais referenciados nas bases de dados a que alude o n.º 1 do artigo 238.º,
bastando-se a citação pessoal do réu com o mero depósito de carta simples nos
respectivos receptáculos postais”.
O que não corresponde inteiramente a essa interpretação são, porém, os preceitos
a que são imputadas as normas impugnadas: os n.ºs 6 e 7 do artigo 236.º-A do
Código de Processo Civil, dizendo respeito a procedimentos a adoptar pelo
distribuidor do serviço postal – que lhes deu cumprimento num momento anterior à
intervenção do tribunal a quo –, são obviamente indiferentes ao sentido
normativo impugnado, que diz respeito à circunstância de se ficcionar “a
residência do citando nos vários locais referenciados nas bases de dados a que
alude o n.º 1 do artigo 238.º, bastando-se a citação pessoal do réu com o mero
depósito de carta simples nos respectivos receptáculos postais”. E também o n.º
3 do artigo 238.º do mesmo Código diz respeito a procedimentos a adoptar na
citação, já integralmente cumpridos quando o tribunal a quo foi chamado a
intervir.
Não pode, porém, concluir-se que não existem condições para conhecer, no
presente recurso, da constitucionalidade das normas cuja aplicação foi recusada.
Na verdade, o tribunal a quo, ao pôr de lado as referidas normas por
inconstitucionalidade estava a dar cumprimento ao disposto no artigo 483.º do
Código de Processo Civil – “verificar se a citação foi feita com as formalidades
legais [mandando repeti-la] quando encontre irregularidades” –, e, uma vez que
concluiu que a citação é inválida, tendo esta obedecido às formalidades legais,
seriam essas formalidades que padeceriam de inconstitucionalidade.
Podem, assim, autonomizar-se dois problemas prévios à apreciação do presente
recurso: um diria respeito à menor aptidão das normas impugnadas para
sustentarem o sentido normativo impugnado; outro o do raciocínio, que parece ser
o da decisão recorrida, que faz depender o vício (de inconstitucionalidade) das
normas procedimentais dos efeitos (tidos como inconstitucionalmente
insustentáveis) que elas originam. Note-se que nada disto era necessário,
verificando-se que, se se tivesse posto em causa a constitucionalidade do n.º 2
do artigo 238.º-A do Código de Processo Civil, introduzido pelo mesmo
Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto, se estaria a impugnar directamente o
efeito jurídico que o tribunal a quo era chamado a extrair da actuação do
distribuidor postal prevista no n.º 6 do artigo 236.º-A do mesmo Código, tal
como, ao ajuizar da inconstitucionalidade do n.º 3 do mesmo artigo 238.º-A, o
tribunal a quo conseguiria a não produção do efeito jurídico (tido como
constitucionalmente inadmissível) da actuação do distribuidor postal prevista no
n.º 7 do mesmo artigo 236.º-A. Num caso e noutro, o tribunal a quo, dentro do
exercício dos seus poderes, pronunciar-se-ia sobre efeitos jurídicos que lhe
competia estabelecer. Porém, ao transferir o seu juízo para normas situadas como
que “a montante”, que lhe não eram dirigidas e já tinham sido aplicadas, o
tribunal a quo dirigiu o seu juízo de inconstitucionalidade directamente ao
legislador, actuando como órgão de fiscalização abstracta da
constitucionalidade.
De igual modo, nada há seguramente de inconstitucional na imposição, em si
mesma, da diligência prevista pelo n.º 3 do artigo 238.º do Código de Processo
Civil – na versão vigente à altura da decisão e resultante da Lei n.º 30-D/2000,
de 20 de Dezembro (e que se mantém no artigo 244.º do mesmo Código tal como
resultante do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março) –, isto é, de fazer seguir
à tentativa de citação por via postal (registada) uma consulta às bases de dados
da Segurança Social, da Direcção-Geral dos Impostos e da Direcção-Geral de
Viação (sendo até certo que a interpretação normativa que dispensasse a consulta
a essas bases foi, embora em circunstâncias muito especiais, tida por
inconstitucional no já citado acórdão n.º 287/2003), tal como nada de
inconstitucional há em fazer decorrer dessa consulta uma obrigação de citação
por via postal simples para as direcções assim apuradas.
