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Proc. nº 1058/2004
2ª Secção Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que figura como recorrente A. e como recorrida B., a Relatora proferiu a seguinte Decisão Sumária:
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que figura como recorrente A. e como recorrida B., é submetida à apreciação do Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, a norma constante do nº 1 do artigo 9º do Decreto-Lei nº 64-A/89, nomeadamente o requisito da norma constante do nº 9 do artigo 10º do Decreto-Lei nº 64-A/89, quando interpretadas com o sentido de permitir que a justificação do despedimento possa vir a ser declarada lícita pelo Tribunal sem que exista qualquer alegação e prova de factos, por parte da entidade patronal, demonstrando que o comportamento do trabalhador tivesse causado quaisquer tipo de consequências na relação de trabalho”.
Cumpre apreciar.
2. O Tribunal da Relação do Porto, no acórdão de 24 de Maio de 2004, considerou o seguinte:
Se a Ré não demonstrou os pressupostos da licitude do despedimento do Autor
Defende o apelante que tendo em conta a matéria provada, em especial a constante dos pontos 36 a 43 e 34, há que concluir que a Ré não logrou fazer a prova de que o dito comportamento do Autor tomou prática e imediatamente impossível a relação de trabalho, já que nem sequer foram alegados factos demonstrando essa impossibilidade. Analisemos então. Conforme refere Pedro Furtado Martins ...«na base da justa causa há-de estar um comportamento culposo do trabalhador, a verdade é que esse comportamento, por si só, não constitui a situação de justa causa»...«decisivo é averiguar se esse comportamento foi de tal forma grave que tenha por consequência tomar impossível a prossecução da relação de trabalho» - Cessação do Contrato de Trabalho, p.
85. E sendo o conceito de justa causa indeterminado, a sua concretização «deverá operar caso a caso, numa tipologia exemplificada pelo art. 9º, nº 2, do mesmo diploma legal; os termos daí resultantes devem, no entanto e ainda que em diversa medida, ser reponderados à luz da fórmula de base. Ou seja: há que considerar se, uma vez operada uma concreta causa de despedimento, ela toma imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho» - A. Menezes Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho, pgs. 819 e 820. E se de algum modo o art. 9 da L.C.C.T. veio no nº 2 concretizar a noção de justa causa, verifica-se que nalguns casos aí previstos tal noção aparece bastante precisa, enquanto noutros ela é ainda indeterminada, havendo, neste
último caso, que recorrer ao conceito geral previsto no no1 da citada disposição legal. No caso dos autos a Ré alegou factos a integrar a conduta do Autor, traduzidos na desobediência ilegítima e nas injúrias. Tais comportamentos estão previstos nas als. a) e i) do nº 2 do art. 9 da L.C.C.T.. Se esses factos - que a Ré alegou - são suficientes para se chegar ao conceito de justa causa, ou seja, à impossibilidade de manutenção da relação de trabalho,
é questão que se terá de apreciar. Logo, não colhe a tese do Autor de que a Ré não teria alegado factos demonstrativos que o seu comportamento tornava irremediável a manutenção da relação laboral. No fundo, e como já referido, tudo passa pela maior ou menor concretização dos factos causas - que integram a justa causa: uns são mais precisos, outros não, e neste último caso têm de ser «completados» com outros elementos factuais. Por isso, se irá passar de imediato à análise da existência de justa causa no caso concreto.
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VI
Da justa causa.
