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Processo n.º 1082/2004
3.ª Secção Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 343 foi proferida a seguinte decisão sumária :
«1. A. recorreu para o Tribunal Constitucional, conforme resulta do requerimento de fls. 338, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, sustentando a inconstitucionalidade “da interpretação dada aos artºs 732º-A e 668 n.º 1 d) e e) do Código de Processo Civil e 830º do Código Civil”, normas que, “interpretadas como o foram, são manifestamente desconformes com a lei constitucional (artº 2, 3º, 202 n.º 1 e 2, 105º e 20º da Constituição)”. Diz ainda que “as questões em causa foram suscitadas perante o tribunal a quo, imediatamente após o surpreendente julgamento de revista”. Depreende-se deste requerimento, lido em conjunto com o que inicialmente foi apresentado, a fls. 333, que o recurso vem interposto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Outubro de 2004, de fls. 324, acórdão que indeferiu “a arguição de nulidade e de inconstitucionalidade relativamente ao acórdão” de fls. 267, de 29 de Abril de 2004. Estes acórdãos foram proferidos no âmbito de uma acção proposta por B., C. e D. contra A., E. e marido, F., na qual os autores pretendiam, em síntese, a execução específica de um contrato-promessa de cessão de quotas de uma determinada sociedade, que foi julgada improcedente, em sentença confirmada, embora por diferente fundamento, por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de fls. 224. O Supremo Tribunal de Justiça, porém, pelo acórdão de fls. 267, concedeu provimento à revista interposta pelos autores e, consequentemente, declarou “a transmissão do direito de propriedade sobre as quotas (...) para a titularidade” dos mesmos. Veio então o ora recorrente, sucessivamente, e sem êxito, requerer a aclaração do acórdão (requerimento de fls. 287) e “arguir nulidades e invocar a inconstitucionalidade do decidido” (requerimento de fls. 304). Para o que agora releva, no requerimento de fls. 304 acusou o Supremo Tribunal de Justiça de, ao proferir o acórdão de fls. 267, ter julgado “segundo regras e valores não tutelados pela lei, violando” diversos preceitos constitucionais
(artigos 2º, 3º, 202º, n.º 1 e 2 e 205º); e afirmou, ainda, que, ao não ter sido proferido em julgamento pelas secções reunidas, o acórdão é nulo, nos termos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil, e que, “a tese segundo a qual o n.º 2 do citado artº 732º-A não impõe aos julgadores o recurso ao julgamento ampliado de revista e que sustenta que a falta desse julgamento não é sindicável pelos interessados, contraria a regra constitucional ínsita no n.º 1 do artº 20º da Constituição, por recusar aos interessados o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos”. Foi então proferido o acórdão agora sob recurso, que indeferiu a arguição de nulidade e desatendeu as inconstitucionalidades apontadas. Para o que agora releva, o acórdão decidiu que
«2. Atentemos agora sobre se o acórdão em causa está ou não afectado da nulidade decorrente de excesso de pronúncia por virtude de o recurso dever ter sido julgado no quadro da chamada revista alargada. Afirmou o arguente que este Tribunal fixou erradamente posições doutrinárias contrárias à sua anterior jurisprudência firme, que o relator, os adjuntos e o presidente da secção cível deviam sugerir o julgamento alargado e, como tal não ocorreu, conheceu de questão de que não devia tomar conhecimento. Estabelece o artigo 732°-A do Código de Processo Civil por um lado, que o presidente do Supremo Tribunal de Justiça determina, até à prolação do acórdão, que o julgamento do recurso se faça com intervenção do plenário das secções cíveis, quando tal se revele necessário ou conveniente para assegurar a uniformidade da jurisprudência (n.º 1 ). E, por outro, que o referido julgamento alargado pode ser requerido por qualquer das partes ou pelo Ministério Público, e deve ser sugerido pelo relator, por quaisquer adjuntos, ou pelos presidentes das secções cíveis, designadamente quando verifiquem a possibilidade de vencimento de solução jurídica que esteja em oposição com jurisprudência anteriormente firmada no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito (n.º 2).
À luz do disposto no n.º 1 deste artigo, é pressuposto essencial da determinação pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça do julgamento do recurso pelo plenário das secções cíveis que tal se revele necessário ou conveniente para assegurar a uniformidade da jurisprudência, ou seja, para prevenir divergências jurisprudenciais sobre as mesmas questões fundamentais de direito no domínio da mesma legislação. Reporta-se, por seu turno, o n.º 2 deste artigo às entidades que podem requerer ou sugerir o julgamento alargado e aos pressupostos necessários para que operem essa diligência. Quanto às entidades que o podem requerer refere-se a lei às partes e ao Ministério Público e, quanto às entidades que o devem sugerir refere-se ao relator, a qualquer dos adjuntos que devam intervir no julgamento e ao presidente da secção cível. Relativamente aos mencionados pressupostos reporta-se a lei à verificação do risco de prevalecer solução jurídica oposta com jurisprudência anteriormente firmada no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.
(...) Não tendo as partes nem o Ministério Público requerido o julgamento ampliado, o relator ou os adjuntos só o devem sugerir no caso de entenderem que o mesmo se justifica, designadamente se, face ao objecto do recurso, entenderem a possibilidade de a decisão envolver oposição a jurisprudência uniformizada ou suficientemente amadurecida e pacífica no Supremo Tribunal de Justiça. E o mesmo pressuposto de sugestão de julgamento ampliado deve ocorrer em relação ao presidente da secção cível onde e na altura em que o julgamento ocorrer se, por via da respectiva discussão, se lhe afigurar que a decisão envolverá a mencionada oposição. No caso espécie, porém, face ao objecto do recurso em causa, não havia jurisprudência uniformizada que o envolvesse em sede de interpretação normativa nem se vislumbrava a possibilidade de da decisão respectiva resultar a mencionada oposição. Por isso, não havia, no caso vertente a obrigação de sugestão ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de dever operar o julgamento ampliado do objecto do recurso. Acresce que a argumentação do arguente, designadamente por via dos acórdãos que mencionou, não revela, afinal, que do acórdão em causa tenha resultado interpretação normativa contrária constante de jurisprudência uniformizada ou suficientemente trabalhada, estabilizada e pacífica. De qualquer modo, ainda que tivesse ocorrido a violação omissiva pelo relator, pelos juizes adjuntos ou pelo presidente da secção cível do disposto no artigo
732°-A, n.º 2, do Código de Processo Civil, o vício não seria o de nulidade do acórdão a que se reportam os artigos 668°, n.º 1, alínea d), segunda parte,
716°, n.º 1 e 726° do Código de Processo Civil, porque, face ao disposto no artigo 660°, n.º 2, primeira parte, do mesmo diploma, tal vício deriva de o tribunal não conhecer de questões que lhe tiverem sido suscitadas pelas partes, o que, como é óbvio, não ocorre no caso vertente. Não ocorre, por isso, a referida de nulidade do acórdão suscitada por A..
3. Atentemos agora se a interpretação normativa operada no acórdão implicou ou não a violação das normas dos artigos 2°, 3°, 201º, n.ºs 1 e 2, e 205° da Constituição.
(...)
É absolutamente gratuita, por não corresponder com um mínimo de objectividade à realidade, a afirmação do arguente de que este Tribunal não administrou correctamente a justiça, não dirimiu o conflito segundo a lei e não fundamentou a decisão na adequada na forma legal. Com efeito, lido o acórdão em causa e analisada a interpretação das normas no confronto com os factos provados que operou, é para qualquer profissional de foro clara a conclusão no sentido de que este Tribunal, ao proferi-lo, não infringiu qualquer das normas da Constituição indicadas pelo arguente, designadamente as que se reportam ao Estado de direito democrático, à subordinação dos órgãos do Estado à lei e à necessidade de fundamentação das decisões judiciais.
4. Vejamos, finalmente, a questão da interpretação do artigo 732°-A do Código de Processo Civil segundo a qual ele não impõe aos juizes o julgamento ampliado de revista e que a falta desse julgamento não é sindicável pelas partes envolve ou não a violação do artigo 20°, n.º 1, da Constituição. Conforme decorre do acima exposto, não é afirmado neste acórdão que o artigo
732°-A do Código de Processo Civil não impõe aos juizes o julgamento ampliado de revista nem que a omissão desse julgamento é insindicável pelas partes. Inexiste, por isso, fundamento legal para que nos pronunciemos sobre a questão posta pelo arguente da violação do artigo 20°, n.º 1, da Constituição, por ele colocada por antecipação.
(...)»
2. O recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, como é o caso, destina-se a que este Tribunal aprecie a conformidade constitucional de normas, ou de interpretações normativas, que foram efectivamente aplicadas na decisão recorrida, não obstante ter sido suscitada a sua inconstitucionalidade “durante o processo” (al. b) citada), e não das próprias decisões que as apliquem. Assim resulta da Constituição e da lei, e assim tem sido repetidamente afirmado pelo Tribunal (cfr. a título de exemplo, os Acórdãos nºs 612/94, 634/94 e 20/96, publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de 11 de Janeiro de 1995, 31 de Janeiro de
1995 e 16 de Maio de 1996).
É, ainda, necessário e que tal norma tenha sido aplicada com o sentido acusado de ser inconstitucional, como ratio decidendi (cfr., nomeadamente, os Acórdãos nºs 313/94, 187/95 e 366/96, publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de 1 de Agosto de 1994, 22 de Junho de 1995 e de 10 de Maio de
1996); e que a inconstitucionalidade haja sido “suscitada durante o processo”
(citada al. b) do nº 1 do artigo 70º), como se disse, o que significa que há-de ter sido colocada “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”
(nº 2 do artigo 72º da Lei nº 28/82).
3. Ora verifica-se que só poderia considerar-se oportunamente suscitada uma questão de inconstitucionalidade normativa no que se refere ao artigo 732º-A do Código de Processo Civil; o recorrente não suscitou “durante o processo” a inconstitucionalidade de qualquer norma referida aos artigos 668º, n.º 1, d) e e) do Código de Processo Civil ou ao artigo 830º do Código Civil. Não pode o Tribunal Constitucional, assim, conhecer do recurso quanto a estes
últimos preceitos, desde logo por esta razão. E o mesmo sucede relativamente à norma que o recorrente filia no artigo 732º-A do Código de Processo Civil, pelo motivo de que não foi aplicada pelo acórdão recorrido com o sentido acusado de ser inconstitucional. Como o Tribunal Constitucional tem repetidamente observado, o recurso de constitucionalidade tem natureza instrumental, o que implica, como se sabe, que
é condição de conhecimento do respectivo objecto a possibilidade de repercussão do julgamento que nele venha a ser efectuado na decisão recorrida (cfr., além do citado Acórdão n.º 366/96, o Acórdão n.º 463/94, Diário da República, II série, de 22 de Novembro de 1994). Ora, no caso, nenhuma repercussão teria o julgamento da constitucionalidade da norma definida pela recorrente, ainda que o Tribunal viesse a concluir no sentido da inconstitucionalidade.
Estão, pois, reunidas as condições para que se proceda à emissão da decisão sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82. Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 ucs. »
2. Inconformado, o recorrente reclamou para a conferência, ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, pretendendo a revogação da decisão sumária.
Em seu entender, só após a emissão do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que “veio julgar a acção procedente e declarar transmitida a propriedade de quotas de uma sociedade para os autores da acção, mesmo declarando estes que não se dispunham a pagar o preço devido (!!!), fazendo-o por aplicação do artº 830º do Código Civil” é que “era humanamente possível suscitar a inconstitucionalidade da interpretação dada à norma”.
E, relativamente a este preceito, os reclamantes vêm novamente sustentar que, ao decidir, o Supremo Tribunal de Justiça não só emitiu um acórdão nulo como, para o que agora releva, “o Tribunal julgou, assim, segundo regras e valores não tutelados pela lei, violando as regras do artº 2º e 3º da Constituição – o primeiro ao definir a República Portuguesa como um Estado de Direito, o segundo ao obrigar o Estado (os órgãos do Estado) a subordinar-se à lei – e a do artigo 202º n.º 1 e 2 e 205º do mesmo Diploma Fundamental, por não administrar correctamente a justiça, não dirimir o conflito segundo a lei, nem fundamentar, na adequada forma legal, a decisão.
Evitar a discussão é tapar o sol com uma peneira”.
Quanto ao artigo 732º do Código de Processo Civil, diz que “parece ao recorrente útil que o Tribunal Constitucional se pronuncie: se o STJ tiver obrigação de decidir a questão em pleno – e não a decidiu – não se vê como daí não decorre que o acórdão produzido seja declarado nulo, com a consequência de ser prolatado novo acórdão no STJ, em regra”.
E, após explicar novamente por que razão o recurso deveria ter sido julgado pelas secções reunidas, e repetir a interpretação do artigo 732º-A que considera inconstitucional, o ora reclamante conclui que “assim sendo, tal interpretação dada ao n.º 2 do artº 732º-A do Código de Processo Civil é inconstitucional, pelo que o tribunal devia recusá-la, declarando, em consequência, a nulidade do Acórdão do STJ para que o processo aí baixasse, a fim de ser de novo julgado, mas agora nos termos previstos no artº 732-A”.
Notificados para o efeito, os recorridos não se pronunciaram sobre a reclamação.
3. Os termos em que a reclamação é apresentada revelam que o reclamante não toma em consideração o recurso que interpôs, e que é um recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade normativa, ou seja, um recurso onde não tem cabimento vir discutir a forma como o direito ordinário foi ou deveria ter sido aplicado e, onde muito menos tem sentido pretender que o Tribunal Constitucional declare a nulidade de acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça por não terem sido proferidos segundo o procedimento que julga adequado, como se sabe.
Assim, da simples leitura do requerimento de reclamação resulta a sua falta de fundamento.
Em primeiro lugar, e no que toca ao artigo 830º do Código Civil, não há dúvida de que o reclamante afirmou perante o Supremo Tribunal de Justiça
(cfr. requerimento de fls. 304) o mesmo que agora repete quanto a ter este Supremo Tribunal infringido diversas regras constitucionais; mas também não há dúvida de que em parte alguma desse – ou de outro requerimento – dirigido ao Supremo Tribunal de Justiça se encontra qualquer acusação de inconstitucionalidade de qualquer norma contida no artigo 830º do Código Civil.
Relativamente ao artigo 732º-A do Código de Processo Civil, mantém-se o que se disse na decisão reclamada, sem necessidade de qualquer acrescentamento, já que a reclamação em nada a contraria.
O Tribunal Constitucional não pode, assim, conhecer do recurso de constitucionalidade porque não foram respeitadas as condições legal e constitucionalmente exigidas para o efeito.
4. Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão sumária de não conhecimento do recurso. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 ucs.
Lisboa, 7 de Março de 2005
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Artur Maurício