Imprimir acórdão
Processo n.º 842/04
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
Por sentença proferida em 24 de Outubro de 2001, no
Tribunal Judicial da Comarca de Lamego, foi o arguido a. condenado, pela
autoria material de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e
punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, por factos ocorridos em 25 de
Março de 1999, na pena de 8 meses de prisão, a qual foi declarada totalmente
perdoada ao abrigo do artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, sob a
condição resolutiva constante do artigo 4.º da citada Lei – “O perdão a que se
refere a presente lei é concedido sob a condição resolutiva de o beneficiário
não praticar infracção dolosa [nos] três anos subsequentes à data da entrada em
vigor da presente lei, caso em que à pena aplicada à infracção superveniente
acrescerá a pena ou parte da pena perdoada” –, sentença essa confirmada pelo
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 25 de Setembro de 2002, transitado
em julgado.
Tendo sido junto aos autos o certificado do registo
criminal do arguido, do qual resultou ter o mesmo sido condenado, por sentença
de 22 de Março de 2001, do Tribunal Judicial da Comarca de Lamego, como autor
de um crime de detenção ilegal de arma de defesa, previsto e punido pelo artigo
6.º, com referência ao artigo 1.º, alínea b), da Lei n.º 22/97, de 27 de Junho,
por factos ocorridos em 26 de Fevereiro de 2001, na pena de 100 dias de multa, à
taxa diária de 700$00, perfazendo a quantia global de 70 000$00, o
representante do Ministério Público junto do mesmo Tribunal promoveu, em 15 de
Janeiro de 2003, que fosse revogado o perdão concedido, “ressurgindo a pena de
8 meses de prisão, que o arguido deverá cumprir”.
Na sequência desta promoção, e sem prévia audição do
arguido, o juiz do referido Tribunal proferiu despacho, em 27 de Janeiro de
2003, no qual, considerando ter-se verificado a condição resolutiva sob a qual
fora perdoada a pena de prisão em que o arguido fora condenado nestes autos,
revogou este perdão, com ressurgimento dessa pena de prisão.
Deste despacho interpôs o arguido recurso para o
Tribunal da Relação do Porto, onde, para além de arguir a nulidade do despacho
por ter sido proferido sem sua prévia audição e de sustentar a inaplicabilidade
da condição resolutiva do perdão da pena de prisão, quer por o crime e a
condenação invocados para o efeito serem anteriores à sentença que concedeu o
perdão, quer por a correspondente pena ter sido de multa, desde logo, para a
hipótese de as anteriores teses não lograrem vencimento, suscitou as questões da
inconstitucionalidade das interpretações: (i) das normas dos artigos 61.º, n.º
1, alínea b), do Código de Processo Penal (CPP) e 4.º da Lei n.º 29/99, no
sentido de permitirem a revogação do perdão sem a prévia audiência do arguido,
por violação dos n.ºs 1, 5 e 7 do artigo 32.º da CRP; (ii) da norma do artigo
4.º da Lei n.º 9/99, no sentido de considerar “infracção superveniente”,
determinante da revogação do perdão, um crime cometido e objecto de condenação
após a entrada em vigor dessa Lei mas antes da prolação da sentença que
concedeu o perdão, por violação do princípio da culpa, indissociável da
dignidade da pessoa humana, e do disposto nos artigos 1.º, 13.º e 25.º da CRP; e
(iii) da mesma norma, no sentido de que a condenação em pena de multa pode
determinar a revogação do perdão de pena de prisão, por violação do princípio da
proporcionalidade e adequação das penas, protegido, entre outros, pelos artigos
1.º, 13.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da CRP.
A esse recurso foi negado provimento por acórdão do
Tribunal da Relação do Porto, de 11 de Fevereiro de 2004, que considerou que:
(i) não resultando inequivocamente do artigo 4.º da Lei n.º 29/99 que a
revogação do perdão tenha de ser precedida de audição do arguido, consentindo
expressamente o artigo 61.º, n.º 1, alínea b), do CPP a existência de excepções
à regra de o arguido dever ser ouvido pelo tribunal quando haja de ser tomada
qualquer decisão que pessoalmente o afecte, e não restando dúvidas, face à
interpretação literal daquele artigo 4.º, de que, verificada a condição
resolutiva, ocorre ope legis a revogação do perdão, o despacho recorrido não
enferma de qualquer nulidade nem de qualquer interpretação inconstitucional;
(ii) face ao disposto no artigo 4.° da Lei n.° 29/99, para a revogação do perdão
o que conta é a data da prática dos factos no prazo de três anos a partir da
entrada em vigor da lei, sendo irrelevante a data em que a sentença que concedeu
o perdão foi proferida; e (iii) nos termos do mesmo preceito – e sendo certo que
os preceitos constantes de leis de amnistia e perdão, atenta a sua natureza de
providências excepcionais, devem ser interpretados nos seus precisos termos,
sem ampliações nem restrições que nessas leis não venham expressas –, o
determinante é que se trate de infracção dolosa, como no caso ocorreu, sendo
irrelevante que seja punida com pena de prisão ou de multa.
