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Processo n.º 245/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
I – Relatório
1. A União Indiana solicitou à República Portuguesa, ao
abrigo da Convenção Internacional para a Repressão de Atentados Terroristas à
Bomba, aberta para assinatura, em Nova Iorque, em 12 de Janeiro de 1998,
aprovada, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º
40/2001, de 5 de Abril de 2001, e ratificada pelo Decreto do Presidente da
República n.º 31/2001, de 25 de Junho (doravante designada por Convenção de Nova
Iorque), a extradição do seu nacional A. a fim de ser julgado pelos crimes nesse
pedido elencados, alguns dos quais abstractamente puníveis com pena de morte e
pena de prisão perpétua.
O Procurador-Geral da República emitiu parecer (fls. 3 a
12) no sentido da admissibilidade do pedido, por, relativamente aos crimes
abstractamente puníveis com pena de morte, resultar do artigo 34.º-C do
Extradition Act de 1962, da União Indiana, a comutação dessa pena em pena de
prisão perpétua, e por, relativamente aos crimes puníveis com prisão perpétua
(quer directamente cominada, quer resultante da comutação ex lege da pena de
morte), existirem garantias bastantes das autoridades indianas no sentido da não
execução dessa pena. Entendeu-se, porém, não ser admissível o pedido quanto aos
crimes cujo procedimento, nos termos da lei portuguesa, se encontrava extinto
por prescrição, e quanto aos crimes puníveis com pena de prisão perpétua que
não cabiam no âmbito de aplicação da Convenção de Nova Iorque, por, estando por
esse motivo prejudicado o exercício da faculdade prevista no n.º 2 do seu artigo
9.º e não existindo outra base convencional vigente entre a União Indiana e a
República Portuguesa, não estarem verificados, quando a estes crimes, os
requisitos do artigo 33.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Foi com o âmbito assim delimitado que a Ministra da
Justiça, por despacho de 28 de Março de 2003 (publicado no Diário da República,
II Série, n.º 86, de 11 de Abril de 2003, págs. 5662-5663 – cf. fls. 53 e 54
destes autos), considerou admissível o pedido de extradição.
Tendo o Ministério Público requerido ao Tribunal da
Relação de Lisboa a concessão da extradição assim delimitada (cf. fls. 20 a
34), procedeu-se à audição do extraditando, que declarou não dar o seu
consentimento à extradição e não prescindir da regra da especialidade (fls. 101
a 104).
O extraditando deduziu, por escrito, oposição ao pedido
de extradição (fls. 142 a 174), tendo, após diversas diligências instrutórias,
sido proferido o acórdão de 4 de Fevereiro de 2004 (fls. 898 a 908), pelo qual
o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu autorizar a extradição do extraditando
para a União Indiana para aí ser julgado pelos crimes constantes do pedido
formulado pelo Ministério Público, com excepção dos puníveis com pena de morte
ou com pena de prisão perpétua (crimes indicados sob os n.ºs I-1, I-2, I-3, I-5,
I-6, I-7, VII-1 a VII-5 do relatório desse acórdão).
Este acórdão foi anulado por acórdão do Supremo Tribunal
de Justiça, de 9 de Junho de 2004 (fls. 1130 a 1158), face à procedência dos
vícios de falta de fundamentação de facto e de omissão de pronúncia.
2. Na sequência dessa anulação, o Tribunal da Relação de
Lisboa proferiu o acórdão de 14 de Julho de 2004 (fls. 1171 a 1189), com o mesmo
conteúdo decisório do anterior acórdão.
Após elencar a matéria de facto tida por provada e por
não provada, o Tribunal da Relação de Lisboa passou a apreciar os fundamentos
da oposição à extradição deduzidos pelo extraditando, relativos a: (i)
inexistência de reciprocidade; (ii) inexistência de garantia formal de que a
pessoa reclamada não será extraditada para terceiro Estado; (iii) falta de
garantia de que a pessoa reclamada não será detida por factos diversos dos que
fundamentam o pedido; (iv) ausência de garantias de que não serão aplicadas ao
extraditando a pena de morte ou a pena de prisão perpétua; (v) ausência de
garantias de que ele não será julgado por um tribunal de excepção; (vi) violação
das garantias estabelecidas na Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos
do Homem e das Liberdades Fundamentais; e (vii) risco de agravamento da
situação processual do extraditando.
Sobre as questões da reciprocidade e das garantias de
não aplicação de pena de morte ou de pena de prisão perpétua – únicas que
interessam ao presente recurso de constitucionalidade – o Tribunal da Relação
de Lisboa expendeu o seguinte:
“A questão da reciprocidade
12 – O primeiro fundamento invocado pelo extraditando para se opor
ao pedido formulado pelo Ministério Público é o de ausência de reciprocidade no
que se refere a todos os processos por crimes não abrangidos pelo artigo 2.º da
«Convenção Internacional para a Repressão de Atentados Terroristas à Bomba», ou
seja, por todos aqueles que foram incluídos naquela peça processual, excepção
feita aos que são objecto dos processos n.ºs RC-1(S)93 e CR144/95.
Analisemos então a questão colocada.
De acordo com o n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 144/99, de 31 de
Agosto, «as formas de cooperação a que se refere o artigo 1.º», entre as quais
se conta a extradição, «regem-se pelas normas dos tratados, convenções e acordos
internacionais que vinculem o Estado Português e, na sua falta ou
insuficiência, pelas disposições deste diploma».
Embora alguns autores considerem que o Estado Português e a União
Indiana, em matéria de extradição, ainda se encontram vinculados pelo tratado
celebrado entre o nosso país e o Reino Unido em 17 de Outubro de 1892,
modificado e estendido ao território da União Indiana pela Convenção de 20 de
Janeiro de 1932 [V., nesse sentido, nomeadamente Serrano, Mário Mendes, in
«Extradição – regime e praxis», in Cooperação Internacional Penal, CEJ, Lisboa,
2000, p. 23 e notas 37 e 39, e Delgado, Filomena, in “A Extradição”, in BMJ, n.º
367, p. 57], o certo é que tal tratado, de duvidosa vigência [Sobre a sucessão
de tratados no caso de Estados que recentemente acederam à independência
veja-se, nomeadamente, Shaw, Malcolm N., in International Law, Fourth Edition,
Cambridge University Press, United Kingdom, 1997, p. 692 e segs., e a Convenção
de Viena Sobre a Sucessão de Estados em Matéria de Tratados, de 23 de Agosto de
1978, se bem que não assinada nem ratificada por Portugal (para consulta do seu
texto veja-se, nomeadamente, Escarameia, Paula, in Colectânea de Leis de Direito
Internacional, 3.ª edição, Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa, 2003, p. 77
e segs.)], não foi invocado nem por um nem por outro dos Estados [Considerando
até a União Indiana que nenhum tratado bilateral entre os dois Estados está
actualmente em vigor (ver fls. 21 do Apenso I)], que apenas fundamentaram o
pedido e a sua satisfação na referida «Convenção Internacional para a Repressão
de Atentados Terroristas à Bomba» [Aprovada para ratificação pela Resolução da
Assembleia da República n.º 40/2001, de 25 de Junho, e ratificada pelo Decreto
do Presidente da República n.º 31/2001, da mesma data] e no princípio da
reciprocidade.
A ausência de um tratado de extradição entre os dois países não
impede, no entanto, em geral, a cooperação uma vez que o nosso ordenamento
constitucional apenas exige a celebração de uma convenção internacional no caso
de a extradição ter na base um crime punível, segundo a lei do Estado
requerente, com «pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da
liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida» (artigo 33.º, n.º 4).
Fora desse âmbito, a cooperação internacional em matéria penal funda-se na
mencionada Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto.
Assim sendo, a procedência do pedido formulado pelo Ministério
Público depende, quanto aos crimes atrás mencionados que não são objecto dos
processos RC-1(S)93 e CR 144/95, do preenchimento das condições estabelecidas
nesse diploma, uma das quais é, de facto, a existência de reciprocidade (n.º 1
do artigo 4.º [De acordo com este preceito «a cooperação internacional em
matéria penal regulada no presente diploma releva do princípio da
reciprocidade»]).
No caso concreto, a garantia de reciprocidade consta do próprio
pedido de extradição apresentado em nome da União Indiana pelo seu Ministro dos
Negócios Estrangeiros [Ver a redacção do original na fls. 2 do Apenso I]. Mas,
mesmo que se considerasse que essa garantia não se encontrava aí
suficientemente expressa, ela resultaria, conforme se explica na carta do
primeiro secretário da Embaixada da Índia, junta a fls. 116, do facto de, ao
abrigo do artigo 3.º da Lei de Extradição da União Indiana, ter sido aprovado e
publicado o Despacho GRS-822(E), de 13/12/2002, em que se determina a aplicação
dessa mesma lei à República Portuguesa, diploma esse que assegura o respeito
pelo princípio da reciprocidade.
Mas, mesmo que nenhuma dessas garantias existisse, a ausência de
reciprocidade não impediria, só por si, a cooperação.
Na realidade, como flui do n.º 3 do artigo 4.º da Lei n.º 144/99, de
31 de Agosto, a exigência de reciprocidade pode ser dispensada pelo Ministro da
Justiça [Uma vez que é o Ministro da Justiça que, nos termos do n.º 2 do artigo
4.º, «solicita uma garantia de reciprocidade se as circunstâncias o exigirem»]
nas situações enunciadas nas três alíneas desse mesmo preceito.
Nesses casos, nomeadamente quando o poder político entenda que
existe a necessidade de lutar contra determinadas formas de criminalidade, o
Estado Português pode, mesmo assim, cooperar com o Estado estrangeiro.
Daí que, mesmo nesse caso, tendo Sua Excelência a Ministra da
Justiça aceite o pedido de extradição apresentado pela União Indiana, não seria
a inexistência de reciprocidade que obstaria à sua admissibilidade.
(...)
A ausência de garantias de que não serão aplicadas ao extraditando a
pena de morte ou a pena de prisão perpétua
14 – A Constituição da República Portuguesa proíbe a extradição «por
crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena de
morte ou pena de que resulte lesão irreversível da integridade física» [Artigo
33.º, n.º 6, da Constituição da República Portuguesa], proibição essa que
fundamenta, de acordo com a lei ordinária, a recusa de cooperação [Alínea f) do
n.º 1 do artigo 6.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto].
No caso concreto, cinco dos crimes por que foi pedida pelo
Ministério Público a extradição são puníveis, em abstracto, em face do Código
Penal indiano, com pena de morte.
Porém, o artigo 34.º-C da Lei de Extradição Indiana, aplicável a
este pedido por força do mencionado Despacho de 13 de Dezembro de 2002, altera
as penas previstas nas normas incriminadoras, prevendo que, em casos como o
presente, os mencionados crimes passem a ser puníveis, em abstracto, com pena de
prisão perpétua [Ver fls. 20 do Apenso I].
Não se verifica, assim, o obstáculo à cooperação previsto na alínea
e) do n.º 1 do artigo 6.º da Lei de Cooperação Internacional em Matéria Penal.
15 – Como já se referiu anteriormente, a nossa Lei Fundamental, na
redacção ainda vigente [Note-se que durante o último processo de revisão
constitucional, cujo texto ainda não foi publicado, foi aprovada uma nova
redacção do n.º 4 do artigo 33.º da Constituição, em que a expressão «em
condições de reciprocidade estabelecidas em convenção internacional e desde que
o Estado requisitante» é substituída pela expressão «se, nesse domínio, o Estado
requisitante for parte de convenção internacional a que Portugal esteja
vinculado»], apenas permite «a extradição por crimes a que corresponda, segundo
o direito do Estado requisitante, pena ou medida de segurança privativa ou
restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida, em
condições de reciprocidade estabelecidas em convenção internacional e desde que
o Estado requisitante ofereça garantias de que tal pena ou medida de segurança
não será aplicada ou executada» [Artigo 33.º, n.º 4, da Constituição da
República Portuguesa].
A Constituição exige, portanto, dois requisitos para a
admissibilidade, nesse caso, da extradição:
– Condições de reciprocidade estabelecidas em convenção
internacional;
– Garantias prestadas pelo Estado requerente de que a pena ou a
medida de segurança não serão, em concreto, aplicadas ou executadas.
Analisemos então o primeiro requisito exigido por essa disposição, o
relativo à existência de uma convenção internacional em que se assegure o
respeito pelo princípio da reciprocidade.
Diga-se antes do mais que uma tal convenção, por incidir sobre
matérias relativas a direitos, liberdades e garantias e ao processo criminal
[Alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República
Portuguesa], deverá ser aprovada pela Assembleia da República [Alínea i) do
artigo 161.º da Constituição da República Portuguesa] e ratificada pelo
Presidente da República [Alínea b) do artigo 135.º da Constituição da República
Portuguesa], órgãos de cuja vontade depende, portanto, a vinculação do Estado
Português.
Uma vez que, como se disse, o próprio Estado Indiano não considera
vigente a convenção celebrada pela potência colonial antes da declaração de
independência [Ver o preâmbulo do Despacho de 13 de Dezembro de 2002], o
instrumento requerido pela Constituição da República Portuguesa só poderia neste
caso ser a já mencionada «Convenção Internacional Para a Repressão de Atentados
Terroristas à Bomba», aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º
40/2001 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 31/2001, ambos
publicados em 25 de Junho.
De acordo com o n.º 2 do seu artigo 9.º, «se um Estado Parte, que
condiciona a extradição à existência de um tratado, receber um pedido de
extradição formulado por um outro Estado Parte com o qual não tenha qualquer
tratado de extradição, o Estado Parte requerido poderá, se assim o entender,
considerar a presente Convenção como a base jurídica para a extradição
relativamente aos crimes previstos no artigo 2.º. A extradição ficará sujeita
às restantes condições previstas pelo direito interno do Estado requerido».
Pareceria assim, à primeira vista, estar encontrada a base legal que
permitia o deferimento do pedido formulado no que se refere aos onze crimes
abrangidos pela previsão do artigo 2.º dessa Convenção e puníveis, em
abstracto, com prisão perpétua.
A pretensão de encontrar neste instrumento a fonte legitimadora da
extradição quanto a esses crimes depara porém com um obstáculo que se nos
afigura incontornável. De facto, embora essa convenção tenha sido aprovada pela
Assembleia da República e ratificada pelo Presidente da República, o vínculo que
com base nela se estabelece entre o Estado Português e a União Indiana não
resulta da aprovação e ratificação mas, no que a Portugal respeita, do despacho
de Sua Excelência a Ministra da Justiça. A convenção, só por si, apenas admite a
possibilidade de a extradição poder ser concedida.
Quer isto dizer que os órgãos que para o efeito estão
constitucionalmente legitimados não manifestaram a vontade de vincular o Estado
Português ao dever de extraditar para a União Indiana pessoas acusadas de factos
puníveis, em abstracto, com prisão perpétua, o que é exigido pelo artigo 33.º,
n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.
Outro entendimento acabaria por legitimar a delegação da competência
reservada à Assembleia da República e ao Presidente da República num membro do
Governo, no caso o Ministro da Justiça, o que constituiria uma contravenção ao
disposto no n.º 2 do artigo 111.º da Constituição da República Portuguesa.
Por tudo isto, considera-se que não existe fundamento
constitucionalmente legítimo para conceder a extradição do arguido A. (ou A.)
para a União Indiana para ele aí ser julgado pelos crimes puníveis (quer
directamente, quer em resultado do funcionamento do disposto no artigo 34.º-C
da Lei de Extradição Indiana) com pena de prisão perpétua (crimes indicados sob
os n.ºs I-1, I-2, I-3, I-5, I-6, I-7 e VII-1 a VII-5 do relatório).
16 – A questão que ainda nesta sede se pode colocar é a de saber
quais são as consequências a extrair da existência de requisitos negativos da
cooperação quanto a alguns dos crimes englobados no pedido de extradição.
Deverão eles impedi-la apenas quanto a esses crimes ou, pelo contrário,
deve-lhes ser atribuído um carácter mais geral, obstando a toda e qualquer
cooperação com o Estado requerente no caso concreto?
Poder-se-ia, por um lado, argumentar que, sendo negada a extradição
do arguido com fundamento na alínea f) do n.º 1 do artigo 6.º da Lei n.º 144/99,
de 31 de Agosto, deveria ser «instaurado procedimento penal pelos factos que
fundamentam o pedido, sendo solicitados ao Estado requerente os elementos
necessários» [Cfr. n.º 5 do artigo 32.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto], o
que poderia conduzir à aplicação ao arguido de uma pena de 25 anos. Nesse caso,
a concessão de extradição poderia traduzir-se numa forma ínvia de acabar por
impor uma pena de prisão, pelo menos, tendencialmente perpétua.
Tal argumento não nos parece ser, neste caso, pertinente uma vez
que o disposto no n.º 5 do artigo 32.º da Lei da Cooperação [Que amplia o
anteriormente previsto no n.º 2 do artigo 31.º da Lei n.º 43/91, de 22 de
Janeiro] e o regime previsto na alínea e) do artigo 5.º do Código Penal
[Redacção introduzida pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro] não são aplicáveis a
crimes cometidos antes da sua entrada em vigor, razão pela qual não existe
fundamento legal para julgar o arguido em Portugal pelos mencionados crimes.
Ora, assim sendo, a completa negação da cooperação conduzia à
impunidade mesmo por crimes em relação aos quais, quando considerados
isoladamente, nada havia que a impedisse.
17 – Poder-se-ia também dizer que, vindo a ser concedida a
extradição apenas por alguns dos crimes, o Estado requerente não estaria
impedido de julgar o extraditado por outros crimes, desde que contidos no
pedido de cooperação, uma vez que foi essa a extensão que deu ao compromisso
que prestou [Ver fls. 112], aparentemente reafirmado no articulado apresentado
pelos seus mandatários [Ver fls. 387], que parecem até não ter tomado
conhecimento do indeferimento parcial do pedido resultante da decisão de Sua
Excelência a Ministra da Justiça, o que não seria sequer contrariado pelo teor
literal do n.º 2 do artigo 16.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, disposição
em que se consagra a regra da especialidade.
Também essa objecção se nos afigura não ser pertinente uma vez que
se deve entender que as garantias prestadas e a norma citada se referem aos
termos da decisão de entrega e não aos termos do pedido formulado (n.º 3 do
artigo 16.º), o que, de resto, está conforme com o sentido da alínea a) do
artigo 21.º da Lei Indiana de Extradição e foi reafirmado pelo Tribunal Supremo
da União Indiana.
18 – Diga-se ainda que, sendo imputada ao extraditado uma
pluralidade de crimes, cada um deles punível com pena de prisão não inferior a 1
ano [De acordo com o disposto no n.º 3 da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, «se a
extradição tiver por fundamento vários factos distintos, cada um deles punível
pela lei do Estado requerente e pela lei portuguesa com uma pena privativa de
liberdade e se algum ou alguns deles não preencherem a condição referida no
número anterior (punição com pena privativa de liberdade de duração não
inferior a um ano), pode também conceder-se a extradição por estes últimos»],
importaria conhecer as regras que disciplinam, na União Indiana, a situação de
concurso e a sua punição para assim nos podermos certificar de que, pela via da
cumulação material das penas, não viria a ser aplicada ao extraditando uma pena
de prisão superior ao da sua esperança de vida, o que a transformaria numa pena
perpétua.
Tal não se torna, porém, necessário uma vez que a União Indiana
assegurou ao Estado Português que, caso fosse aplicado pelos tribunais uma pena
superior, esta seria reduzida a 25 anos de prisão.
Nada obsta, portanto, a que se apreciem os restantes aspectos do
pedido apresentado pela União Indiana.”
E, tendo sido julgadas improcedentes as questões
suscitadas pelo extraditando quanto à inexistência de garantia formal de que a
pessoa reclamada não será extraditada para terceiro Estado, à falta de garantia
de que a pessoa reclamada não será detida por factos diversos dos que
fundamentam o pedido, à ausência de garantias de que ele não será julgado por um
tribunal de excepção, à violação das garantias estabelecidas na Convenção
Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e
ao risco de agravamento da situação processual do extraditando, a extradição
acabou por ser autorizada nos termos limitados atrás indicados.
3. Foram interpostos dois recursos contra o acórdão do
Tribunal da Relação de Lisboa para o Supremo Tribunal de Justiça: um, pelo
Ministério Público (fls. 1195 a 1221), propugnando o deferimento do pedido de
extradição “também quanto aos crimes punidos com pena de morte ou prisão
perpétua”; outro, pelo extraditando (fls. 1326 a 1385), sustentando a
declaração de nulidade do acórdão recorrido (por omissão de pronúncia e falta
de fundamentação), o reconhecimento da violação do princípio da especialidade e
dos demais requisitos substanciais necessários à concessão do pedido de
extradição, com consequente indeferimento deste pedido na sua totalidade,
ordenando-se o seu julgamento em Portugal por todos os crimes relativamente aos
quais foi ordenado o seu julgamento na União Indiana.
Quer o Ministério Público (fls. 1537 a 1555), quer o
extraditando (fls. 1561 a 1577) responderam às motivações dos recursos
apresentados pela outra parte.
4. No Supremo Tribunal de Justiça, o respectivo
Conselheiro Relator proferiu, em 17 de Dezembro de 2004, o seguinte despacho
(fls. 1620):
“Como é sabido, a Constituição da República Portuguesa só admite a extradição
por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena
restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida se, além
do mais, o Estado requisitante oferecer «garantias de que tal pena não será
aplicada ou executada» (artigo 33.º, n.º 4).
O texto constitucional, porém, «não esclarece se a apreciação da suficiência
das garantias incumbe exclusivamente ao Governo ou se o tribunal também se pode
[e deve] pronunciar sobre essa matéria» (cfr. Cooperação Internacional Penal,
CEJ, 2000, p. 91).
Ora, uma das questões suscitadas no recurso do extraditando tem, justamente, a
ver com «a validade, a suficiência e o poder vinculativo das garantias
prestadas pelo Estado requerente ao Estado Português, quanto à
insusceptibilidade do extraditando vir a ser condenado numa pena superior a 25
anos de prisão, por força da cumulação das penas aplicáveis:
Apesar de a decisão recorrida, na sua estrutura, ter agora maior
correspondência com as exigências de um acórdão, o tribunal a quo voltou a não
se pronunciar sobre a validade, a suficiência e o poder vinculativo das
garantias prestadas pelo Estado requerente ao Estado Português, quanto à
insusceptibilidade de o extraditando vir a ser condenado a uma pena superior a
25 anos de prisão, por força da cumulação das penas aplicáveis aos crimes
relativamente aos quais for ordenada a sua extradição. O ora recorrente tem
sérias dúvidas sobre o poder vinculativo dessas garantias do próprio Estado
requerente, contestando a legitimidade do Vice-Primeiro-Ministro B. para, no
dia 17 de Dezembro de 2002, apresentar a garantia constante de fls. 6 e 7 do
pedido de extradição, como sendo vinculativa do Governo e da própria União
Indiana.»
Num Estado de direito, o Governo de um Estado (ou o Governo central de uma união
de Estados, como a União Indiana) jamais poderá garantir a não aplicação, pelos
tribunais, de uma pena de prisão perpétua ou indefinida.