Antes a inconstitucionalidade apenas poderá decorrer, eventualmente, do tipo de
efeito que dessas diligências se pretenda extrair. Porém, em si mesmas, as
normas do artigo 238.º-A (epigrafado “Data e valor da citação por via postal”)
não viram expressamente recusada a sua aplicação – ainda que, em rigor, elas, e
só elas, correspondessem à interpretação que vem presente a este Tribunal como
constitucionalmente desconforme, que diz respeito a este “valor”: ficcionar, em
certos casos injustificadamente, “a citação do réu”.
5.Como o desenrolar processual se deteve no momento em que o tribunal a quo dava
cumprimento ao disposto no artigo 483.º do Código de Processo Civil, há que
apurar qual foi exactamente a norma jurídica, ou dimensão normativa, cuja
aplicação foi recusada, por a ela corresponder o juízo de inconstitucionalidade
que foi formulado pelo tribunal a quo, ainda que a propósito de preceitos menos
adequados para o exprimir. Afigura-se, com efeito, que essa averiguação
corresponde aos poderes deste Tribunal em casos de recusa de aplicação de
normas, até porque, no acórdão n.º 417/95 (publicado em Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 31.º vol., págs. 661-683) já se estabeleceu que
“Deve, na verdade, entender-se que há recurso para o Tribunal Constitucional de
decisões dos tribunais que aplicam o regime estatuído pela norma cuja
inconstitucionalidade foi suscitada, mesmo quando essa aplicação é feita sob a
invocação de outro ou outros preceitos jurídicos”.
Sendo assim em casos de aplicação de normas, também o será em casos de recusa de
aplicação, já que o afastamento de um determinado regime, no seu todo, por
inconstitucionalidade, há-de implicar a competência do Tribunal Constitucional
para estabelecer o preceito ou preceitos em que fez presa o juízo de
inconstitucionalidade normativa formulado na decisão recorrida.
Ora, do que anteriormente se escreveu já resulta que esse preceito seria, em
princípio, o do n.º 2 do artigo 238.º-A do Código de Processo Civil (“Data e
valor da citação por via postal”), na medida em que é ela que verdadeiramente
ficciona a citação pessoal do réu. Dispõe tal preceito:
“2 – A citação realizada ao abrigo do disposto nos n.ºs. 5 e 6 do artigo 236.º-A
e no n.º 2 do artigo anterior considera-se feita no dia em que o distribuidor do
serviço postal depositou a carta na caixa postal do citando ou no dia em que a
depositou na caixa postal do endereço indicado nas bases de dados de todos os
serviços enumerados no n.º 1 do artigo anterior, respectivamente, data essa que
é indicada na declaração que é remetida ao tribunal, e tem-se por efectuada na
pessoa do citando.”
A questão – como se escreveu nos acórdãos n.ºs 335/95 e 508/02 (publicados,
respectivamente, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31.º vol., págs.
531-545, e no DR, II Série, de 26 de Fevereiro de 2003), ambos invocados a este
propósito no referido acórdão n.º 287/03 – seria, pois, a de apurar se a solução
de considerar pessoalmente citado um pretenso co-devedor, através do depósito de
uma carta simples em todas as diversas moradas constantes de bases de dados não
relacionadas com a matéria da relação material controvertida, é
constitucionalmente admissível, à luz dos princípios do contraditório e da
proibição de indefesa e dos princípios da celeridade processual, da segurança e
da paz jurídica.
6.Como se recordou no acórdão n.º 287/2003:
«Relativamente ao formalismo processual do chamamento das partes ao processo
escreveu-se no Acórdão n.º 335/95 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31.º
vol., págs. 531 e segs.), ainda no âmbito do regime anterior à vigência do
Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro:
“Em todas as tramitações de natureza declarativa que conduzem à emissão de um
julgamento (judicium) por parte de um tribunal, tem de existir um debate ou
discussão entre as partes contrapostas, demandante e demandado, havendo o
processo jurídico adequado (a due process of law clause, da tradição
anglo-americana) de garantir que cada uma dessas partes deva ser chamada a dizer
de sua justiça (audiatur et altera pars). E esta exigência alarga-se a todas as
outras tramitações processuais cíveis, salvo contadas excepções, mesmo nos
processos executivos, em especial quando são deduzidas oposições à própria
execução ou à penhora.
(...)
Simplesmente, há situações em que o demandado não pode ser localizado, não
obstante diligências levadas a cabo pelo tribunal, nomeadamente a requerimento
do demandante (desconhecimento do domicílio; ausência do domicílio sem deixar
indicação do paradeiro, por exemplo). Ora, nos processos cíveis – normalmente
quando estão essencialmente em causa pretensões de natureza patrimonial e as
partes são, para a lei, perfeitamente iguais – o legislador tem de prever
mecanismos para evitar que o processo fique parado indefinidamente, à espera de
que o demandado seja localizado e chamado ao processo. Tratando-se de processos
de diferente natureza, por exemplo em processos de natureza penal, as
preocupações de evitar que o processo fique parado à espera de localização do
arguido levam à consagração de outros mecanismos, sendo perfeitamente
compreensível que o grau de exigência quanto a tais mecanismos seja superior,
dados os interesses em causa, nomeadamente a regra constitucional de que o
processo penal assegura todas as garantias de defesa (veja-se o instituto da
contumácia em processo penal).
Relativamente ao processo civil em especial [um] autor italiano citado várias
vezes no despacho recorrido, chama a atenção para que o fenómeno da comunicação
de actos processuais às partes ou a terceiros está sempre dependente de uma
concordância prática entre princípios tendencialmente opostos, entre o chamado
princípio da ‘objectividade do direito’ e o princípio subjectivo do conhecimento
pelo destinatário. Cada ordenamento jurídico pode, ou privilegiar a necessidade
subjectiva do conhecimento desses actos pelo destinatário, com correlativo
sacrifício da exigência de certeza objectiva do direito, ou optar antes pela
tutela da mera cognoscibilidade desses actos de comunicação através de uma
publicitação suficiente (por exemplo, citação ou notificação editais com
eventual ampliação dos prazos para reacção dos destinatários), sacrificando o
efectivo conhecimento subjectivo. Normalmente, cada ordem jurídica acaba por
consagrar soluções balanceadas ou de compromisso entre as lógicas extremas
destes dois princípios (Ob. cit., págs. 468 e seguintes)”.»
E no acórdão n.º 508/02, também transcrito no acórdão n.º 287/03, escreveu-se:
«“(...) o legislador tem de prever mecanismos para evitar que o processo fique
parado indefinidamente, à espera de que o demandado seja localizado e chamado ao
processo”. Há que conciliar e equilibrar os vários princípios e interesses em
jogo, nomeadamente os do contraditório e da referida proibição da indefesa com
aquele outro princípio da celeridade processual e ainda com os princípios da
segurança e da paz jurídica, que são valores e princípios de igual relevância e
constitucionalmente protegidos “e não permitir que o processo se arraste
indefinidamente em investigações exaustivas e infindáveis ou que as mesmas se
possam reabrir ou efectuar novamente a qualquer momento no decurso do processo,
o que poderia ter consequências desestabilizadoras e frustrar assim o alcance da
justiça”.»
Acontece, porém, que, no presente caso, as cartas simples de citação do chamado
foram todas devolvidas ao processo: duas substituídas por “aviso nos termos do
n.º 5 do artigo 236.º”, tal como previsto no n.º 3 do artigo 238.º-A do Código
de Processo Civil, e outra com a indicação de que o chamado não residia nessa
morada. Não tendo, pois, a norma aplicável ao caso sido a da regra do n.º 2 do
artigo 238.º-A, mas sim a da excepção do n.º 4 desse mesmo artigo, assim
redigida:
“4 – Na situação prevista no n.º 3 do artigo anterior, [diferentes residências
nas diferentes bases de dados] a citação considera-se feita no dia e no local em
que o distribuidor do serviço postal depositar a carta na caixa postal do último
endereço para o qual seja remetido ou, se ocorrer a circunstância prevista no
número anterior, no 8.º dia posterior à data do aviso que é deixado pelo
distribuidor do serviço postal no último dos locais para os quais são remetidas
as várias cartas, excepto se o réu acusar a recepção da carta num outro local.”
Tal não interfere, no entanto, na delimitação entre os referidos princípios
opostos, que não actuam diferentemente nos casos dos n.ºs 2 e 4 do dito artigo
238.º-A do Código de Processo Civil (na versão resultante do Decreto-Lei n.º
183/2000). Isso mesmo foi devidamente salientado nas alegações do recorrente
neste Tribunal, dizendo-se:
“Na verdade, os n.ºs 2 a 4 do artigo 238.º-A consideram integralmente aplicável
à citação por via postal simples o regime prescrito em sede de ‘citação
pessoal’, presumindo efectivo e oportuno conhecimento pelo citando do teor da
carta de citação, como simples decorrência da mera certificação tabelar de
depósito da carta por funcionário obviamente desprovido de ‘fé pública’, criando
para o réu o ónus de realizar prova convincente de um facto negativo (o não
efectivo e oportuno recebimento da carta), numa situação em que não é plausível
a existência de prova testemunhal (não estando naturalmente radicado nos hábitos
correntes a abertura da caixa do correio necessariamente perante testemunhas) e
com uma possível dilação significativa entre a data certificada como a do
depósito da carta e aquele em que se invoca a falta de citação (decorrente de o
réu revel, como vimos, só ser notificado, quando muito, da decisão final
condenatória ou do acto de efectivação da penhora) – e sendo, por motivos
evidentes, desprovida de sentido prático a ‘acareação’ entre o funcionário (que
todos os dias depositará seguramente centenas de cartas) e o citando.”
Estabelecido, pois, o sentido da recusa de aplicação, e identificado esse
sentido com os preceitos dos n.ºs 2 a 4 do artigo 238.º-A – preferindo este n.º
4 por, dispondo ambos sobre o momento da citação por via postal, constituir este
a excepção à regra do n.º 2, e estar em causa nos presentes autos –, o que
importa apurar agora é se é constitucionalmente conforme uma tal solução: isto
é, o referido artigo 238.º-A, n.º 4, na medida em que considera efectuada uma
citação pessoal “no 8.º dia posterior à data do aviso que é deixado pelo
distribuidor do serviço postal no último dos locais para os quais são remetidas
as várias cartas” simples (excepto se o chamado à autoria acusar a recepção da
carta num outro local), na sequência de, em incidente enxertado em acção civil
de condenação, com processo comum, se ter frustrado a citação por carta postal
registada, e depois de obtida informação sobre o domicílio do citando nas bases
de dados da Segurança Social, da Direcção-Geral dos Impostos e da Direcção-Geral
de Viação.
B) Questão de constitucionalidade
7.Apreciando a questão de constitucionalidade, nota-se que, contra a
conformidade constitucional da norma em causa concorrem, no presente caso,
sobretudo duas circunstâncias: a primeira, resultante dos efeitos cominatórios
da abstenção do chamado (nos termos do despacho que admitiu o chamamento,
decorrentes do disposto no artigo 328.º do Código de Processo Civil) que, não
menos relevantes do que os legalmente impostos ao réu em revelia, hão-de, para
poderem ser considerados conformes com a proibição da indefesa, depender de uma
possibilidade efectiva de intervir no processo, que a solução normativa em causa
não salvaguarda; a segunda, resultante de um regime gizado e criado para
situações em que as partes de um contrato estabeleciam um domicílio convencional
para contratos que originassem obrigações pecuniárias de valor limitado vir a
ser declarado aplicável, e aplicado, em toda e qualquer acção, independentemente
da sua natureza e do valor dos bens em litígio e, até, da posição processual do
citando.
O primeiro aspecto contende, como se disse, com a proibição de indefesa, “sendo
pacífico o entendimento de que a proibição de indefesa se contém no princípio
mais vasto de acesso ao direito e aos tribunais, constante do artigo 20.º da lei
fundamental”, como se escreveu no já referido acórdão n.º 287/03 (repetindo,
aliás, o acórdão n.º 440/94, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional,
vol. 28.º, págs. 319-335), onde se acrescentou, citando Gomes Canotilho e Vital
Moreira, que esta proibição de indefesa “consiste na privação ou limitação do
direito de defesa do particular perante órgãos judiciais, junto dos quais se
discutem questões que lhes dizem respeito. A violação do direito à tutela
judicial efectiva, sob o ponto de vista da limitação do direito de defesa,
verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de
princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer
o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus
interesses”.
O segundo aspecto prende-se sobretudo com a intervenção do princípio da
proporcionalidade na limitação de um direito: o direito de acesso à justiça na
dimensão antes referida. No acórdão n.º 200/01 (publicado em Acórdãos do
Tribunal Constitucional, vol. 50.º, págs. 321-345) escreveu-se:
“relativamente às restrições de direitos, liberdades e garantias, a exigência de
proporcionalidade resulta do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República.
Mas o princípio da proporcionalidade, enquanto princípio geral de limitação do
poder público pode ancorar-se no princípio geral do Estado de Direito, impondo
limites resultantes da avaliação da relação entre os fins e as medidas públicas,
devendo o Estado-legislador e o Estado-administrador adequar a sua projectada
acção aos fins pretendidos, e não configurar as medidas que se tornam
desnecessária ou excessivamente restritivas.”
Seguindo de perto a argumentação do acórdão n.º 1182/96 (publicado em Acórdãos
do Tribunal Constitucional, vol. 35.º, págs. 447-459), dir-se-á que a
prossecução dos interesses constitucionalmente protegidos da segurança e da paz
jurídica, bem como o da celeridade processual, podem, obviamente, implicar a
adopção de mecanismos que obstem a que os processos cíveis – é deles que se
trata – fiquem indefinidamente parados à espera de que os intervenientes
processuais sejam localizados, chamados ao processo e presentes a este.
O que há que averiguar, porém, é se a compressão, pela solução normativa em
apreço, dos direitos de acesso à justiça destes intervenientes processuais,
traduzidos na regra do contraditório, na proibição da indefesa, e no direito a
um processo equitativo, se situa ainda dentro de limites razoáveis.
Assim, “[n]um primeiro momento perguntar-se-á se a medida legislativa em causa
[no nosso caso, a criação de um mecanismo supletivo de citação, em todas as
acções cíveis, análogo ao criado, a título principal, para as acções para
cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato reduzido a escrito
em que se tenha ‘fixado’ o domicílio ou sede do citando] é apropriada à
prossecução do fim a ela subjacente (v. Gomes Canotilho, Direito Constitucional,
6.ª ed., Coimbra, 1993, pp. 382-383)”.
Sendo esse fim o combate à morosidade processual e o reforço, por essa via, da
eficácia das formas de tutela jurisdicional das obrigações jurídicas, como
proclamavam os preâmbulos do Decreto-Lei n.º 383/99, de 23 de Setembro, e do
Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto, pode considerar-se tal medida
adequada ao fim em vista, até perante os dados do Observatório Permanente da
Justiça Portuguesa de Julho de 2001, já transpostos para o acórdão n.º 287/03:
“Aumentou o número de citações efectivamente realizadas (actualmente menos de 1%
dos casos não resultam em citação válida); Diminuiu o número de citações
devolvidas; Tornou-se o processo, na maioria dos casos, um pouco mais célere;
Diminuiu o trabalho das secretarias de serviço externo.”
Todavia, “[s]eguidamente haverá que perguntar se essa opção, nos seus exactos
termos, significou a ‘menor desvantagem possível’ para a posição fundamental
decorrente do direito de acesso aos tribunais. Aqui, equacionando-se se o
legislador ‘poderia ter adoptado outro meio igualmente eficaz e menos
desvantajoso para os cidadãos’ (ibidem), dir-se-á que outros meios são pensáveis
[...]”. Assim, a alternativa configurada pelo legislador do Decreto-Lei n.º
38/2003, de 8 de Março, foi, antes, a da criação da “citação por solicitador de
execução ou funcionário judicial”. Mas, só por si, tal não tem de traduzir-se
num juízo legislativo sobre a (des)necessidade da solução anteriormente
adoptada, muito menos sobre a sua (in)constitucionalidade.
Num terceiro momento, há, “então, que pensar em termos de ‘proporcionalidade em
sentido restrito’, questionando-se ‘se o resultado obtido (...) é proporcional à
carga coactiva que comporta (ibidem)’ ”.
8.Ora, a ponderação de meios e fins a que assim somos conduzidos, em
fiscalização concreta e incidental da constitucionalidade, há-de ter presente as
várias particularidades do caso em que a norma em questão foi desaplicada: a) a
quantia envolvida no processo, que é elevada (85.880.278$00); b) o facto de se
ter apurado que o citando já não residia nos diferentes locais em que se
presumia a sua residência; c) o facto de se não estar perante uma situação de
domicílio convencional ou electivo (artigo 84.º do Código Civil); d) a
circunstância de a posição processual do citando, como chamado, poder implicar,
nos termos em que o chamamento foi feito, a formação de caso julgado, mesmo sem
a sua intervenção no processo. Mas também ainda os factos, igualmente
relevantes: e) de antes se ter tentado uma citação por carta registada com aviso
de recepção; f) de, gorada esta, se ter tentado citação através de funcionário
judicial; g) de, a ser julgado inconstitucional o regime de citação por via
postal simples, a seguir se ter de recorrer a outra forma de citação (como foi
determinado no despacho recorrido, ou como resulta da reforma do processo civil
operada pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março).
Analisando o regime da citação em processo civil., Carlos Lopes do Rego (“Os
Princípios Constitucionais da Proibição da Indefesa, da Proporcionalidade dos
Ónus e Cominações e o Regime da Citação em Processo Civil”, in Estudos em
Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra, 2003, p. 857)
enumera “os efeitos cominatórios e preclusivos associados à revelia do réu” que,
juntamente com o alargamento do âmbito de aplicação do regime de citação por via
postal simples para fora do círculo de acções ‘de massa’ e de ‘reduzido valor’
em que surgiu no Decreto‑Lei n.º 383/99, de 23 de Setembro, determinavam que tal
regime fosse “um exemplo de violação manifesta e paradigmática dos princípios
constitucionais” (do contraditório e do processo equitativo).
No presente caso, as primeiras quatro circunstâncias acima elencadas contribuem
para corroborar, no caso, uma tal conclusão, atendendo a que se está perante
situação em que é maior o risco de, sem intervenção processual, o crédito em
causa, aliás potencialmente elevado, se poder impor ao chamado; e a que, nos
termos do artigo 328.º do Código de Processo Civil (cuja redacção provém do
Decreto-Lei n.º 329‑A/95, de 12 de Dezembro, para o seu n.º 1, e do Decreto-Lei
n.º 180/96, de 25 de Setembro, para o seu n.º 2, e, portanto, vigorava no
momento da decisão recorrida), a sentença constitui, em determinadas situações,
caso julgado em relação ao chamado, mesmo sem este intervir no processo, sem que
caiba a este Tribunal estabelecer qual o entendimento adequado quanto à
subsunção do caso dos autos às previsões das normas dos nºs 1 (regra) e 2
(excepções) do artigo 328.º do Código de Processo Civil – sendo certo que só por
causa da referida possibilidade de se estabelecer caso julgado faz sentido que o
tribunal a quo tenha recusado a aplicação, “por inconstitucionalidade material
(violação do princípio da indefesa, consagrado no art.º 20.º da C.R.P.)” das
normas que regulavam o regime (do suprimento da falta) de notificação pessoal
(artigos 236.º-A, n.ºs 6 e 7, e 238.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).
Conclui-se, assim, que é de reiterar o juízo de inconstitucionalidade formulado
no tribunal a quo na decisão recorrida, pelas razões aí aduzidas, acima
transcritas, e pelas que foram apontadas pelo Ministério Público nas suas
alegações, onde se salientou:
«(…)
c) Finalmente, consideramos manifestamente excessiva e desproporcionada a
aplicação do regime de citação por via postal simples a toda e qualquer acção,
independentemente da sua natureza e do valor dos bens em litígio: na verdade, e
por força do estatuído no artigo 238.°, mesmo fora do âmbito das acções de
conteúdo estritamente pecuniário (a que alude o artigo 236.°-A) poderá o réu ser
citado por via postal simples, bastando para tanto, que se haja frustrado a
citação por via postal registada no domicílio indicado pelo autor.
Não se trata, pois, apenas – como sucedeu no âmbito do Decreto-Lei n.º 383/99 –
de tolerar, como “ultima ratio”, uma citação por via postal simples (assente na
mera “certificação” pelo carteiro do depósito da carta no receptáculo postal do
citando) nas acções “de massa” (que estatisticamente “afogam” os tribunais) e de
“reduzido valor” (que no nosso sistema adjectivo se convencionou coincidir com a
alçada da 1.ª instância) – e em que obviamente os riscos – e as consequências –
para o citando de uma improcedência da arguição do vício de falta de citação são
naturalmente bem menores do que a procedência de uma acção atinente a bens ou
direitos pessoais ou à condenação em invocado débito de dezenas (ou centenas) de
milhares de contos, comprometendo irremediavel e definitivamente a sobrevivência
económica do réu e seu agregado familiar .
III – O caso dos autos ilustra, de forma paradigmática, os riscos emergentes do
regime inovatoriamente estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 183/2000 – e que,
apesar da sua evidência, só muito tardiamente o legislador veio reconhecer – na
perspectiva de uma tutela minimamente consistente e adequada do “direito de
defesa” do réu em processo civil: na verdade, numa acção ordinária, no valor de
85.880.278$00, considera-se citado pessoalmente – e integralmente sujeito às
respectivas cominações – um pretenso co-devedor, mediante mero depósito de carta
simples nas moradas “alternativas” averiguadas mediante informação prestada
pelas entidades referidas no artigo 238.°, n.º 1, do Código de Processo Civil –
ficcionando-se a residência em alguns desses locais, apesar de se ter apurado já
nos autos que o citando há muito ali não residia!
Como bem se afirma na decisão recorrida, “não se pode, em boa fé, concluir que
ao interveniente foi dado conhecimento do processo e que foi chamado para se
defender” – implicando tal regime efectivamente uma “violação rude, grosseira e
crassa da proibição da indefesa estabelecida no artigo 20.° da Constituição da
República Portuguesa”. (…)»
Acompanham-se estas considerações, não contrariadas, aliás, pela anterior
jurisprudência do Tribunal Constitucional. Com efeito, embora este já tenha
considerado (no acórdão n.º 287/03) desconforme com a Constituição o regime de
citação através de carta simples em algumas situações, fê-lo apenas – para
retomar uma expressão citada no acórdão n.º 335/95 - quando o tribunal não “haja
efectivamente esgotado as possibilidades práticas razoáveis para localizar o
demandado e realizar a respectiva citação pessoal”, razão pela qual não se pode
invocar essa jurisprudência como precedente da presente decisão. Por outro lado,
também aqueles acórdãos em que o Tribunal não concluiu pela
inconstitucionalidade (acórdãos n.ºs 91/2004 e 243/2005) não apresentam
identidade de elementos essenciais com o que aqui se discute.
Ponderadas as considerações referidas e as expendidas para fundamentar uma e
outra daquelas anteriores posições do Tribunal, entende-se, pois, que é de
confirmar a decisão recorrida quanto ao julgamento de inconstitucionalidade.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 20.º, n.ºs 1 e 4, e 18.º,
n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 238.º-A, n.º
4, do Código de Processo Civil, na redacção do Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10
de Agosto, quando aplicada em casos de intervenção provocada em que a não
intervenção do chamado no processo não impeça que se constitua, quanto a ele,
caso julgado;
b) Em consequência, confirmar a decisão recorrida no que à questão de
constitucionalidade diz respeito.
Lisboa, 7 de Fevereiro de 2006
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos
[1]Cfr. art.º 228.º, n.º 1, do C.P.C..
[2] Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2.º, pág. 617.
[3] Autor, obra e local citados na nota anterior.
[4] Direito de acção enquanto direito subjectivo de intentar em juízo acção
judicial com vista a fazer reconhecer determinado direito ou mesmo a executá-lo
coercivamente (art.º 2.º do C.P.C.).
[5] No dizer de J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, nota V ao art.º 20.º, pág.
163, tal é um direito de dimensão ineliminável do direito a uma tutela judicial
efectiva, que se consubstancia no direito de obter do órgão jurisdicional
competente uma decisão dentro dos prazos legais pré-estabelecidos ou, caso estes
não estejam estabelecidos, em lapso de tempo proporcional e adequado à
complexidade do processo.
[6] Proibição da indefesa é a expressão utilizada por J. J. Gomes Canotilho e
Vital Moreira, obra citada na nota anterior, pág. 164, para referir o direito à
tutela judicial efectiva, já que não pode ser nenhum particular privado ou
limitado no exercício do direito de defesa perante qualquer órgão judicial junto
do qual se discutam questões que lhe dizem respeito.
[7] Autores, obra e local referidos na nota anterior.
[8] Deste princípio decorre que o Estado deve dotar-se de normas processuais
aptas e adequadas a permitir que o particular tenha conhecimento efectivo e real
de que contra ele foi instaurado um processo; as normas processuais devem ser
tais que assegurem com a necessária segurança que, sendo observadas, o réu é
efectivamente chamado ao processo para se defender.
[9] E só pode falar-se de presunção quando estejam preenchidos os requisitos do
art.º 349.º do C.C..