Deste acórdão vem interposto, pelo arguido, recurso para
o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei
de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada
pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º
13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), tendo, neste Tribunal, apresentado
alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“1. A norma contida na alínea b) do n.º 1 do artigo 61.º do Código de Processo
Penal, conjugada com a norma do artigo 4.° da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, na
interpretação, adoptada pelo douto acórdão recorrido, que permite a revogação do
perdão sem a prévia audiência do arguido, é inconstitucional porque ofende o
disposto, entre outros, nos n.ºs 1, 5 e 7 do artigo 32.° da CRP;
2. A norma contida no mesmo artigo 4.° da Lei n.º 29/99, na interpretação,
subscrita pelo douto acórdão recorrido, que considera relevantes, para efeitos
de determinar a revogação do perdão nela previsto, delitos cometidos após a
entrada em vigor dessa lei, mas anteriores à sentença que concedeu o perdão
revogando, é inconstitucional, porque ofende o principio da culpa,
indissociável da [dignidade da] pessoa humana, e o disposto, entre outros, nos
artigos 1.°, 13.° e 25.° da CRP.
3. A norma contida ainda nesse artigo 4.° da Lei n.º 29/99, na interpretação
adoptada pelo douto acórdão recorrido, que considera relevante para a aplicação
da mesma qualquer infracção, ainda que punida com simples multa, é
inconstitucional porque ofende o principio da proporcionalidade e adequação das
penas, protegido, entre outros, pelos artigos 1.°, 13.°, n.º 1, e 18.°, n.º 2,
da CRP.”
Pelo representante do Ministério Público no Tribunal
Constitucional foram apresentadas contra-alegações, concluindo:
“1 – Goza o legislador ordinário de significativa margem de
discricionariedade para decretar medidas de clemência e fixar o seu quadro de
aplicação, não sendo inconstitucional uma interpretação da norma do artigo 4.°
da Lei n.° 29/99, de 12 de Maio, que admita como relevante para revogar o perdão
concedido que a infracção dolosa superveniente tenha sido cometida
anteriormente à decisão que o havia decretado, nem que àquela tenha
correspondido como sanção pena de multa.
2 – É inconstitucional, por violação dos n.ºs 1 e 5 do artigo 32.°
da Constituição, uma interpretação do bloco normativo formado pelo artigo 4.°
da Lei n.° 29/99 e pelo artigo 61.°, n.° 1, alínea b), do Código de Processo
Penal, que entenda não ser obrigatório ouvir previamente o arguido, face à
possibilidade efectiva de lhe ser revogado o perdão concedido e ter que vir a
cumprir pena efectiva de prisão.
3 – Termos em que deverá o presente recurso proceder parcialmente.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Resulta de vasta jurisprudência do Tribunal
Constitucional o reconhecimento, mesmo fora do domínio processual penal, de
que “a garantia da via judiciária – ínsita no artigo 20.º da Constituição da
República Portuguesa e a todos conferida para tutela e defesa dos direitos e
interesses legalmente protegidos – envolve, não apenas a atribuição aos
interessados legítimos do direito de acção judicial, destinado a efectivar todas
as situações juridicamente relevantes que o direito substantivo lhes outorgue,
mas também a garantia de que o processo, uma vez iniciado, se deve subordinar a
determinados princípios e garantias fundamentais: os princípios da igualdade, do
contraditório e (após a revisão constitucional de 1997) a regra do «processo
equitativo», expressamente consagrada no n.º 4 daquele preceito constitucional”
(Carlos Lopes do Rego, “Os princípios constitucionais da proibição da indefesa,
da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo
civil”, em Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa,
Coimbra, 2003, pág. 835). Centrando-nos no princípio do contraditório – “do qual
decorre, em primeira linha, a regra fundamental da proibição da indefesa”
(autor e local citados) –, dele deriva, como a jurisprudência constitucional
sempre tem afirmado, desde o parecer da Comissão Constitucional n.º 18/81
(Pareceres da Comissão Constitucional, 16.º vol., pág. 147, e Boletim do
Ministério da Justiça, n.º 310, pág. 159), que “nenhuma decisão (mesmo
interlocutória) deve aí [no processo penal] ser tomada, pelo juiz, sem que
previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade, ao sujeito
processual contra o qual ela é dirigida, de a discutir, de a contestar e de a
valorar”.
No Acórdão n.º 499/97 (Diário da República, II Série,
n.º 244, de 21 de Outubro de 1997, pág. 12 983, e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 37.º vol., pág. 499) – em que o Tribunal Constitucional julgou
“inconstitucionais, por violação do artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição,
as normas dos artigos 409.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal e 9.º, n.º
3, alínea a), da Lei n.º 15/94, de 11 de Maio, conjugadamente, na interpretação
segundo a qual a revogação pelo Supremo Tribunal de Justiça do perdão concedido
na primeira instância por aplicação da Lei n.º 15/94, de 11 de Maio (artigo 8.º,
n.º 1, alínea d)), fundamentada no artigo 9.º, n.º 3, alínea a), do mesmo
diploma, não se encontra subordinada à proibição da reformatio in pejus
consagrada no artigo 409.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal”, num caso
em que o Supremo Tribunal de Justiça havia, em recurso interposto pela defesa,
oficiosamente revogado perdão de penas decretado pelas instâncias, sem prévia
audição dos arguidos recorrentes sobre essa questão [o Acórdão n.º 498/98
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 40.º vol., pág. 517) também julgou
inconstitucional a norma do artigo 409.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na
interpretação segundo a qual a proibição da reformatio in pejus não abrange a
revogação pelo tribunal superior do perdão de pena concedido pela 1.ª
instância, mas na sua fundamentação não foi encarada a questão da violação do
princípio do contraditório] –, consignou-se o seguinte, com especial
relevância para o exacto entendimento do princípio do contraditório em matéria
de revogação de medidas de clemência:
“12 – Perguntar-se-á, então, se a norma que admite a revogação pelo
tribunal de recurso do perdão concedido pelo tribunal de primeira instância,
havendo apenas recurso da defesa, afectará as razões constitucionais de
proibição de reformatio in pejus?