Nos termos do art. 20 nº 1 al. a) da L.C.T. o trabalhador deve «respeitar e tratar com urbanidade e lealdade a entidade patronal, os superiores hierárquicos, os companheiros de trabalho e as demais pessoas que estejam ou entrem em relações com a empresa». A matéria dada como provada conduz à conclusão de que o Autor violou o dever de urbanidade consagrado no citado artigo, quer no que respeita ao seu superior hierárquico quer no que respeita ás pessoas que foram reparar a máquina na empresa Ré. Mas tal comportamento conduz necessariamente ao despedimento? Quer a doutrina, quer a jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal considera que a justa causa só pode ter-se por verificada quando não seja exigível ao empregador, ponderadas todas as circunstâncias que no caso relevem, a permanência do contrato - M. Fernandes, Noções Fundamentais de Direito de Trabalho, ano 1977, p. 280; Pedro Furtado Martins, Cessação do Contrato de Trabalho, p. 85; Motta Veiga, Lições de Direito do Trabalho, pgs. 537 e 538 e Ac. do S.T.J. de 19.3.03 na C.J. ac. do S.T.J., tomo 1, p. 277. No caso dos autos provou-se que o Autor foi admitido ao serviço da Ré em Junho de 1994, não tem passado disciplinar, é de modesta condição sócio-cultural, um profissional muito experiente, competente, diligente, integrado na organização produtiva da Ré, tendo sempre mantido um bom relacionamento com os seus colegas de trabalho. Mais se provou que o Autor, por lealdade à sua entidade patronal, apenas pretendeu alertar para o facto da empresa C. não estar a fazer um trabalho sério e competente. Tal factualidade dada por provada não justifica, de modo algum, a conduta do Autor. Na verdade, o comportamento do Autor pôs em causa a competência profissional do seu superior hierárquico, o Eng. D., ofendendo o bom nome e a honra do mesmo, o que fez perante terceiros e repetidamente, revelando tal facto a intenção de o menosprezar. Assim, as expressões proferidas pelo Autor são objectivamente graves, tornando praticamente impossível a manutenção da relação laboral, sob pena de se admitir um clima de indisciplina e falta de respeito perante o superior hierárquico, que não é tolerável numa empresa. E se na verdade o Autor estava insatisfeito com o modo como a reparação da máquina estava a decorrer, então, e em homenagem ao dever de lealdade que achava dever assumir perante a sua entidade patronal, melhor seria que colocasse tal questão, o seu desapontamento, directamente ao gerente da Ré, ou ao seu superior hierárquico. Mas assim não actuou o Autor que antes preferiu «descarregar» todo o seu descontentamento perante pessoas estranhas à empresa e na ausência da pessoa visada - o seu superior hierárquico. Assim, se conclui que no caso dos autos se verifica a justa causa para despedimento do Autor atento o disposto nos arts. 20 nº 1 al. c) da L.C.T. e 9 nº 1 e 2 al. i) da L.C.C.T..
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VII
Se no caso foi violado o disposto no art. 53 da C.R.P.
O apelante defende que o Tribunal a quo violou o disposto no art. 53 da C.R.P. ao ter interpretado as normas constantes dos arts. 9 nº 1 e 10 nº 9 da L.C.C.T. de forma a permitir que a justificação do despedimento pudesse vir a ser declarada lícita sem que exista qualquer alegação e prova de factos a demonstrar tal realidade. Conforme já referido, e tendo em conta os factos imputados ao Autor, os mesmos em si preenchem o conceito de justa causa nos termos do art. 9 nº 2 al. i) da L.C.C.T.. Tal conclusão não ofende o princípio estabelecido no art. 53 da C.R.P. que proíbe os despedimentos sem justa causa. Na verdade, tal princípio constitucional tem o sentido de proibir os
«despedimentos imotivados ou ad nutum ou com base na mera conveniência da empresa» - Pedro Furtado Martins, obra citada, p. 82. Por isso, não colhe a conclusão do apelante ao referir que o Tribunal a quo se substituiu à entidade patronal para justificar o despedimento. No caso, o tribunal a quo apenas apreciou se os factos em si constituíam motivo para a alegada impossibilidade de subsistência da relação laboral.
Resulta da transcrição da decisão recorrida que o tribunal a quo considerou justificado o despedimento por força de factos alegados e provados pela recorrida. O tribunal demonstrou, por outro lado, a implicação de tais factos na relação laboral. Verifica-se, deste modo, que o tribunal recorrido não fez aplicação de uma qualquer dimensão normativa que permita considerar lícito o despedimento sem que tenham sido alegados e provados factos demonstrativos das consequências do comportamento do trabalhador na relação de trabalho. Assim, não foi aplicada pela decisão recorrida a dimensão normativa impugnada pelo recorrente. Nessa medida, qualquer juízo que o Tribunal Constitucional viesse a formular não teria a virtualidade de alterar a decisão recorrida, sendo desse modo inútil. Não se tomará, portanto, conhecimento do objecto do presente recurso de constitucionalidade.
3. Em face do exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do presente recurso de constitucionalidade.
2. A. vem reclamar, ao abrigo do artigo 78º-A, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
1° Após a leitura da referida decisão sumária é possível concluir que o Sr. Juiz Relator terá lido o recurso de apelação que o reclamante oportunamente apresentou no Tribunal da Relação do Porto, mais concretamente, no que aqui interessa, a matéria das conclusões 19 a 30 do referido recurso.
2° Com o devido respeito pela opinião contrária, a referida decisão sumária passa completamente ao lado da questão levantada pelo recorrente.
3° Os factos provados (a verdade processual!) atribuem ao recorrente um determinado comportamento que é ilícito por violação do dever de respeito e de urbanidade. No entanto, os mesmos factos, a mesma verdade processual, é totalmente omissa em relação ao impacto que tal comportamento teve na organização empresarial. Isto
é, não ficou minimamente demonstrado, por mais voltas que se dê, por que é que o comportamento ilícito do recorrente deveria ter sido punido com a decisão de despedimento. Na verdade, não se provou que o comportamento do A. tivesse interferido no relacionamento comercial entre a recorrente e a firma 'C.', não se provou que o comportamento do A. tivesse impossibilitado a continuação do relacionamento profissional entre o recorrente e o Eng. D., não se provou que o comportamento do A. tivesse causado qualquer tipo de dificuldades entre o recorrente e os seus colegas de trabalho, em conclusão, não se provou que o comportamento do A. tivesse qualquer tipo de influência negativa ao nível do núcleo da relação de trabalho.
4° Perante este quadro, que é insofismável, colocam-se duas possibilidades de interpretação do art. 9° do DL 64-A/89, que podem ser equacionadas desta forma:
· uma interpretação do citado preceito que exige que o comportamento do trabalhador tenha de ser qualificado como ilícito através da sua subsunção a qualquer uma das hipóteses previstas no nº 2 do citado preceito, competindo de seguida ao julgador avaliar se tal comportamento é susceptível de por em causa o contrato de trabalho;
· uma outra interpretação da mesma norma jurídica que exige da entidade empregadora a prova da ilicitude do comportamento do trabalhador e a prova concreta da impossibilidade da manutenção do contrato de trabalho, cabendo ao julgador a avaliação da consistência do trabalho probatório do empregador.
5° Parece-nos claro que ambas as decisões aqui discutidas, isto é, tanto a decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, como a decisão sumária proferida nestes autos de recurso, acolhem a primeira possibilidade de interpretação acima exposta.
6° Também nos parece claro que a referida interpretação não distingue o requisito
'ilicitude' do requisito 'impossibilidade prática do contrato de trabalho' e que viola o princípio constitucional da segurança do trabalho e o princípio da proibição dos despedimentos sem justa causa, previsto no artigo 53° da CRP , pelos motivos expostos nas conclusões 19 a 30 do recurso de apelação interposto no Tribunal da Relação do Porto.
7° Entendemos que não existe qualquer obstáculo que impeça o Tribunal Constitucional de se pronunciar sobre o objecto do recurso, sendo certo que se se concluir pela inconstitucionalidade da interpretação efectuada pelo Tribunal da Relação do Porto, em relação às normas do art. 9°/1 e do art. 10°/9 do DL
64-A/89, a consequência necessária de tal conclusão será revogação do acórdão da
2ª instância, uma vez que a recorrida não fez qualquer prova concreta acerca da impossibilidade de manutenção do contrato de trabalho do A..
B., pronunciou-se do seguinte modo:
A decisão sumária proferida nos presentes autos não merece qualquer reparo. O recorrente apenas pretende discutir a matéria de facto dado como provada e que serviu para fundamentar a douta decisão proferida nos autos. O recorrente não tem em conta de que a questão da constitucionalidade se há-de reportar a uma norma e não directamente à própria decisão recorrida que aplica essa norma. Daí que em vez de fundamentar o seu recurso em matéria da competência do digno Tribunal Constitucional, continue a discutir a matéria de facto e não a interpretação da norma legal. O Tribunal recorrido não aplicou a norma sem mais. Conforme se diz de modo irrefutável na douta decisão sumária objecto da reclamação apresentada, “... o tribunal recorrido não fez aplicação de uma qualquer dimensão normativa que permita considerar lícito o despedimento sem que tenham sido alegados e provados factos demonstrativos das consequências do comportamento do trabalhador na relação de trabalho”. E mais adiante conclui dizendo “... não foi aplicada pela decisão recorrida a dimensão normativa impugnada pelo recorrente”. Esta conclusão, para além de ser totalmente correcta, é um obstáculo para que o Tribunal Constitucional se possa pronunciar sobre o objecto do recurso. A douta decisão sumária reclamanda não merece qualquer censura e deve por isso ser confirmada.
Cumpre apreciar.
3. O reclamante sustenta que a “verdade processual” e “os factos” dos autos são omissos “em relação ao impacto” que o seu comportamento teve na organização empresarial. Ora, não cabe ao Tribunal Constitucional no âmbito do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional apreciar os factos dos autos ou a respectiva “verdade processual”. Com efeito, como se sublinhou na Decisão Sumária sob reclamação, ao Tribunal Constitucional cabe somente apreciar a conformidade à Constituição de dimensões normativas que tenham sido aplicadas pela decisão recorrida, competindo-lhe, inerentemente, averiguar os respectivos pressupostos processuais, nomeadamente se a dimensão normativa impugnada foi efectivamente aplicada. Desse modo, é irrelevante, para a apreciação das questões que importa apreciar no presente recurso, a invocação pelo reclamante dos factos que, na sua perspectiva, foram e não foram provados nos autos. O que importa é averiguar se a decisão recorrida fez aplicação da norma impugnada, o que foi feito pela Decisão Sumária reclamada. O reclamante afirma ainda que o tribunal a quo fez aplicação do artigo 9º, nº 2, do Decreto-Lei nº 64-A/89, no sentido de bastar a subsunção do comportamento ilícito a qualquer uma das hipóteses que o preceito prevê, competindo de seguida ao julgador avaliar se tal comportamento é susceptível de pôr em causa o contrato de trabalho. No entanto, é manifesto que a decisão recorrida não considerou caber ao julgador apreciar, sem critério (isto é, sem referência a factos provados), se os factos provados impossibilitam ou não a subsistência do vínculo laboral. A decisão recorrida é clara na demonstração da prova de factos que se enquadram no conceito de justa causa de despedimento. Não foi, pois, aplicada pelo tribunal a quo qualquer dimensão normativa que permitisse concluir pela justa causa de despedimento sem a alegação e a prova dos factos respectivos (como se demonstrou na Decisão Sumária). O reclamante manifesta o seu desacordo de tal decisão, afirmando que não foram alegados factos suficientes. No entanto, tal afirmação consubstancia uma discordância relativamente às decisões proferidas nos autos. Não demonstra, porém, que a norma que o reclamante impugnou na perspectiva da inconstitucionalidade tenha sido aplicada pela decisão recorrida. Ora, tal norma, como se demonstrou na Decisão Sumária, não foi de facto aplicada pelo tribunal a quo, pelo que improcede a presente reclamação.
3. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando, consequentemente, a Decisão Sumária reclamada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 23 de Fevereiro de 2005
Maria Fernanda Palma Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos