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Processo n.º 575/04
1.ª Secção Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Os presentes autos tiveram início com a apresentação de queixa crime pelos ora recorrentes A. e B. – depois constituídos assistentes – contra os recorridos C., D., E., F., G., H., I. e outros cuja responsabilidade se viesse a apurar quanto aos factos constantes da denúncia. O Ministério Público proferiu despacho de arquivamento do inquérito, por se haver entendido não resultarem “indícios suficientes da ocorrência de crimes nas circunstâncias de tempo, lugar e modo denunciadas, designadamente os de infidelidade e desobediência qualificada, bem como da comparticipação de qualquer dos arguidos na prática de actos subsumíveis a esses mesmos tipos legais de crimes”. Os assistentes requereram “prorrogação do prazo para pedir a abertura de instrução por mais 20 dias”, atenta a complexidade do processo, pedido que foi indeferido por despacho lavrado a fls. 824 e seg. dos autos. Interpuseram então recurso deste despacho e requereram a abertura da instrução quanto ao crime de infidelidade, tendo sido depois proferido despacho de não pronúncia. Os assistentes interpuseram recurso da decisão instrutória de não pronúncia, declarando que mantinham interesse quanto ao outro recurso. Admitido o recurso e remetidos os autos ao Tribunal da Relação do Porto, veio, porém, este Tribunal, em 28 de Maio de 2003, a rejeitar, por intempestivo, o recurso interposto do despacho de não pronúncia e a declarar, consequentemente, sem efeito o recurso interlocutório. Os assistentes arguiram a nulidade desta decisão, a qual foi posteriormente indeferida. Daquele acórdão de 28 de Maio de 2003 foi então interposto recurso para o Tribunal Constitucional.
2. Neste Tribunal, foi proferida decisão sumária, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 78º-A da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), pela qual se decidiu não conhecer do recurso interposto por não ter sido, na decisão recorrida, aplicada a norma cuja constitucionalidade se pretendia ver apreciada. Após reclamação para a conferência, nos termos previstos no artigo 78º-A, nº 3, da LTC, foi proferido despacho que concluiu no sentido de na decisão sumária não se ter identificado o acórdão da Relação do Porto, de 28 de Maio de 2003, como sendo a decisão recorrida. Considerando que, apesar de tal circunstância, se mantinha a existência de fundamento para que o Tribunal, em conferência, viesse a concluir pelo não conhecimento do recurso, por razão diversa da sustentada na decisão sumária, foi isto mesmo notificado aos recorrentes e recorridos.
É o seguinte, para o que agora releva, o teor de tal despacho:
“Não podem, porém, os recorrentes, e ora reclamantes, serem surpreendidos por uma decisão que assente em fundamentos diferentes daqueles em que assentou a decisão sumária, sem que se lhes dê oportunidade para se pronunciarem. Ora, é plausível que a conferência possa manter a decisão de não conhecimento do recurso por os recorrentes, embora sob a forma de uma questão de constitucionalidade normativa, porem em causa a constitucionalidade da própria decisão judicial recorrida. Na verdade, o acórdão recorrido não contém qualquer pronúncia expressa sobre os requisitos da fundamentação das decisões judiciais em processo penal, que decorram da exigência ínsita no artigo 97° n.º 4 do CPP. Com efeito, na parte que interessa o acórdão limita-se a decidir que
“notificados do despacho de não pronúncia por carta registada remetida em 15 de Novembro de 2002, os assistentes presumem-se notificados no 3° dia útil posterior ao do envio, sendo certo que não alegaram factos para elidir a presunção estabelecida por lei – o n.º 2 do art° 113° do CPP.” O entendimento dos recorrentes é que, numa leitura conforme à Constituição do artigo 97° n.º 4 do CPP, se impunha que o acórdão se pronunciasse expressamente sobre o facto alegado por eles para elidir aquela presunção – o aviso de recepção com data de 25/11/02. Ora, na ausência de qualquer critério normativo constante do acórdão recorrido sobre a fundamentação de decisões judiciais, o que os recorrentes suscitam, em bom rigor, é a inconstitucionalidade da decisão judicial no ponto em que esta fundamenta a intempestividade do recurso sem explicitar a razão por que aquele facto alegado pelos recorrentes não elide a presunção constante do artigo 113° do CPP, ou seja, sem observar o princípio consagrado no artigo 205° n.º 1 da CRP. A verdade é que o recurso de constitucionalidade, no nosso ordenamento jurídico, se não configura como recurso de amparo, mas como um recurso de “normas”, não podendo o Tribunal Constitucional conhecer do objecto de recursos quando se questiona a constitucionalidade da própria decisão impugnada, como é o caso. Nestes termos, admitindo como plausível que a conferência venha a indeferir a reclamação com este fundamento, determino a notificação dos recorrentes para se pronunciarem, querendo, sobre esta questão”.
3. Notificados recorrentes e recorridos, pronunciaram-se os primeiros no seguinte sentido:
“Posteriormente, o Senhor Conselheiro Relator lavrou o despacho de 8 de Julho, em que se refere que a decisão sumária, por lapso, se reportara ao acórdão da Relação do Porto de 14/01/2004, quando o acórdão sob recurso era o que fora proferido a 28/05/2003.
27° Naturalmente que não se põe em dúvida que tenha ocorrido tal lapso, de que, de resto, os Recorrentes também não se aperceberam, a não ser pelo despacho de 8 de Julho, o que se explica pela circunstância de, em qualquer caso, estar sempre em causa um determinado critério normativo que se tem por inconstitucional.
28° Vem agora o Senhor Conselheiro Relator sustentar que o que está em causa não é um critério normativo, mas sim a eventual inconstitucionalidade directa de uma decisão judicial, o que não seria passível de recurso para o Tribunal Constitucional (...)
29° Ressalvado o devido respeito, julgam os Recorrentes que não assiste razão ao Senhor Conselheiro Relator.
30°
É certo que o acórdão recorrido não se reporta expressamente a qualquer critério normativo, mas parece claro que o faz implicitamente, como, aliás, até resulta do acórdão que decidiu a questão da nulidade.
31° E o critério normativo implícito utilizado na decisão sob recurso é susceptível de apreciação pelo Tribunal Constitucional, como tem sido julgado de modo uniforme e pacífico.
32° Tal critério normativo implícito é exactamente o que atrás se apontou nos arts.
18° a 25°, que tem sempre a ver com o sentido dado às normas legais em causa – seja as que se referiram no requerimento de interposição de recurso, seja o art.
379° n° l-c) do C.P.P. –: ou seja, o sentido de que uma decisão judicial que considere intempestivo um recurso não tem expressamente de apreciar a excepção invocada pelo recorrente – no caso o afastamento de uma presunção de notificação
– para afastar a sua extemporaneidade.
33° E esse critério normativo ofende os princípios constitucionais constantes dos arts. 20° e 205° da CRP”.
4. O Ministério Público pronunciou-se pela improcedência da reclamação, com os seguintes fundamentos:
“(...) parece-nos evidente que a decisão recorrida não fez aplicação do critério normativo enunciado pelos reclamantes como integrando o objecto do recurso, não assentando tal decisão no pressuposto de dispensabilidade da apreciação pelo Tribunal de qualquer ‘excepção’, invocada pelo recorrente para ilidir a presunção de notificação.
3° O que sucedeu – em termos singelos – é que – ao apreciar a argumentação do recorrente, assente na ‘prova de recepção’ do expediente postal em que se consubstanciava a notificação – se entendeu que ela não traduzia a indispensável
‘alegação de factos’ suficientes e idóneos para ilidir a presunção estabelecida no n° 2 do artigo 113° do Código de Processo Penal.
4° O que, aliás, bem se compreende, já que o afastamento de tal presunção pressupõe a comprovação de que o atraso na recepção do expediente que corporiza a notificação ocorreu por razões estranhas à vontade e à conduta do notificado, isto é, radica em facto que lhe não seja imputável.
5° Ora – não questionando o recorrente o critério normativo subjacente à aplicação da norma do artigo 113°, n° 2, do Código de Processo Penal, enquanto nela se prevê e estatui o regime das presunções de notificação, mas antes a norma que prevê a fundamentação das decisões judiciais – é óbvio que se não fez apelo a nenhum critério normativo susceptível de determinar a ‘medida’ da fundamentação necessária do decidido pelo Tribunal.
6° Não cabendo obviamente ao âmbito dos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional determinar se a circunstância alegada pelo recorrente integrava ou não a alegação suficiente e concludente de ‘factos’ idóneos para o afastamento da presunção”.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. Na presente reclamação importa aferir se no recurso interposto para este Tribunal é verdadeiramente suscitada uma questão de constitucionalidade normativa ou se se pretende, diferentemente, sindicar a constitucionalidade da decisão judicial proferida a 28 de Maio de 2003. Em despacho anteriormente proferido, considerou este Tribunal que
'(...) na ausência de qualquer critério normativo constante do acórdão recorrido sobre a fundamentação de decisões judiciais, o que os recorrentes suscitam, em bom rigor, é a inconstitucionalidade da decisão judicial no ponto em que esta fundamenta a intempestividade do recurso sem explicitar a razão por que aquele facto alegado pelos recorrentes não elide a presunção constante do artigo 113° do CPP, ou seja, sem observar o princípio consagrado no artigo 205° n.º 1 da CRP'.
Ao virem agora sustentar que 'é certo que o acórdão recorrido não se reporta expressamente a qualquer critério normativo', havendo apenas um 'critério normativo implícito utilizado na decisão sob recurso', os reclamantes acabam por confirmar a conclusão a que chegou aquele despacho. Por um lado, reconhecem que o acórdão recorrido não se reporta expressamente a qualquer critério normativo; por outro, não demonstram que na decisão sob recurso foi utilizado, implicitamente, o critério normativo que identificam. Confirmam a conclusão de que, em bom rigor, suscitam a inconstitucionalidade da decisão judicial no ponto em que esta fundamenta a intempestividade do recurso sem explicitar a razão por que aquele facto alegado pelos recorrentes não elide a presunção constante do artigo 113° do CPP, ou seja, sem observar o princípio consagrado no artigo 205° n.º 1 da CRP. Uma conclusão que já era evidente face à crítica que os recorrentes fizeram ao acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 28 de Maio de 2003, e da qual decorreu depois a interposição do presente recurso. Como já acima ficou relatado, a decisão recorrida entendeu rejeitar, por intempestivo, o recurso interposto do despacho de não pronúncia e declarar em consequência sem efeito o recurso interlocutório, usando a seguinte fundamentação:
“Notificados do despacho de não-pronúncia por carta registada remetida em 15 de Novembro de 2002, os assistentes presumem-se notificados no 3º dia útil posterior ao do envio, sendo certo que não alegaram factos para elidir a presunção estabelecida por lei – nº 2 do artº 113º do CPP. O 3º dia útil posterior ao do envio é o dia 20 de Novembro, atendendo a que 15 de Novembro é Sexta-Feira. Como o prazo para interposição do recurso é de 15 dias, contínuo, expirou a 5 de Dezembro, Quinta-Feira, dia útil, portanto. Interposto o recurso apenas em 13 de Dezembro, é manifesto que o mesmo é intempestivo, a implicar a sua rejeição, mesmo no entendimento de que pode ser praticado no 3º dia útil seguinte ao termo do prazo, o que ocorreu em 10 de Dezembro – cfr. Ac. do STJ de 20/03/02, CJ, Acs. do STJ, X, 2, 157”.
Ora, os recorrentes impugnaram esta decisão, não pondo em causa a constitucionalidade de qualquer norma utilizada para a fundamentar (e, aliás, sem fazer referência ainda a qualquer problema de constitucionalidade), reportando-se antes à própria decisão em si mesma considerada, designadamente por entenderem que esta enfermava de omissão de pronúncia. Tal é o que resulta, desde logo, do teor do requerimento de arguição de nulidade do acórdão em causa: os recorrentes sustentaram que, antes de ser proferida a decisão, já haviam expressamente invocado (em resposta ao Ministério Público, que suscitara a questão da tempestividade do recurso) que a presunção de que a notificação ocorrera a 20 de Novembro se mostrava ilidida por prova plena nos autos, não se tendo o acórdão pronunciado sobre esta questão:
“(...) a fls. 1026 dos autos consta a prova plena de que o Recorrente António Borges só foi notificado a 25 de Novembro, sendo, em conformidade, tempestivo o competente recurso, uma vez que se encontra paga a multa prevista no art. 145º nº 5 do C.P.C. (...) O acórdão devia ter-se pronunciado sobre o teor da resposta dos ora Recorrentes
à douta promoção do M.P. (...) a qual consubstanciava uma excepção, a que cabia responder (...) Assim sendo, o Tribunal não se pronunciou sobre uma questão que devia ter apreciado, ou seja, a circunstância de efectivamente o recorrente António Borges só ter sido notificado a 25/11/02, constituindo tal omissão uma nulidade, nos termos da alínea c) do nº 1 do art. 379º do C.P.P., a qual ora vai arguida”.
(fls. 1209; itálico nosso).
A mesma posição ressalta, de resto, do teor do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional:
“Nenhuma dúvida pode haver acerca da circunstância de o acórdão que julgou o recurso extemporâneo não ter apreciado a excepção invocada pelos Recorrentes para afastarem a questão prévia suscitada e que determinou a improcedência do recurso (...) Isto é, o acórdão ora recorrido interpretou o comando do art. 97° n° 4 do C.P .P
., devidamente conjugado com o art. 414° n° 2 e 420° n° 1 do C.P .P ., no sentido de que uma decisão judicial que considere intempestivo o recurso não tem de expressamente apreciar a excepção invocada pelo recorrente - no caso o afastamento de uma presunção de notificação - para afastar a sua extemporaneidade (...) Tal norma legal assim interpretada viola o art. 205° n° 1 da CRP e o princípio da fundamentação das decisões judiciais” (itálico nosso).
Apesar da forma como concluem quanto à interpretação do artigo 97º, nº 4, do Código de Processo Penal, da análise deste excerto resulta líquido que a crítica dos recorrentes é dirigida à decisão, especificamente, à omissão de pronúncia de que a mesma, no entender dos recorrentes, enferma. O mesmo resultando de outras peças processuais posteriores, nomeadamente na reclamação para a conferência. O exposto confirma, pois, que este Tribunal não pode conhecer do objecto do presente recurso, pela razão invocada no despacho então proferido – o recurso de constitucionalidade, no nosso ordenamento jurídico, não se configura como recurso de amparo, mas como um recurso de “normas”, não podendo o Tribunal Constitucional conhecer do objecto de recursos quando se questiona a constitucionalidade da própria decisão impugnada, como é o caso. Como se escreveu no Acórdão nº 178/95, “este Tribunal não pode conhecer dessas questões de constitucionalidade: o controlo de constitucionalidade, que a Constituição e a lei lhe cometem, é um controlo normativo – um controlo que apenas pode ter por objecto normas (ou seja, actos do poder normativo público), e não actos de poder público de outro tipo, como são as decisões judiciais. Entre nós, com efeito, o sistema de fiscalização de constitucionalidade não consagrou um recurso de amparo.
O recurso para o Tribunal Constitucional não pode ter por objecto a inconstitucionalidade das decisões judiciais, consideradas em si mesmas. O seu objecto hão-de ser as normas a que os outros tribunais recusaram aplicação, com fundamento na sua inconstitucionalidade, ou que aplicaram, não obstante o recorrente as haver acusado de inconstitucionalidade, durante o processo”
(Diário da República, II Série, de 21 de Junho de 1995). Do exposto resulta, ainda, que as normas mencionadas pelos recorrentes não foram, em qualquer passo, aplicadas pela decisão recorrida, tal como exigido pela alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC. A decisão não lhes faz qualquer menção explícita e, analisado o respectivo teor, não se encontra referência, ainda que implícita, ao conteúdo normativo das mesmas. Como bem conclui o Ministério Público
“(...) a decisão recorrida não fez aplicação do critério normativo enunciado pelos reclamantes como integrando o objecto do recurso, não assentando tal decisão no pressuposto de dispensabilidade da apreciação pelo Tribunal de qualquer ‘excepção’, invocada pelo recorrente para ilidir a presunção de notificação”.
2. Ainda que assim não fosse, ainda que não fosse procedente o argumento de que não está em causa uma questão de constitucionalidade normativa, o que, só por si, determina o não conhecimento do objecto do recurso, sempre seria de destacar que a primeira vez que foi feita referência a uma questão de constitucionalidade
(embora não de normas aplicadas pela decisão recorrida) foi no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional. Até este momento processual, não há referência alguma a uma qualquer questão de inconstitucionalidade, o que implica a não verificação de um outro pressuposto do recurso que se pretendeu interpor: a suscitação atempada, durante o processo, de uma questão de constitucionalidade normativa. Assim e sem prejuízo do já invocado para o não conhecimento do objecto do recurso, nunca o requerimento de interposição de recurso para este Tribunal seria um meio atempado para suscitar uma questão de constitucionalidade normativa (assim, por todos, Acórdão do Tribunal Constitucional nº 192/00, Diário da República, II Série, de 30 de Outubro de 2000). “A locução ‘durante o processo’ [constante da alínea b), do nº 1, do artigo 70º da LTC] exprime precisamente o desiderato da suscitação na pendência da causa da questão de constitucionalidade, em termos de essa mesma questão ser tida em conta pelo tribunal que decide” (Acórdão nº 15/95, não publicado). Também por esta razão, forçoso seria sempre concluir pelo não conhecimento do objecto do recurso. E, portanto, ainda que estivesse em causa uma questão de inconstitucionalidade normativa, o que, de facto, não sucede no caso em apreço.
III. Decisão Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 16 de Março de 2005
Maria João Antunes Rui Manuel Moura Ramos Artur Maurício