A resposta negativa só se poderia basear em que a aplicação de
perdões ou de amnistias, pela sua excepcionalidade, se sobreporia aos mecanismos
do recurso e não estaria submetida, enquanto mera alteração da qualificação
jurídica de certas situações, ao contraditório e à estrutura acusatória do
Processo Penal nem suscitaria um direito a um benefício invocável pelo arguido.
Segundo tal lógica, seria apenas uma emanação da obrigação dos
tribunais de aplicar correctamente o Direito – e que eles próprios controlariam
oficiosa e inquisitoriamente (cfr., sobre esta questão, Giorgio Spengher,
Enciclopedia del Diritto, loc. cit., enunciando, muito claramente, a hipótese
de uma declaração ope legis de uma revogação de benefícios, mas concluindo que é
o Código do Processo Penal italiano que impõe que a reformatio in pejus e a
regra tantum devolutum quantum appelatum operem em sede de procedimento
constitutivo e não valham em sede de mero acto declarativo do tribunal, e
referindo que, mesmo que os benefícios concedidos tenham violado as disposições
substantivas que os atribuem, a revogação não pode ser ordenada pelo juiz
superior, prevalecendo o garantismo sobre a prevenção).
Todavia, a protecção do exercício do contraditório como condição de uma justiça
comunicacional, profundamente humana, não abrange apenas a discussão conducente
à prova dos factos e da culpa ou à infirmação da presunção de inocência, mas
atinge ainda todos os aspectos de qualificação jurídica com repercussão na
situação do arguido. É a esta luz que se compreende a decisão do Tribunal
Constitucional, segundo a qual a possibilidade de diferente qualificação
jurídico-penal dos factos que conduzem à condenação do arguido em pena mais
grave, retirada da interpretação conjugada dos artigos 1.°, n.° l, alínea f),
120.°, 284.°, n.° l, 303.°, n.° 3, 309.°, n.° 2, 359.º, n.ºs l e 2, e 379.°,
alínea b), do Código de Processo Penal é inconstitucional, na medida em que não
se preveja que o arguido seja prevenido da nova qualificação e não se lhe dê,
quanto a ela, oportunidade de defesa (cfr. Acórdão n.º 279/95, Diário da
República, II Série, de 28 de Julho de 1995).
13 – Deste modo, o contraditório surge como regra orientadora da
produção pelo tribunal de um juízo que interfira com o arguido, para além de se
justificar pela defesa de direitos. Em processo penal, o contraditório visa,
antes de mais, assegurar decisões fundamentadas na discussão de argumentos,
subordinando todas as decisões (ainda que recorríveis) em que os arguidos sejam
pessoalmente afectados (cfr. artigo 65.°, n.° 1, alínea d), do Código de
Processo Penal), como emanação de uma racionalidade dialéctica, comunicacional
e democrática. É, assim, o princípio do contraditório expressão do Estado
de direito democrático e, nessa medida, igualmente das garantias de defesa. A
sua absoluta derrogação pela permissão de uma reformatio in pejus oficiosa
(sobre a fundamentação da proibição da reformatio in pejus no direito ao
contraditório veja-se Giorgio Spengher, Enciclopedia del Diritto, loc. cit., p.
297, nota 134, referindo a progressiva conexão entre a proibição da reformatio
in pejus e o direito de defesa, numa lógica não inquisitória) torna-se, assim,
clara violação do próprio princípio do contraditório, na sua justificação
última.”
Como resulta desta transcrição, o respeito do princípio
do contraditório, como emanação das garantias de defesa em processo criminal,
impunha que, perante a promoção de revogação da perdão de pena, fosse dada ao
arguido a possibilidade de se pronunciar, possibilidade que não lhe podia ser
negada com base numa pretensa automaticidade ou operatividade ope legis daquela
revogação. Acresce que esta revogação dependia da verificação da
ocorrência de determinadas circunstâncias e ao arguido assistia o direito de,
logo perante o juiz de 1.ª instância, aduzir as suas razões no sentido do não
preenchimento dessas condições, quer propugnando uma interpretação normativa
diversa da que veio a ser acolhida, quer arguindo a inconstitucionalidade desta
última. Não cabendo, como é óbvio, ao Tribunal Constitucional, nesta sede,
pronunciar-se quanto à correcção da interpretação do direito ordinário
efectuado pelas instâncias, não pode deixar de registar-se, por exemplo, o
acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de Junho de 1984, processo n.º 37
403 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 338, pág. 233), em que, face ao
artigo 5.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 758/76, de 22 de Outubro, que condicionava
o perdão por ele concedido ao não cometimento pelo beneficiário de infracção
dolosa nos três anos subsequentes à data desse diploma, se discutiu se a prática
de crime doloso na noite de 25 para 26 de Outubro de 1976 impedia a manutenção
da concessão de perdão, em 20 de Novembro de 1976, da pena a que fora
condenado, por sentença de 23 de Março de 1971 (de que só foi notificado em
Fevereiro de 1982), por crimes cometidos em 1967. O Supremo Tribunal de Justiça,
nesse aresto, entendeu que “com a sujeição da aplicação em definitivo do perdão
concedido no acima citado artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 758/76 à verificação da
condição exigida no seu n.º 2 (preceito este que vem sendo sistematicamente
inserido em todos os diplomas de concessão de perdões de pena), tem a lei em
vista motivar os beneficiados para o não cometimento de novos crimes, pelo
menos durante um certo período de tempo, só assim os considerando merecedores do
perdão inicialmente concedido”, pelo que, “desde logo, e muito logicamente, só
ao condenado que de tanto tenha tido conhecimento é legítimo, para o efeito,
exigir um comportamento merecedor da efectiva aplicação do perdão”, pois
“antes disso, e não obstante os termos em que a lei se mostra redigida,
relativamente ao réu antes condenado mas que ignora que o foi, não é exigível,
para o efeito em causa entenda-se, o comportamento que condiciona a efectiva
aplicação do perdão”. Considerou, assim, o Supremo Tribunal de Justiça, que
“face ao condicionalismo acima relatado, isto é, por o réu não conhecer na
altura em que cometeu o crime da noite de 25 para 26 de Outubro de 1976 a
condenação que dias antes lhe fora imposta e, mais, o perdão a que em princípio
tinha direito (que aliás só lhe foi concedido mais tarde, em 20 de Novembro de
1976), se não concretizou a situação, como seria necessário ter-se verificado,
que faria perder o aludido benefício”, “situação essa que era a de ele, com o
seu comportamento posterior, se ter mostrado indiferente ao motivo determinante
da concessão de tal benefício”. Sintetizando o seu entendimento, afirmou o
Supremo Tribunal de Justiça: “Com o entendimento que fica expresso pretende-se
significar que a perda do benefício do perdão condicionalmente concedido (porque
dependente, para produzir definitivamente o seu efeito, da exigência do n.º 2
do artigo 5.º) só se dá quando: a) O beneficiário tenha conhecimento da
condenação em pena sobre a qual pode incidir o perdão, quando não mesmo do
benefício que lhe foi concedido e condição de que ficou dependente o seu
efectivo efeito; e ainda, b) Que o mesmo mostre, com a prática de um novo crime
doloso dentro do prazo fixado no acima citado preceito legal, que lhe foi
indiferente a advertência ou chamada de atenção para o seu comportamento futuro
no sentido de se abster de incorrer em nova responsabilidade criminal”.
Repete-se que não compete ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre qual
das interpretações expostas da regra em causa será a mais correcta, mas a
exemplificação da existência de interpretações divergentes mais reforça a
conclusão da não dispensabilidade da audição do arguido sobre a promovida
revogação do perdão, a pretexto do carácter automático e pretensamente
indiscutível desta revogação. Conclui-se, assim, que são
inconstitucionais, por violação do artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da
República Portuguesa, as normas constantes dos artigos 4.° da Lei n.° 29/99, de
12 de Maio, e 61.°, n.° 1, alínea b), do Código de Processo Penal,
interpretadas no sentido de não ser obrigatória a audição do arguido antes de
ser proferida decisão de revogação do perdão de pena de que beneficiara.
2.2. Quanto à segunda questão de constitucionalidade suscitada – a da
interpretação do artigo 4.° da Lei n.º 29/99, que considera relevantes, para
efeitos de determinar a revogação do perdão nela previsto, delitos cometidos
após a entrada em vigor dessa lei, mas anteriores à sentença que concedeu o
perdão revogando –, interessará recordar que o Tribunal já apreciou a
conformidade constitucional de interpretação similar feito a propósito da
correspondente norma de anterior lei de amnistia e de perdão de penas (artigo
11.º da Lei n.º 15/94, de 11 de Maio), mas tomando então por parâmetros de
aferição os princípios da irretroactividade da lei penal e da igualdade. Fê-lo
no Acórdão n.º 25/2000 (Diário da República, II Série, n.º 71, de 24 de Março de
2000, pág. 5609; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 493, pág. 110; e Acórdãos
do Tribunal Constitucional, 46.º vol., pág. 235), onde se ponderou:
“11. Para o recorrente, é uma intenção dissuasora a que informa o
artigo 11.º da Lei n.º 15/94 (alegações, ponto 15, fls. 471).
Por esse motivo, e ainda porque o perdão não produziria os seus
«efeitos de forma imediata e automática, sendo necessária uma decisão judicial
que aprecie as circunstâncias do caso concreto para determinar a aplicação desse
perdão» (idem, ponto 16, ibidem), o prazo de três anos deveria contar-se a
partir da publicação da Lei, «mas tendo em conta, como limite temporal mínimo,
o trânsito em julgado da decisão em que se aplicou o perdão» (idem, ponto 18,
ibidem).
Interpretar o artigo 11.º de modo a permitir que opere a condição
resolutiva em função do cometimento de infracções anterior ao «momento em que
foi proferida a decisão aplicadora do perdão» «conduziria a uma aplicação
retroactiva da lei e, desta forma, à manifesta violação do artigo 18.º, n.º 3,
da Constituição da República Portuguesa» (idem, ponto 21, a fls. 472).
12. Afigura-se como evidente que não resulta da norma aplicada pelo
tribunal a quo qualquer retroactividade da lei penal (cuja proibição decorre do
artigo 29.º da Constituição, e não do n.º 3 do artigo 18.º).
Na verdade, o que estabelece a norma do artigo 11.º – de resto,
interpretada declarativamente pela decisão recorrida – é a resolução do perdão
se vier a ser praticada uma infracção dolosa durante um período de tempo de três
anos, que é posterior à publicação da lei, e que tem início no momento da sua
entrada em vigor.
A revogação do perdão não implica qualquer retroactividade da lei,
pela simples e linear razão de que a lei é anterior à prática dos factos que
fazem operar a condição resolutiva.
Esta verificação permite, só por si, afastar a alegação de
retroactividade, sem necessidade de demonstrar a falta de fundamento da tese,
aduzida pelo recorrente, da natureza constitutiva da decisão que declara o
perdão. Com efeito, o condenado não é surpreendido com a revogação do perdão, já
que praticara os factos dolosos em causa em momento posterior à publicação e à
entrada em vigor da Lei que concede, sob condição resolutiva, o perdão em causa.
É assim irrelevante, para o efeito de saber se há ou não lesão do
princípio da irretroactividade da lei penal, a circunstância de os crimes
dolosos terem sido praticados antes ou depois da decisão que declarou perdoada a
pena relativa ao crime praticado em 1992.
13. De acordo com o disposto no artigo 79.º-C da Lei do Tribunal
Constitucional, este Tribunal pode julgar inconstitucional uma norma cuja
constitucionalidade foi questionada pelo recorrente, embora com fundamento na
violação de normas ou princípios constitucionais por este não invocados.
Coloca-se o problema de saber se o regime previsto no artigo 11.º da
Lei n.º 15/94, de 11 de Maio, não virá a reservar um tratamento igual para
situações fundamentalmente diferentes.
De acordo com a jurisprudência corrente do Tribunal Constitucional,
as soluções normativas relativas às chamadas medidas de graça ou de clemência
não estão subtraídas ao crivo do princípio da igualdade. Como se afirmou no
Acórdão n.º 444/97 (Diário da República, II Série, de 22 de Julho de 1997),
sobre a Lei n.º 9/96, de 23 de Março, «o princípio de igualdade, tratando-se
aqui da definição de direitos individuais perante o Estado, que pela amnistia,
como pelo perdão, são alargados – como são restringidos pela aplicação das
sanções – impede desigualdades de tratamento».
A diferenciação de tratamento que por elas seja estabelecida não
deve ser arbitrária, materialmente infundada ou irrazoável (cf. o Acórdão n.º
42/95, Diário da República, II Série, de 27 de Abril de 1995, a propósito da
exclusão de certas infracções do âmbito do perdão de penas concedido pela Lei
n.º 15/94; vide também os Acórdãos n.ºs 152/95, Diário da República, II Série,
de 20 de Junho de 1995, e 160/96, não publicado, ambos sobre normas extraídas da
mesma Lei).
Por outro lado, situações substancialmente diferentes exigem um
regime diverso. A desigualdade de tratamento para diferentes situações é ainda
uma dimensão essencial do princípio da igualdade.
14. Ao conceder um perdão sob a condição resolutiva de o
beneficiário não praticar infracção dolosa nos três anos subsequentes à data da
entrada em vigor da lei, a norma impugnada estatui a resolução da medida de
graça em função da prática de infracção dolosa, independentemente de esta
prática ser ou não anterior à decisão judicial de aplicação do perdão.
São, pois, colocados em igualdade de circunstâncias os agentes que
praticam factos dolosos após a aplicação judicial da Lei que concede o perdão e
aqueles outros que tinham já praticado factos dolosos em momento anterior à
decisão judicial.
Na linha do que defende o recorrente, seria possível afirmar que a
aplicação da condição resolutiva legalmente prevista aos casos em que os factos
dolosos que a fazem operar são anteriores à decisão judicial faz esquecer a
função preventiva, decorrente da ratio do artigo 11.º. E tal esquecimento
redundaria, afinal, no estabelecimento de um tratamento igual para situações
substancialmente desiguais, com lesão do princípio da igualdade.
Todavia, tal linha de raciocínio não se afigura fundada. Na verdade,
parece correcto descobrir no artigo 11.º a manifestação de uma ideia de
prevenção. Mas não é correcto defender que a função preventiva da condição
resolutiva só pode razoavelmente ser desempenhada a partir da decisão judicial.
Bem ao contrário, a Lei n.º 15/94, de 11 de Maio, ao declarar condicionalmente
perdoadas determinadas penas, estabelece logo, com a publicidade inerente à sua
publicação, que só poderá beneficiar do perdão quem se abstiver da prática
ulterior de factos dolosos.
A finalidade preventiva obtém-se, pois, a partir da publicação e da entrada em
vigor da Lei. Deste modo, não sendo decisiva para este efeito a decisão
judicial que declara perdoada a pena, é plenamente justificado o igual
tratamento concedido aos agentes que vierem a praticar factos dolosos em
momento anterior ou posterior à referida decisão judicial.
Consequentemente, conclui-se que a norma impugnada também não viola o princípio
constitucional da igualdade.”
No presente caso, o recorrente invoca a violação do
princípio da culpa, questão não apreciada no Acórdão n.º 25/2000.
José de Sousa e Brito (“A Lei Penal na Constituição”, em
Jorge Miranda (Coord.), Estudos sobre a Constituição, 2.º vol., Lisboa, 1978,
pág. 197-254), elencando como “princípios constitucionais de política criminal o
princípio da culpa, o princípio da necessidade da pena e das medidas de
segurança, os princípios da legalidade e da jurisdicionalidade da aplicação do
direito penal, o princípio da humanidade e o princípio da igualdade”, referia
então quanto ao princípio da culpa (sobre a relevância da culpa na determinação
da medida da pena, cf., do mesmo autor, “A medida da pena no novo Código Penal”,
em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, Número especial do
Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, 1984, págs. 555-587):
“O princípio da culpa deduz-se da dignidade da pessoa humana (artigo
1.º) e do direito à liberdade (artigo 27.º, n.º 1). Significa que a pena se
funda na culpa do agente pela sua acção ou omissão, isto é, em um juízo de
reprovação do agente por não ter agido em conformidade com o dever jurídico,
embora tivesse podido conhecê-lo, motivar-se por ele e realizá-lo. A culpa
pressupõe a consciência ética e a liberdade do agente, sem admissão das quais
não se respeita a pessoa nem se entende o seu direito à liberdade. Implica que
não há pena sem culpa, excluindo-se a responsabilidade penal objectiva, nem
medida da pena que exceda a da culpa. Mas já não significa que toda a culpa seja
punida.”
Como assinala Jorge de Figueiredo Dias, “um (..)
princípio de relevo político-constitucional incontestável é o princípio da
culpa: o princípio segundo o qual (...) em caso algum pode haver pena sem culpa
ou a medida da pena ultrapassar a medida da culpa”, princípio que vai buscar o
seu fundamento axiológico “ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal:
o princípio axiológico mais essencial à ideia de Estado de Direito democrático”
(Direito Penal Português – Parte Geral – II – As Consequências Jurídicas do
Crime, Lisboa, 1993, pág. 73; cf. também Direito Penal – Parte Geral – Tomo I –
Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime, Coimbra, 2004, pág. 471).
Também a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem
repetidamente afirmado a relevância constitucional do princípio da culpa,
apesar de não consagrado de forma autónoma e expressa no texto constitucional.
No Acórdão n.º 426/91 (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 20.º vol., pág. 423) considerou-se que o princípio da culpa
“está consagrado, conjugadamente, nos artigos 1.º e 25.º, n.º 1, da
Constituição: deriva da essencial dignidade da pessoa humana, que não pode ser
tomada como simples meio para a prossecução de fins preventivos, e articula-se
com o direito à integridade moral e física”. E segundo o mesmo aresto: “este
princípio exprime-se, em direito penal, a diversos níveis: a) veda a
incriminação de condutas destituídas de qualquer ressonância ética; b) impede a
responsabilização objectiva, obrigando ao estabelecimento de um nexo subjectivo
– a título de dolo ou de negligência – entre o agente e o facto (...); c) obsta
à punição sem culpa e à punição que exceda a medida da culpa (...)”.
Esse princípio foi recentemente invocado a propósito da
previsão de penas fixas, em jurisprudência que culminou com a prolação do
Acórdão n.º 124/2004 (Diário da República, I Série-A, n.º 77, de 31 de Março de
2004, pág. 2035), que declarou, com força obrigatória geral, a
inconstitucionalidade, por violação dos princípios constitucionais da culpa, da
igualdade e da proporcionalidade, da norma constante da parte final do § único
do artigo 67.º do Decreto n.º 44 623, de 10 de Outubro de 1962, enquanto manda
aplicar o máximo da pena prevista no artigo 64.º do mesmo diploma para o crime
de pesca em época de defeso, quando concorra a agravante de a pesca ter lugar em
zona de pesca reservada. Nesse Acórdão reproduziram-se as considerações
desenvolvidas a propósito do princípio da culpa, como o primeiro dos princípios
constitucionais criminais, no Acórdão n.º 95/2001 (Diário da República, II
Série, de 24 de Abril de 2002, pág. 7629; e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 49.º vol., pág. 365), onde se lê:
“5.1. Como este Tribunal sublinhou no Acórdão n.º 83/95 (publicado nos Acórdãos
do Tribunal Constitucional, volume 30.º, página 521), o direito penal, no Estado
de Direito, tem de edificar-se sobre o homem como ser pessoal e livre – do
homem que, sendo responsável pelos seus actos, é capaz de se decidir pelo
Direito ou contra o Direito. Há-de ser, por isso, um direito penal ancorado na
dignidade da pessoa humana, que tenha a culpa como fundamento e limite da pena,
pois não é admissível pena sem culpa, nem em medida tal que exceda a da culpa.
Ou seja: há-de ser um direito penal de culpa [cf. sobre isto, embora em termos
não inteiramente coincidentes, Jorge de Figueiredo Dias («Sobre o Estado Actual
da Doutrina do Crime», in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano I, páginas
28 e seguintes) e José de Sousa e Brito («A lei penal na Constituição», in
Estudos sobre a Constituição, volume 2.º, Lisboa, 1978, página 218)]. É um
direito penal que só pode intervir para a protecção de bens jurídicos, mas de
bens jurídicos com dignidade penal (é dizer: com ressonância ética), sendo que a
danosidade social capaz de justificar a imposição de uma punição – como adverte
Eduardo Correia («Estudos sobre a reforma do Direito Penal depois de 1974», in
Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 119.º, página 6) – há-de ser
ajuizada no plano ético-jurídico, e não num plano meramente sociológico.
O direito penal, enquanto direito de protecção, cumpre, por isso, uma função de
ultima ratio, pois só se justifica que intervenha, se a protecção dos bens
jurídicos não puder ser assegurada com eficácia mediante o recurso a outras
medidas de política social menos violentas e gravosas do que as sanções
criminais [cf. também Jorge de Figueiredo Dias («O sistema sancionatório no
Direito Penal Português», in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Eduardo
Correia, I, Boletim da Faculdade de Direito, número especial, 1984, página 807)
e José de Sousa e Brito (ob. e loc. cit.)].
A necessidade da pena – que, repete-se, há-de ser uma pena de culpa
– limita, pois, o âmbito de intervenção do direito penal, sendo mesmo o critério
decisivo dessa intervenção (cf. Eduardo Correia, loc. cit.)
O legislador, que deve observar também um princípio de humanidade na
previsão das penas (cf. artigo 25.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição), há-de ainda
ter em conta que a ideia de necessidade da pena leva implicada a da sua
adequação e proporcionalidade. Ou seja: na previsão das penas, deve ele
procurar uma justa medida – uma adequada proporção – entre as penas e os factos
a que elas se aplicam: a gravidade das penas deve ser proporcional à gravidade
das infracções.
O Tribunal, quando teve que ajuizar uma norma penal à luz do
princípio constitucional da proporcionalidade, sublinhou sempre que o legislador
goza de ampla liberdade na definição dos crimes e no estabelecimento das penas
correspondentes. E sublinhou, bem assim, que, nessa matéria, ele só pode
censurar, ratione constitutionis, as decisões legislativas que contenham
incriminações arbitrárias ou punições excessivas: é que, no Estado de Direito,
o legislador está vinculado por concepções de justiça; ora, o princípio de
justiça impede-o de actuar arbitrariamente ou de forma excessiva [cf. neste
sentido, entre outros, o citado Acórdão n.º 83/95 e os Acórdãos nºs 634/93 e
480/98 (publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volumes 26.º,
página 205, e 40.º, página 507) e 108/99 (publicado no Diário da República, II
Série, de 1 de Janeiro de 1999)].
Em síntese: como sublinha Eduardo Correia (loc. cit.), «o ponto de
referência de um conceito material de crime supõe sempre que o agente seja
merecedor da pena». E esta ideia – sublinha o mesmo Autor – tem de ser
conjugada com a ideia de necessidade social. E citando Sax, acrescenta:
«necessidade da pena como o caminho mais humano para proteger certos bens
jurídicos. Merecedor da pena como qualidade de alguém que a deva sofrer».
O que se disse resulta, aliás, entre outros, dos seguintes artigos
da Constituição: do artigo 1.º, que baseia a República na dignidade da pessoa
humana; do artigo 18.º, n.º 2, que condiciona a legitimidade das restrições de
direitos à necessidade, adequação e proporcionalidade das mesmas; do artigo
25.º, n.º 1, que sublinha a inviolabilidade da integridade pessoal; e do artigo
30.º, n.º 1, que proíbe penas ou medidas de segurança privativas ou restritivas
da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida.
5.2. O princípio da culpa, enquanto princípio conformador do direito
penal de um Estado de Direito, proíbe – já se disse – que se aplique pena sem
culpa e, bem assim, que a medida da pena ultrapasse a da culpa.
Trata-se de um princípio que emana da Constituição e que, na
formulação de José de Sousa e Brito (loc. cit., página 199), se deduz da
dignidade da pessoa humana, em que se baseia a República (artigo 1.º da
Constituição), e do direito de liberdade (artigo 27.º, n.º 1); e, nos dizeres de
Jorge de Figueiredo Dias, vai buscar o seu fundamento axiológico «ao princípio
da inviolabilidade da dignidade pessoal: o princípio axiológico mais essencial à
ideia do Estado de Direito democrático» (Direito Penal Português. As
Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, página 73).”
Recordados estes pronunciamentos doutrinais e
jurisprudenciais, e apreciando o caso dos autos, constata-se que o fundamento da
condenação do recorrente em pena de prisão foi a prática do crime de ofensa à
integridade física simples, previsto no artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal,
relativamente à qual não vem suscitada nenhuma questão de violação do princípio
da culpa, em qualquer das suas assinaladas dimensões. E mesmo não discutindo a
operatividade deste princípio, para além da imputação do facto que fundamenta a
condenação numa pena criminal, igualmente na perspectiva da prática de facto
causador de perda de um benefício (o perdão da pena de prisão), que determinará
o efectivo cumprimento daquela pena, também não se pode considerar violado o
princípio da culpa, pois a lei que concedeu o perdão e estabeleceu a sua
condição resolutiva é anterior à prática do segundo crime, exige-se que este
crime tenha natureza dolosa e não se pode reputar desproporcionada a
consequência da perda da graça concedida a quem, com a prática de crime doloso
posterior à publicação da lei que concedeu o perdão de penas resolutivamente
condicionado à omissão de novas condutas delinquentes no prazo de três anos,
se mostrou, segundo o critério do legislador, não merecedor daquela medida de
clemência. Nesta hipótese, que ocorre no presente caso, verifica-se o respeito
do princípio da culpa, pois, na citada formulação de Sousa e Brito, se
justifica um “juízo de reprovação do agente por não ter agido em conformidade
com o dever jurídico, embora tivesse podido conhecê-lo, motivar-se por ele e
realizá-lo”. Não se vislumbra, nesta solução legislativa, qualquer ofensa do
princípio da dignidade da pessoa humana, de que se extrai o princípio da culpa.
2.3. Por último, improcede a terceira questão de
inconstitucionalidade: a que sustenta que a norma contida ainda nesse artigo
4.° da Lei n.º 29/99, na interpretação que considera relevantes para a
aplicação da mesma qualquer infracção, ainda que punida com simples multa, é
inconstitucional porque ofende os princípios da proporcionalidade e da
adequação das penas.
O segundo crime cometido pelo recorrente (crime de
detenção ilegal de arma de defesa) é um crime doloso, punível com pena de prisão
até dois anos ou com pena de multa até 240 dias (artigo 6.º da Lei n.º 22/97),
tendo-lhe sido em concreto aplicada a pena de 100 dias de multa. Também neste
caso não se discute a eventual violação dos princípios da proporcionalidade e
da adequação das penas quanto à condenação do recorrente por este crime, mas
apenas o desrespeito desses princípios derivada da consequência que tal
condenação provocou ao determinar a revogação do perdão de pena de prisão
aplicada por crime anterior.
Porém, a perda de uma medida de clemência derivada da
autoria, pelo arguido, de um crime doloso, praticado depois de publicada a lei
que concedeu o perdão e logo previu a sua revogação nas condições que as
instâncias deram por preenchidas, por entender que com essa actuação dolosa o
arguido se mostrou não merecedor da graça concedida, não se mostra
desproporcionada, mesmo que o segundo crime tenha sido, em concreto, punido com
pena de multa. A liberdade de conformação do legislador, especialmente na
concessão de medidas de clemência e na previsão das causas da sua revogação, não
é obviamente arbitrária, sendo antes susceptível de controlo jurisdicional
quanto ao respeito, designadamente, dos princípios da igualdade e da
proporcionalidade. Porém, o seu uso, não se mostra, no presente caso, merecedor
de censura constitucional, não sendo intoleravelmente desproporcionado ou
desadequado aos fins das penas a previsão da revogação do perdão de pena de
prisão como consequência da prática, pelo arguido, dentro de um lapso de tempo
relativamente curto após a publicação da lei de clemência, de novo crime doloso,
independentemente da natureza da pena aplicável a este segundo crime.
Reitera-se que, para este efeito, o que é relevante é a
circunstância de o recorrente ter cometido o segundo crime, de natureza dolosa,
depois de ter sido publicada a lei que concedera perdão de pena de prisão
condicionado à não prática de crime doloso nos três anos subsequentes à data da
sua entrada em vigor.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Julgar inconstitucionais, por violação do artigo
32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa, as normas constantes
dos artigos 4.° da Lei n.° 29/99, de 12 de Maio, e 61.°, n.° 1, alínea b), do
Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de não ser obrigatória a
audição do arguido antes de ser proferida decisão de revogação do perdão de
pena de que beneficiara;
b) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 4.° da
Lei n.º 29/99, interpretada como sendo relevante, para efeito de determinar a
revogação do perdão, o cometimento de crime doloso em data posterior à entrada
em vigor dessa lei, embora anterior à sentença que concedeu o perdão revogando,
e ainda que punido com multa; e, consequentemente,
c) Conceder parcial provimento ao recurso, determinando a
reformulação do acórdão recorrido em conformidade com o juízo de
inconstitucionalidade constante da precedente alínea a).
Sem custas.
Lisboa, 7 de Junho de 2005
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
Paulo Mota Pinto
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos