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Processo n.º 81/05
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Rui Moura Ramos
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I – A Causa
1. A B. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro
(LTC), do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 9/12/2004 (fls.
342/345), que desatendeu uma suscitação de inconstitucionalidade que aquela
entidade bancária incluíra nas alegações do recurso que interpusera para aquele
Tribunal (alegações constantes de fls. 317/353).
Tal suscitação expressa-se, na parte conclusiva dessas alegações,
nos seguintes termos:
“[...] 12º - [...], as normas – conjugadas – dos nºs. 2 e 3 do artigo 442º do
Código Civil, ao permitirem que seja tido em conta – para efeitos de cálculo do
valor da indemnização – o valor do imóvel em função do preço acordado pelas
partes na data da celebração do contrato-promessa de compra e venda é
inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 13º e 62º da Constituição
da República Portuguesa na medida em que tal constitui uma clara violação do
princípio da igualdade e do princípio da não expropriação injustificada e
desproporcionada do património.
13º - O disposto nos artigos 442º, nº 3 e 755º, alínea f) – conjugado com o
artigo 759º -, todos do Código Civil, aprovados pelos Decreto-Lei nº 236/80, de
17 de Julho e Decreto-Lei nº 379/86, de 11 de Novembro, é inconstitucional,
porque viola a Constituição da República Portuguesa, nomeadamente o disposto nos
seus artigos 13º, 62º, 167º e 168º [...]”
[transcrição de fls. 35; a referência aos artigos 167º e 168º, da CRP deve ser
reportada (v. fls. 359) respectivamente aos artigos 164º e 165º]
Para integral compreensão da situação, importa proceder a um relato sucinto da
marcha do processo até à chegada a este Tribunal.
1.1. Está em causa uma acção declarativa de condenação, proposta por C., contra
D. e mulher E. [estes últimos citados editalmente e, por isso, representados
pelo Ministério Público, nos termos do artigo 15º, nº 1 do Código de Processo
Civil (CPC), v. fl. 37] e a ora recorrente B..
Pediu-se nesta acção a condenação dos réus, nos seguintes termos:
“a) O D. e mulher a verem resolvido o contrato-promessa celebrado entre o
primeiro e o A e, em consequência, a pagarem-lhe a quantia de 6.430.000$00 [...]
devendo declarar-se [...] que os aludidos créditos estão cobertos por direito de
retenção sobre a fracção autónoma identificada [...];
b) a B. a reconhecer os direitos de crédito do A. e respectiva garantia real,
referidos na alínea precedente.”
[transcrição da petição inicial de fls. 5]
Originou esta acção, que foi contestada apenas pela ré B., a seguinte condenação
em 1ª instância, transcrevendo-se desta o trecho que apresenta relevância para o
presente recurso:
“[...] condena [r] os réus, D. e mulher, E., a pagar ao A [...], a quantia de
Esc. 6.130.000$00, acrescida de juros de mora [...];
[...] Declarar a existência do direito de retenção a favor do A sobre a fracção
prometida vender, como garantia do crédito referido [...], condenando a ré B., a
reconhecer esse direito.”
[v. fls. 108 e vº.]
1.2. Apelou, então, a B. desta Sentença, incluindo nas respectivas alegações a
seguinte conclusão:
“[...]
14ª - O disposto nos artigos 442º, nº 3, 755º, alínea f) – conjugado com o
artigo 759º -, todos do Código Civil, aprovados pelos Decreto-Lei nº 236/80, de
17 de Julho e Decreto-Lei nº 379/86, de 11 de Novembro, é inconstitucional
porque viola a Constituição da República Portuguesa, nomeadamente o disposto nos
seus artigos 13º, 62º, 167º e 168º [...]”
Foi esta pretensão da recorrente julgada insubsistente pelo Tribunal da Relação
de Lisboa (trecho do Acórdão da Relação constante de fls. 273/274) que, no
essencial, confirmou o decidido na 1ª instância.
1. 3. Surge, então, o recurso para o STJ, contendo a suscitação de
inconstitucionalidade de fls. 351 acima transcrita e que originou a decisão que
a B. pretende impugnar através do presente recurso. Desta importa reter –
porque se reporta aos aspectos de constitucionalidade – a seguinte passagem:
“[...]
A recorrente insurge-se, ainda, contra a falta de proporcionalidade da
indemnização prevista no nº 2 do artº 442º do CC para o incumprimento do
contrato-promessa, em caso de tradição da coisa.
Cremos, pelo contrário, que o legislador pretendeu desencorajar o incumprimento,
nas situações em que o pagamento do dobro do sinal se mostra economicamente
vantajoso para o promitente vendedor.
A indemnização contra a qual se insurge a recorrente, por cujo pagamento não é
sequer responsável, coloca o promitente-comprador na situação económica em que
ficaria se fosse cumprido o contrato, recebe o valor da coisa em lugar desta,
descontado o preço e restituído o que houver pago.
A indemnização é justa, equilibrada e proporcional, pois atribui ao
promitente-comprador, não responsável pelo incumprimento, a mesma vantagem
económica que gozaria com o cumprimento do contrato.
Não é a indemnização que está desequilibrada, mas antes o negócio que foi
altamente vantajoso, face à extraordinária valorização da fracção objecto do
contrato, nada podendo o Tribunal fazer quanto a este ponto, até porque os RR
vinculados pelo contrato não pediram a sua resolução com base na alteração
anormal das circunstâncias em que contrataram (artº 437 CC).
O A não exerceu abusivamente o seu direito e não se percebe como é que o artº
442º, nº 2 e 3, do CC, pode violar os princípios constitucionais consagrados nos
artº. 13º e 62º da CRP, da igualdade perante a lei e direito à propriedade
privada, respectivamente.
O direito de retenção de que goza o A para garantia do seu crédito sobre os RR
D. e E. resulta do artº 755º, nº 1 al. f), do CC.
A recorrente não discorda propriamente do direito de retenção de que goza o
eventual crédito do A, mas sim do preceituado pelo artº. 759º, nº 2 do CC, que o
gradua à frente da hipoteca, mesmo que registada anteriormente.
É desta prevalência que a recorrente discorda, acusando o preceito em causa de
inconstitucionalidade material e orgânica.
No entanto, o acórdão recorrido limitou-se, de acordo, aliás, com o pedido, a
reconhecer o direito de retenção do A. para garantia do seu crédito sobre os RR
D. e E., sem o graduar em concorrência com a hipoteca voluntária de que goza o
crédito da recorrente.
Não tem, pois, qualquer cabimento a pronúncia deste Tribunal sobre a
constitucionalidade do artº. 759º, nº 2 do CC, que não foi aplicado na decisão
recorrida. [...]”
[transcrição de fls. 364/365].
1. 4. É a esta última decisão que se refere, como se indicou, o presente recurso
de constitucionalidade, pretendendo a B. (cfr. o requerimento de interposição de
fls. 378/381) que este Tribunal aprecie “duas inconstitucionalidades”, a saber:
“[...]
a) uma, a referente ao disposto no artigo 442º, nºs 2 e 3 do CC, no que concerne
ao facto de ser inconstitucional a fixação de uma indemnização derivada do
incumprimento do contrato-promessa de compra e venda nos termos constantes de
essas normas [...]; e
b) outra, a referente ao «direito de retenção» previsto no artigo 442º do mesmo
Código, norma esta conjugada com o disposto no artigo 755º, nºa, alínea f) e
artigo 759º ambos do mesmo Código [...].”
Estas normas infraconstitucionais violariam, e voltamos a citar o requerimento
de interposição de fls. 379:
“[...] o disposto nos artigos 13º, 62º, 164º (anteriormente 167º), 165º
(anteriormente 168º) da CRP, na medida em que violam,
a) quanto à questão da 1ª das referidas inconstitucionalidades: - o princípio da
salvaguarda, garantia e não expropriação da propriedade privada (artigos 13º e
62º da CRP); e
b) quanto à questão da 2ª das referidas inconstitucionalidades: - o princípio da
igualdade, - o princípio da salvaguarda, garantia e não expropriação da
propriedade privada, - o princípio da reserva absoluta e reserva relativa da
competência legislativa (artigos 13º, 62º, 164º (anteriormente 167º) e 165º
(anteriormente 168º) da CRP). [...]”
1. 5. Foi, entretanto, o recurso admitido no STJ (fls. 384) e, chegados os autos
a este Tribunal, proferiu o ora relator o seguinte despacho:
“O processo prossegue para alegações.
Quanto ao objecto do recurso importa ter presente que o recorrente o reporta a
duas questões: a da indemnização pelo incumprimento da promessa; a do direito de
retenção.
A primeira questão tem que ver apenas com o artº 442º, nº 2 do CC, o que exclui,
por não ter sido objecto de aplicação no caso, o nº 3 do mesmo preceito.
A segunda questão, a respeitante ao direito de retenção, prende-se em exclusivo
com o artº 755º, nº 1 alínea f) do CC (relativamente ao qual, aliás, existe
jurisprudência deste Tribunal), não estando em causa neste aspecto, por não
terem sido aplicados os artºs. 442º e 759º do CC.
Fica assim, advertida a recorrente do entendimento do ora relator de que, quanto
à primeira questão, não ocorreu aplicação do disposto no nº 3 do artº 442º do CC
e, quanto à segunda não ocorreu aplicação dos artºs. 442º e 759º do CC.”
Alegou, de seguida, a B., formulando as conclusões que se
transcrevem (omitem-se destas as que se limitam, sem relevância para o presente
recurso, a descrever a situação factual subjacente à causa):
“[...]
6ª - Se o Autor da acção, ora recorrido – promitente comprador – aplicasse, como
um hipotético empréstimo, o valor que ele despendeu (400.000$00 a titulo de
«sinal»), à taxa de juro legal vigente entre 05.03.1987 e a data do
incumprimento contratual (05.03.1996) – a taxa de 15% ao ano vigente até
Setembro de 1995 – teria ele direito a receber (de esse empréstimo) o valor de
540.000$00, ou seja, os juros de 9 anos à taxa de 15% sobre o “capital”
emprestado (de 400.000$00), um valor correspondente a 940.000$00, ou seja, 235%
do que havia despendido e a uma «retribuição» (juros) de 135% do capital
investido (o «sinal» pago);
7ª - O recebimento do valor de 6.130.000$00 atribuído na douta sentença ora em
questão, corresponde a 1.532,5% do valor investido e a da “retribuição” (juros)
de 1.432,5% do capital investido (o «sinal» pago).
8ª - A indemnização derivada do incumprimento contratual de um contrato-promessa
pelo valor indicado na Conclusão antecedente, para além de constituir um
manifesto «abuso de direito», é manifestamente excessiva, desproporcionada e
abusiva e lesiva dos interesses do promitente-vendedor, - e reflexamente, do
credor hipotecário – não sendo nem justa, nem equilibrada nem equitativa,
[...]
10ª - o dano efectivo sofrido pelo promitente-vendedor é infinitamente inferior
a indemnização que a lei permite fixar;
11ª - a atribuição dessa indemnização, nos termos alegados, constitui, em termos
práticos e efectivos – ou seja, no sentido económico – uma clara expropriação do
direito de propriedade dos promitentes-vendedores, na medida em que é
estabelecida uma indemnização a favor do promitente-comprador totalmente
injustificada na perspectiva social das coisas, já que
12ª - o interesse da protecção dos promitentes-compradores não é superior ao
interesse dos promitentes-vendedores e,
13ª - ainda que o fosse, a «medida» legislativa é manifestamente inadequada para
a protecção dos interesses do promitente-comprador, nomeadamente porque não tem
em conta – para o cálculo do valor da indemnização a ser fixada – o valor
objectivo do bem imóvel à data da celebração do contrato-promessa de compra e
venda,
14ª - tanto mais que aqueles ónus e limitações são «protegidos» com a atribuição
aos promitentes-vendedores de um “direito de retenção” e no direito a um
pagamento preferencial (mesmo em detrimento do credor hipotecário anterior).
15ª - Por isso, a disposição do artigo 442º nº 2 do Código Civil que prevê, em
função do que nela se prevê, a fixação de essa indemnização é manifestamente
violadora das mais elementares regras constitucionais, na medida em que viola os
princípios da igualdade (artigo 18º da Constituição da República Portuguesa),
18º nº 2 da mesma CRP (proporcionalidade) e 62º da mesma CRP (tutela e protecção
da propriedade privada).
16ª - E essa violação corresponde, na situação dos autos e a outras de natureza
idêntica – e em virtude de estar em causa “a dignidade da pessoa humana”
relativa ao direito à habitação própria permanente, a uma violação dos
«direitos, liberdades e garantias» dos cidadãos.
17ª - O Decreto-Lei nº 236/80 de 18/07 e o Decreto-Lei nº 379/86, de 11/11 – que
aprovaram o teor do referido artigo 442º nº 2 do Código Civil – violam as
referidas normas constitucionais.
18ª - O Decreto-Lei nº 236/80 de 18/07 e o Decreto-Lei nº 379/86, de 11/11 – que
aprovaram o teor do referido artigo 442º nº 2 do Código Civil – violam ainda o
disposto nos artigos 164º e 165º da CRP, na medida em que esses diplomas foram
aprovados pelo Governo sem que o Governo dispusesse de competência legislativa
para tanto, quer originária quer por autorização da Assembleia da República.
“[...]
19ª - Os Tribunais não deveriam ter, por inconstitucionalidade, invocado e
aplicado o normativo constante do artigo 442º, nº 2 do Código Civil e do
Decreto-Lei nº 236/80, de 18 de Julho e o Decreto-Lei nº 379/86, de 11 de
Novembro.
[...]”
O Ministério Público (que intervém pelas razões indicadas supra no
item 1.1.) alegou, pugnando pela improcedência do recurso e formulando a
seguinte conclusão:
“[...]
1º - A norma constante da actual redacção do nº 2 do artigo 442º do CC, ao
estabelecer os critérios para cálculo da indemnização devida ao
retentor/promitente comprador – assentes no valor actual e objectivo dos bens
sobre que incide o contrato – promessa incumprido – não viola qualquer preceito
ou princípio constitucional.
[...]”
II - Fundamentação
2. Estava em causa aquando da interposição do presente recurso – como já foi
dito no despacho de fls. 388 – a suscitação perante o STJ de dois grupos de
questões de inconstitucionalidade. O primeiro destes tinha por referencial
normativo, nos termos em que o recorrente o caracterizou a fls. 378/379, os nºs
2 e 3 do artigo 442º do CC. O segundo grupo, reportado à questão do direito de
retenção, seria formado pela conjugação dos artigos 442º, 755º, nº 1 alínea f) e
759º, todos do CC (v. fl. 379).
Advertida a recorrente relativamente ao entendimento do ora relator sobre quais
as normas que, por terem sido as efectivamente aplicadas, poderiam constituir
objecto do presente recurso (e, concretamente, que estariam excluídas, no
primeiro grupo, o artigo 442º, nº 3 do CC e, no segundo grupo, este mesmo artigo
442º e o artigo 759º do CC), veio a recorrente, no seguimento de tal
advertência, aceitar esse entendimento e restringir, nas conclusões das
respectivas alegações (v. artigo 684º, nº 3 do CPC, aplicável ex vi do disposto
no artigo 69º da LTC), o objecto do recurso à questão da inconstitucionalidade
orgânica (v. conclusão 18ª a fls. 466) e material do artigo 442º, nº 2 do CC.
Tendo presente esta delimitação/redução, importa apreciar o recurso,
consignando-se estar em causa, exclusivamente, o trecho do artigo 442º, nº 2 do
CC, que prevê a opção pelo chamado «valor da coisa» (“[...] ou, se houve
tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, o seu valor, ou o do
direito a transmitir ou a constituir sobre elas, determinado objectivamente, à
data do não cumprimento da promessa, com dedução do preço convencionado, devendo
ainda ser-lhe restituído o sinal e a parte do preço que tenha pago.”).
2.1. Preliminarmente, porém, é útil esclarecer a questão da legitimidade da
recorrente B.. Esta, com efeito, não foi a parte condenada a satisfazer o
montante indemnizatório apurado com base no critério estabelecido no nº 2 do
artigo 442º do CC. Tal prestação impende sobre os promitentes-vendedores
faltosos (que não contestaram nem recorreram). De qualquer forma, embora não
constitua encargo da recorrente esse elemento da condenação, não pode deixar de
se ter em conta que a existência do direito de retenção sobre a fracção predial
objecto da promessa – direito este a cujo reconhecimento a B. foi sucessivamente
condenada – acaba por afectar a posição da recorrente, tornada entretanto
proprietária dessa fracção, vendo-se o direito desta obstaculizado pela
retenção, até satisfação pelos promitentes-vendedores faltosos do montante
indemnizatório determinado em função do preceito questionado.
Sublinha-se este aspecto para caracterizar a posição da recorrente em termos de
interesse em recorrer e, consequentemente, de legitimidade ad recursum. Esta, de
facto, “ao contrário do que é característico da legitimidade processual [...]
não assenta numa relação da parte com o objecto da causa, mas antes nas
consequências que uma decisão pode produzir na esfera jurídica de um sujeito:
este sujeito pode recorrer se a decisão lhe for prejudicial e, portanto, se ele
pretender afastar esse prejuízo através da revogação da decisão pelo tribunal de
recurso” (Miguel Teixeira de Sousa, Legitimidade e Interesse no Recurso de
Fiscalização Concreta da Constitucionalidade, in «Estudos em Homenagem ao Prof.
Doutor Armando M. Marques Guedes», Coimbra, 2004, pág. 948).
Neste caso, como facilmente se intui, a recorrente B. tem um evidente interesse
em esgrimir – aqui em sede de recurso de constitucionalidade – argumentos
respeitantes à indemnização em que foram condenados os promitentes-vendedores
(terceiros relativamente à B.), porque a existência dessa indemnização – e o
respectivo quantum – afecta, através do direito de retenção, a posição daquela
entidade bancária aqui recorrente.
2.2. Passando agora à apreciação da norma em questão – ou seja ao artigo 442º,
nº 2, 2ª parte do CC – e começando pela questão da alegada inconstitucionalidade
orgânica desta (v. conclusão 18ª a fls. 466), remete-se, apontando no sentido da
não verificação desse tipo de desconformidade constitucional, para a
fundamentação constante dos Acórdãos nºs. 374/03, 594/03 (respectivamente no
Diário da República - II Série, de 3/11/2003, págs. 16522/16557 e de
10/01/2005, págs. 1921/1929), 22/04 e 466/04 (disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/). Estes arestos, com efeito,
entenderam que as intervenções legislativas das quais decorreu a disposição aqui
questionada, “não podem ser consideradas como atingindo o núcleo essencial do
direito de propriedade privada, na dimensão que o torna análogo aos direitos,
liberdades e garantias, em termos tais que justifique a extensão do regime
orgânico típico destes “(citação do Acórdão nº 374/03).
2.3. Assim, resta agora encarar a mesma norma na perspectiva de uma eventual
inconstitucionalidade material. Dir-se-á que tudo se prende, nesta vertente
argumentativa, com a chamada indemnização pelo «valor da coisa», nos termos da
redacção introduzida no artigo 442º, nº 2, 2ª parte do CC, pelo Decreto-Lei nº
379/86, de 11 de Novembro, redacção esta que é caracterizada por Pires de Lima e
Antunes Varela, nos seguintes termos:
“[...] Se houve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido o
promitente-adquirente, quando o incumprimento do contrato-promessa seja
imputável à contra parte, pode, em vez de exigir o dobro do sinal ou de requerer
a execução específica, reclamar o valor da coisa [...] «determinada
objectivamente, à data do não cumprimento da promessa, com dedução do preço
convencionado
, devendo ainda ser-lhe restituído o sinal e a parte do preço que tenha pago»
(nº 2, 2ª parte)”.
[Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., Coimbra, 1987, pág. 422]
Relativamente a este regime, traduz-se a argumentação da recorrente no sentido
da inconstitucionalidade material, na imputação de uma violação do princípio da
proporcionalidade e da garantia constitucional do direito de propriedade (v. a
conclusão 15ª a fls. 466, onde são referidos os artigos 18º e 62º da CRP;
note-se, porém, que a recorrente parece ter abandonado a questão do princípio da
igualdade que antes referira; v. fls. 335/336). Tal violação decorreria, se bem
compreendemos a posição da B., da circunstância da disposição referida permitir
a fixação de um quantum indemnizatório – que, sublinha-se de novo, tem por
medida o «valor da coisa», com determinadas deduções – superior ao que qualifica
de “dano efectivo” (v. a conclusão 10ª a fls. 465).
A este propósito importa esclarecer, desde logo, que o controlo normativo
cometido a este Tribunal exclui, como salienta o Ministério Público, qualquer
apreciação do concreto valor alcançado pelas instâncias, designadamente em
termos de saber se este foi o adequado ao valor real dos bens, ou aos prejuízos
efectivamente decorrentes do incumprimento da promessa. Aqui, em sede de
jurisdição constitucional, está em causa (só pode estar) o critério normativo
que subjaz a esse valor e nunca saber se ocorreu qualquer «abuso de direito» por
parte do promitente-comprador. Este – o «abuso de direito» - tem que ver com
exercício concreto de um direito (“«Abuso de direito é [...] uma mera designação
tradicional para o que se poderia dizer «exercício disfuncional de posições
jurídicas»”, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral,
Tomo IV, Coimbra, 2005, pág. 372) e o Tribunal Constitucional aprecia normas e
não a actuação concreta que, com base nessas normas os sujeitos assumem no
exercício das respectivas posições jurídicas. A discussão de tal exercício
esgotou-a a recorrente no STJ.
Ora, vistas as coisas nestes termos, quer encaremos a opção, conferida pelo
artigo 442º, nº 2 do CC, pelo «valor da coisa», em detrimento do dobro do sinal,
como actualização do “cálculo pré-determinado do dano a indemnizar”, quer a
encaremos, diversamente, como reforço da “medida coercitiva indirecta sobre o
promitente-vendedor” (João Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, Coimbra,
1987, págs. 157/158), não oferece qualquer dúvida que o legislador de 1980 e o
de 1986 (com as alterações ao regime do contrato-promessa introduzidas,
sucessivamente, pelos Decretos-Lei nºs. 236/80 e 379/86) teve em vista
objectivos reportados a uma complexa realidade social (a aquisição de habitação
própria mediante contratos-promessa), objectivos estes que, por serem
constitucionalmente aceitáveis e traduzirem soluções equilibradas, não põem em
causa as normas e princípios da Lei Fundamental indicados pela recorrente.
Embora referidas a um outro aspecto da realidade normativa aqui em causa (o
direito de retenção do promitente-comprador) valem aqui, no sentido da
legitimidade dos objectivos prosseguidos pelo legislador ao editar os
Decretos-Lei nºs. 236/80 e 379/86, o essencial das considerações constantes, por
exemplo, do Acórdão nº 594/2003 deste Tribunal (v. especialmente o seu item
11.). É o sentido desta jurisprudência, perfeitamente transponível para a
presente situação, que aqui se reafirma, com a consequente improcedência do
recurso.
III – Decisão
3. Assim, pelo exposto decide-se negar provimento ao recurso
confirmando a decisão recorrida no que à questão de constitucionalidade diz
respeito.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte)
unidades de conta.
Lisboa, 6 de Julho de 2005
Rui Manuel Moura Ramos
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Artur Maurício