E. mesmo num Estado ou união de Estados a quem compita, segundo seu direito
interno (que não será sequer o Estado requerente), a execução das sentenças
condenatórias dos tribunais criminais, uma garantia «de carácter político e
diplomático» da não execução de uma eventual pena de prisão perpétua também
depara com dificuldades de tomo: desde logo, a de uma alteração desse regime que
confira a execução das sentenças criminais aos próprios tribunais e, outrossim,
a de à partida não ser (seriamente) garantível pelo respectivo governo central,
num Estado ou união de Estados em que a comutação das penas caiba
constitucionalmente ao chefe do Estado ou ao presidente da União, a futura
outorga, por quem então o for, dessa benesse ao antigo extraditado.
Daí que, neste domínio, só uma (outra) garantia (suplementar) se afigure
inequívoca: a de o Estado requerente «aceitar [como integrante do pedido de
extradição] a conversão das penas [se, efectivamente, de morte ou de prisão
perpétua ou indefinida], por um tribunal português, segundo as disposições da
lei portuguesa aplicáveis aos crimes [que, eventualmente, venham a motivar uma
tal condenação]» (cf. artigo 6.º, n.º 2, alínea c), da Lei n.º 144/99, de 31 de
Agosto).
Assim sendo, importará, antes de se avançar para a decisão do recurso, que:
a) se requisite, à Amnistia Internacional (fls.1395), segunda via do
«parecer» que se anunciou acompanhar – mas não terá acompanhado – a sua carta
n.º 752/2004 dirigida em 2 de Agosto de 2004 à Relação de Lisboa,
b) e se oiçam os mandatários, no processo, da União Indiana (fls.
1397 e ss.) para que, em cinco dias, se pronunciem sobre a viabilidade da
sugerida garantia suplementar e, em caso afirmativo, sobre o prazo mínimo de que
ainda carecerão para (se for caso disso) a obterem, através da sua Embaixada em
Lisboa, do Estado requerente.”
5. Em resposta a esta última solicitação, a União
Indiana apresentou, em 28 de Dezembro de 2004, o seguinte requerimento (fls.
1662 a 1666):
“1. A União Indiana considera que prestou à República Portuguesa –
com base nas suas disposições constitucionais e legais, bem como tendo em conta
as disposições constitucionais e legais portuguesas e a jurisprudência dos
nossos Tribunais superiores – garantias válidas, seguras, credíveis e
suficientes, no sentido de que, caso a extradição venha a ser autorizada, o
Senhor A. não será sujeito a uma pena superior a 25 anos de prisão, a pena
máxima admitida pelo Direito Português.
2. De um lado, no que respeita aos crimes puníveis, em abstracto e
em teoria, com pena de morte, essa pena é insusceptível de ser aplicada pelos
Tribunais indianos in casu, uma vez que o artigo 34.º-C da Lei de Extradição
Indiana procede, como demonstrado e reconhecido nos autos, a uma alteração da
estatuição de tais normas incriminadoras, convertendo automaticamente a pena de
morte em pena de prisão perpétua.
3. Deste modo, e como o artigo 34.º-C da Lei de Extradição Indiana é
parte integrante do ordenamento jurídico indiano, estando os Tribunais Indianos
obrigados a tomá-la em consideração caso a extradição seja autorizada, a
aplicação da pena de morte é, summo rigore, uma impossibilidade jurídica.
4. De outro lado, quanto aos crimes puníveis, em abstracto, com pena
de prisão perpétua, a garantia prestada por Sua Excelência o Senhor Vice
Primeiro-Ministro do Governo da União Indiana assegurando à República
Portuguesa a não execução desta pena – nos termos e de acordo com os artigos
72.º e 73.º da Constituição Indiana, os artigos 432.º, n.º 1, 433.º, alíneas a)
e b), do Código de Processo Penal Indiano e o artigo 34.º-C da Lei da Extradição
Indiana, tudo conforme já evidenciado nos autos – é uma garantia válida e
vinculativa à luz do Direito constitucional e legal indiano (cfr. nomeadamente
o Parecer subscrito pelo eminente Jurisconsulto indiano Dr. N. M. Ghatate, já
junto aos autos).
5. Tal garantia foi prestada pela entidade competente de acordo com
o sistema político-constitucional de distribuição de poderes e competências
vigente na União Indiana, pois o artigo 72.º, n.º 1, alínea b), da Constituição
Indiana confere ao Presidente da Índia os poderes necessários para,
designadamente, conceder perdões, anular penas ou comutar sentenças, mas o
artigo 74.º da referida Constituição prescreve que a decisão do Presidente,
nesta matéria como noutras, está vinculada à decisão prévia do Governo, mesmo
que aquele com esta não concorde, pelo que é o Governo o órgão verdadeiramente
competente para prestar a garantias dos autos, conforme reconhece
jurisprudência pacífica e consolidada (Caso Maru Ram v. UOI 1981 I SCC 107 e
Kehar Singh v UIO 1989 I SCC 204).
6. A garantia prestada pela União Indiana, enquanto Estado Soberano,
é fundada em preceitos legais e é vinculativa para o actual e para futuros
Presidentes e Governos, como resulta das regras de Direito Internacional
Público que exigem que garantias soberanas solenes prestadas entre Estados
Soberanos sejam respeitadas no futuro e como exige a tradicional estoppel
doctrine, pelo que permanece válida e eficaz independentemente da pessoa que
momentaneamente ocupa este ou aquele cargo.
7. A União Indiana considera ainda que a garantia prestada satisfaz
as condições e os requisitos estabelecidos pelo Direito Português, na medida em
que o artigo 6.º, n.º 2, alínea b), da Lei n.º 144/99, de 31 Agosto, admite que
o Estado requerente ofereça garantias de que a pena de prisão perpétua não será
aplicada ou executada, dispondo o n.º 3 do mesmo artigo que a apreciação da
suficiência de tais garantias terá em conta, nomeadamente, nos termos da
legislação e da prática do Estado requerente, a possibilidade de indulto,
perdão, comutação de pena ou medida análoga, previstos na legislação do Estado
requerente.
8. A União Indiana reitera ainda que o sistema processual penal
indiano não procede à alegada, e não demonstrada ou sequer indiciada, soma
aritmética das penas em que o extraditando viesse, porventura, a ser condenado,
caso fosse autorizada a sua extradição, pois entende-se que tais penas correm
simultaneamente.
9. Foi com base em todos estes pressupostos que a União Indiana
prestou as garantias constantes dos presentes autos, que considerou bastantes,
não tendo, por isso, prestado outras garantias.
10. Além disso, nomeadamente no que se refere à garantia prevista no
artigo 6.º, n.º 2, alínea c), da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, a União
Indiana considerou, porventura erradamente, que a mesma se aplicaria apenas a
casos de cooperação judiciária internacional relativos a agentes já condenados,
e não a casos de extradição para julgamento dos agentes no Estado requerente.
Contudo,
11. Sem prejuízo do que se expôs, caso se entenda que se mantém a
necessidade de prestar outras garantias, tendo em conta a presente solicitação
do Supremo Tribunal de Justiça, a União Indiana está inteiramente disponível
para prestar ao Estado Português quaisquer garantias adicionais, compatíveis com
o Direito Internacional e com o Direito Indiano, no sentido de dar maior
conforto às autoridades portuguesas de que o Senhor A. não será, em qualquer
caso, sujeito a uma pena de prisão superior a 25 anos.
12. Para que a União Indiana possa prestar a garantia adicional
agora solicitada em conformidade com o seu Direito interno – no caso,
evidentemente, de o Supremo Tribunal de Justiça entender que tal garantia é
necessária –, requer-se a Vossas Excelências, respeitosamente, que esclareçam e
clarifiquem o modo como a mesma deve ser prestada, o respectivo conteúdo e a
forma como seria executada.
13. Desde já se indica o prazo de 30 dias como o prazo mínimo
necessário para levar a cabo todos os trâmites necessários à prestação de uma
garantia dessa natureza.”
6. Em complemento a este requerimento, a União Indiana
veio a apresentar, em 5 de Janeiro de 2005, o seguinte requerimento (fls. 1689 a
1691):
“1. A União Indiana apresentou, na passada semana, perante este
Supremo Tribunal, e na sequência de notificação para o efeito, um requerimento
relativo à prestação de garantias de que o Extraditando, o Senhor A., não será
sujeito, uma vez extraditado para a União Indiana, a uma pena de prisão superior
a 25 anos, a pena máxima admitida pelo Direito Português.
2. No seguimento de tal requerimento, e ainda a respeito da validade
e da suficiência das garantias já prestadas pelo Governo Indiano, vem a União
Indiana, pelo presente, prestar o seguinte esclarecimento adicional.
3. O artigo 77.º da Constituição Indiana regula a atribuição de
poderes ao Governo Indiano e aos seus membros individualmente considerados, bem
como certos aspectos da relação entre o Governo e o Presidente.
4. Com relevância para o caso dos autos, o n.º 1 do referido
preceito constitucional refere que todas as acções executivas do Governo são
efectuadas em nome do Presidente da Índia.
5. Estabelecendo o n.º 3 do mesmo artigo que o Presidente criará
regras para uma conveniente gestão dos assuntos do Governo Indiano, procedendo à
distribuição de poderes e competências pelos vários Ministros.
6. O então Presidente da União Indiana, no exercício dos poderes que
lhe confere o artigo 77.º da Constituição Indiana, aprovou o «Allocation of
Business Rules Act, 1961», onde constam as regras, datadas de 1961, relativas à
repartição de poderes pelo Governo Indiano, as quais se mantêm em vigor ainda
hoje.
7. De acordo com o parágrafo segundo das referidas regras, as
matérias relativas a Direito Penal e Direito Processual Penal, incluindo as
matérias relativas a concessão de perdões, indultos, anulação de penas e
comutação de sentenças, são da competência do Ministro dos Assuntos Internos.
8. Deste modo, o então Vice Primeiro-Ministro, o Senhor B., à data
da prestação da garantia constante destes autos também titular da pasta dos
Assuntos Internos, era, nos termos constitucionais e legais indianos, a pessoa
competente para prestar a garantia de que não será aplicada ao Extraditando, o
Senhor A., pena de prisão superior a 25 anos.
9. E tal garantia é, consequentemente, válida e vinculativa para o
actual e para futuros Governos da União Indiana (bem como para as demais
entidades relevantes, conforme já explicado nos autos).
10. É de notar que o n.º 2 do artigo 77.º da Constituição Indiana
refere expressamente que a validade dos actos executados pelo Governo em nome do
Presidente nos termos das referidas normas não poderá ser posta em causa com o
fundamento de que não foram executados pelo próprio Presidente.
11. Pelo exposto, requer-se a junção aos autos de uma cópia do
artigo 77.º da Constituição Indiana, acompanhada da respectiva tradução para
língua Portuguesa.
12. A União Indiana juntará, se for considerado necessário, as
aludidas normas aprovadas pelo Presidente da Índia em 1961 ao abrigo do artigo
77.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição Indiana, bem como tudo mais que for julgado
pertinente.”
Em anexo a este requerimento foi junta tradução de
inglês para português do artigo 77.º da Constituição Indiana (fls. 1693 e 1694).
Na sequência de despacho do Conselheiro Relator do
Supremo Tribunal de Justiça, de 6 de Janeiro de 2005 (fls. 1702), foram os
recorrentes/recorridos notificados da junção do aludido documento, o que não
suscitou qualquer reacção.
7. Por acórdão de 27 de Janeiro de 2005 (fls. 1711 a
1731), o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) concedeu provimento ao recurso do
Ministério Público e negou-o ao do extraditando, autorizando a extradição deste
para a União Indiana “com vista ao seu julgamento com vista à totalidade dos
crimes identificados no pedido do Ministério Público”.
Esta alteração do decidido no acórdão recorrido assentou
na seguinte fundamentação:
“10. Crimes puníveis com pena de morte
10.1. «Relativamente aos crimes puníveis com pena de morte ou, em
alternativa, com prisão perpétua, os tribunais indianos estão obrigados a
aplicar, em caso de extradição de A., o disposto no artigo 34.º-C do
Extradition Act, 1962 (ou na Secção 34-C da Lei de Extradição da Índia de
1962», ou seja, a converter em prisão perpétua a pena de morte que
eventualmente venha a caber [abstractamente] a algum ou alguns dos seus
crimes.
10.2. Com efeito, e como bem aduz o MP na motivação do seu recurso,
«nos termos do artigo 34.º-C da Lei de Extradição Indiana (Extradition Act,
1962), quem seja entregue ao Estado Indiano na sequência de um pedido de
extradição por crimes a que corresponda a pena de morte não poderá ser
condenada nessa pena se as leis do Estado requerido não sancionarem a prática
desse crime com a pena de morte». Ante, pois, a inaplicabilidade da pena de
morte, pelos tribunais indianos, a crimes cometidos aos extraditados
provenientes de países que a não cominem genérica ou especificamente, «não se
poderá sequer dizer» – como concluiu, e bem, a Relação de Lisboa – «que
[quaisquer d]os crimes pelos quais se requer a extradição sejam
[concretamente] puníveis com pena de morte».
10.3. Nem se obtempere – como fez o extraditando na sua resposta ao
recurso do MP – que a ressalva que abre o artigo 34.º-C da «Extradition Act,
1962» («Sem prejuízo do conteúdo de qualquer outra lei à data em vigor, quando
um criminoso fugitivo que tenha cometido um crime punível com pena de morte na
Índia for submetido ou devolvido por um Estado Estrangeiro, a pedido do Governo
Central, e as leis desse Estado Estrangeiro não prevejam a pena de morte
relativamente a esse mesmo crime, o respectivo criminoso será passível de
condenação a prisão perpétua apenas no que diz respeito a esse crime») obsta a
que «se possa concluir, sem mais, por uma conversão automática da pena de morte
em pena de prisão perpétua» (na medida em que «outra lei à data em vigor»
poderia vir a contrariar essa prevista conversão).
10.4. É que não poderá dar-se a tal ressalva – por força dos
princípios gerais universais do direito penal (maxime, o da não retroactividade
de lei desfavorável) – um tal alcance. Mas, antes, o de que – vigorando à data
da condenação «outra lei» mais favorável – será essa a aplicável (e não a de
prisão perpétua decorrente da conversão da pena de morte prevista, para o
crime, à data da extradição).
11. Crimes puníveis com pena de prisão perpétua
11.1. Nos termos do artigo 33.º, n.º 4, da Constituição, «só é
admitida a extradição, por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado
requisitante, pena (...) privativa ou restritiva da liberdade com carácter
perpétuo ou de duração indefinida, em condições (...) estabelecidas em convenção
internacional e desde que o Estado requisitante ofereça garantias de que tal
pena (...) não será aplicada ou executada».
11.2. E é com base na Convenção Internacional para a Repressão de
Atentados Terroristas à Bomba (Nova Iorque, 12 de Janeiro de 1998), de que são
signatários (entre outros) Portugal e a União Indiana que esta pede àquele a
extradição – por crimes puníveis, segundo o seu direito, com pena de prisão
perpétua ou de morte (obrigatoriamente convertível em prisão perpétua) – do ora
recorrente A..
11.3. Porém, esta Convenção distingue entre os Estados Partes que
condicionam a extradição à existência de um tratado (bilateral) de extradição
(em que o Estado requerido, ao receber um pedido de extradição formulado por
outro Estado Parte com o qual não tenha qualquer tratado de extradição, poderá,
se assim o entender, considerar a Convenção como a base jurídica para a
extradição relativamente a «atentados terroristas à bomba») e os Estados Partes
que não condicionam a extradição à existência de um tratado (que reconhecerão
tais crimes como passíveis de extradição nas condições previstas pelo direito
interno do Estado requerido).
11.4. Ora, Portugal não condiciona a extradição, de um modo geral, à
existência de um tratado (bilateral). Com efeito, «as formas de cooperação a
que se refere o artigo 1.º [da Lei n.º 144/99]» – nelas se incluindo a
«extradição» – regem-se pelas normas tanto dos «tratados», como das «convenções
ou acordos internacionais que vinculem o Estado Português», como ainda, na sua
falta (ou insuficiência), «pelas disposições deste diploma» (artigo 3.º, n.º 1).
11.5. É certo que a Constituição, relativamente a crimes «a que
corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena (...) privativa ou
restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida», só
admite a extradição «em condições de reciprocidade estabelecidas em convenção
internacional».
11.6. Mas já não condiciona a extradição à [pré]existência de um
específico tratado (bilateral) de extradição, antes se bastando com uma
qualquer convenção internacional, que, não constituindo um tratado de
extradição (mas visando outros objectivos, como, por exemplo, a repressão de
atentado terroristas à bomba), imponha aos Estados Partes, em condições de
reciprocidade, a extradição de nacionais (artigo 33.º, n.º 3) ou de
estrangeiros (artigo 33.º, n.º 4).
11.7. Daí que não se aplique ao caso – contra o que o tribunal a quo
pressupôs – o n.º 2 do artigo 9.º da «Convenção de Nova Iorque, 1998».
11.8. E daí, pois, que Portugal, não condicionando a extradição à
existência de um específico «tratado de extradição», haja – ao assinar essa
Convenção – reconhecido como passíveis de extradição, «nas condições previstas
pelo [seu] direito interno», os crimes previstos no n.º 2 («Comete um crime nos
termos da presente Convenção quem, de forma ilegal e intencional, distribuir,
colocar, descarregar ou fizer detonar um explosivo ou outro instrumento letal
dentro ou contra um local público, uma instalação do Estado ou pública, um
sistema de transporte público ou uma infra-estrutura: a) com o propósito de
causar a morte ou lesões físicas graves; b) ou com o propósito de obter
elevados níveis de destruição de tal local, instalação, sistema ou
infra-estrutura [...]»).
11.9. Ao ratificá-la, o Estado português comprometeu-se, aliás, a
conceder aos demais Estados Partes «a mais ampla cooperação no tocante a
procedimentos de extradição instaurados relativamente a crimes previstos no
artigo 2.º» (artigo 10.º, n.º 1), «em conformidade com o respectivo direito
interno» (n.º 2).
11.10. A obrigação de extradição ficaria, no entanto, ressalvada se
o Estado Parte requerido tivesse ou viesse a ter [e, no caso, não teve nem tem]
«sérios motivos para crer que o pedido de extradição (...) havia sido formulado
com o propósito de (...) punir qualquer pessoa com base na raça, religião,
nacionalidade, origem étnica ou opinião política» ou tivesse «razões para crer
que a satisfação do pedido poderia prejudicar a situação da pessoa em causa por
qualquer uma destas razões» (artigo 12.º).
12. Garantias
12.1. No entanto, a extradição por crimes a que corresponda, segundo
o direito interno do Estado requisitante, prisão perpétua ou de duração
indefinida, não se basta com a satisfação das condições exigidas em convenção
internacional, mas exige ainda, da parte do Estado requisitante, o
oferecimento de «garantias de que tal pena não será aplicada ou executada»
(artigo 33.º, n.º 4, da Constituição).
12.2. Como o Governo da União Indiana não pode garantir que tal pena
não venha a ser aplicada pelos seus tribunais (independentes), apenas dele será
de exigir a garantia de que, na eventualidade da sua aplicação, recorrerá, para
a confinar, às medidas legais ao seu alcance («indulto, perdão, comutação da
pena ou medida análoga»).
12.3. A Relação, como instância de facto, reconheceu que «o Governo
da União Indiana garantiu, em conformidade com o direito interno indiano e a
prática nacional em matéria de execução de penas, que a pena de prisão perpétua
será comutada, exercendo, para esse efeito, os poderes que lhe são conferidos
ao abrigo dos artigos 432.° e 433.°, alínea b), do Código de Processo Penal
Indiano de 1973» e, mais ainda, que «as autoridades indianas prestaram
solenemente ao Governo Português garantias formais segundo as quais, em caso de
extradição, A. não será punido nem com pena de morte nem com pena de prisão
global superior a 25 anos».
12.4. Acontece que, «para efeitos de apreciação da suficiência das
garantias [de que tal pena não será executada] ter-se-á em conta, nos termos da
legislação e da prática do Estado requerente, a possibilidade de não aplicação
da pena ou de concessão da liberdade condicional, bem como a possibilidade de
indulto, perdão, comutação da pena ou medida análoga, previstas na legislação
do Estado requerente» (artigo 6.º, n.º 3, da LCIP).
12.5. É do seguinte teor o artigo 77.º (Condução da actividade do
Governo da Índia) da Constituição da União Indiana: «(1) Toda a actividade
executiva do Governo da Índia é exercida de forma expressa em nome do
Presidente; (2) Despachos e outros instrumentos elaborados e subscritos em nome
do Presidente serão autenticados do modo que vier especificado no regulamento
a elaborar pelo Presidente, e a validade de um despacho ou instrumento
autenticado deste modo não será posta em causa com o fundamento de que não se
trata de um despacho ou instrumento elaborado e subscrito pelo Presidente. (3)
O Presidente elaborará um regulamento no sentido de uma condução mais
conveniente da actividade do Governo da Índia e para distribuir a referida
actividade entre os vários Ministros».
12.6. Ora, «o então presidente da União Indiana, no exercício dos
poderes que lhe conferia o artigo 77.º da Constituição Indiana, aprovou o
“Allocation of Business Rules Act, 1961”, donde constam as regras, que se
mantêm em vigor ainda hoje, relativas à repartição de poderes pelo Governo
Indiano; de acordo com o seu § 2.º, as matérias relativas a direito penal e
direito processual penal, incluindo as matérias relativas a concessão de
perdões, indultos, anulação de penas e comutação de sentenças, são da
competência do ministro dos Assuntos Internos; deste modo, o então vice
primeiro-ministro, B., à data titular da pasta dos Assuntos Internos, era, nos
termos constitucionais e legais indianos, a entidade competente para prestar a
garantia de que não seria aplicada ao extraditando, A., pena de prisão superior
a 25 anos».
12.7. Não consentirá o artigo 77.º, n.º 2, da Constituição da União
Indiana, assim, que a validade dessa «garantia» venha a ser «posta em causa com
o fundamento de que não se trata de um (...) instrumento elaborado e subscrito
pelo Presidente». Pois que, se bem que o seu artigo 72.º, n.º 1, alínea b),
confira ao Presidente os poderes necessários para conceder perdões, anular penas
ou comutar sentenças, já o seu artigo 74.º prescreve que «a decisão do
Presidente, nesta matéria como noutras, está vinculada à decisão prévia do
Governo, pelo que é este o órgão verdadeiramente competente para prestar a
garantia dos autos, conforme reconhece jurisprudência pacífica e consolidada
(casos Mam Ram v. UOI 1981 SCC 107 e Kehar Singh v. UIO 1989 I SCC 204)».
12.8. Daí, em suma, que «a garantia prestada pela União Indiana,
enquanto Estado soberano, seja vinculativa para o actual e para futuros
presidentes e governos, como decorre da tradicional estoppel doctrine e resulta
das regras de Direito Internacional Público que exigem que as garantias
soberanas solenes prestadas entre Estados soberanos sejam respeitadas no
futuro» (ibidem).
12.9. Acresce, em benefício da «suficiência das garantias
prestadas», que «o sistema processual penal indiano não procede à (...) soma
aritmética [nem jurídica] das penas». Estas, diversamente, «correm
simultaneamente» – e não sucessivamente (ibidem).
12.10. De qualquer modo, mais uma vez se recorda que «a admissão e a
concessão da extradição levam implícito – na decorrência da própria aceitação
das garantias oferecidas – o seu condicionamento (resolutivo) ao cumprimento,
pelo Estado requisitante, de tais garantias», condicionamento que conferirá ao
Estado requisitado (oficiosamente ou a pedido do interessado) – na eventualidade
de o Estado requerente vir a incumprir o seu compromisso de definição
(nomeadamente, limitando-a a 25 anos) de eventual pena perpétua ou de duração
indefinida – o «direito de, oportunamente (e pelos canais diplomáticos ou
judiciários), exigir a restituição do extraditado».
13. Decisão
13.1. Tudo visto, o Supremo Tribunal de Justiça, reunido em
conferência para apreciar os recursos opostos à decisão da Relação de Lisboa
que, em 14 de Julho de 2004, «autorizou [com limitações] a extradição de A.
(aliás, A.) para a União Indiana», autoriza, na procedência do recurso do MP e
na improcedência do recurso do extraditando, a sua extradição para a União
Indiana com vista ao seu julgamento pela totalidade dos crimes identificados no
pedido do MP (cfr., supra, 1).
13.2. Fica, porém, explícito que a admissão e a concessão da
extradição – na decorrência da própria aceitação das garantias oferecidas –
ficam condicionadas (resolutivamente) ao cumprimento, pelo Estado
requisitante, das garantias prestadas, condicionamento que conferirá ao Estado
requisitado (oficiosamente ou a pedido do interessado), em caso de
inobservância, o direito de, oportunamente (e pelos canais diplomáticos ou
judiciários), exigir a devolução do extraditado.”
8. Notificado deste acórdão, veio o extraditando arguir
a sua nulidade e requerer a sua correcção (fls. 1744 a 1753). A nulidade
radicaria em ter sido proferido sem que fosse dado conhecimento ao extraditando
da apresentação, pela União Indiana, das peças processuais de fls. 1662-1666 e
1689-1691, com preterição do princípio do contraditório, logo suscitando a
questão da inconstitucionalidade, por violação dos artigos 32.º, n.º 1, e 32.º,
n.º 5, da CRP, de eventual interpretação dos artigos 3.º, n.º 2, e 25.º, n.º 2,
da Lei n.º 144/99, “que entenda não ser extensível ao processo de extradição o
princípio do contraditório previsto no artigo 327.º do CPP e no artigo 3.º, n.º
3, do Código de Processo Civil”. A correcção visava a indicação, na parte
dispositiva do acórdão, das disposições legais aplicáveis ao abrigo das quais
foi admitido o pedido de extradição.
Por acórdão de 3 de Março de 2005 (fls. 1831 a 1834), o
Supremo Tribunal de Justiça indeferiu a arguição de nulidade, mas corrigiu o
anterior acórdão. Após transcrever as passagens do acórdão recorrido, da
motivação do recurso do Ministério Público e da resposta do extraditando, que
aludiam à prestação de garantia pelo Vice-Primeiro-Ministro indiano, concluindo
o extraditando por referir a conveniência de estar junta aos autos a lei que
confere poderes ao Governo indiano para a prestação de garantias de comutação de
penas, pondera o Supremo Tribunal de Justiça:
“1.3. Caberia, pois, ao tribunal de recurso – suprindo o
correspondente «dever de procura» do tribunal recorrido – «obter, oficiosamente,
o respectivo conhecimento» (artigo 348.º, n.º 1, do Código Civil). E foi o que
fez, ainda que competisse ao MP, que invocara (mas não identificara) esse
«direito estrangeiro», «fazer a prova da sua existência e conteúdo» (idem).
1.4. E assim se chegou ao «Allocation of Business Rules Act, 1961»,
que «o então Presidente da União Indiana, no exercício dos poderes que lhe
conferia o artigo 77.º da Constituição Indiana, aprovara com vista ao
estabelecimento das regras relativas à repartição de poderes pelo Governo
Indiano».
1.5. Ora, de acordo com o seu § 2.º, as matérias relativas a direito
penal e direito processual penal, incluindo as matérias relativas a concessão de
perdões, indultos, anulação de penas e comutação de sentenças, passaram – e
continuam – a ser da competência do ministro dos Assuntos Internos, donde que o
então vice primeiro-ministro, B., titular da pasta dos Assuntos Internos à data
do pedido de extradição, fosse, nos termos constitucionais e legais indianos, a
entidade competente para prestar – como prestou – a garantia de que não seria
aplicada ao extraditando, A., pena de prisão superior a 25 anos.
1.6. Tratando-se, assim, de direito estrangeiro, cujo conhecimento
oficioso incumbia ao tribunal, não se vê que o Supremo, ao aplicá-lo (como a
Relação, aliás, já aplicara, embora sem identificação dos respectivos diploma e
§), dele devesse dar prévio conhecimento ao extraditando.
1.7. É certo que «o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de
todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso
de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que
de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido possibilidade de sobre
elas se pronunciarem» (artigo 3.º, n.º 3, do CPC).
1.8. Só que essa «questão» (a da competência – perante o respectivo
direito interno – do Ministro dos Assuntos Internos da União Indiana para
prestar ao Estado requerido a «garantia» de que eventual pena perpétua seria
objecto de «perdão» ou «indulto» de modo a que a pena a executar não excedesse
25 anos de prisão) não só não constituía «questão nova» como sobre ela já as
partes se haviam pronunciado abundantemente. Aliás, o requerido A., como
cidadão indiano que era e é, estava particularmente bem posicionado – tanto
mais que fizera um «estudo» a esse propósito – para «conhecer» o estatuto
infraconstitucional do relacionamento institucional entre o Presidente e o
Governo da União Indiana.
1.9. Além de que a observância do contraditório é dispensável em
«caso de manifesta desnecessidade». E, no caso, o Supremo, na avaliação da
«garantia» prestada, atendera, mais que à «competência» da entidade que a
concedera (que, aliás, seria de «presumir», ante os princípios de «boa fé» e de
«lealdade» que presidem, no direito internacional, ao relacionamento entre os
Estados em geral e, de um modo particular, entre os Estados democráticos), à
consideração de que «a admissão e a concessão da extradição levam implícito –
na decorrência da própria aceitação das garantias oferecidas – o seu
condicionamento (resolutivo) ao cumprimento, pelo Estado requisitante, de tais
garantias», condicionamento que conferirá ao Estado requisitado (oficiosamente
ou a pedido do interessado) – na eventualidade de o Estado requerente vir a
incumprir o seu compromisso de definição (nomeadamente, limitando-a a 25 anos)
de eventual pena perpétua ou de duração indefinida – o «direito de,
oportunamente (e pelos canais diplomáticos ou judiciários), exigir a restituição
do extraditado».
1.10. Por outro lado, nem sequer havia que dar conhecimento ao
extraditando dos memoranda da União Indiana de fls. 1689/1691 e 1662/1666, pois
que produzidos no âmbito de um incidente suscitado pelo relator em 17 de
Dezembro de 2004 e por ele «abandonado» logo que se deu conta de que a
disposição em que para tanto se estribara – a do artigo 6.º, n.º 2, alínea c),
da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto – pressupunha um pedido de extradição (que
não era o sub specie) que visasse a execução de penas – já aplicadas –
«privativas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida».
1.11. E se o acórdão ora reclamado os reportou foi simplesmente como
forma indirecta de – em benefício, afinal, do extraditando – «vincular» a União
Indiana, como que em reforço das garantias já prestadas, aos seus próprios
«protestos» de reafirmação e estrito cumprimento dessas garantias.
1.12. Acresce que o Supremo, ao assim proceder, não conheceu de
qualquer questão de que hão pudesse tomar conhecimento (pois que apenas tratou
de questões colocadas nos recursos, ainda que com apelo a normas que, até aí
implicitamente invocadas, só nele vieram a ser explicitamente identificadas),
única situação em que, nessa parte, o acórdão poderia ter incorrido em
«nulidade» (artigos 425.º, n.º 4, e 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP).”
Quanto ao pedido de correcção, reconheceu-se neste
acórdão de 3 de Março de 2005:
“2. Correcção
2.1. Se bem que a sentença deva terminar por um dispositivo que
contenha, além do mais, «as disposições legais aplicáveis» (artigo 374.º, n.º
3, alínea a), do CPP), a «decisão» (artigo 425.º, n.º 3) de um recurso não
constitui, propriamente, uma «sentença» nem os artigos 423.º, n.º 5, 424.º, n.º
2, e 425.º, n.º 4, obrigam, na sua redacção, à observância dos «requisitos da
sentença» (artigo 374.º, n.º 2).
2.2. De qualquer modo, será de aproveitar este ensejo para prestar,
a propósito das disposições legais aplicadas, dois esclarecimentos:
2.2.1. O primeiro para dar conta de que o acórdão se fundou, ao
invocar os «termos do artigo 33.º, n.º 4, da Constituição» (item's 11.1, 11.5 e
11.6), na versão [conferida pela Lei Constitucional n.º 1/2001] da Constituição
da República Portuguesa em vigor à data do pedido de extradição e da decisão
recorrida («Só é admitida a extradição, por crimes a que corresponda, segundo
o direito do Estado requisitante, pena (...) privativa ou restritiva da
liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida, em condições (...)
estabelecidas em convenção internacional e desde que o Estado requisitante
ofereça garantias de que tal pena (...) não será aplicada ou executada»). E
fê-lo justamente por razões de «segurança jurídica» e, por isso, de aplicação
ao caso dos parâmetros constitucionais do próprio pedido de extradição. Se bem
que a redacção dada pela Lei Constitucional n.º 1/2004, de 24 de Julho, àquela
norma constitucional («Só é admitida a extradição por crimes a que corresponda,
segundo o direito do Estado requisitante, pena ou medida de segurança privativa
ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida, se,
nesse domínio, o Estado requisitante for parte de convenção internacional a que
Portugal esteja vinculado e oferecer garantias de que tal pena ou medida de
segurança não será aplicada ou executada») mais não tenha que «corroborado»,
autenticamente, a interpretação que o anterior texto, apesar de alguma
ambiguidade, já merecia (e que o Supremo, no caso, lhe concedeu).
2.2.2.. E o segundo para, oficiosamente (artigos 425.º, n.º 4, e
380.º, n.º 1, alínea b), do CPP), identificar a norma (que, por evidente lapso,
não se identificou explicitamente no acórdão) do n.º 3 do artigo 9.º da
Convenção Internacional para a Repressão de Atentados Terroristas à Bomba, que
(a par, entre outras, das dos n.ºs 1 e 2 do artigo 6.º da Lei n.º 144/99, de 31
de Agosto) efectivamente aplicou (em detrimento da do n.º 2 do mesmo artigo, que
a Relação aplicara) nos item’s 11.2 e seguintes do acórdão, que, por isso,
deverão passar a ser lidos assim:
«11.2. E é com base na Convenção Internacional para a Repressão de
Atentados Terroristas à Bomba (Nova Iorque, 12 de Janeiro de 1998), de que são
signatários (entre outros) Portugal e a União Indiana, que esta pede àquele a
extradição – por crimes puníveis, segundo o seu direito, com pena de prisão
perpétua ou de morte (obrigatoriamente convertível em prisão perpétua) – do ora
recorrente A..
11.3. Porém, esta convenção distingue entre os Estados Partes que
condicionam a extradição (artigo 9.º, n.º 2) à existência de um tratado
(bilateral) de extradição (em que o Estado requerido, ao receber um pedido de
extradição formulado por outro Estado Parte com o qual não tenha qualquer
tratado de extradição, poderá, se assim o entender, considerar a Convenção como
a base jurídica para a extradição relativamente a “atentados terroristas à
bomba” e os Estados Partes que não condicionam a extradição (artigo 9.º, n.º 3)
à existência de um tratado (que reconhecerão tais crimes como passíveis de
extradição nas condições previstas pelo direito interno do Estado requerido).
11.4. Ora, Portugal não condiciona a extradição, de um modo geral, â
existência de um tratado (bilateral). Com efeito, “as formas de cooperação a que
se refere o artigo 1.º [da Lei n.º 144/99]” – nelas se incluindo a “extradição”
– regem-se pelas normas tanto dos “tratados”, como das “convenções ou acordos
internacionais que vinculem o Estado Português”, como ainda, na sua falta (ou
insuficiência), “pelas disposições deste diploma” (artigo 3.º, n.º 1).
11.5. É certo que a Constituição [antes da Lei Constitucional n.º
1/2004], relativamente a crimes “a que correspond[esse], segundo o direito do
Estado requisitante, pena (...) privativa ou restritiva da liberdade com
carácter perpétuo ou de duração indefinida», só admitia a extradição «em
condições de reciprocidade estabelecidas em convenção internacional”.
11.6. Mas já não condiciona(va) a extradição à [pré]existência de
um específico tratado (bilateral) de extradição, antes se bastando com uma
qualquer convenção internacional, que, não constituindo um tratado de
extradição (mas visando outros objectivos, como, por exemplo, a repressão de
atentados terroristas à bomba), imp[usesse) aos Estados Partes, em condições de
reciprocidade, a extradição de nacionais (artigo 33.º, n.º 3) ou de
estrangeiros (artigo 33.º, n.º 4).
11.7. Daí que não se aplique ao caso – contra o que o tribunal a
quo pressupôs – o n.º 2 [mas, sim, o n.º 3] do artigo 9.º da “Convenção de Nova
Iorque, 1998”.
11.8. E daí, pois, que Portugal, não condicionando a extradição à
existência de um específico “tratado de extradição” [Convenção, artigo 9.º, n.º
3], haja – ao assinar essa Convenção – reconhecido como passíveis de
extradição, “nas condições previstas pelo [seu] direito interno', os crimes
previstos no n.º 2 (“Comete um crime nos termos da presente Convenção quem, de
forma ilegal e intencional, distribuir, colocar, descarregar ou fizer detonar um
explosivo ou outro instrumento letal dentro ou contra um local público, uma
instalação do Estado ou pública, um sistema de transporte público ou uma
infra-estrutura: a) com o propósito de causar a morte ou lesões físicas graves;
b) ou com o propósito de obter elevados níveis de destruição de tal local,
instalação, sistema ou infra-estrutura [...]”).»
9. O extraditando interpôs, ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por
último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro – doravante designada por LTC),
recursos para o Tribunal Constitucional, quer do acórdão do STJ, de 27 de
Janeiro de 2005, que autorizou a sua extradição para a União Indiana a fim de aí
ser julgado pela totalidade dos crimes constantes do pedido formulado pelo
Ministério Público, quer do acórdão do STJ, de 3 de Março de 2005, na parte em
que indeferiu arguição de nulidade por ele deduzida contra o anterior acórdão.
De acordo com os respectivos requerimentos de
interposição de recurso, o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional
aprecie:
1) No primeiro recurso, a inconstitucionalidade – por
violação dos artigos 33.º, n.ºs 4 [na redacção da Lei Constitucional n.º 1/2001,
de 12 de Dezembro] e 6, 111.º, n.º 2, 135.º, alínea b), 161.º, alínea i), e
165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (CRP), – das
normas constantes do artigo 9.º, n.º 3, da Convenção Internacional para a
Repressão de Atentados Terroristas à Bomba, aberta para assinatura, em Nova
Iorque, em 12 de Janeiro de 1998, aprovada, para ratificação, pela Resolução da
Assembleia da República n.º 40/2001, de 5 de Abril de 2001, e ratificada pelo
Decreto do Presidente da República n.º 31/2001, de 25 de Junho (doravante
designada por Convenção de Nova Iorque), e do artigo 6.º, n.º 2, alíneas a) e
b), da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto – Lei de Cooperação Judiciária
Internacional em Matéria Penal (doravante designada por LCJIMP), sendo aquela
primeira norma quer “na interpretação (…) segundo a qual (…) obrigaria Portugal
à extradição por crimes a que é abstractamente aplicável a pena de morte,
mesmo que, dado o teor na norma indiana constante dos autos (artigo 34.º-C do
Extradiction Act de 1962), não exista uma impossibilidade jurídica de ela vir a
ser aplicada”, quer “quando interpretada no sentido (…) de obrigar Portugal a
extraditar uma pessoa por factos a que corresponde, abstractamente, a pena de
prisão perpétua, mesmo na ausência de um compromisso convencionado entre as
Partes de proceder a tal extradição mediante a prestação de garantias de não
aplicação ou execução de tal pena”, questões de inconstitucionalidade que
teriam sido suscitadas durante o processo e concretamente na resposta à
motivação do recurso do Ministério Público, embora reportadas ao n.º 2 do
referido artigo 9.º, cujo fim e sentido são em tudo idênticos ao da norma do n.º
3, sendo a diversidade das hipóteses num e noutro contempladas irrelevantes para
o conteúdo cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada, e sendo certo
que ao longo do processo sempre se discutiu a aplicabilidade da norma do n.º 2,
pelo que não lhe era exigível que impugnasse a constitucionalidade de uma norma
(a do n.º 3) que só veio a ser aplicada, pela primeira vez, no acórdão
recorrido; e
2) No segundo recurso, a inconstitucionalidade – por
violação dos artigos 32.º, n.ºs 1 e 5, e 33.º, n.º 4, da CRP – das normas
constantes dos artigos 3.º, n.º 2, e 25.º, n.º 2, da LCJMP, “as quais remetem
para os artigos 4.º e 327.º do Código de Processo Penal (CPP), na interpretação
(…) segundo a qual tais normas não obrigam ao cumprimento do princípio do
contraditório, com tradução expressa no artigo 327.º do CPP e, em sede de
recurso, no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por
força do artigo 4.º do CPP, por manifesta desnecessidade e por nos encontrarmos
no âmbito de matéria que se insere no âmbito de cognição do tribunal
recorrido”, questão de inconstitucionalidade que teria sido suscitada no
requerimento de arguição de nulidade do primeiro acórdão.
No Tribunal Constitucional, o relator, nos despachos que
determinaram a elaboração de alegações em ambos os recursos, convidou
recorrente e recorridos a pronunciarem-se sobre as seguintes questões prévias:
1) No primeiro recurso: (i) exclusão do objecto do
recurso da questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 6.º, n.º 2,
alíneas a) e b), da LCJIMP, “por tal questão não ter sido suscitada pelo
recorrente, perante o tribunal recorrido, em termos de este estar obrigado a
dela conhecer, designadamente na resposta à motivação do recurso interposto pelo
Ministério Público para o STJ, peça por ele especificadamente indicada como
sendo aquela onde teria suscitado as questões de inconstitucionalidade que
pretende ver apreciadas”; e (ii) não conhecimento da questão de
inconstitucionalidade da norma do n.º 3 do artigo 9.º da Convenção de Nova
Iorque “por, durante o processo, e designadamente na mencionada peça
processual, o recorrente haver suscitado a questão da inconstitucionalidade da
norma do n.º 2 (e não da do n.º 3) desse preceito”; e
2) No segundo recurso: não conhecimento do seu objecto,
“quer por a violação da Constituição ser imputada, não a qualquer norma ou
interpretação normativa, mas à própria decisão judicial, em si mesma
considerada, quer por o acórdão recorrido não ter aplicado, como ratio
decidendi, a dimensão normativa cuja conformidade constitucional se pretende
ver apreciada”.
10. Relativamente ao primeiro recurso, o recorrente
apresentou alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“1. O presente recurso deve conhecer da questão da
inconstitucionalidade da norma do n.º 3 do artigo 9.º da Convenção
Internacional para a Repressão de Atentados Terroristas à Bomba.
2. Como resulta do acórdão final que se pronunciou sobre a arguição
de nulidade e correcção do acórdão, em 3 de Março de 2005, a norma aplicada é
efectivamente aquela que motiva o presente recurso para o Tribunal
Constitucional: a norma contida no artigo 9.º, n.º 3, da Convenção de Nova
Iorque.
3. Durante o processo, concretamente na resposta apresentada ao
recurso interposto pelo Ministério Público, o ora recorrente suscitou a
inconstitucionalidade da norma contida no n.º 2 do artigo 9.º da Convenção de
Nova Iorque, na interpretação pretendida e que motivou a interposição de
recurso pelo Ministério Público.
4. E fê-lo unicamente quanto à norma expressa no artigo 9.º, n.º 2,
da referida Convenção, porquanto essa fora a única norma invocada quer no
recurso interposto pelo Ministério Público, quer no acórdão da Relação de
Lisboa, que deferiu parcialmente o pedido de extradição, negando, porém, a
extradição por crimes que implicassem a aplicação de penas de morte e prisão
perpétua, precisamente por ausência de conformidade do mencionado artigo 9.º,
n.º 2, da Convenção de Nova Iorque com as exigências constitucionais em matéria
de extradição.
5. A questão da inconstitucionalidade foi adequadamente suscitada
relativamente à norma contida no n.º 2 do artigo 9.º da Convenção de Nova
Iorque, o que resulta do texto e claramente do contexto em que a arguiu.
6. O extraditando, na mesma peça processual – resposta ao recurso do
Ministério Público – aderiu expressamente à parte da fundamentação do acórdão
proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa que, quanto aos crimes puníveis
com pena de prisão perpétua, declarou a inconformidade do artigo 9.º, n.º 2, da
Convenção com o artigo 33.º, n.ºs 4 e 6, da Constituição.
7. O fim e sentido de ambas as normas (a do artigo 9.º, n.º 2, que
foi sendo discutida ao longo do processo e a do artigo 9.º, n.º 3) são em tudo
idênticos à norma contida no artigo 9.º, n.º 3, da referida Convenção, aplicada
no acórdão recorrido, diferindo apenas as respectivas hipóteses, de forma
irrelevante para o conteúdo cuja inconstitucionalidade se pretende ver
apreciada.
8. Isto é, ambas as normas visam, na concreta interpretação que lhes
foi dada, a concessão da extradição por factos puníveis com pena de prisão
perpétua, pelo que os motivos da inconstitucionalidade são os mesmos e valem
indistintamente para ambas as hipóteses.
9. As razões que motivaram o extraditando a arguir a
inconstitucionalidade do artigo 9.º, n.º 2, da Convenção são, portanto, as
mesmas, valendo ipsis verbis quanto à inconstitucionalidade do artigo 9.º, n.º
3, da mesma Convenção Internacional, que ora se pretende ver declarada.
10. Pelo que se pode concluir que o recorrente suscitou a questão de
inconstitucionalidade «durante o processo», tendo o recorrente cumprido o ónus
da correcta e atempada suscitação da inconstitucionalidade durante o processo.
11. Quando assim não se entenda – o que só por mera hipótese se
admite, sem conceder –, então, sempre se terá de concluir que não pôde o
extraditando prevenir a questão de inconstitucionalidade que ora pretende ver
declarada, porquanto, tendo impugnado a constitucionalidade da norma cuja
aplicabilidade foi sendo discutida ao longo do processo, não lhe era exigível
que impugnasse a constitucionalidade de uma norma cuja aplicação nunca havia
sido suscitada durante o mesmo, até à decisão do Supremo Tribunal de Justiça.
12. O presente recurso de fiscalização concreta da
constitucionalidade deve abranger (também) e a título complementar a
interpretação que, no acórdão recorrido, é consagrada a propósito do artigo
6.º, n.º 2, alíneas b) e c), da Lei de Cooperação Judiciária Internacional em
Matéria Penal.
13. A aceitação da fiscalização da interpretação de tais normas –
artigos 6.º, n.º 2, alíneas a) e b) – resulta, assim, de forma indirecta, na
medida em que tais normativos, é hoje unânime, estão de acordo com as imposições
constitucionais em matéria de extradição, as quais ocupam a primazia ou o topo
da pirâmide em matéria de hierarquia na apreciação de um pedido de extradição.
14. Assim, porque em primeiro plano se situa a violação imediata do
artigo 33.º, n.ºs 4 e 6, da Constituição da República Portuguesa, só
mediatamente, pela remissão do artigo 9.º, n.º 3, da Convenção de Nova Iorque
para o direito interno português, resulta a violação do artigo 6.º, n.º 2,
alíneas a) e b), da Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria
Penal, no âmbito de conhecimento do recurso devem também ser incluídas as normas
constantes do artigo 6.º, n.º 2, alíneas a) e b), do diploma por último citado.
15. O presente recurso tem como finalidade aferir da compatibilidade
da norma contida no n.º 3 do artigo 9.º da Convenção de Nova Iorque, na
interpretação que lhe foi dada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no seu
acórdão de 27 de Janeiro de 2005, corrigido por acórdão de 3 de Março do mesmo
ano, como ratio da decisão de autorizar a extradição do recorrente para a União
Indiana por crimes abstractamente puníveis com pena de morte ou pena de prisão
perpétua.
16. Visa-se assim aferir da compatibilidade da norma do artigo 9.º,
n.º 3, da Convenção de Nova Iorque, com o disposto nos n.ºs 4 e 6 do artigo 33.º
da Constituição.
17. Contrariamente ao que se sustenta no acórdão recorrido a
aplicação de pena de morte não conforma uma «verdadeira impossibilidade jurídica
à luz do sistema legal do Estado requerente, como vem sendo exigido pela
jurisprudência constitucional» (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º
417/95).
18. Do teor do artigo 34.º-C do Extradition Act de 1962 não se pode
concluir que há uma conversão automática, ope legis, da pena de morte em pena
de prisão perpétua, pois a própria norma impõe uma condição: não existir outra
norma em vigor, desconhecendo-se se existe outra norma ou algum
condicionalismo ou obstáculo à mencionada conversão.
19. É com base na Convenção de Nova Iorque que a União Indiana
reclama o extraditando para aí ser julgado por crimes a que é aplicável pena de
prisão perpétua, directamente ou por via de conversão de penas de morte, nos
termos do artigo 34.º-C do Extradition Act de 1962 (cf. ponto 11.2 do acórdão
recorrido).
20. Considerando o texto de tal norma, seria fundamental que na
matéria de facto dada como provada ficasse a constar que inexistissem outras
leis aplicáveis aos factos onde se derrogasse aquela comutação, tendo-se
limitado, quer o Tribunal da Relação da Lisboa, quer o tribunal recorrido a
consignar que a referida norma do artigo 34.º-C da Lei de Extradição de 1962 se
encontra em vigor na União Indiana.
21. O tribunal recorrido, ao analisar os argumentos trazidos pelo
extraditando (desde o início, já aquando da dedução da oposição), quanto à
questão da susceptibilidade de aplicação da pena de morte, incorre no erro de
considerar que, sobrevindo norma àquela constante no artigo 34.º-C da Lei de
Extradição indiana que derrogue a hipótese de comutação, esta terá
obrigatoriamente conteúdo mais favorável, para, assim, lançar mão do princípio
universal de direito penal da «não retroactividade da lei penal da lei de
conteúdo mais desfavorável».
22. Considerando que os crimes mais antigos por que é reclamado o
extraditando remontam ao ano de 1991, quid iuris, se entre 1962 e as datas a
que se reportam os vários crimes constantes do pedido de extradição (pelo
menos, 29 anos), tiver entrado qualquer norma em vigor que derrogue aquela
hipótese automática de comutação?!
23. Será esta, manifestamente, a lei aplicável, por ser a lei em
vigor à data da prática do facto, donde resulta nem ser compaginável qualquer
aplicação de princípio de não aplicação retroactiva de lei de conteúdo mais
desfavorável.
24. Assim, a norma do dito n.º 3 do artigo 9.º da Convenção de Nova
Iorque, quando interpretada no sentido de que Portugal se encontra obrigado a
conceder a extradição de pessoas por factos a que cabe, abstractamente, a pena
de morte, dada a garantia de não aplicação dessa pena contida no artigo 34.º-C
do Extradition Act (1962) indiano, não é compatível com o artigo 33.º, n.º 6, da
CRP e deve, nessa medida, ser considerada inconstitucional.
25. Independentemente do que supra se analisou quanto à
inconstitucionalidade do artigo 9.º, n.º 3, da Convenção – na interpretação
que lhe é dada no acórdão recorrido –, por incompatibilidade com o artigo 33.º,
n.º 6, da Constituição, cumpre analisar autonomamente, a possibilidade de
extradição por onze crimes (6 crimes a que se aplica directamente, mais 5, por
via de conversão de pena de morte) em que é aplicável pena de prisão perpétua.
26. E, assim, da compatibilidade da interpretação que quanto ao
mesmo artigo 9.º, n.º 3, da Convenção de Nova Iorque é feita no acórdão
recorrido, com as implicações constitucionais em matéria de extradição por
crimes que impliquem a aplicação de penas de prisão perpétua, nos termos do
artigo 33.º, n.º 4, da Lei Fundamental.
27. Considera o extraditando que a Lei Constitucional aplicável aos
presentes autos é a redacção do artigo 33.º, n.º 4, na versão da Lei
Constitucional n.º 1/2001, e não a sua versão actual, introduzida pela Lei
Constitucional n.º 1/2004.
28. É o que se impõe, designadamente, pelo facto de ser a lei
aplicável aquando da apresentação do pedido de extradição pela União Indiana,
por ter sido a Lei aplicada pelo acórdão recorrido (tal como resulta do acórdão
final corrigido, proferido no dia 3 de Março), em nome dos princípios da
segurança e da confiança jurídicas, da «unidade da Constituição», bem como por
ser a lei de conteúdo mais favorável aos interesses do extraditando.
29. A norma efectivamente aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça,
no segmento do acórdão recorrido (pontos 11.1 a 11.10) em que trata a matéria
ora em análise, é a contida no artigo 9.º, n.º 3, da Convenção de Nova Iorque,
tal como resulta do acórdão final proferido a 3 de Março de 2005.
30. De tal norma resulta que Portugal é incluído no grupo de países
que não condiciona a extradição, de um modo geral, à existência de um tratado
(bilateral), donde resulta uma obrigação para Portugal de considerar como
crimes passíveis de extradição aqueles que vêm elencados no artigo 2.º da
Convenção de Nova Iorque.
31. Há, assim, que cotejar o conteúdo dessa norma com as normas
internas que regulam a extradição, tanto constitucionais (artigo 33.º, n.º 4),
como as que resultam da Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria
Penal (artigos 6.º, n.º 2, alíneas a) e b)).
32. Sabendo que a Convenção de Nova Iorque nem se trata de
convenção cujo fim principal seja a extradição, nada na referida Convenção deve
ser interpretado, sem mais, como obrigação de extraditar, havendo sempre que
aferir «... das condições previstas pelo direito interno do Estado requerido»,
isto é, da sua compatibilidade com o disposto no artigo 33.º, n.º 4, da CRP.
33. O acórdão recorrido, ao sufragar o entendimento de que em
matéria de extradição por crimes a que seja aplicável pena de prisão perpétua, o
Estado português se basta com uma mera convenção, precludiu a imposição
constitucional expressa no segmento «condições de reciprocidade estabelecidas
em convenção internacional».
34. A doutrina mais autorizada vem reconhecendo que esta exigência,
em Estados como o Português, em que não existe pena de prisão perpétua, se
concretiza e «se reflecte sobre as garantias consideradas suficientes, uma vez
que estas terão que ser vinculativas por força de uma convenção ou acordo
internacional».
35. Não basta, portanto, haver reciprocidade, a qual, aliás, não
precisa de estar consubstanciada sob a forma de tratado ou convenção
internacional (conforme resulta do artigo 4.º da Lei de Cooperação Judiciária
Internacional), mas sim, quanto a esta «especial reciprocidade», que a mesma
esteja corporizada sob a específica forma de «convenção internacional».
36. Uma coisa é a mera existência de convenção; outra, bem diferente
e com consequências bem mais vastas, é a mesma Convenção servir de base
convencional por crimes que impliquem a aplicação de pena de prisão perpétua.
37. No presente caso, há convenção constitucionalmente válida,
todavia, quanto à questão da aplicação da pena de prisão perpétua, não há
condições de reciprocidade definidas em Convenção Internacional.
38. Do âmbito de aplicação da Convenção, não se pode concluir que
aprovação e posterior ratificação se tenham também estendido a crimes que
impliquem aplicação de pena de prisão perpétua.
39. Pelo que, necessariamente, para que, nesta matéria, a Convenção
fosse constitucionalmente válida teria de haver intervenção da Assembleia da
República ou do Presidente da República, ou quando muito teria de haver
autorização legislativa ao Governo, visto estarmos no âmbito dos direitos
fundamentais (artigos 135.º, alínea b), 161.º, alínea i), e 165.º, n.º 1,
alíneas b) e c), da Lei Fundamental).
40. Uma vez que as convenções internacionais devem ser aprovadas
pela Assembleia da República e ratificadas pelo Presidente da República, são
esses os órgãos legitimados para legislar em matéria penal e, assim, para
decidir os casos e em que casos em que o Estado português aceita extraditar por
crimes a que seja aplicável a pena de prisão perpétua.
41. Não basta uma qualquer convenção internacional, mas sim uma
Convenção internacional onde especificamente se estabeleçam garantias de que
tal pena não poderá ser aplicada ou executada: «condições de reciprocidade
estabelecidas em Convenção Internacional».
42. Assim, a norma contida no n.º 3 do artigo 9.º da Convenção de
Nova Iorque, quando interpretada no sentido, que lhe deu o acórdão recorrido,
de obrigar Portugal a extraditar uma pessoa por factos a que corresponde,
abstractamente, a pena de prisão perpétua, mesmo na ausência de um
compromisso convencionado entre as Partes de proceder a tal extradição
mediante a prestação de garantias de não aplicação ou execução de tal pena, é
inconstitucional, por violação do n.º 4 do artigo 33.º da Constituição, na
redacção que lhe deu a Lei Constitucional n.º 1/2001.
43. A interpretação acolhida no acórdão recorrido dos mencionados
normativos: artigo 9.º, n.º 3, da Convenção de Nova Iorque e artigo 6.º, n.º 2,
alíneas a) e b), da Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal
violou, portanto, o disposto no artigo 33.º, n.ºs 4 e 6, e nos artigos 111.º,
n.º 2, 135.º, alínea b), 161.º, alínea i), e 165.º, n.º 1, alíneas b) e c),
todos da Constituição da República Portuguesa.”
11. Relativamente a este primeiro recurso, o
representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional apresentou
contra-alegações, concluindo:
“1.° – Está excluída a possibilidade do conhecimento do recurso
relativamente à norma do artigo 6.°, n.° 2, alíneas a) e b), da Lei n.° 144/99,
de 31 de Agosto, uma vez que a questão da inconstitucionalidade não foi
suscitada de modo processualmente adequado.
2.° – De igual forma não se pode tomar conhecimento do recurso
quanto à norma do n.° 3 do artigo 9.° da Convenção Internacional, por falta do
preenchimento do requisito da sua invocação adequada, sendo certo que não
integra o conceito da decisão surpresa o facto do Supremo Tribunal de Justiça a
ter efectivamente aplicado.
3.° – Para a hipótese remota do Tribunal Constitucional entender
tomar conhecimento do recurso é manifesto que nenhuma norma ou princípio
constitucional foi violado, quer tomando como parâmetro a redacção das normas
dos n.ºs 4 e 6 do artigo 33.° da Constituição, de acordo com a revisão de 2001,
quer tendo em consideração a que lhe foi introduzida pela revisão de 2004, em
vigor à data da decisão recorrida, que aplicou as normas cuja conformação
constitucional foi suscitada.
4.° – Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
12. Ainda relativamente ao primeiro recurso, a União
Indiana apresentou contra-alegações (fls. 2029 a 2076), no termo das quais
formulou as seguintes conclusões:
“1.ª O presente recurso de constitucionalidade interposto pelo
extraditando contra o acórdão do Supremo de Tribunal de Justiça de 27 de
Janeiro de 2005 não cumpre os necessários pressupostos processuais de
admissibilidade contidos no artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da
República Portuguesa e artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal
Constitucional, pelo que o Tribunal Constitucional não deve dele tomar
conhecimento.
2.ª Com efeito, no que concerne à a1egada inconstitucionalidade das
normas contidas no artigo 6.º, n.º 2, alíneas a) e b), da Lei n.º 144/99, de 31
de Agosto, não se vislumbra qualquer referência a essa questão, directa ou
indirecta, na resposta apresentada ao recurso do Ministério Público para o STJ,
ou em qualquer outra peça processual anterior ao acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça, de modo que o extraditando não observou o ónus de suscitação atempada
e adequada da questão de constitucionalidade que pretendia ver apreciada pelo
Tribunal Constitucional (cfr. Ponto I., (i) das Alegações, págs. 5 e 6).
3.ª Quanto à pretensa inconstitucionalidade do artigo 9.º, n.º 3, da
Convenção de Nova Iorque, na parte relativa aos crimes puníveis, teoricamente e
em abstracto, com a pena de morte (ponto 5. do requerimento de interposição de
recurso), o presente recurso não deve ser conhecido, em primeiro lugar, porque
percorrendo a reposta do extraditando ao recurso do MP para o Supremo, não se
vê, uma vez mais, qualquer alusão a uma eventual inconstitucionalidade desta
norma (ou de qualquer outra, nomeadamente a do artigo 9.º, n.º 2, da mesma
Convenção) na parte relativa à conversão ope legis operada pelo artigo 34.º-C da
Lei de Extradição Indiana.
4.ª Nessa peça processual, o extraditando limita-se a contestar que
o artigo 34.º-C da Lei de Extradição Indiana seja apto a preencher o conceito
de impossibilidade jurídica de aplicação da pena de morte – conceito pressuposto
na decisão do Tribunal da Relação de Lisboa –, o que é coisa bem diferente de
observar o ónus de suscitação atempada da questão de inconstitucionalidade.
5.ª Por outro lado, e em segundo lugar, resulta claro do acórdão
recorrido que o artigo 9.º, n.º 3, da Convenção de Nova Iorque não foi aplicado
na dimensão normativa cuja conformidade constitucional o extraditando pretende
ver apreciada, pois o Supremo Tribunal de Justiça decidiu, como já havia
decidido, nesta parte, o Tribunal da Relação de Lisboa, que o artigo 34.º-C da
Lei de Extradição Indiana implica uma verdadeira e própria impossibilidade
jurídica de aplicação da pena de morte e, por isso e nessa medida, autorizou a
extradição também por estes crimes.
6.ª Deste modo, não é verdade que o acórdão por ora posto em crise
tenha interpretado o artigo 9.º, n.º 3, da Convenção de Nova Iorque no sentido
de obrigar Portugal à extradição por crimes a que é abstractamente aplicável a
pena de morte «mesmo que não exista uma impossibilidade jurídica de ela vir a
ser aplicada», o que, aliás, revela bem que o que o extraditando pretende é
discutir a interpretação feita pelo Supremo do aludido artigo 34.º-C da Lei de
Extradição Indiana, isto é, fiscalizar a constitucionalidade da própria decisão
judicial (cfr. Ponto I., (ii), a) das Alegações, págs. 7 a 13).
7.ª Quanto à parte do recurso relativa à pretendida
inconstitucionalidade do artigo 9.º, n.º 3, da Convenção de Nova Iorque,
interpretado no sentido de permitir a extradição por crimes puníveis, em
abstracto, com pena de prisão perpétua, «... mesmo na ausência de um compromisso
convencionado entre as Partes de proceder a tal extradição mediante a prestação
de garantias...», cabe frisar que esta concreta questão de constitucionalidade
não foi colocada pelo extraditando, nesta dimensão normativa, antes do Acórdão
do STJ.
8.ª Por um lado, o artigo 9.º, n.º 2, da Convenção de Nova Iorque
não é idêntico ao n.º 3 do mesmo artigo e a questão de inconstitucionalidade não
se coloca nos mesmos termos em relação às duas normas: o n.º 2 prevê uma
faculdade que carece de ser exercida pelos Estados-Contratantes, o que foi
decisivo na decisão do Tribunal da Relação a que o extraditando diz ter
aderido, pois este Tribunal entendeu que a inconstitucionalidade radicaria no
exercício dessa faculdade incumbir ao Governo e não à Assembleia da República.
9.ª No n.º 3, pelo contrário, está em causa uma obrigação que
decorre directamente da Convenção, isto é, da aprovação e ratificação pela
Assembleia da República e Governo, de modo que já não se coloca a questão de
constitucionalidade acerca do órgão competente para exercer o direito contido
no n.º 2.
10.ª Isto é, a dimensão normativa do artigo 9.º, n.º 2, que o
extraditando diz ter reputado inconstitucional na resposta ao recurso do
Ministério Público nada tem que ver com a dimensão normativa efectivamente
aplicada pelo STJ ao abrigo do artigo 9.º, n.º 3, e (agora) arguida de
inconstitucional.
11.ª Finalmente, não se pode considerar que a dimensão efectivamente
aplicada pelo STJ fosse «de todo em todo» inesperada, de tal modo que não lhe
fosse exigível suscitar a sua inconstitucionalidade antecipadamente, tendo em
conta o carácter controvertido desta questão, a proximidade entre o artigo 9.º,
n.º 2 e o n.º 3, e o modo como o pedido de extradição foi originariamente
configurado e subsequentemente promovido pelo Ministério Público junto do
Tribunal da Relação.
12.ª Por outro lado, a concreta inconstitucionalidade que o
extraditando agora imputa ao artigo 9.º, n.º 3, poderia – e deveria, para
permitir o recurso para o TC – ter sido suscitada, nos seus exactos termos, em
relação ao n.º 2, a norma que este julgava ser aplicável, e não o foi (cfr.
Ponto I., (ii), b) das Alegações, págs. 13 a 19).
13.ª Sem prescindir, caso Vossas Excelências entendam tomar
conhecimento do objecto do recurso, deve o mesmo ser julgado improcedente e
confirmada a decisão recorrida, pois o Supremo Tribunal de Justiça não aplicou
qualquer norma inconstitucional.
14.ª Na parte do recurso relativa aos crimes puníveis, teoricamente
e em abstracto, com pena de morte, cabe salientar que, como já foi reconhecido
nos autos, por força das disposições conjugadas do artigo 34.º-C da Lei de
Extradição Indiana e artigo 24.º da Constituição da República Portuguesa, não
se pode sequer dizer que algum dos crimes pelos quais se requer a extradição
seja punível com pena de morte, sendo esta pena juridicamente inaplicável,
porque substituída pela pena de prisão perpétua.
15.ª Nem sequer se está perante uma garantia prestada pela União
Indiana, pois o artigo 34.º-C da Lei de Extradição faz parte do corpo normativo
a que os tribunais indianos estão rigorosamente adstritos; dá que,
rigorosamente, segundo o direito do Estado requisitante, entendido este na sua
globalidade e integralidade (i. e., incluindo o artigo 34.º-C da Lei de
Extradição), a pena de morte não é aplicável a qualquer dos crimes incluídos no
pedido de extradição dos autos.
16.ª O significado do segmento inicial do artigo 34.º-C «Sem
prejuízo do conteúdo de qualquer outra lei à data em vigor» («Notwithstanding
anything contained in any other law...», na versão inglesa), é o de fazer
prevalecer esta norma sobre as demais, não admitindo qualquer derrogação em
contrário, e não, como pretende o extraditando, abrir a hipótese de existirem
normas que excepcionem o que aí está estatuído.
17.ª O extraditando, porventura baseando-se numa dificuldade ou
imprecisão de tradução, parece ignorar que o artigo 34.º-C visa precisamente
salvaguardar a possibilidade de obter a extradição de Estados que, como
Portugal, a recusam quando os crimes em causa são puníveis com pena de morte e
que essa finalidade ficaria irremediavelmente posta em causa na insólita
interpretação aventada nas alegações.
18.ª Finalmente, o extraditando parece também ignorar que o artigo
34.º-C da Lei de Extradição foi, como desde sempre se encontra demonstrado nos
autos, introduzido apenas em 1993, por força do «Amendment Act de 1993», não
estando em vigor, como erroneamente é afirmado, desde 1962 (cfr. Ponto II. (i)
das Alegações, págs. 22 a 29).
19.ª Quanto à última questão constante do recurso, desde a
Revisão Constitucional de 1997 que, em matéria de extradição, a tutela
constitucional do valor da liberdade passou a ser um pouco mais ténue do que a
tutela do valor da vida, tendo o legislador constituinte criado um direito
constitucional mais permissivo para a extradição por crimes a que seja aplicável
pena de carácter perpétuo, mediante reciprocidade e garantias.
20.ª O requisito constitucional «reciprocidade constante em
convenção internacional» deve ser entendido não quanto à prestação de garantias
relativas à não aplicação da pena de prisão perpétua, mas quanto ao próprio
dever de extraditar, exigindo-se, deste modo, que Portugal e o Estado Requerente
em causa sejam partes numa Convenção Internacional que reciprocamente imponha o
dever de extraditar pelos mesmos crimes.
21.ª Esta interpretação do artigo 33.º, n.º 5, veio a ser confirmada
pela Revisão Constitucional de 2004, que, nesta parte, não inovou, limitando-se,
como acertadamente decidiu o STJ, a esclarecer as justificadas dúvidas e
ambiguidades que a anterior redacção suscitava, não tendo criado direito
constitucional novo «mais permissivo», como resulta claramente dos trabalhos
preparatórios.
22.ª Sendo este o correcto sentido da norma constitucional, antes e
depois da Lei Constitucional n.º 1/2004, torna-se claro que o Supremo Tribunal
de Justiça não aplicou uma dimensão normativa do artigo 9.º, n.º 3, da
Convenção de Nova Iorque inconstitucional.
23.ª O Estado Português ficou juridicamente vinculado ao conteúdo
normativo desta Convenção Internacional, nomeadamente ao artigo 9.º, n.º 3,
quando concluiu os mecanismos internos de adesão, sendo certo que essa
vinculação se deu, do ponto de vista jurídico-internacional, através da
Resolução da Assembleia da República n.º 40/2001 (artigo 161.º, alínea i), da
CRP) e posterior ratificação pelo Decreto do Presidente da República n.º 31/2001
(artigo 135.º, alínea b), da CRP).
24.ª Deste modo, quanto aos crimes previstos no artigo 2.º da
Convenção de Nova Iorque, se puníveis com prisão perpétua, verifica-se, por
força dessa Convenção, em relação a todos os Estados-Parte, o requisito
«reciprocidade estabelecida em convenção internacional» ou, por outras
palavras, e mais propriamente, «o Estado requisitante [é] parte de convenção
internacional a que Portugal esteja vinculado» (cfr. Ponto II., (ii) das
Alegações, págs. 29 a 41).
25.ª Assim, e concluindo, tendo em conta que o artigo 33.º, n.º 4,
da anterior redacção da CRP, se correctamente interpretado, não exige, como
pretende o extraditando, que a possibilidade de oferecer garantias de não
aplicação da pena de prisão perpétua esteja especificadamente prevista em
convenção internacional, o Supremo Tribunal de Justiça não aplicou uma dimensão
normativa do artigo 9.º, n.º 3, da Convenção de Nova Iorque inconstitucional ao
autorizar a extradição por crimes puníveis com pena de prisão perpétua mediante
a prestação de garantias relativas à sua não aplicação que foram consideradas
válidas e suficientes.”
13. Relativamente ao segundo recurso, o recorrente
apresentou alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“1. O recorrente, notificado do acórdão final proferido pelo Supremo
Tribunal de Justiça, sob o título de «Garantias», foi confrontado com normas e
institutos jurídicos nunca antes invocados pela União Indiana e que não
instruíram o pedido de extradição e que, nessa medida, não fundamentaram nem o
acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, nem sequer o recurso interposto pelo
Ministério Público.
2. Sendo tal acórdão final insusceptível de recurso, o recorrente
tentou alertar o tribunal a quo, pela via da arguição de nulidade, que uma tal
preclusão do direito do contraditório, como a verificada, sempre feriria tal
segmento decisório do acórdão de inconstitucionalidade, dando assim ao
tribunal a quo «oportunidade» de suprir a omissão do contraditório, fundamento
que motivou o recorrente a suscitar a questão da inconstitucionalidade (no mesmo
sentido, veja-se Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 93/99 – Proc. n.º
676/98, da 2.ª Secção, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
3. Na tentativa, assim, de prevenir uma interpretação
inconstitucional de normas, o recorrente identificou as normas e a respectiva
interpretação, concretamente dos artigos 3.º, n.º 2, e 25.º, n.º 2, da Lei de
Cooperação Internacional em Matéria Penal, em conjugação com os artigos 3.º,
n.º 3, do Código de Processo Civil, operada a remissão através do artigo 4.º do
Código de Processo Penal, para justificar o imperativo de cumprimento do
princípio do contraditório.
4. Em resposta a tal requerimento, por acórdão final proferido no
dia 3 de Março de 2005, o tribunal a quo veio responder de forma em que se pode
concluir claramente que considera expressamente aplicável no âmbito de
processos de extradição o princípio do contraditório, por força do artigo 3.º,
n.º 3, do CPC (cf. ponto 1.7. do acórdão final), princípio esse naturalmente
aplicável em resultado da conjugação das normas constantes dos artigos 4.º do
CPP e 3.º, n.º 2, e 25.º, n.º 2, da Lei de Cooperação Judiciária Internacional
em Matéria Penal.
5. Todavia, o mesmo acórdão consagra o entendimento de que não
estava obrigado a cumprir tal princípio, integrando tais questões em matéria do
seu conhecimento oficioso e por manifesta desnecessidade, sob pretexto de que as
partes já se teriam pronunciado abundantemente sobre tal questão (garantias de
que a pena de prisão perpétua ou pena de morte não poderiam ser aplicáveis).
6. O recorrente suscita, portanto, uma questão de
inconstitucionalidade normativa, resultante de uma concreta interpretação do
artigo 3.º, n.º 3, do CPC, em resultado da remissão dos artigos 3.º, n.º 2, e
25.º, n.º 2, da Lei de Cooperação e do artigo 4.º do CPP, ao considerar-se que o
tribunal não estava obrigado a cumprir o contraditório, por manifesta
desnecessidade, quando se trata de matéria de garantias em processo de
extradição.
7. Ao suscitar a questão de inconstitucionalidade nos termos
delimitados pelo requerimento de interposição de recurso, resulta, pois,
claramente que em causa está uma concreta interpretação de normas ou conjunto de
normas efectivamente aplicadas no acórdão recorrido e não, directamente, a
própria decisão judicial, sendo precisamente a dimensão normativa ou ratio
decidendi aplicada no acórdão recorrido cuja conformidade constitucional
pretende ver apreciada.
8. O presente recurso visa a fiscalização concreta das normas
contidas nos artigos 3.º, n.º 2, e 25.º, n.º 2, da Lei de Cooperação Judiciária
Internacional quando interpretadas no sentido de exonerarem o tribunal
recorrido de cumprir o contraditório, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do CPC,
por remissão do artigo 4.º do CPP, por manifesta desnecessidade.
9. Quando se trata de matéria relativa às garantias prestadas pela
União Indiana, no âmbito de um processo de extradição, com referência a normas
nunca antes invocadas, o que viola o direito e as garantias de defesa do
extraditando, bem como o condicionalismo exigido pela Lei Fundamental quanto à
extradição por crimes que impliquem a pena de prisão perpétua «garantias de que
tal pena não será aplicada ou executada», sendo por isso inconstitucional, por
violação dos artigos 32.º, n.ºs 1 e 5, e 33.º, n.º 4, da Constituição da
República Portuguesa.
10. O Tribunal Constitucional tem admitido a extensão ao processo de
extradição e ao extraditando das garantias constitucionais relativas ao
processo criminal e ao arguido (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional, de 2 de
Outubro de 1987).
11. Para bem se perceber a importância e necessidade do cumprimento
do princípio do contraditório, tratando-se de invocação de novas normas ou leis
no âmbito de um pedido de extradição, vejam-se a título de exemplo os artigos
6.º, n.ºs 2, alíneas a) e b), e 3, e 23.º, n.º 1, alínea f), todos da Lei de
Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal.
12. Não se pode concluir que é inócuo surgirem novas normas e que as
mesmas não carecem de ser notificadas ao extraditando, sob pena de se verem
gorados princípios fundamentais com tutela constitucional, como o princípio de
defesa do extraditando e o princípio da igualdade.
13. Para aferir da validade das garantias prestadas há que
necessariamente convocar e analisar precisamente as normas do Estado
requerente, no caso da União Indiana, no sentido de verificar «nos termos da
legislação e da prática do Estado requerente, a possibilidade de não aplicação
da pena ... a possibilidade de indulto, perdão, comutação de pena ou medida
análoga, previstos na legislação do Estado Requerente».
14. Notificado do acórdão recorrido, constatou o recorrente que, no
ponto 12., sob o título «Garantias», o mesmo consagrou a propósito matéria nova,
não trazida ao seu conhecimento, não obstante ter sido especificamente impugnada
pelo extraditando em sede de recurso.
15. O acórdão recorrido supre o problema da eventual insuficiência
da garantia, remetendo, em nota de rodapé, para os «Memorandos» de fls. 1689 a
1691 e de fls. 1662 a 1666, os quais alegadamente remetem para normas e
institutos da Lei Indiana que nunca foram invocados em momento anterior (nem
no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, nem no recurso
interposto pelo Ministério Público que dedica um capítulo à validade da
garantia), que não constam do processo e, sobretudo, não foram dados a conhecer
ao extraditando para sobre os «mesmos» se pronunciar.
16. A factualidade referente à garantia é fundamental para a defesa
do extraditando, na medida em que no pedido de extradição constam inúmeros
crimes em que é aplicável, em abstracto, pena de prisão perpétua (directamente,
ou por via da conversão das penas de morte por força do artigo 34.º-C do
Extradiction Act, de 1962), o que implica a verificação da sua conformidade
com as exigências constitucionais, tendo refracções directas no âmbito de
aceitação do presente pedido de extradição.
17. O acórdão recorrido não poderia ter tomado em consideração tais
factos novos ou adicionais sem antes ter dado conhecimento ao extraditando do
seu teor para que, quanto aos mesmos, se pudesse pronunciar, sobretudo estando
em causa matéria «tão cara» e fundamental para a apreciação do seu pedido de
extradição.
18. O tribunal a quo, antes da prolação da decisão final, estava,
assim, obrigado a dar cumprimento ao princípio do contraditório, procedendo à
notificação ao extraditando de fls. 1620, 1662 a 1666 e de 1689 a 1691, para
que sobre os teor dos mesmos se pudesse posicionar, dizendo o que se lhe
afigurasse necessário (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional, de 6 de Maio de
1993, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 427, pág. 57).
19. Quaisquer factos novos ou elementos adicionais que surjam em
fase de recurso hão-de, e por maioria de razão, forçosamente ser submetidos ao
princípio do contraditório, por força do princípio geral do contraditório
previsto no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, aplicável ao
processo penal por força do disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal,
igualmente aplicável aos processo de extradição por força dos artigos 3.º, n.º
2, e 25.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99.
20. No caso em apreço, o não cumprimento do princípio do
contraditório, apesar das melhores intenções do tribunal a quo expressas no
acórdão que incidiu sobre a «reclamação» de 3 de Março de 2005 (cf. ponto 1.11),
tem efeitos verdadeiramente perversos e graves.
21. É que, dispondo directamente a Lei Fundamental que só será
admissível a extradição por crimes que impliquem pena de prisão perpétua se
«... o Estado requisitante oferecer garantias de que tal pena ou medida de
segurança não será aplicada ou executada», no caso em apreço, forçoso será
concluir que essas garantias não foram oferecidas pelo Estado requerente, a
União Indiana, mas sim por mero requerimento dos seus mandatários, no âmbito
dos poderes limitados de intervenção que lhes são conferidos neste processo (cf.
artigo 47.º, n.º 4, da Lei de Cooperação Judiciária Internacional).
22. Porquanto a nova lei apenas citada no acórdão recorrido,
Allocation of Business Rules Act, de 1961, não consta sequer do processo.
23. Por outro lado, o suposto «reforço» de garantias colhido pelo
tribunal a quo vai de encontro a todos os obstáculos desde o início suscitados
pelo extraditando, concretamente, quando alega que o «Vice Primeiro-Ministro»
não tem (nunca teve) competência para prestar uma garantia (como a que consta
dos autos) de que «ao extraditando não será aplicada pena de prisão superior a
25 anos», por essa garantia não ser válida e vinculativa para o Estado
requerente e, por maioria de razão, para o Estado português.
24. Porquanto, pela primeira vez, no acórdão recorrido se faz
constar que «... o então, vice primeiro-ministro, B., à data titular da pasta
dos Assuntos Internos (?!) era, nos termos constitucionais e legais indianos, a
entidade competente para prestar a garantia de que não seria aplicada ao
extraditando A. pena de prisão superior a 25 anos».
25. Sabendo que a garantia soberana solene de 17 de Dezembro de 2002
é indubitavelmente subscrita por B., na qualidade de Vice-Primeiro-Ministro
(cf. fls. 6 e 7 dos autos de extradição) e não na qualidade de Ministro dos
Assuntos Internos.
26. Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça, ao proferir o
acórdão recorrido, sem antes ter dado conhecimento ao extraditando de elementos
novos resultantes das peças processuais já mencionadas de fls. 1662 a 1666 e
1689 a 1691, com referência à garantia soberana solene, a uma lei nunca antes
invocada e não constante sequer dos autos, bem como a um artigo da Constituição
Indiana nunca antes invocado e que nem tem correspondência com os actos
efectuados pelo Governo da União Indiana nos presentes autos, preteriu o
principio do contraditório, princípio esse com tutela constitucional,
decorrência do princípio do Estado de Direito democrático, que lhe impunha
cumprir nos termos dos 2.º, 32.º, n.º 1, e 33.º, n.º 4, da Lei Fundamental.
27. A interpretação acolhida no acórdão recorrido dos mencionados
normativos: artigo 3.º, n.º 2, e 25.º, n.º 2, da Lei de Cooperação Judiciária
Internacional em Matéria Penal, 4.º do CPP e 3.º, n.º 3, do CPC, aplicável aos
processos de extradição por força dos normativos anteriores, ao ter decidido que
não era obrigatório dar cumprimento ao princípio do contraditório que emana do
artigo 3.º, n.º 3, do CPC é inconstitucional, porquanto viola o disposto nos
artigos 2.º, 32.º, n.º 1, e 33.º, n.º 4, todos da Constituição da República
Portuguesa.”
14. Relativamente a este segundo recurso, o
representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional apresentou
contra-alegações, concluindo:
“1. Não tendo as normas, cuja inconstitucionalidade se suscita, sido
aplicadas na dimensão normativa invocada, como ratio decidendi pelo acórdão
recorrido, questionando-se no fundo a própria decisão em si, num recurso que só
pode versar sobre conformação normativa à Lei Fundamental, não deverá
conhecer-se do seu objecto.
2. Termos em que nunca o presente recurso poderia proceder.”
15. Também a União Indiana apresentou contra-alegação
relativamente ao segundo recurso, concluindo do seguinte modo:
“1.ª O recorrente pretende ver apreciada a constitucionalidade das
normas contidas nos artigos 3.º, n.º 2, e 25.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99, de 31
de Agosto, quando interpretadas no sentido de exonerarem o tribunal recorrido de
cumprir o princípio do contraditório, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do Código
de Processo Civil (CPC), por remissão do artigo 4.º do Código de Processo Penal
(CPP), por manifesta desnecessidade.
2.ª Não está preenchido o pressuposto processual que exige a
aplicação pelo Tribunal recorrido da norma cuja inconstitucionalidade se
pretende ver apreciada, como ratio decidendi ou fundamento normativo da decisão
judicial reflexamente posta em crise.
3.ª Sendo que o que o recorrente pretende ver apreciado não é a
interpretação de qualquer norma mas sim a decisão judicial do tribunal a quo,
a apreciação e valoração do STJ relativamente ao princípio do contraditório, ou
seja, a própria decisão recorrida.
4.ª O Tribunal a quo configurou a norma referente ao princípio do
contraditório em toda a sua extensão, isto é, como admitindo uma excepção a
tal princípio em casos de manifesta desnecessidade. Simplesmente, atendendo à
matéria em causa, considerou, precisamente, desnecessário tal contraditório.
5.ª Falece também assim o requisito da aplicação pelo tribunal
recorrido, como ratio decidendi, de norma cuja inconstitucionalidade haja sido
suscitada durante o processo uma vez que a dimensão normativa que o recorrente
pretende ver analisada, que afirma ser a interpretação do artigo 3.º, n.º 3, do
CPC, em resultado da remissão dos artigos. 3.º, n.º 2, e 25.º, n.º 2, da Lei da
Cooperação e do artigo 4.º do CPP, não foi a aplicada no acórdão recorrido como
ratio decidendi.
6.ª Pelo exposto, não deve o presente recurso ser admitido, por não
estarem reunidos e verificados os necessários pressupostos processuais
previstos no artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República
Portuguesa e no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal
Constitucional.
7.ª Foi o próprio recorrente quem, na resposta ao recurso do
Ministério Público, interposto da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14
de Julho de 2004, que autorizou parcialmente a extradição requerida, levantou a
questão da validade das garantias prestadas, pelo que a mesma não pode ser
considerada uma «questão nova».
8.ª Os «Memorandos» apresentados pelos mandatários da União
Indiana, a que o recorrente se refere, surgiram no seguimento e em cumprimento
de um despacho do STJ, no qual aquele Tribunal, manifestando dúvidas
relativamente às garantias já prestadas, sugeriu uma eventual garantia
suplementar, concedendo um prazo aos mandatários da União Indiana para sobre tal
se pronunciarem.
9.ª A questão que o recorrente coloca em causa, o saber quem teria
competência, no direito interno da União Indiana, para prestar a garantia de
que certas penas não serão executadas, é uma questão presente desde o início do
processo a que nos estamos a reportar, quer na sua fase administrativa, quer na
sua fase judicial e que o extraditando várias vezes colocou em relevo.
10.ª A aplicação de normas e institutos do direito interno da União
Indiana, pela decisão do STJ, não deve ser considerada imprevisível ou
insólita, devido precisamente às várias questões já suscitadas a propósito das
garantias.
11.ª Não é desrazoável exigir ao recorrente que contasse com tal
aplicação, nomeadamente tendo em conta o conhecimento oficioso que cabia ao
tribunal fazer relativamente ao direito estrangeiro.
12.ª Tem manifesta aplicação a excepção ao princípio do
contraditório, ou seja, o ser um caso de manifesta desnecessidade, por não ser
matéria nova, por ser de conhecimento oficioso e por sobre ela já as partes se
terem pronunciado, tendo vindo do extraditando, por via do seu recurso, o
impulso para se analisar, novamente, a questão.
13.ª A conjugação destes factores permite aferir da manifesta
desnecessidade de dar cumprimento ao princípio do contraditório.
14.ª Não foram os mandatários a oferecer quaisquer garantias
suplementares, tendo somente respondido ao que lhes foi solicitado pelo STJ,
em despacho, prestando esclarecimentos relativamente à garantia já prestada e
demonstrando a disponibilidade da União Indiana para prestar uma garantia
suplementar, caso assim se entendesse.
15.ª É de notar o próprio Ex.mo Conselheiro Relator, na sequência
dos esclarecimentos prestados pela União Indiana, «abandonou» o incidente que
havia suscitado quando se deu conta que a disposição em que se baseara para
suscitar tal incidente (o artigo 6.º, n.º 2, alínea c), da Lei n.º 144/99, de 31
de Agosto) pressupunha um pedido de extradição, que visava a execução de penas
já aplicadas «privativas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração
indefinida», o que não era o caso em análise.
16.ª Também por esse motivo não haveria que dar conhecimento ao
recorrente de tais «Memorandos».
17.ª Deste modo, e em conclusão, o Supremo Tribunal de Justiça não
aplicou qualquer norma inconstitucional, nomeadamente por violação do
princípio do contraditório, não tendo havido qualquer violação dos artigos
32.º, n.ºs 1 e 5, e 33.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa ou de
quaisquer outras normas constitucionais.
Nestes termos, não deve o presente recurso ser admitido, por não
estarem verificados os necessários pressupostos processuais, ou, quando assim
não se entenda, deve o mesmo ser julgado improcedente e, consequentemente,
mantida a decisão recorrida nos seus precisos termos.”
16. Foram juntos aos autos dois pareceres jurídicos: um,
pelo extraditando, ainda no STJ, logo após a apresentação do requerimento de
interposição do primeiro recurso para o Tribunal Constitucional, da autoria do
Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias (fls. 1767 a 1821); outro, pela União
Indiana, na sequência da apresentação das suas contra-alegações neste Tribunal,
da autoria do Prof. Doutor Vital Moreira (fls. 2080 a 2133). O extraditando, ora
recorrente, foi notificado, nos termos do artigo 526.º do Código de Processo
Civil, da apresentação deste último parecer, tendo-lhe no mesmo acto (cf. fls.
2134) sido remetidas cópias das contra-alegações da União Indiana, o que não
lhe suscitou qualquer reacção.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
A) – Recurso do acórdão do STJ de 3 de Março de 2005
17. Começar-se-á pela apreciação do recurso do acórdão
do STJ de 3 de Março de 2005, pois, embora interposto em segundo lugar,
reporta-se a um momento processual (o da eventual audição do recorrente sobre
“elementos” trazidos aos autos pelos mandatários da União Indiana) que, na
tramitação normal do recurso perante o STJ, se localizaria antes da prolação do
acórdão que apreciou o mérito dos recursos interpostos do acórdão do Tribunal da
Relação de Lisboa.
E a primeira questão que o recurso ora em análise
levanta é a da sua admissibilidade, logo suscitada no despacho do relator que
determinou a apresentação de alegações e a que se associaram os recorridos.
Recorde-se que foi o Conselheiro Relator do STJ que, por
despacho de 17 de Dezembro de 2004 (cf. supra, n.º 4), determinou a audição dos
mandatários da União Indiana para se pronunciarem sobre a viabilidade da
prestação de garantia suplementar, que, na perspectiva do autor do despacho, se
mostrava necessário que fosse prestada de forma inequívoca – “a de o Estado
requerente «aceitar [como integrante do pedido de extradição] a conversão das
penas [se, efectivamente, de morte ou de prisão perpétua ou indefinida], por um
tribunal português, segundo as disposições da lei portuguesa aplicáveis aos
crimes [que, eventualmente, venham a motivar uma tal condenação]» (cf. artigo
6.º, n.º 2, alínea c), da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto)”.
Em resposta a este convite, os mandatários da União
Indiana apresentaram os requerimentos de fls. 1662-1666 e 1689-1691 (cf., supra,
n.ºs 5 e 6), em que, não obstante reiterarem a opinião de já haver sido prestada
garantia suficiente, manifestam disponibilidade para prestação de garantia
adicional, se reputada necessária, não sem aludir (cf. n.º 10 do primeiro
requerimento) a que sempre haviam entendido que a garantia prevista no artigo
6.º, n.º 2, alínea c), da Lei n.º 144/99, se aplicava “apenas a casos de
cooperação judiciária internacional relativos a agentes já condenados, e não a
casos de extradição para julgamento dos agentes no Estado requerente”.
Foi por, de seguida, ter sido proferido o acórdão de 27
de Janeiro de 2005, que concedeu provimento ao recurso do Ministério Público,
que conteria, no ponto 12., sob o título “Garantias”, “matéria nova”,
remetendo para os aludidos dois requerimentos, sem que ao extraditando tivesse
sido notificada a apresentação dos mesmos, que o extraditando veio arguir a
nulidade desse acórdão, por preterição do princípio do contraditório, referindo
ainda que “uma interpretação dos artigos 3.º, n.º 2, e 25.º, n.º 2, da Lei n.º
144/99, de 31 de Agosto, que entenda não ser extensível ao processo de
extradição o princípio do contraditório previsto no artigo 327.º do CPP e no
artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo
4.º do CPP, sempre se encontraria ferida de inconstitucionalidade, por violação
dos artigos 32.º, n.º 1, e 32.º, n.º 5, da Lei Fundamental” (cf., supra, n.º
8).
Esta arguição de nulidade foi desatendida pelo acórdão
do STJ de 3 de Março de 2005, com a seguinte fundamentação: (i) as considerações
contidas no ponto 12. (“Garantias”) do precedente acórdão inserem-se no âmbito
da indagação, que oficiosamente lhe compete, do direito estrangeiro (no caso,
do direito interno do Estado requerente da extradição com relevância para o
apuramento da suficiência da garantia prestada no sentido da não aplicação da
pena de prisão perpétua), não sendo imposto que “o Supremo, ao aplicá-lo (como a
Relação, aliás, já aplicara, embora sem identificação dos respectivos diploma e
§), dele devesse dar prévio conhecimento ao extraditando”; (ii) tratava-se de
questão que “não só não constituía «questão nova» como sobre ela já as partes se
haviam pronunciado abundantemente”; (iii) a observância do contraditório é
dispensável em caso de desnecessidade, e, no caso, os requerimentos apresentados
pelos mandatários da União Indiana foram “produzidos no âmbito de um incidente
suscitado pelo relator em 17 de Dezembro de 2004 e por ele «abandonado» logo que
se deu conta de que a disposição em que para tanto se estribara – a do artigo
6.º, n.º 2, alínea c), da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto – pressupunha um
pedido de extradição (que não era o sub specie) que visasse a execução de penas
– já aplicadas – «privativas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração
indefinida»”; (iv) as alusões feitas no acórdão a algumas afirmações contidas
nesses requerimentos tiveram por propósito “de forma indirecta (...) – em
benefício, afinal, do extraditando – «vincular» a União Indiana, como que em
reforço das garantias já prestadas, aos seus próprios «protestos» de
reafirmação e estrito cumprimento dessas garantias”; (v) o STJ, “ao assim
proceder, não conheceu de qualquer questão de que não pudesse tomar conhecimento
(pois que apenas tratou de questões colocadas nos recursos, ainda que com apelo
a normas que, até aí implicitamente invocadas, só nele vieram a ser
explicitamente identificadas), única situação em que, nessa parte, o acórdão
poderia ter incorrido em «nulidade» (artigos 425.º, n.º 4, e 379.º, n.º 1,
alínea c), do CPP)”.
Atenta a fundamentação deste acórdão e os termos em que
a questão de constitucionalidade em causa no presente recurso foi colocada pelo
recorrente – quer na peça processual (arguição de nulidade do primeiro acórdão)
em que a suscitou (aludindo à “interpretação dos artigos 3.º, n.º 2, e 25.º,
n.º 2, da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, que entenda não ser extensível ao
processo de extradição o princípio do contraditório previsto no artigo 327.º do
CPP e no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, aplicável por força do
artigo 4.º do CPP”), quer no requerimento de interposição de recurso (cf.,
supra, n.º 9, aludindo à interpretação das mesmas normas que entenda que elas
“não obrigam ao cumprimento do contraditório (...) por manifesta desnecessidade
e por nos encontrarmos no âmbito de matéria que se insere no âmbito de cognição
do tribunal recorrido”), quer nas correspondentes alegações (cf., supra, n.º
13, aludindo à interpretação das mesmas normas no sentido de que nos processos
de extradição “não era obrigatório dar cumprimento ao princípio do
contraditório”, sem mais) –, e mesmo admitindo que as alegadas violações da
Constituição não são directamente reportadas à decisão judicial recorrida e que
é possível discernir, apesar das oscilações registadas na sua identificação, um
critério normativo cuja conformidade constitucional foi questionada, entende-se
que, no caso, não existe coincidência entre a dimensão normativa questionada e
a dimensão normativa aplicada, como ratio decidendi, pela decisão recorrida.
A norma central aqui em causa é a do artigo 3.º, n.º 3,
do Código de Processo Civil (CPC), já que as normas dos artigos 3.º, n.º 2, e
25.º, n.º 2, da LCJIMP se limitam a considerar subsidiariamente aplicáveis as
disposições do CPP, e a norma do artigo 327.º do CPP, invocada pelo recorrente,
reafirma a operatividade do princípio do contraditório na decisão das questões
incidentais sobrevindas no decurso da audiência de julgamento e na produção de
meios de prova apresentados em audiência de julgamento (neste contexto, seria
mais adequada, para sustentar a aplicabilidade do artigo 3.º, n.º 3, do CPC, a
invocação do artigo 4.º do CPP).
Ora, a norma do artigo 3.º, n.º 3, do CPC (“O juiz deve
observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do
contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade,
decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso,
sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”)
contém uma regra, condicionada a um pressuposto, e uma excepção. O pressuposto é
o de que o tribunal tenha de decidir questão sobre a qual as partes ainda não
tiveram possibilidade de se pronunciar; a regra é a de que, nesses casos, o
tribunal não deve decidir sem conceder às partes possibilidade de se
pronunciarem; a excepção é a de que o tribunal pode não ouvir as partes, mesmo
que se trate de questão sobre a qual elas ainda não se pronunciaram, se
considerar essa audição manifestamente desnecessária.
O acórdão recorrido, no seu ponto 1.8 (transcrito,
supra, no n.º 8), entendeu – e esta foi a sua primeira e principal ratio
decidendi – que sobre a questão em causa “já as partes se haviam pronunciado
abundantemente”, pelo que nem sequer se verificava o pressuposto de aplicação
da regra do n.º 3 do artigo 3.º do CPC. Só como fundamentação adjuvante ou
reforçativa é que, no subsequente ponto 1.9, o STJ refere que a observância da
regra do contraditório (supondo que fosse operativa no presente caso, o que já
fora afastado no número anterior) é dispensável em caso de manifesta
desnecessidade, e, em seguida, desenvolve as razões pelas quais entende que,
mesmo na hipótese de ser devido o acatamento dessa regra, o mesmo seria de
reputar manifestamente desnecessário.
Ora, o recorrente, no requerimento de interposição deste
recurso de constitucionalidade (referenciado supra, n.º 9) – quando já estava
na posse de todos os elementos necessários para identificar a dimensão
normativa aplicada pelo STJ e em que, portanto, já não podia beneficiar da
compreensão por eventual menos rigor nessa identificação que se justificava
quando, perante uma mera omissão de actuação processual do STJ (falta de
notificação das respostas dos mandatários da União Indiana), teve de, na
arguição dessa nulidade, suscitar pela primeira vez a questão de
inconstitucionalidade –, nenhuma questão de inconstitucionalidade suscita a
propósito da primeira e principal ratio decidendi do acórdão do STJ: a de que,
por se tratar de questão sobre a qual as partes já se haviam pronunciado, não
era sequer aplicável a regra do contraditório. Na verdade, nesse requerimento,
o recorrente apenas suscita a inconstitucionalidade das referidas normas, “na
interpretação (...) segundo a qual tais normas não obrigam ao cumprimento do
princípio do contraditório (...) por manifesta desnecessidade e por nos
encontrarmos no âmbito de matéria que se insere no âmbito de cognição do
tribunal recorrido”. Mas, como se demonstrou, não foi essa a ratio decidendi do
acórdão recorrido.
Não tendo o recorrente englobado no âmbito do presente
recurso a inconstitucionalidade da interpretação normativa em que se baseou o
principal fundamento da decisão ora em apreço – a de que não se aplica a regra
do contraditório, consagrada no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, quanto a decisão de
questões (identificada a “questão” como sendo a da “competência – perante o
respectivo direito interno – do Ministro dos Assuntos Internos da União Indiana
para prestar ao Estado requerido a «garantia» de que eventual pena perpétua
seria objecto de «perdão» ou «indulto» de modo a que a pena a executar não
excedesse 25 anos de prisão”) sobre as quais as partes já se pronunciaram –, é
manifesto que se verifica uma situação de não identidade entre a dimensão
normativa aplicada como ratio decidendi determinante e a dimensão normativa
arguida de inconstitucionalidade, que obsta à admissibilidade do recurso e ao
conhecimento do seu objecto.
Acresce que, mesmo que o Tribunal Constitucional viesse
a apreciar a constitucionalidade da dimensão normativa invocada em segunda
linha pelo acórdão recorrido (se valesse a regra do contraditório, a sua
observância seria de considerar, no caso, manifestamente desnecessária), e
mesmo que viesse a conceder provimento ao recurso, tal decisão nenhuma
repercussão teria no sentido final da decisão impugnada, uma vez que esta sempre
se manteria, com o mesmo conteúdo, ancorada no primeiro fundamento.
Por estas razões, o recurso interposto do acórdão do STJ
de 3 de Março de 2005 surge como inadmissível, pelo que dele não se tomará
conhecimento.
B) – Recurso do acórdão do STJ de 27 de Janeiro de 2005
18. Relativamente a este recurso, foram suscitadas pelo
relator, no despacho que determinou a apresentação das respectivas alegações
(cf., supra, n.º 9), as questões prévias de eventual não conhecimento, por não
adequada suscitação pelo recorrente, perante o tribunal recorrido, das questões
de constitucionalidade, quer das normas do artigo 6.º, n.º 2, alíneas a) e b),
da LCJIMP, quer da norma do artigo 9.º, n.º 3, da Convenção de Nova Iorque.
A inadmissibilidade do recurso quanto à primeira questão
é patente: percorrendo quer a motivação do recurso do extraditando para o STJ
quer a sua resposta à motivação do recurso do Ministério Público (peça por ele
especificamente referida como sendo aquela onde teria suscitado tal questão),
nenhuma alusão é feita ao artigo 6.º, n.º 2, alíneas a) e b), da LCJIMP,
designadamente à sua eventual inconstitucionalidade. A referência a esta questão
de inconstitucionalidade surge, pela primeira vez, no requerimento de
interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, o que, como é sabido,
não constitui momento oportuno para esse efeito.
Por estas razões, não se conhecerá de tal questão no
âmbito do presente recurso.
19. Diferente é a questão a dar à segunda “questão
prévia” suscitada.
Dispõe o artigo 9.º da Convenção de Nova Iorque, de que
Portugal e a União Indiana são partes:
“1 – Os crimes previstos no artigo 2.º serão considerados como
crimes passíveis de extradição em qualquer tratado de extradição celebrado entre
Estados Partes antes da entrada em vigor da presente Convenção. Os Estados
Partes comprometem-se a considerar tais crimes como passíveis de extradição em
qualquer tratado de extradição a ser subsequentemente celebrado entre eles.
2 – Se um Estado Parte, que condiciona a extradição à existência de
um tratado, receber um pedido de extradição formulado por outro Estado Parte com
o qual não tenha qualquer tratado de extradição, o Estado Parte requerido
poderá, se assim o entender, considerar a presente Convenção como a base
jurídica para a extradição relativamente aos crimes previstos no artigo 2.º. A
extradição ficará sujeita às restantes condições previstas pelo direito interno
do Estado requerido.
3 – Os Estados Partes que não condicionem a extradição à existência
de um tratado reconhecerão os crimes previstos no artigo 2.º como passíveis de
extradição nas condições previstas pelo direito interno do Estado requerido.
(...).”
São distintos o âmbito de aplicação e a prescrição
contidos nos n.ºs 2 e 3: o n.º 2 aplica-se aos Estados que condicionam a
extradição à existência de um tratado, e faculta-lhes a possibilidade de
considerarem a Convenção como base jurídica para a extradição relativamente aos
crimes previstos no artigo 2.º; o n.º 3 aplica-se aos Estados que não
condicionam a extradição à existência de um tratado e impõe-lhes o dever de
considerarem esses crimes como passíveis de extradição.
Ao longo de todo o presente processo, quer na fase
administrativa, quer na judicial, até à prolação do acórdão ora recorrido,
todos os intervenientes partiram do pressuposto de que era aplicável a norma do
n.º 2 do artigo 9.º. Desde logo, o parecer do Procurador-Geral da República,
acolhido no despacho da Ministra da Justiça, refere o artigo 9.º, n.º 2, da
Convenção de Nova Iorque, e parte do pressuposto de que Portugal condiciona a
extradição à existência de um tratado (cf., supra, n.º 1).
O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, recorrido
para o STJ, também expressamente reconhece que é aplicável esse n.º 2 do artigo
9.º, e, aliás, o fundamento para a recusa de autorizar a extradição quanto aos
crimes puníveis com pena de morte ou com pena de prisão perpétua, utilizado
nesse acórdão, só é compreensível no âmbito desse preceito: é por se entender
que a Convenção apenas possibilita (não vincula) o Estado Português a conceder
a extradição que se considerou, nesse acórdão, que a vinculação para a conceder,
no presente caso, não podia provir de um acto de um membro do Governo (a
Ministra da Justiça), mas sim dos órgãos constitucionalmente habilitados a
vincular o Estado Português, que são, atentas as matérias em causa (direitos,
liberdades e garantias e processo criminal), a Assembleia da República e o
Presidente da República.
Também toda a motivação do recurso interposto pelo
Ministério Público foi estruturada na base da subsunção do caso à previsão do
n.º 2 do artigo 9.º (cf. conclusão 6.ª), e, naturalmente, foi na mesma
perspectiva que o extraditando elaborou a sua resposta a esse recurso e suscitou
a questão da inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 9.º da Convenção
de Nova Iorque, em termos, aliás, coincidentes com os aduzidos no acórdão do
Tribunal da Relação.
Efectivamente, só no acórdão do STJ de 27 de Janeiro de
2005 é que, pela primeira vez em todo o processo, se alude ao n.º 3 do artigo
9.º da Convenção de Nova Iorque e, mais, se considera ser o mesmo aplicável ao
caso dos autos. Como se demonstra nos n.ºs 11.2. a 11.8. desse acórdão (objecto
de correcção pelo acórdão de 3 de Março de 2005 – cf. supra, n.º 8), “Portugal
não condiciona a extradição, de um modo geral, à existência de um tratado
(bilateral)” (n.º 11.4), e “daí que se não aplique ao caso – contra o que o
tribunal a quo pressupôs – o n.º 2 [mas, sim, o n.º 3] do artigo 9.º da
«Convenção de Nova Iorque, 1998»” (n.º 11.7.).
Neste contexto, se não se pode afirmar que a aplicação
da norma do n.º 3 do citado artigo 9.º fosse totalmente imprevisível, anómala ou
insólita (antes aparecendo até eventualmente como a mais correcta), é certo que
ela foi inesperada, por nunca antes aventada nos autos. E isto é quanto basta
para que não se vede ao extraditando a possibilidade de ver apreciada pelo
Tribunal Constitucional a constitucionalidade de uma interpretação normativa
acolhida, pela primeira vez, oficiosamente, no acórdão recorrido, sem sequer ter
sido sugerida ou defendida pelos restantes intervenientes processuais.
Conhecer-se-á, pois do recurso interposto do acórdão do
STJ de 27 de Janeiro de 2005, embora com o respectivo âmbito circunscrito à
questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 9.º, n.º 3, da Convenção de
Nova Iorque, quer “na interpretação (…) segundo a qual (…) obrigaria Portugal à
extradição por crimes a que é abstractamente aplicável a pena de morte, mesmo
que, dado o teor na norma indiana constante dos autos (artigo 34.º-C do
Extradiction Act de 1962), não exista uma impossibilidade jurídica de ela vir a
ser aplicada”, quer “quando interpretada no sentido (…) de obrigar Portugal a
extraditar uma pessoa por factos a que corresponde, abstractamente, a pena de
prisão perpétua, mesmo na ausência de um compromisso convencionado entre as
Partes de proceder a tal extradição mediante a prestação de garantias de não
aplicação ou execução de tal pena”.
A circunstância de, relativamente à primeira dimensão
normativa indicada, o acórdão recorrido não ter reconhecido a inexistência de
impossibilidade jurídica de aplicação da pena de morte prende-se já com o mérito
do recurso, não justificando essa divergência de juízos, entre tribunal
recorrido e recorrente, quanto à existência ou inexistência de tal
impossibilidade jurídica, que se considere que, por falta de coincidência
entre a dimensão normativa aplicada e a impugnada, o recurso também era
inadmissível nesta parte, como sustentam os recorridos.
20. Entrando na apreciação do mérito deste recurso,
cumpre, antes de mais, determinar o parâmetro constitucional aplicável, uma vez
que os crimes imputados ao extraditando abstractamente puníveis com pena de
morte ou de prisão perpétua foram cometidos nos anos de 1992, 1993 e 1995, na
vigência da versão da CRP de 1989, o pedido de extradição foi apresentado e o
acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa foi proferido na vigência da versão de
2001 e, por último, o acórdão do STJ, ora recorrido, foi prolatado já na
vigência da versão de 2004 da CRP. Ora, partindo do pressuposto (aventado nos
autos e cuja correcção será adiante analisada) de que a versão de 2004, sendo
mais facilitadora da concessão de extradição, é mais desfavorável para o
extraditando, coloca-se o problema da aplicação no tempo das sucessivas versões
constitucionais.
Questão aparentada com a presente já foi suscitada
perante o Tribunal Constitucional face à expressa consagração do princípio da
irretroactividade da lei fiscal na revisão de 1997, embora então a alteração
constitucional fosse de sinal contrário à ora pressuposta: enquanto a versão de
2004, na apontada perspectiva, seria mais desfavorável para o extraditando, a
alteração da constituição fiscal em 1997 foi mais favorável para os
contribuintes, já que, antes dela, se entendia (designadamente a jurisprudência
do Tribunal Constitucional) que nem toda a irretroactividade fiscal era
inconstitucional, mas só aquela que ofendesse de modo inadmissível e intolerável
a confiança e a segurança jurídicas. O Tribunal Constitucional começou – nos
Acórdãos n.ºs 275/98, 540/98, 620/98 e 689/98 – por considerar inadmissível a
atendibilidade da nova redacção por as decisões judiciais então recorridas serem
anteriores à entrada em vigor da revisão constitucional de 1997. No Acórdão n.º
172/2000, em que, pela primeira vez, apesar de a decisão da 1.ª instância ser
anterior à entrada em vigor do texto da 4.ª Revisão Constitucional, a decisão
judicial recorrida (acórdão do Supremo Tribunal Administrativo) fora proferida
já na vigência da revisão constitucional de 1997, o Tribunal Constitucional
entendeu que essa decisão devia ter utilizado como parâmetro do juízo de
constitucionalidade o texto da Constituição resultante dessa revisão,
derivando do novo artigo 103.º, n.º 3, a inconstitucionalidade superveniente de
normas retroactivas em matéria fiscal. Deste entendimento viria a afastar-se o
Acórdão n.º 193/2001, utilizando basicamente os fundamentos desenvolvidos no
voto de vencido aposto pelo Cons. Cardoso da Costa naquele Acórdão n.º
172/2000, e no mesmo sentido do Acórdão n.º 193/2001, e com a mesma
fundamentação, viriam a decidir os Acórdãos n.ºs 284/2001 e 306/2001, tendo,
por último, o Acórdão n.º 110/2002, em recurso para o plenário interposto, ao
abrigo do art. 79.º-D da LTC, contra o Acórdão n.º 306/2001, com fundamento em
oposição com o decidido no Acórdão n.º 172/2000, confirmado aquele Acórdão n.º
306/2001. Para a solução prevalecente, para além de considerações ligadas às
indesejáveis consequências de a diferença de tratamento de situações
tributárias contemporâneas acabar por derivar tão-somente da diversidade do
momento da prolação, em cada caso, das últimas decisões judiciais, foi
determinante a consideração de que “no contencioso administrativo, a
intervenção judicial se faz para apreciação da legalidade de uma decisão da
Administração que foi produzida num determinado momento e no quadro de um
ordenamento jurídico então vigente, de acordo com o princípio, assente
pacificamente, do tempus regit actum”, pelo que não haveria “qualquer razão
para os princípios e normas constitucionais especificamente reguladoras desse
contencioso se não regerem quanto à sua aplicação no tempo pelas mesmas regras
que disciplinam o direito administrativo infraconstitucional”. Não deixou,
porém, a aludida declaração de voto (e os posteriores acórdãos que a ela
aderiram) de assinalar que o princípio da não retroactividade, isto é, o de que
as leis só valem, em princípio, para o futuro, também aplicável às normas
constitucionais, como o evidencia o artigo 282.º, n.º 2, da CRP, não excluía de
todo a ocorrência de excepções, dando justamente como exemplo paradigmático “o
caso do domínio penal, quando aí caiba aplicar o princípio consignado na parte
final do artigo 29.º, n.º 4, ainda da Constituição”.
Revertendo ao caso ora em análise, há que assinalar que,
diversamente dos limites dos poderes de cognição então impostos aos tribunais
administrativos (e tributários) no âmbito da impugnação de actos administrativos
(e tributários), cingidos à apreciação da legalidade do acto impugnado, tendo
em conta a realidade de facto e o quadro jurídico existentes à data da prática
desse acto, os tribunais judiciais gozam de poderes de plena jurisdição quando
apreciam pedidos de extradição, pelo que, em regra, deverão atender ao quadro
jurídico vigente à data da prolação da decisão judicial. Mas, sendo isto certo,
não menos certo é que, nesse específico domínio, estão sujeitos ao princípio da
legalidade, consagrado, explicitamente para o domínio penal, pelo n.º 4 do
artigo 29.º da CRP, mas que – adiante-se desde já – há que considerar aplicável
também a, pelo menos, certa categoria de normas processuais penais, às quais se
devem equiparar as normas que regulam a admissibilidade de extradição.
Quanto ao primeiro aspecto, as primeiras decisões
proferidas pelo Tribunal Constitucional foram no sentido de considerar que
aquele artigo 29.º, n.º 4, da CRP apenas respeitava à aplicação da lei criminal,
não valendo para os preceitos processuais, para os quais regia o artigo 32.º,
que não previa qualquer princípio de aplicação retroactiva de normas mais
favoráveis: cf. Acórdãos n.ºs 155/88 e 70/90, que não julgaram inconstitucional
a norma do artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro,
enquanto impedia a aplicação aos processos pendentes das normas dos artigos
215.º e 217.º do Código de Processo Penal por ele aprovado, apesar de
estabelecerem prazos de prisão preventiva mais favoráveis para os arguidos,
tendo o Acórdão n.º 70/90 sido objecto de anotação crítica de J. J. Gomes
Canotilho (Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 123.º, n.º 3792,
págs. 94 a 96), que, na esteira do ensinamento de Figueiredo Dias (Direito
Processual Penal, vol. I, Coimbra, 1981, pág. 32; Direito Processual Penal,
policopiado, Coimbra, 1988/89, pág. 10), preconizou a extensão daquele
princípio “às normas ou fragmentos de normas processuais penais de natureza
substantiva”, como tais se considerando “as normas processuais penais que
condicionem a responsabilidade penal ou contendam com os direitos fundamentais
do arguido ou do recluso”.
Posteriormente, o Tribunal Constitucional veio a admitir
a aplicabilidade do princípio do artigo 29.º, n.º 4, da CRP a determinadas
categorias de normas processuais penais. Assim, pelos Acórdãos n.ºs 250/92 e
451/93 foi julgada inconstitucional, também por violação desse preceito
constitucional, a norma do referido artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 78/87,
agora na parte em que mandava aplicar aos processos pendentes regras do artigo
667.º do CPP de 1929, que admitiam a reformatio in pejus em condições
postergadas pelo novo CPP, já que estava em causa “a questão de
constitucionalidade de normas que têm a ver directamente com a pena aplicável”,
acolhendo-se a opinião de Figueiredo Dias de que “(...) importa que a aplicação
da lei processual penal a actos ou situações que decorrem na sua vigência, mas
se ligam a uma infracção cometida no domínio da lei processual antiga, não
contrarie nunca o conteúdo da garantia conferida pelo princípio da legalidade.
Daqui resultará que não deve aplicar-se a nova lei processual penal a um acto
ou situação processual que ocorra em processo pendente, sempre que da nova lei
resulte um agravamento da posição processual do arguido ou, em particular, numa
limitação do seu direito de defesa”.
A extensão do princípio da aplicação do regime mais favorável
a normas processuais sobre direito de recurso, por este, “enquanto garantia de
defesa, prefigura[r] uma questão de natureza processual «quase substantiva»”,
foi admitida pelo Acórdão n.º 207/94, embora, no caso, não tenha sido emitido
juízo de inconstitucionalidade por entre o questionado Assento de 24 de Janeiro
de 1990 e a norma por ele interpretada (artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 605/75,
de 3 de Novembro) não se verificar uma situação de sucessão de regimes jurídicos
distintos, formando o Assento e a norma um complexo normativo incindível.
Esta extensão do princípio do n.º 4 do artigo 29.º da CRP ao
processo penal foi reafirmada pelo Acórdão n.º 183/2001, a propósito de
alteração operada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, ao artigo 400.º, n.º 1,
alínea d), do CPP, de que resultaria a admissibilidade de recurso que até aí não
era contemplado. A esse propósito, expendeu-se nesse Acórdão:
“De acordo com a perspectiva da recorrente (perspectiva essa pressuposta pela
decisão recorrida), o recurso que não era admissível em face do artigo 400.º,
n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal, na versão originária, sê-lo-ia à
luz da redacção conferida a esse preceito pela Lei n.º 59/98.
Colocada a questão nestes termos, é legítimo suscitar o problema de saber se
não se deverá submeter ao disposto no artigo 29.º, n.º 4, in fine, da
Constituição, este tipo de casos, aplicando-se, então, obrigatoriamente o regime
mais favorável ao arguido (...). Estará, assim, posto em causa, por eventual
violação do artigo 29.º, n.º 4, in fine, da Constituição, o próprio critério de
aplicação da lei no tempo, constante do mencionado artigo 6.º, n.º 2, da Lei
n.º 59/98.
A esta hipótese poder-se-ia, desde logo, objectar com a
circunstância de a matéria em questão respeitar ao processo penal, enquanto o
artigo 29.º, n.º 4, da Constituição, apenas se referir ao direito penal
substantivo.
Uma tal visão do problema não pondera, porém, que existem normas
processuais penais materiais que, assim como as normas de direito penal, também
afectam os direitos fundamentais. É o caso paradigmático das normas relativas à
prisão preventiva, mas é também, segundo alguma doutrina, o caso das normas
referentes aos graus de recurso, na medida em que conferem (ou não)
possibilidades acrescidas de o arguido ver o seu caso reapreciado e decidido em
sentido favorável (cf., quanto a este aspecto, Taipa de Carvalho, Sucessão de
Leis Penais, 2.ª ed. revista, 1997, p. 260 e ss., onde esse autor autonomiza as
normas processuais penais formais das normas processuais penais materiais; cf.,
também, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, lições coligidas por
Maria João Antunes, 1988, p. 80 e ss., em que o autor afasta a possibilidade de
recurso à analogia no direito processual penal «na medida imposta pelo conteúdo
de sentido do princípio da legalidade e, portanto, sempre que o recurso venha a
traduzir-se num enfraquecimento da posição ou numa diminuição dos direitos
processuais do arguido»).
Relativamente às normas processuais penais que afectam (ou que são
susceptíveis de afectar) direitos fundamentais poderá existir, assim,
justificação para a aplicação do princípio de imposição da retroactividade da
lei penal mais favorável. Os princípios da necessidade e da intervenção mínima
do Direito, no que respeita à limitação dos direitos, liberdades e garantias
(artigo 18.º, n.º 2, da Constituição), decorrente do princípio geral da
liberdade, e ainda o princípio da igualdade, subjacentes à solução da aplicação
retroactiva da lei penal mais favorável, poderão justificar, também, a aplicação
de tal regra constitucional no âmbito das denominadas normas processuais penais
materiais, uma vez que aí está igualmente em causa a tutela de direitos,
liberdades e garantias (cf. Taipa de Carvalho, ob. cit., p. 101 e ss.).”
Assente a aplicabilidade do princípio do artigo 29.º, n.º 4,
da CRP às “normas processuais penais materiais”, resta recordar que desde sempre
o Tribunal Constitucional reconheceu natureza penal à fase judicial do processo
de extradição. Fê-lo quando julgou (Acórdãos n.ºs 45/84, 192/85 e 147/86) e
depois declarou, com força obrigatória geral (Acórdão n.º 54/87),
inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP, a norma do
artigo 33.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de Agosto, que estabelecia
a ordem de intervenção do extraditando e do Ministério Público para alegações,
dando a última palavra ao Ministério Público. Como se lê no Acórdão n.º 54/87,
que procedeu à generalização dos anteriores juízos de inconstitucionalidade:
“O processo judicial de extradição visa decidir da legitimidade da
entrega de um cidadão estrangeiro às autoridades de um Estado estrangeiro,
para aí ser julgado por certo crime ou para cumprir pena a que tenha sido
condenado (Decreto-Lei n.º 437/75, artigo 2.º). É, portanto, um processo de
escopo inquestionavelmente penal. No processo de extradição não se julga
criminalmente nem se condena o extraditado, mas é manifesto que é através da
extradição que o extraditado pode vir a ser julgado e condenado ou obrigado a
cumprir uma pena.
Por conseguinte, o processo judicial de extradição tem a ver
directamente com a liberdade pessoal do extraditando. Não apenas porque em
consequência da extradição pode vir a ser condenado a prisão ou ter de cumprir
a pena a que já tenha sido condenado, mas também, e desde logo, porque a
extradição implica a sua saída forçada do País e a sua transferência para outro
país, o que tudo se traduz em sacrifícios da sua liberdade pessoal. Aliás, o
processo de extradição integra naturalmente como acto necessário a prisão do
extraditando (Decreto-Lei n.º 437/75, artigos 11.º, 12.º e 28.º, n.º 3, e CRP,
artigo 27.º, n.º 3, alínea b)).
A natureza criminal do processo de extradição revela-se também em
alguns aspectos do seu regime legal. A lei processual penal comum é referida em
várias disposições a título supletivo (cf. os artigos 14.º, 34.º, n.º 2, e 50.º,
n.º 1, do Decreto-Lei n.º 437/75).
O recurso das decisões da Relação faz-se para a secção criminal do
Supremo Tribunal de Justiça (artigos 26.º, n.º 3, e 33.º, n.º 2).
A favor da natureza penal do processo judicial de extradição
pronuncia-se a melhor doutrina. No Acórdão n.º 192/85 transcreve-se a seguinte
posição de um autor, que não é de mais reproduzir também aqui:
«A fase judicial do processo de extradição fundado num crime é sem
dúvida, tanto formal como substancialmente, processo penal, mesmo no seu sentido
mais estrito: por isso mesmo, a tendência é hoje para integrar as normas do
processo de extradição nos códigos de processo penal (...) ou, pelo menos, para
fazer constar daqueles uma norma de reenvio para legislação especial em matéria
de extradição.» (J. Figueiredo Dias, in Revista de Legislação e de
Jurisprudência, ano 118.º, p. 14, nota, 3.]
Foi com base neste conjunto de considerações que os acórdãos que
estão na base do presente pedido de declaração de inconstitucionalidade com
força obrigatória geral concluíram pela caracterização penal do processo de
extradição.”
De quanto se expôs conclui-se que a regra a adoptar quanto à
aplicação no tempo das normas constitucionais relativas à autorização de
extradição deve ser a de considerar relevante a redacção da Constituição
vigente à data da formulação do pedido de extradição, só sendo aplicáveis normas
constitucionais supervenientes se se mostrarem mais favoráveis para o
extraditando. Selecciona-se como elemento relevante a data do pedido de
extradição, e não a data da prática dos crimes que o fundamentam, pois é aquele
pedido que coloca o caso em conexão com a ordem jurídica portuguesa e a
consideração desse momento é suficiente para acautelar eficazmente os valores
que estão na base desta específica dimensão do princípio da legalidade,
designadamente o objectivo de evitar manipulações legislativas posteriores
intencionalmente orientadas para o agravamento da posição do extraditando. A
aplicação imediata de normas constitucionais adoptadas após a formulação do
pedido de extradição e que viessem permitir a extradição em situações antes
constitucionalmente proibidas colidiria com os princípios constitucionais da
segurança jurídica e da legalidade penal, inexistindo interesses jurídicos
relevantes que justifiquem o sacrifício desses valores, uma vez que o Estado
requerente, quando formulou o pedido, apenas podia legitimamente contar com a
aplicação do quadro constitucional e legal a essa data vigente.
Há, pois, que considerar como parâmetro constitucional
relevante, no presente caso, a redacção constitucional vigente à data do pedido
de extradição, isto é, a redacção constitucional emergente da revisão de 2001,
só sendo de aplicar as alterações introduzidas pela revisão de 2004 se estas se
mostrassem mais favoráveis ao extraditando.
21. Não cumpre, na economia do presente acórdão, fazer uma
exposição detalhada da evolução verificada nas diversas versões da Constituição
em matéria de extradição nem dos divergentes pronunciamentos jurisprudenciais e
doutrinais que suscitou (cf., sobre o tema, Filomena Delgado, “A Extradição”,
Boletim do Ministério da Justiça, n.º 367, Junho de 1987, pp. 23-93; Jorge de
Figueiredo Dias, “Extradição e non bis in idem”, Direito e Justiça, vol. IX,
tomo I, 1995, pp. 213-222; Jorge Miranda e Miguel Pedrosa Machado, “Processo de
extradição e recurso para o Tribunal Constitucional: admissibilidade e tema do
recurso”, mesma revista, pp. 223-243; Carlos Fernandes, A Extradição e o
Respectivo Sistema Português, Lisboa, 1996; Pedro Caeiro, “Proibições
constitucionais de extraditar em função da pena aplicável (O estatuto
constitucional das proibições de extraditar fundadas na natureza da pena
correspondente ao crime segundo o direito do Estado requerente, antes e depois
da Lei Constitucional n.º 1/97)”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 8,
fasc. 1.º, Janeiro-Março 1998, pp. 7-25; Mário Mendes Serrano, “Extradição –
Regime e praxis”, em Cooperação Internacional Penal, vol. I, Centro de Estudos
Judiciários, 2000, págs. 13-112; Frederico Alcântara de Melo, Extradição: o
Regime Português nos Casos de Pena de Morte e de Prisão Perpétua, policopiado,
Lisboa, 2001; e Paulo Saragoça da Matta, “O sistema português de extradição após
a publicação da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto”, em Maria Fernanda Palma
(coord.), Casos e Materiais de Direito Penal, Coimbra, 2004, pp.239-258).
Apenas há que, especificamente quanto às condicionantes constitucionais à
extradição de cidadãos estrangeiros por crimes abstractamente puníveis, no
Estado requerente, com pena de morte ou de prisão perpétua, apreciar se a
interpretação acolhida no acórdão recorrido se mostra constitucionalmente
conforme.
Relativamente aos crimes abstractamente puníveis com pena de
morte, a Constituição começou por proclamar, no n.º 3 do artigo 23.º da sua
versão originária, que “Não há extradição por crimes a que corresponda pena de
morte segundo o direito do Estado requisitante”, formulação que transitou, com
a revisão de 1982, para o n.º 3 do artigo 33.º, e aí foi mantida pela revisão
de 1989, sempre sem alteração de redacção.
Foi nesse quadro que se firmou a jurisprudência do Tribunal
Constitucional, desde o Acórdão n.º 417/95 – a que se seguiram os Acórdãos n.ºs
430/95 e 449/95 (tendo estes três acórdãos julgado inconstitucional “a norma do
artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de Agosto, por
violação do artigo 33.º, n.º 3, da Constituição, na parte em que permite a
extradição por crimes puníveis no Estado requerente com a pena de morte, havendo
garantia da sua substituição”) e que culminou com o Acórdão n.º 1146/96 (que
declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da referida
norma, ainda em vigor no Território de Macau, “na parte em que permite a
extradição de crimes puníveis no Estado requerente com a pena de morte, havendo
garantia da sua substituição, se essa garantia, de acordo com o ordenamento
penal e processual penal do Estado requerente, não for juridicamente vinculante
para os respectivos tribunais”) – no sentido de condicionar a extradição à
impossibilidade jurídica de aplicação da pena de morte pelos tribunais do Estado
requerente.
A extensão desse regime rigoroso aos casos de extradição por
crimes puníveis com pena de prisão perpétua, operada pelo Acórdão n.º 474/95,
provocou conhecidas reacções, tendo, no âmbito da revisão constitucional de
1989, sido apresentadas propostas visando assumidamente contrariar a
jurisprudência do Tribunal Constitucional, admitindo um “sistema de garantias”
capaz de ultrapassar a proibição de extradição, quer por crimes puníveis com
pena de morte, quer por crimes puníveis com pena de prisão perpétua, tentativa
que, como desenvolvidamente se dá conta no Acórdão n.º 1/2001, só logrou sucesso
nesta segunda parte. Instituiu-se, assim, na revisão de 1997, uma dualidade de
regimes nos n.ºs 4 e 5 do artigo 33.º: no primeiro (“Não é admitida a extradição
por motivos políticos, nem por crimes a que corresponda, segundo o direito do
Estado requisitante, pena de morte ou outra de que resulte lesão irreversível da
integridade física”) conservou-se a base de sustentação da anterior
jurisprudência do Tribunal Constitucional quanto a extradição por crimes
puníveis com pena de morte; no segundo (“Só é admitida a extradição por crimes a
que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena ou medida de
segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de
duração indefinida, em condições de reciprocidade estabelecidas em convenção
internacional e desde que o Estado requisitante ofereça garantias de que tal
pena ou medida de segurança não será aplicada ou executada”) consagrou-se a
admissibilidade de um “sistema de garantias”.
O n.º 5 do artigo 33.º da versão de 1997 transitou, com a
revisão de 2001, para o n.º 6 do mesmo preceito, apenas com o aditamento da
expressão “nem a entrega a qualquer título” a seguir a “Não é admitida a
extradição”, e assim foi mantida na revisão de 2004.
22. Há, pois, que apurar se, no presente caso, se verificam
os requisitos a que a jurisprudência do Tribunal Constitucional – que ora se
reitera – tem condicionado a admissibilidade da extradição por crime
abstractamente punível com pena de morte. Utilizando formulações do Acórdão n.º
1146/96, “a extradição só é consentida quando, segundo o direito interno do
Estado requerente, a pena susceptível de, em concreto, ser aplicada ou já
aplicada ao caso não seja a pena de morte”, entendendo-se a expressão “segundo o
direito do Estado requisitante”, usada no então n.º 3 do artigo 33.º da CRP,
“como sendo o direito internamente vinculante desse Estado, constituído, tão-só,
pelo respectivo corpo de normas penais, de que conste a possibilidade abstracta
da pena de morte, e por quaisquer mecanismos – e só eles – que se inscrevam
vinculativamente no direito e processuais, ainda que decorrentes do direito
constitucional ou do direito jurisprudencial do Estado requisitante, dos quais
resulte que a pena de morte não será devida no caso concreto, porque nunca pode
ser aplicada”; em suma, deve entender-se que a Constituição “proíbe a extradição
por crimes cuja punição com pena de morte seja juridicamente possível, de acordo
com o ordenamento penal e processual penal do Estado requisitante, sendo, por
isso, incompatível com quaisquer garantias de não aplicação ou de substituição
da pena capital prestadas pelo Estado requerente, que não se traduzam numa
impossibilidade jurídica da sua aplicação”.
O acórdão recorrido – tal como, aliás, já o entendera o
acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa – considerou que da disposição do
artigo 34º-C da Lei de Extradição indiana resultava a impossibilidade jurídica
da aplicação da pena de morte, pois ela procedeu à comutação automática em pena
de prisão perpétua das penas de morte aplicáveis a crimes pelos quais é
requerida a extradição, para a União Indiana, a Estado que não preveja a pena de
morte. Mais entendeu o acórdão recorrido, no âmbito da sua função de
identificação e interpretação do direito estrangeiro aplicável, que a expressão
inicial desse preceito (aceitando a tradução, constante dos autos, da expressão
“Notwithstanding anything contained in any other law for the time beeing in
force ...” por “Sem prejuízo do conteúdo de qualquer outra lei à data em vigor
...”), jamais poderia ser interpretada como possibilitando que qualquer outra
lei posterior poderia contrariar essa conversão automática de penas, pois a tal
se oporiam os princípios gerais universais do direito penal, maxime o da não
retroactividade de lei desfavorável, devendo antes ler-se como significando que
se à data da condenação vigorasse outra lei mais favorável, seria essa a
aplicável (e não a de prisão perpétua). Por isso se entendeu verificar-se uma
situação de impossibilidade jurídica de aplicação, pelos tribunais indianos, de
pena de morte, o que possibilitava a autorização da extradição sem violação do
artigo 33.º, n.º 6, da CRP.
Enquanto pressuposto do juízo de constitucionalidade, o
Tribunal Constitucional pode sindicar a correcção dessa interpretação, mas,
situando-nos nesse domínio, não pode deixar de aceitar-se a sua bondade.
Ao mesmo resultado se chegaria, aliás, se se preferisse
uma outra tradução, eventualmente mais correcta, da palavra Notwithstanding por
“não obstante” ou “apesar de”, em vez de “sem prejuízo de”, que tornaria ainda
mais claro que o sentido da norma é de assegurar sempre supremacia à conversão
automática da pena de morte por pena de prisão perpétua, não obstante a (ou
apesar da) existência de outras normas em sentido contrário, e nunca a de
permitir a revogação futura e absolutamente livre dessa regra de garantia.
Interpretação esta última que, aliás, seria perfeitamente ilógica, pois
representaria a autodestruição da garantia que, com a norma em causa, a União
Indiana se dispôs a prestar aos Estados cuja cooperação pretendia assegurar no
âmbito da extradição.
Alega o recorrente que se ignora se entre 1962, data da
Lei de Extradição indiana, e a prática dos crimes puníveis com pena de morte
terá sido editada norma que derrogue aquela comutação automática de penas,
norma essa que poderia ser aplicada sem ofensa da proibição da retroactividade
da lei desfavorável. Acontece que, apesar de a Lei de Extradição indiana datar
de 1962, o artigo 34.º-C agora em causa apenas lhe foi aditado pelo Amendment
Act de 1993, e iniciou a sua vigência em 18 de Dezembro de 1993 (cf. parecer
jurídico de N. M. Ghatate, a fls. 375-381), portanto em data posterior à prática
dos crimes puníveis com pena de morte (cometidos entre Dezembro de 1992 e Abril
de 1993). Assim, para além de não existir qualquer indício da edição de norma,
posterior ao aditamento do citado artigo 34.º-C, que visasse derrogar este
preceito, o certo é que no ordenamento jurídico indiano vigoram princípios
vinculativos que sempre impediriam a não aplicação ao recorrente da aludida
comutação automática da pena de morte em pena de prisão perpétua. Desde logo, o
artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da Índia consagra expressamente os
princípios da legalidade penal e da proibição da aplicação retroactiva da lei
penal mais desfavorável (na versão inglesa: “No person shall be convicted of
any offence except for violation of a law in force at the time of the commission
of the act charged as an offence, nor be subjected to a penalty greater than
that wich might have been inflicted under the law in force at the time of the
commission of the offence”). Depois, a Índia é parte, desde 10 de Julho de 1979,
do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, assinado em Nova
Iorque em 7 de Outubro de 1976 (aprovado, para ratificação, pela Lei n.º 29/78,
de 12 de Junho), que dispõe no seu artigo 15.º, n.º 1 (na tradução oficial
portuguesa): “Ninguém será condenado por actos ou omissões que não constituam um
acto delituoso, segundo o direito nacional ou internacional, no momento em que
forem cometidos. Do mesmo modo não será aplicada nenhuma pena mais forte do que
aquela que era aplicável no momento em que a infracção foi cometida. Se
posteriormente a esta infracção a lei prevê a aplicação de uma pena mais
ligeira, o delinquente deve beneficiar da alteração”.
Neste contexto, o entendimento do acórdão recorrido de
que se verifica uma situação de impossibilidade jurídica – observada na
perspectiva de um Estado de direito – de aplicação ao extraditando, pelos
tribunais indianos, de pena de morte, respeita o condicionamento de que a
jurisprudência do Tribunal Constitucional tem feito depender a admissibilidade
da extradição por crimes abstractamente puníveis com pena de morte, pelo que a
interpretação e aplicação dadas ao artigo 9.º, n.º 3, da Convenção de Nova
Iorque não viola qualquer princípio ou norma constitucionais, designadamente a
do n.º 6 do artigo 33.º da CRP.
23. Relativamente aos crimes abstractamente puníveis com
pena de prisão perpétua, quer directamente cominada, quer resultante da
conversão, por força do artigo 34.º-C da Lei de Extradição indiana, é que se
poderia colocar a questão da determinação do parâmetro constitucional atendível,
atenta a diversidade de redacção dos preceitos constitucionais pertinentes. Com
efeito, à data da formulação do pedido de extradição, vigorava a versão dada
pela Lei Constitucional n.º 1/2001, que transferiu para o n.º 4 do artigo 33.º
da Constituição, sem qualquer alteração de redacção, o n.º 5 do mesmo preceito,
introduzido pela revisão de 1997, a que já se fez referência (“Só é admitida a
extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado
requisitante, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade
com carácter perpétuo ou de duração indefinida, em condições de reciprocidade
estabelecidas em convenção internacional e desde que o Estado requisitante
ofereça garantias de que tal pena ou medida de segurança não será aplicada ou
executada”), enquanto à data do acórdão recorrido já vigorava a redacção dada
àquele n.º 4 pela Lei Constitucional n.º 1/2004, de 24 de Julho (“Só é admitida
a extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado
requisitante, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade
com carácter perpétuo ou de duração indefinida, se, nesse domínio, o Estado
requisitante for parte de convenção internacional a que Portugal esteja
vinculado e oferecer garantias de que tal pena ou medida de segurança não será
aplicada ou executada”). Tendo sido mantido o sentido da parte final do
preceito (oferecer o Estado requisitante garantias de que a pena ou medida de
segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de
duração indefinida não será aplicada ou executada), a alteração cifrou-se na
substituição da expressão “em condições de reciprocidade estabelecidas em
convenção internacional” pela expressão “se, nesse domínio, o Estado
requisitante for parte de convenção internacional a que Portugal esteja
vinculado”.
Essa alteração constitucional teve origem no Projecto de
revisão constitucional n.º 3/IX, apresentado pelo PSD e pelo CDS-PP, que
propunha a adopção da fórmula “se o mesmo Estado mantiver com Portugal convenção
internacional sobre a matéria”. Na apresentação dessa proposta, o seu alcance
foi assim explicitado pelo Deputado António Montalvão Machado (Diário da
Assembleia da República, IX Legislatura, 2.ª Sessão Legislativa, II Série-RC,
n.º 5, de 4 de Fevereiro de 3004, pp. 152-153):
“Sr. Presidente, quanto à proposta em si mesma, ela resulta de uma
aparente dificuldade derivada da letra do n.º 4 do artigo 33.º, ao aludir às
condições de reciprocidade estabelecidas em convenção internacional.
Cremos que a interpretação do n.º 4 do artigo 33.º implica, sem
dúvida, que a extradição só deve ser admitida estando em causa pena ou medida
de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo, ou
duração indefinida, desde que o Estado requisitante ofereça garantias de que
tal pena ou medida de segurança não vai ser aplicada ou executada e em condições
de reciprocidade estabelecidas em convenção internacional.
Ora, como é sabido, Portugal, em bom rigor, jamais poderia celebrar
qualquer acordo ou convenção internacional em termos de reciprocidade a
propósito da pena privativa de liberdade com carácter perpétuo ou duração
indefinida, o que tem gerado dificuldades de interpretação e de aplicação do
dispositivo. É que, não tendo Portugal, como não tem, prisão perpétua, nenhuma
convenção poderia estabelecer condições de reciprocidade a tal respeito,
vinculando os Estados para com Portugal.
A letra que se propõe, ou o texto que se propõe é esclarecedor,
pois vai no sentido de tornar claro que a convenção internacional não é,
certamente, a propósito da prisão perpétua mas, sim, a propósito da matéria da
própria extradição, por isso se estatui que «Só é admitida a extradição por
crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena ou
medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo
ou duração indefinida, se o mesmo Estado mantiver com Portugal convenção
internacional sobre a matéria e ofereça garantias de que tal pena ou medida de
segurança não será aplicada ou executada.»
Sr. Presidente e Srs. Deputados, são estes os dois argumentos. De
facto, para Portugal não basta que haja da parte do Estado requisitante a
garantia de que não executa uma pena privativa da liberdade com carácter
perpétuo; é preciso saber que Estado é que está a solicitar esta extradição –
tem de ser, portanto, um Estado que tenha com Portugal convénio acerca
justamente da execução da extradição.”
Como resulta desta intervenção, a alteração proposta
revestir-se-ia de propósitos meramente clarificadores do sentido da expressão
“em condições de reciprocidade estabelecidas em convenção internacional”,
constante da versão anterior. Na verdade, essa reciprocidade poderia
reportar-se ao dever de extraditar, ou ao tipo de crimes identificados pelas
penas aplicáveis, ou às garantias. Interpretada no segundo sentido (isto é: no
sentido de que Portugal só extraditaria por crimes puníveis com prisão perpétua
se o Estado requerente estivesse obrigado, por convenção, a extraditar para
Portugal pessoas acusadas por crimes puníveis com igual pena), a regra seria de
facto inaplicável dada a inexistência dessa pena na ordem jurídica portuguesa.
O sentido da alteração foi, assim, o de assumir que a reciprocidade respeita ao
dever de extraditar “nesse domínio” [a substituição da fórmula inicialmente
proposta (“se o mesmo Estado mantiver com Portugal convenção internacional
sobre a matéria”) pela finalmente adoptada (“se, nesse domínio, o Estado
requisitante for parte de convenção internacional a que Portugal esteja
vinculado”) visou, como resulta do debate parlamentar, englobar, para além de
convenções bilaterais entre Portugal e o Estado requerente, também as convenções
a que estejam vinculados por pertencerem a organizações internacionais
outorgantes desses instrumentos].
Neste contexto, é possível, desde já, concluir que a
nova redacção não é mais favorável para o extraditando. Ela será idêntica à
anterior se, como no ponto seguinte se apurará, já perante a redacção de
1997/2001 se devesse reportar a reciprocidade ao dever de extraditar; e será
mais desfavorável se se entender, como o recorrente sustenta, que as condições
de reciprocidade constantes de convenção respeitavam às garantias. De uma forma
ou de outra, não sendo a versão de 2004 mais favorável, ela, de acordo com o
critério definido supra, no n.º 20, não será aplicável ao caso dos autos, mas
sim a redacção de 1997/2001.
24. Como se referiu, foi com a introdução do n.º 5 do
artigo 33.º da CRP pela revisão de 1997, transferido, sem alteração de redacção,
para o n.º 4 do mesmo preceito pela revisão de 2001, que essa matéria passou a
ser tratada de forma expressa no texto constitucional. A formulação do
preceito, na sua literalidade, desde logo aponta para a sujeição da
admissibilidade da extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito
do Estado requisitante, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da
liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida a dois requisitos
distintos, de verificação cumulativa: (i) existência de “condições de
reciprocidade estabelecidas em convenção internacional”; e (ii) oferecimento
pelo Estado requisitante de “garantias de que tal pena ou medida de segurança
não será aplicada ou executada”.
Relativamente a este último requisito – prestação de
garantias de não aplicação ou de não execução da pena em causa –, o Tribunal
Constitucional já teve oportunidade de proceder à sua densificação em termos que
merecem reiteração. Fê-lo no Acórdão n.º 1/2001, onde, depois de reconhecer ter
sido intenção do legislador constituinte de 1997 não alterar a doutrina do
Tribunal Constitucional relativa à extradição por crimes a que seja aplicável a
pena de morte, mas “criar direito constitucional diferente mais permissivo para
a extradição por crimes a que seja aplicável pena ou medida de segurança de
carácter perpétuo”, e de registar as passagens mais relevante dos trabalhos
parlamentares, incluindo a audição do Presidente do Tribunal Constitucional,
concluiu:
“Torna-se nítido, assim, que a permissão do n.º 5 claramente excede
a anterior doutrina do Tribunal; e que tal ocorre quando admite que as garantias
sejam apenas de direito internacional público e relativas à mera não execução da
pena, mesmo em casos onde esta ainda pode ser aplicada pelos tribunais. Tais
serão as garantias anteriores à condenação relativas à aplicação de medidas que
pressupõem uma prévia condenação, como sejam o indulto, o perdão, a comutação de
pena, a amnistia e análogas medidas de clemência que, por definição, não são
obrigatórias do ponto de vista do direito interno, isto é, não são juridicamente
decretáveis pelos tribunais, embora possam ser prometidas e devidas a um Estado
estrangeiro e, uma vez decretadas, sejam juridicamente vinculantes para os
tribunais. As garantias diplomáticas de tais medidas são garantias de direito
internacional público – e nesse sentido não são meramente políticas –, mas não
são garantias de direito interno imediatamente vinculantes para os tribunais.”
De acordo com este entendimento, que se
mantém, a extradição por crime punível com pena de prisão perpétua não depende
da verificação de uma situação de impossibilidade jurídica de aplicação dessa
pena pelos tribunais do Estado requerente. Mesmo existindo a possibilidade
jurídica de aplicação dessa pena, para que a extradição possa ser concedida
basta a prestação de garantia de não execução de tal pena, garantia que não pode
ser meramente política, mas sim de direito internacional público (o que abrange
as garantias diplomáticas), juridicamente vinculativa do Estado requerente
perante o Estado requerido e que, uma vez executada (designadamente por
comutação, pelo órgão do Estado requerente constitucionalmente competente para
o efeito, da pena de prisão perpétua em pena de duração limitada), seja
juridicamente vinculativa para os tribunais do Estado requerido.
Mais complexo é o entendimento a dar ao
primeiro requisito apontado: existência de condições de reciprocidade
estabelecidas em convenção internacional.
Já atrás se assinalou o triplo aspecto a que
teoricamente este requisito podia ser reportado: ao dever de extraditar, ao tipo
das penas ou às garantias.
E também já se apontou o absurdo do segundo
entendimento, atenta a inexistência desse tipo de pena no ordenamento jurídico
português (já no citado Acórdão n.º 1/2001 se constatara que: “Pelo que
respeita, entretanto, à exigência de «reciprocidade» – também feita no n.º 5 do
artigo 33.º – não pode ter o sentido de reciprocidade nas condições de
extradição por pena ou medida perpétua, pois tal não existe na ordem jurídica
portuguesa.”).
A passagem seguinte do referido Acórdão –
passagem que se pode considerar, de certo modo, lateral, por versar aspecto que
não integrava o objecto do pedido (que incidia apenas sobre as normas relativas
à possibilidade de extradição por crimes puníveis com pena de morte) – parece
apontar para o entendimento de serem “as garantias consideradas suficientes”
que teriam de “ser vinculativas por força de uma convenção ou acordo
internacional”. Entende-se, porém, que as condições de reciprocidade que devem
estar estabelecidas em convenção internacional respeitam ao dever de
extraditar. Na verdade, na economia do preceito constitucional, o requisito da
prestação de garantias é autónomo e cumulativo relativamente ao requisito da
existência de condições de reciprocidade estabelecidas em convenção
internacional.
Isto é: Portugal aceita extraditar pessoas
acusadas de crimes abstractamente puníveis com pena de prisão perpétua se,
cumulativamente: (i) o Estado requerente também estiver vinculado, por convenção
internacional, a aceitar pedidos de extradição formulados por Portugal
(obviamente por crimes puníveis por outras penas que não a de prisão perpétua,
inexistente no nosso País), designadamente quanto à mesma espécie de crimes em
causa no pedido de extradição [o inciso “neste domínio”, adoptado na revisão de
2004, é interpretado por Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa
Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, p. 369) como exigindo que “o crime”, para cujo
julgamento seja pedida a extradição, “conste de convenção internacional a que
tanto o Estado requisitante como o Estado português se encontram vinculados”];
e (ii) oferecer garantias de que a pena de prisão perpétua não será aplicada. O
primeiro requisito compreende-se porque o regime geral da extradição prevê que a
falta de reciprocidade não impede a satisfação de um pedido de cooperação
judiciária internacional em matéria penal (uma das formas da qual é a
extradição) nos casos elencados no n.º 3 do artigo 4.º da LCJIMP. Da norma
constitucional resulta, pois, que, estando em causa a extradição por crimes a
que é aplicável pena de prisão perpétua, nesses casos é sempre exigível a
existência de reciprocidade do dever de extraditar, constante de convenção
internacional.
Esse é, aliás, o conceito juridicamente
corrente do princípio da reciprocidade – do ut des. Como refere Francisco Bueno
Arus (“El principio de reciprocidad en la extradición y la Legislación
española”, Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, tomo XXXVII, fasc. I,
Janeiro-Abril de 1984, pp. 67-79), citando Schultz: “O princípio da
reciprocidade estabelece a regra de que uma extradição não é lícita senão
quando o Estado requerido obtém do Estado requerente a garantia de que este lhe
entregará um fugitivo perseguido por factos idênticos e com as mesmas
qualidades pessoais que o perseguido cuja extradição é pedida”.
O condicionamento da extradição por crime
punível com prisão perpétua à existência de condições de reciprocidade
estabelecidas em convenção internacional que ligue Portugal ao Estado
requerente é suficiente para satisfazer as preocupações relacionadas com a base
de confiança e com a credibilidade que este Estado deve merecer. Por outro lado,
quanto à suficiência de garantias, o que é exigível – como, aliás, o próprio
Acórdão n.º 1/2001 assinalou – é que elas sejam vinculativas para o Estado
requerente face ao direito internacional público. Ora a vinculação internacional
dos Estados não se opera apenas através da celebração de convenções bilaterais
ou multilaterais, podendo também resultar de actos unilaterais.
A doutrina e a jurisprudência
internacional-publicistas de há muito reconhecem aos actos jurídicos unilaterais
dos Estados natureza jurídica vinculativa, independentemente de os caracterizar,
ou não, também como fonte de direito internacional, e entre esses actos
inclui-se a promessa, entendida como a declaração unilateral de vontade pela
qual certo sujeito se compromete a agir ou não agir de certo modo ou como o
compromisso assumido por um Estado de tomar no futuro determinada atitude (cf.
André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros, Manual de Direito Internacional
Público, 3.ª edição, Coimbra, 1993, pp. 265-268; Jorge Miranda, Curso de Direito
Internacional Público, 2.ª edição, Lisboa, 2004, pp. 50-53; e Albino de Azevedo
Soares, Lições de Direito Internacional Público, 4.ª edição, Coimbra, 1988, pp.
191-193).
Cingindo-nos aos actos jurídicos unilaterais
autónomos, isto é, cuja eficácia não depende da aceitação de outrem, entre os
quais as promessas (ou garantias), a sua vinculatividade, em termos de direito
internacional público, assenta essencialmente no princípio da boa fé. Como
refere Eric Suy (Les Actes Juridiques Unilatéraux en Droit International
Public, Paris, 1962, p. 151): “O interesse superior da segurança das relações
internacionais exige que a promessa seja obrigatória desde que se torne
conhecida pelos sujeitos interessados, e esse interesse traduz-se no princípio
da boa fé que deve reger todas as relações internacionais. Alargando a noção do
pactum, queremos dizer que a norma fundamental, a fonte da promessa, é a norma
consuetudinária que prescreve que os compromissos internacionais devem ser
respeitados”. Desde que subjacente à promessa esteja a vontade do órgão do
Estado de assumir um compromisso e desde que ela seja levada ao conhecimento
dos interessados (o que é diferente de ficar dependente da sua aceitação), o
princípio da boa fé, internacionalmente reconhecido, constitui o fundamento da
vinculatividade jurídico-internacional do compromisso assumido (cf. Paul Reuter,
Droit International Public, Paris, 1983, pp. 142-144; e Nguyen Quoc Dinh,
Patrick Daillier e Alain Pellet, Droit International Public, 6.ª ed., Paris,
1999, p. 359), sendo comummente assinalado que a ausência de formalismo é a
regra nos actos unilaterais (Jean-Paul Jacqué, “Acte et norme en droit
international public”, Académie de Droit International, Recueil des Cours,
1991, II, pp. 357-417, em especial p. 379). As específicas categorias de
promessas que se traduzem na renúncia ao exercício de um direito são não só
admitidas pela prática dos Estados como a doutrina lhes atribui carácter
obrigatório, com base na confiança que deve presidir às relações internacionais
e a própria natureza dos sujeitos internacionais em causa – os Estados –
justifica que à promessa seja atribuída uma eficácia jurídica mais vasta do que
a normalmente reconhecida pelos direitos internos a promessas de sujeitos
privados (cf. G. Venturini, “La portée et les effets juridiques des attitudes et
des actes unilatéaux des États”, Académie de Droit International, Recueil des
Cours, 1964, II, pp. 363-461, em especial pp. 394-405).
Neste contexto, nenhum razão válida existe
para exigir que a prestação de garantia de não execução de pena de prisão
perpétua conste de convenção internacional, sendo igualmente vinculativos, à luz
do direito internacional público, os compromissos assumidos pelas entidades
constitucionalmente competentes para obrigar o Estado requerente através da
emanação de actos unilaterais, como as promessas, observados os requisitos atrás
enunciados.
Conclui-se, assim, não ser
constitucionalmente exigível que a prestação de garantias esteja estabelecida em
convenção internacional. Desta apenas tem de constar a consagração do princípio
da reciprocidade quanto ao dever de extraditar: do ut des.
25. Esclarecidos os requisitos de que
depende a autorização de extradição por crime punível com pena de prisão
perpétua, de acordo com a versão constitucional de 1997/2001, resta apreciar se
os mesmos são respeitados pela interpretação acolhida no acórdão recorrido os
respeita.
Quanto ao primeiro, exigindo a Constituição o
estabelecimentos das condições de reciprocidade em convenção internacional, e
não necessariamente através de tratado bilateral, esse requisito constitucional
mostra-se satisfeito pelo facto de Portugal e União Indiana serem Partes da
Convenção de Nova Iorque, que prevê, em condições de reciprocidade para os
Estados subscritores, o dever de extraditar pelos crimes em causa nestes autos.
Quanto à garantia de não aplicação ou execução da pena
de prisão perpétua, resulta do exposto no número precedente que essas garantias
não têm de estar previstas em tratado bilateral ou outra convenção
internacional, bastando que sejam prestadas, caso a caso, pelas autoridades do
Estado requerente, em termos que juridico-internacionalmente o vinculem.
Da natureza judicial do processo de extradição (n.º 7 do
artigo 33.º da CRP), resulta que o juízo da suficiência da garantia há-de caber
ao tribunal e não às autoridades políticas ou administrativas do Estado
requerido. Esse juízo cabe naturalmente ao tribunal comum competente para
autorizar a extradição, em cujo âmbito de cognição se insere a interpretação do
direito do Estado requerente pertinente para ajuizar da consistência jurídica da
garantia oferecida. Neste domínio, entendendo-se, como se entende, que esse
juízo de suficiência da garantia formulado pelo tribunal penal não se impõe
sempre, como um dado indiscutível, ao Tribunal Constitucional, a intervenção
deste Tribunal cinge-se, no entanto, aos aspectos em que esse juízo interfira
directamente com os requisitos constitucionais, tendo sempre presente que não
lhe compete apreciar a constitucionalidade das decisões judiciais, em si mesmas
consideradas, mas apenas dos critérios normativos por elas aplicados.
No presente caso, o STJ, após identificação e
interpretação das disposições constitucionais e legais da União Indiana concluiu
que a garantia dada pelo Vice-Primeiro-Ministro e Ministro dos Assuntos
Internos, de acordo com as regras constitucionais próprias de cooperação e
interdependência entre o Presidente da União Indiana e os membros do Governo,
vinculava juridico-internacionalmente o Estado requerente a, na hipótese de o
extraditando vir a ser condenado em pena de prisão perpétua, ser a mesma
comutada em pena de prisão em caso algum superior a 25 anos, sendo essa garantia
vinculante para o actual e futuros Presidentes e Governos.
Contra este juízo judicial de suficiência jurídica da
garantia prestada não são aduzidos pelo recorrente quaisquer argumentos que
pudessem ser ponderados pelo Tribunal Constitucional, na específica função de
fiscalizador da constitucionalidade normativa.
Pelo que, também nesta última perspectiva, não se possa
dar por verificada qualquer violação do artigo 33.º, n.º 4, da CRP.
III – Decisão
26. Em face do disposto, acordam em:
a) Não conhecer do recurso interposto do acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça, de 3 de Março de 2005;
b) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 9.º,
n.º 3, da Convenção Internacional para a Repressão de Atentados Terroristas à
Bomba, aberta para assinatura, em Nova Iorque, em 12 de Janeiro de 1998,
aprovada, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º
40/2001, de 5 de Abril de 2001, e ratificada pelo Decreto do Presidente da
República n.º 31/2001, de 25 de Junho, interpretada no sentido de que obriga
Portugal à extradição do recorrente para a União Indiana, por crimes, previstos
no seu artigo 2.º, a que é abstractamente aplicável pena de morte, quando, por
força do artigo 34.º-C da Lei de Extradição indiana, existe impossibilidade
jurídica de aplicação dessa pena, e por crimes a que é abstractamente aplicável
pena de prisão perpétua, quando exista reciprocidade do dever de extraditar
consagrada em convenção internacional da qual Portugal seja igualmente parte e
o Estado requerente ofereceu garantia jurídico-internacionalmente vinculante
da não aplicação de pena de prisão de duração superior a 25 anos; e,
consequentemente,
c) Negar provimento ao recurso interposto do acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça, de 27 de Janeiro de 2005.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 13 de Julho de 2005
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
Maria Fernanda Palma (Vencida nos termos da declaração de voto junta)
Rui Manuel Moura Ramos
Tem voto de conformidade do Ex.mo Cons. Paulo Mota Pinto, que não assina por não
estar presente. – Mário Torres
Declaração de voto
Perante as dúvidas sobre a constitucionalidade do artigo
9.º, n.º 3, da Convenção de Nova Iorque – na interpretação segundo a qual
Portugal estaria obrigado a extraditar uma pessoa por factos a que corresponda,
abstractamente, a pena de prisão perpétua, sem que exista compromisso
convencionado entre Portugal e a União Indiana de proceder a tal extradição
mediante a prestação de garantias de não aplicação ou execução de tal pena –
decidi não contribuir para a maioria que se formou. As minhas dúvidas radicam
nos seguintes pontos:
1.º Só tem verdadeiramente sentido considerar que o
artigo 33.º, n.º 4, da Constituição, na versão vigente à data do pedido de
extradição, é a norma constitucional aplicável, mesmo após a nova redacção
conferida pela Revisão Constitucional de 2004, se se entender que existe uma
verdadeira sucessão de normas constitucionais no tempo, sendo a norma
actualmente vigente menos favorável. Se o conteúdo normativo for idêntico, o
parâmetro é sempre o mesmo, ou seja, o estabelecido pela versão vigente à data
da decisão recorrida (a actual versão);
2.º A consideração de elementos literais e históricos
na interpretação do artigo 33.º, n.º 4, na versão da Revisão Constitucional de
2001, leva-me a concluir que eram suportadas pela norma constitucional, então
vigente, interpretações segundo as quais a possibilidade de extradição por
crimes a que correspondesse no Direito do Estado requisitante a prisão perpétua
dependia de convenção internacional, em que o Estado português e o Estado
requisitante fossem partes, pela qual se estabelecessem efectivas condições de
reciprocidade relativamente ao dever de extradição por tais crimes;
3.º Ora, as relações de reciprocidade relativamente ao
dever de extraditar por crimes punidos dessa forma pelo Estado requisitante só
poderiam ser concebíveis, num contexto lógico-jurídico, se fossem conexionadas
com garantias de que tal pena ou medida de segurança não viesse a ser aplicável;
4.º O facto de o artigo 33.º, n.º 4, na versão agora
considerada, acrescentar à exigência de reciprocidade a exigência de que o
Estado requisitante ofereça garantias de que tal pena não será aplicada ou
executada não permite por si concluir que a reciprocidade estabelecida em
convenção internacional prescindiria desse tipo de garantias;
5.º No contexto histórico que suscitou a Revisão
Constitucional, aliás, apenas se justificava eliminar a exigência, decorrente de
interpretação da versão anterior da Constituição pelo Tribunal Constitucional,
de uma vinculação de fonte jurídica interna do Estado requisitante, recolocando
o problema ao nível dos mecanismos da cooperação penal internacional;
6.º Foi essa a perspectiva que me levou a subscrever o
Acórdão n.º 1/2001, que interpretou o artigo 33.º, n.º 4, após a Revisão
Constitucional de 2001, e é esse o sentido que, a meu ver, justificou o consenso
formado à volta da ideia de que bastariam as garantias juridicamente vinculantes
no plano do Direito Internacional Público;
7.º A passagem do plano da vinculatividade das
garantias na dimensão jurídica interna para o plano da vinculatividade conferida
pelo Direito Internacional Público não significa senão o reconhecimento do
valor da cooperação jurídica internacional penal e não um retrocesso, a esse
nível, para a mera lógica político-diplomática ancestral do Direito
Internacional Público. Só, aliás, o entendimento de que não teria sido
suficiente essa alteração de planos justifica a nova redacção da Constituição,
como resulta claro da discussão parlamentar;
8.º Negar que a Revisão Constitucional de 2004 se
orientou num sentido menos garantista no plano jurídico, sendo meramente
clarificadora, é negar a evidência do contexto da Revisão. Mesmo que a nova
versão apenas viesse impedir interpretações como a que defendi, isso sempre
significaria que essas interpretações eram sustentáveis e que, in dubio pro
libertate, deveriam ser admitidas.
Todas estas razões de dúvida profunda quanto à
argumentação do Acórdão levam-me a não poder, em consciência, e sem prejuízo de
ulterior estudo do problema, fazer parte da maioria que decidiu não julgar
inconstitucional a norma agora considerada.
Maria Fernanda Palma