Imprimir acórdão
Processo n.º 508/03
Plenário
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Um Grupo de Deputados do Partido Socialista (PS) à Assembleia da República
requereu ao Tribunal Constitucional a apreciação e declaração, com força
obrigatória geral, de inconstitucionalidade e de ilegalidade das normas contidas
nos artigos 4º a 8º do Decreto Legislativo Regional nº 2/2003/M, de 24 de
Fevereiro.
As normas em causa dispõem o seguinte:
'Artigo 4º
Responsabilização familiar
1 - Caso o utente permaneça em meio hospitalar após as diligências efectuadas
pelos serviços, estes devem notificar formalmente a situação aos familiares,
fixando um prazo para o acolhimento do utente e advertindo-os para as
consequências da sua omissão.
2 - Consideram-se abrangidos pelas disposições constantes no número anterior os
seguintes familiares pela ordem indicada:
a) Cônjuge;
b) Descendentes;
c) Ascendentes, no caso do utente não ser idoso.
3 - Considera-se ainda abrangido quem com o utente viva em união de facto.
Artigo 5º
Comparticipação
1 - A permanência em meio hospitalar após alta clínica obriga o utente e seus
familiares e quem com ele conviva em união de facto à comparticipação nos custos
de internamento.
2 - O valor dos custos de internamento, para efeitos do presente diploma, o
montante que salvaguarde o rendimento pessoal indispensável ao utente, a fórmula
de cálculo das comparticipações devidas pelos familiares são fixados por
portaria do membro do Governo responsável pela área da saúde, devendo obedecer a
critérios similares aos utilizados para fins de acção social.
Artigo 6º
Família de acolhimento
Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, esgotadas as possibilidades de
acolhimento pela família biológica, os serviços devem promover a inserção do
utente junto de uma terceira família de acolhimento, aplicando-se o regime
previsto no Decreto-Lei nº 391/91, de 10 de Outubro, ou no Decreto-Lei nº
190/92, de 3 de Setembro, consoante se trate, respectivamente, de idosos,
adultos com deficiência ou de crianças e jovens.
Artigo 7º
Receitas
Os valores das comparticipações constituem receita do Serviço Regional de Saúde.
Artigo 8º
Não pagamento voluntário
A falta de pagamento voluntário das comparticipações, a que se refere o presente
diploma, dá lugar a execução, a qual seguirá os termos da execução fiscal'.
O Grupo de Deputados do PS alegou, designadamente, o seguinte:
- O Decreto Legislativo Regional nº 2/2003/M, que tem por objecto a aprovação de
medidas de reinserção familiar e social de utentes com permanência hospitalar
após alta clínica, para resolução do problema do “abandono” de pessoas nos
hospitais, é susceptível de crítica ao nível jurídico-constitucional e
político-social.
- Uma das medidas adoptadas pelo diploma mencionado consiste em atribuir aos
utentes que permanecem em meio hospitalar após alta médica, bem como aos seus
familiares, a responsabilidade pelo pagamento dos custos desse internamento.
- A responsabilização dos familiares é configurada como uma obrigação legal e
não como resultado da vontade das pessoas ou de contrato assistencial entre elas
e as instituições. Tal medida é criticável, desde logo porque os familiares do
utente não beneficiaram nem deram causa ao dito internamento.
- Para além disso, o diploma regional obriga os familiares a pagar o
internamento a preço diferente daquele que é imputado ao próprio beneficiário (o
utente), sendo o preço calculado em função do rendimento per capita desses
familiares, dando azo a que esse internamento passe a ter preços
discriminatórios.
- O diploma regional não prevê a gratuitidade do internamento após alta nos
casos de manifesta incapacidade económica do utente e da família, nem nos casos
de impossibilidade de acolhimento familiar, situações que exigem o apoio do
Estado e não a imposição de encargos. Efectivamente, os utentes que permanecem
em meio hospitalar após alta médica são, em regra, pessoas quase insolventes ou
sem capacidade económica e oriundos de famílias pobres, sem condições de
protecção sócio-económica e de acolhimento. Trata-se, portanto, de pessoas
carentes de maior e melhor protecção social do Estado, ao nível da solidariedade
social. A imposição das despesas acima referidas aos utentes e seus familiares
constitui uma forma de o Governo Regional se demitir das obrigações sociais a
que está constitucionalmente obrigado, traduzindo-se numa violação do disposto
no nº 3 do artigo 63º da Lei Fundamental, que impõe (por via do sistema de
segurança social) a protecção dos cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez
e orfandade, bem como no desemprego e em todas as situações de falta ou
diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho.
- Acresce que a matéria tratada pelo diploma regional (pagamento de custos pelo
internamento após alta do utente) é inovadora, não existindo lei geral da
República com o mesmo objecto. Ora, na falta de enquadramento legal nacional, o
legislador regional não podia ter criado o regime em causa, pois legislou ao
abrigo do artigo 227º, nº 1, alínea a), da Constituição e do artigo 37º, nº 1,
alínea c), do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira,
que impõem ao legislador regional o respeito pelos princípios fundamentais das
leis gerais da República e obrigam à existência de precedência legal nacional.
- Por outro lado, as normas acima referidas condicionam o poder legislativo das
regiões autónomas à existência de interesse específico regional. Não obstante o
diploma regional ter sido aprovado ao abrigo do artigo 40º, alínea m), do
Estatuto Político-Administrativo (que prevê como matérias de interesse
específico regional a saúde e a segurança social), a jurisprudência
constitucional tem entendido que só têm interesse específico as matérias que
digam respeito exclusivamente às regiões ou que nestas assumam peculiar
configuração, exigindo um tratamento especial, diferenciado do restante
território nacional (Acórdãos nºs 42/85, 82/86 e 152/87, entre outros). Ora, é
discutível que o pagamento de custos de internamento após alta médica seja
matéria de interesse específico e, neste sentido, deva ou possa ter um regime
diferenciado do restante território nacional.
- A referida jurisprudência constitucional afirma ainda que a matéria a regular
pelas regiões autónomas não pode pertencer à reserva de competência legislativa
dos órgãos de soberania, ou seja, não pode constar do elenco de matérias
previstas nos artigos 164º e 165º da Constituição. Acontece que o diploma
regional alarga a responsabilidade pelo pagamento de custos de internamento a
terceiros não beneficiários da assistência médico-hospitalar, criando obrigações
novas no ordenamento jurídico nacional e discriminando os cidadãos residentes na
Região Autónoma da Madeira relativamente aos restantes cidadãos nacionais (uma
vez que não existe um regime similar aplicável a estes últimos). Porque estas
matérias se situam no âmbito dos direitos, liberdades e garantias
(designadamente, do estatuído no nº 1 do artigo 26º da Constituição), o diploma
regional invadiu a reserva de competência legislativa da Assembleia da
República, violando o disposto no artigo 165º, nº 1, alínea b), da Constituição.
O requerente conclui pela inconstitucionalidade das normas constantes dos
artigos 4º a 8º do Decreto Legislativo Regional nº 2/2003/M, por violação do
disposto nos artigos 26º, nº 1, 63º, nº 3, 165º, nº 1, alínea b), e 227º, nº 1,
alínea a), todos da Constituição da República Portuguesa (CRP), bem como pela
ilegalidade das mesmas, por violação do disposto no artigo 37º, nº 1, alínea c),
do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira (EPARAM),
aprovado pela Lei nº 13/91, de 5 de Junho.
2. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54º a 56º da
Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC),
veio o Presidente da Assembleia Legislativa Regional da Madeira responder,
alegando, fundamentalmente, o seguinte:
- Deflui do quadro constitucional da autonomia legislativa regional, modelado
pelas normas invocadas no diploma em causa, e reconhecido pela jurisprudência do
Tribunal Constitucional, que a legislação emanada pela assembleia legislativa
regional, há-de obedecer aos seguintes parâmetros:
a) as matérias a tratar deverão ser de interesse específico para a região
(limite positivo);
b) tais matérias não podem estar reservadas à competência própria dos
órgãos de soberania (primeiro limite negativo);
c) ao tratar legislativamente essas matérias, as assembleias legislativas
regionais – para além de terem de obedecer à Constituição – não podem
estabelecer disciplina que contrarie os princípios fundamentais das leis gerais
da República (segundo limite negativo).
Quanto ao interesse específico:
- O artigo 228º da Lei Fundamental, para além de elencar várias matérias como
sendo de interesse específico, conceptualiza na alínea o) como sendo de
interesse específico “outras matérias que respeitem exclusivamente à respectiva
região ou que nela assumam particular configuração”.
- O Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, no artigo
40º, vem elencar novas matérias que constituem interesse específico, para
efeitos de definição dos poderes legislativos regionais.
- O Decreto Legislativo Regional nº 2/2003M faz expressa referência à alínea m)
do artigo 40º do Estatuto Político-Administrativo (saúde e segurança social),
entre as disposições legais ao abrigo das quais emana o poder legislativo.
- Nesta sequência, o poder legislativo regional alicerçou-se em matéria de
interesse específico da Região, pelo menos do ponto de vista formal, legitimando
a presunção de que se verifica a sua existência.
- Não assumindo o problema que subjaz à necessidade de legislar contornos de
exclusividade nesta Região Autónoma, o certo é que as suas características
sociais demonstram que o problema aqui assume especial conformação.
- A sociedade madeirense tem sofrido profundas mudanças, tendo o envelhecimento
da população (circunstância geral), associado a contornos específicos, com
especial incidência na sociedade madeirense, como a nuclearização das famílias,
o esbatimento dos laços comunitários e de vizinhança e a ausência dos familiares
por motivos laborais, escolares e de emigração, motivado o aumento da
dependência dos idosos e de outros cidadãos incapacitados por motivo de doença
face à sociedade.
- É também indubitável que a Região Autónoma da Madeira é uma terra
profundamente estigmatizada pela emigração, que criou novos hábitos sociais.
- Estes fenómenos deixaram profundas marcas na estrutura tradicional da
sociedade e família madeirense, criando o problema subjacente à necessidade de
legislar – o aumento da dependência dos cidadãos face à sociedade e, em
especial, a permanência de utentes em meio hospitalar após alta clínica, muitas
vezes fruto de abandono familiar – problema este que assume especial
configuração na Região Autónoma da Madeira.
- Além disso, como decorre do texto preambular, a permanência de doentes em meio
hospitalar após alta clínica é problemática e com tendência para agravamento nos
últimos anos, acarretando problemas de exclusão familiar e social dos utentes,
elevados custos para o erário público e sobreocupação de camas e equipamentos
hospitalares, muitas vezes escassos e imprescindíveis aos doentes agudos; esta
situação é, na Região, qualificável como bastante grave.
- Encontram-se, deste modo, plenamente demonstrados, em concreto, a especial
configuração e o modo próprio como o problema se coloca nesta Região Autónoma,
além da gravidade que o mesmo assume, parecendo-nos existir interesse específico
da Região, que justifica a emergência em adoptar esta iniciativa legislativa.
- Por outro lado, há que não esquecer que a aprovação da legislação em questão
se insere no enquadramento do Decreto-Lei nº 391/80, de 23 de Setembro, que
regionaliza e transfere para a Região Autónoma da Madeira uma série de
competências nas áreas da saúde e da segurança social, nomeadamente, a
competência para assegurar a efectiva realização do direito à segurança social,
bem como as medidas necessárias à efectivação do direito à protecção e
integração social dos vários grupos etários da população.
- Além disso, a Base VIII da Lei de Bases da Saúde, aprovada pela Lei nº 48/90,
de 24 de Agosto, atribui às regiões autónomas a competência para definir e
executar a política de saúde, prevendo a aprovação de legislação sobre
regionalização dos serviços de saúde; o Estatuto do Sistema de Saúde, aprovado
pelo Decreto Legislativo Regional nº 21/91/M, de 7 de Agosto, em vigor à data de
aprovação do diploma em causa, considera a protecção e defesa da saúde, na
Região Autónoma da Madeira, área específica de protecção social, preceituando
ainda que a definição da política de protecção social estabelecerá as áreas
privilegiadas para o exercício unificado de programas de saúde e de segurança
social; finalmente, o Estatuto do Sistema Regional de Saúde, aprovado pelo
Decreto Legislativo Regional nº 4/2003/M, de 7 de Abril, prevê acções e
programas de cooperação nas áreas da saúde e da segurança social que envolvam a
protecção social das pessoas ou grupos desfavorecidos ou em risco de exclusão.
- Face ao exposto, e do ponto de vista do parâmetro do interesse específico, o
diploma objecto de fiscalização está, salvo melhor opinião, perfeitamente
conforme e legitimado em termos constitucionais.
Quanto à reserva de competência própria dos órgãos de soberania:
- O diploma em causa não invade a reserva de competência da Assembleia da
República, nem atenta contra os direitos, liberdades e garantias invocados pelo
requerente, ou quaisquer outros constantes do catálogo constitucional.
- O objectivo do diploma é o de proteger os utentes que permaneçam em meio
hospitalar após alta clínica, combatendo a exclusão familiar e o abandono a que
estão votados, adoptando medidas para a sua reinserção social e familiar,
surgindo como objectivo secundário a libertação de camas hospitalares
necessárias aos doentes agudos.
- Este diploma deve ser perspectivado, sobretudo, como um conjunto de respostas
e de prestações sociais de apoio ao utente e à família. Veja-se que os serviços
públicos oferecem o apoio assistencial necessário para criar condições de
reinserção familiar e social do utente.
- Efectivamente, o diploma disponibiliza uma série de alternativas, acompanhadas
de prestações sociais, ao utente e à família.
- Os serviços públicos gratuitos que, hoje em dia, são disponibilizados à
população, quer ao nível da ajuda domiciliária, quer no âmbito dos cuidados ao
domicílio, não justificam que as famílias votem os seus parentes mais próximos
ao abandono nos hospitais, continuando, muitas vezes, a beneficiar da pensão
daquele que repudiaram.
- A permanência destes utentes, com alta clínica, em meio hospitalar, é
susceptível de comprometer o exercício do direito constitucional à saúde por
parte de outros utentes, plasmado no nº 1 do artigo 64º da Constituição, uma vez
que este direito implica, para o Estado, o dever de defender e promover a saúde
e de garantir o acesso de todos os cidadãos à saúde.
- O diploma não contém quaisquer intuitos economicistas nem é seu propósito
estabelecer preços de internamento. O que resulta para o utente e para as
famílias, no caso em apreço, são comparticipações, ou seja, a partilha de custos
entre os serviços públicos e os beneficiários, em adequação às possibilidades
destes, e não a imputação de custos, como se alega no pedido.
- As comparticipações têm uma função eminentemente social e de responsabilização
familiar, já que a persistência do abandono familiar, após todas as prestações
sociais oferecidas, deve implicar a responsabilização da família, no sentido do
seu envolvimento no processo de protecção do seu familiar.
- Refira-se ainda que esta responsabilização não tem intuitos punitivos, visando
proteger a família, envolvendo-a, subsidiariamente, na tarefa pública de
protecção social do familiar que permaneça em meio hospitalar após alta clínica.
- O artigo 67º da Constituição reconhece a família como elemento fundamental da
sociedade, com direito a protecção do Estado e à efectivação de todas as
condições que permitam a realização pessoal dos seus membros. De acordo com a
alínea f) do mesmo preceito, incumbe também ao Estado, para protecção da
família, regular os benefícios sociais, de harmonia com os encargos familiares.
- A família, pelo menos a família mais restrita, não pode, enquanto organização
social afectiva, ser perspectivada em termos atomísticos, como se faz no pedido.
Assim, se ao Estado compete constitucionalmente proteger a família, tal não
significa uma desresponsabilização desta em relação aos seus membros, o que,
aliás, é confirmado pela consagração do princípio da subsidiariedade social (que
assenta no reconhecimento do papel das famílias na prossecução dos objectivos da
segurança social) na Lei de Bases da Segurança Social, aprovada pela Lei nº
32/2002, de 20 de Dezembro.
- O diploma objecto de fiscalização é, deste modo, um diploma de protecção
social, executando a Região Autónoma da Madeira a tarefa constitucional de
efectivar os direitos sociais constitucionalmente plasmados, não se vislumbrando
qualquer violação do nº 3 do artigo 63º da Constituição, como se alega no
pedido.
- Também em nenhum caso o texto legal põe em causa os direitos à identidade
pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania,
ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva de intimidade da vida
familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação, não se
violando, por conseguinte, o nº 1 do artigo 26º da Constituição.
- Pelo contrário, as medidas previstas no diploma, ao promoverem a reinserção
familiar e social do utente, vêm reforçar o exercício dos direitos pessoais
previstos no artigo 26º da Lei Fundamental.
- Face ao exposto, o diploma em causa não viola quaisquer direitos, liberdades e
garantias e direitos económicos, sociais e culturais, nem interfere em qualquer
matéria constitucionalmente reservada aos órgãos de soberania, encontrando-se
plenamente conforme à Constituição.
Quanto à conformidade com os princípios fundamentais das leis gerais da
República:
- Alega-se no pedido não poder a assembleia legislativa regional legislar, dado
não haver lei geral da República que regule a situação, não existindo
precedência legal nacional relativamente à qual o legislador regional possa, em
respeito aos seus princípios, legislar em matéria de interesse específico.
- Tal entendimento não é aceitável. É facto pacífico e unanimemente aceite que
as regiões autónomas detêm um poder legislativo primário que decorre da alínea
a) do nº 1 do artigo 227º da Constituição.
Como refere Jorge Miranda, “as matérias do artigo 228º da Constituição e das
listas estatutárias não se acham (...) fechadas ao legislador do Estado”; “um
diploma regional sobre qualquer delas (ou sobre qualquer dos seus segmentos)
somente tem fundamento ou quando não haja lei geral da República ou quando se
queira introduzir um regime jurídico diferenciado” (in Manual de Direito
Constitucional, Tomo IV, 3ª Edição, pág. 401).
- O que se diferencia, nesta situação, é um acréscimo de liberdade de
conformação ou disposição legislativa, não ficando a assembleia legislativa
regional adstrita aos princípios fundamentais das leis gerais da República.
- Assim, pode afirmar-se que, em relação a este parâmetro, o diploma se encontra
conforme, não violando quaisquer princípios de leis gerais da República, por
inexistir lei específica sobre esta matéria, nem quaisquer princípios
fundamentais de leis gerais da República que, eventualmente, contenham
dispositivos reguladores da matéria objecto do Decreto Legislativo Regional em
fiscalização.
Do exposto, o Presidente da Assembleia Legislativa Regional conclui que,
contrariamente ao que é defendido no pedido de fiscalização, os artigos 4º, 5º,
6º, 7º e 8º não padecem de qualquer vício de ilegalidade ou de
inconstitucionalidade.
3. Apresentado o memorando, nos termos do nº 1 do artigo 63º da LTC, foi o mesmo
debatido de modo a ficar definida a orientação do Tribunal, após o que o
processo foi distribuído para elaboração do respectivo acórdão.
II. Fundamentação
4. A análise da constitucionalidade das normas do diploma questionado coloca,
antes de mais, um problema de sucessão de normas constitucionais no tempo.
Com efeito, no período que mediou entre a emissão do Decreto Legislativo
Regional nº 2/2003/M e a presente decisão, entrou em vigor a Lei Constitucional
nº 1/2004, de 24 de Julho, que procedeu à sexta revisão da Constituição.
Entre as alterações introduzidas por esta revisão constitucional conta-se a
'simplificação dos parâmetros em que o poder legislativo regional se pode
exercer' (Vitalino Canas, Constituição da República Portuguesa (após a sexta
revisão constitucional-2004), aafdl, 2004, pág. 22) e, concomitantemente, o
alargamento dos poderes legislativos das regiões autónomas. As modificações
assinaladas são, essencialmente, as seguintes:
a) desaparecimento da categoria de leis gerais da República (antigo nº 5 do
artigo 112º da Constituição), a cujos princípios fundamentais os diplomas
regionais se encontravam subordinados;
b) eliminação da necessidade de existência de interesse específico regional na
matéria regulada pelas regiões, enquanto pressuposto ou requisito do exercício
da competência legislativa destas últimas (veja-se o nº 4 do artigo 112º da CRP,
na sua actual redacção).
O poder legislativo das regiões autónomas continua, porém, a enquadrar-se pelos
fundamentos da autonomia das regiões consagrados no artigo 225º da CRP e a
restringir-se ao âmbito regional e às matérias enunciadas no respectivo estatuto
político-administrativo, em face do disposto no nº 4 do artigo 112º e na alínea
a) do nº 1 do artigo 227º da Constituição (neste sentido, Jorge Miranda, Manual
de Direito Constitucional, Tomo V, 2ª edição, Coimbra Editora, 2004, págs. 398 a
402, e Vitalino Canas, ob. cit., págs. 140 e 236).
Subsiste ainda como requisito de exercício da competência legislativa das
regiões autónomas o respeito da reserva de competência legislativa dos órgãos de
soberania, como se depreende da leitura conjugada dos preceitos constitucionais
acima mencionados. No que diz respeito à reserva absoluta de competência
legislativa da Assembleia da República, não se registam alterações, estando esta
totalmente vedada às regiões autónomas. Já no que se refere à reserva relativa,
poderão as regiões, salvo as excepções previstas na Constituição, tratar as
matérias nela compreendidas, mediante autorização parlamentar (alínea b) do nº 1
do artigo 227º da CRP).
Sucedem-se, assim, dois regimes constitucionais distintos, importando averiguar
qual a influência da sexta revisão constitucional – de onde resulta o
alargamento da competência legislativa das regiões autónomas – na
constitucionalidade das normas questionadas.
5. A resposta à questão colocada pressupõe a ponderação dos vícios de
inconstitucionalidade imputados pelo requerente às normas em causa e, em
particular, à natureza desses vícios. E isto porque a sucessão de normas
constitucionais no tempo tem efeitos diversos consoante a norma ordinária em
apreciação padeça de um vício formal ou orgânico ou de um vício material.
Os vícios de natureza formal e orgânica dizem respeito ao incumprimento das
regras de formação e exteriorização do acto normativo, bem como das regras de
competência para a sua emissão (cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e
Teoria da Constituição, 7ª edição, Almedina, 2003, pág. 959 e s.). Estamos,
nestes casos, perante problemas de irregularidade da formação da norma
ordinária, pelo que o parâmetro constitucional aplicável deve ser o vigente no
momento da emissão daquela.
Como se escreveu no Acórdão nº 206/87 (Diário da República, Série I, de 10 de
Julho de 1987), “a (in)constitucionalidade orgânica tem sempre de ser aferida em
função das normas constitucionais em vigor ao tempo em que foram editadas as
normas que, porventura, padeçam de tal vício”. Daqui resultando que a alteração
do parâmetro de constitucionalidade seja irrelevante para efeitos de validade –
ou de convalidação – da norma ordinária. Uma solução que tem recebido
acolhimento uniforme por parte da jurisprudência constitucional, sendo também a
solução maioritariamente acolhida pela doutrina.
Na jurisprudência constitucional deve destacar-se o Acórdão nº 408/89 (Diário da
República, Série II, de 31 de Janeiro de 1990), onde claramente se concluiu que
as inconstitucionalidades orgânicas não podem ser convalidadas, uma vez que o
vício afecta a própria formação da norma ordinária.
A doutrina, por seu turno, tende a aproximar o vício da inconstitucionalidade do
regime da nulidade, recusando a possibilidade de convalidação da norma
inconstitucional (neste sentido, Miguel Galvão Teles “Inconstitucionalidade
Pretérita”, Nos dez anos da Constituição, INCM, págs. 332 e ss., Gomes Canotilho
ob. cit., págs. 953 a 956, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo
II, 5ª Edição, Coimbra Editora, 2003, pág. 310, e Marcelo Rebelo de Sousa, O
Valor Jurídico do Acto Inconstitucional, s/ed., 1988, págs. 233 e ss.). Já Rui
Medeiros admite a possibilidade de convalidação de normas inconstitucionais,
sustentando que se lhes aplica, em regra, o regime da anulabilidade (“Valores
jurídicos negativos da lei inconstitucional”, O Direito, Ano 121º, 1989, págs.
517 e 526 e s.). Reconhece, porém, este autor que existem “casos excepcionais em
que a inconstitucionalidade acarreta nulidade”, impossibilitando, assim, a sua
convalidação, apontando como exemplo os casos de inconstitucionalidade orgânica
ou formal e os de violação do conteúdo essencial dos direitos, liberdades e
garantias (ob. cit., pág. 527 e ss.). Quanto a estes, diz Rui Medeiros que “a
nulidade não se sana, nem sequer por cessação do vício” (ob. cit., pág. 534).
Reitera-se, aqui, o entendimento acolhido pelos citados Acórdãos nºs 206/87 e
408/89, no sentido de que o vício de natureza orgânico-formal ou de competência
legislativa de uma norma ordinária se afere pelas normas constitucionais
vigentes no momento da sua emissão, sendo, em princípio, irrelevantes quaisquer
alterações do parâmetro de constitucionalidade. Já quanto aos vícios de natureza
material – os que “respeitam ao conteúdo do acto normativo, derivando do
contraste existente entre os princípios incorporados no acto e as normas ou
princípios da Constituição” (Gomes Canotilho, ob. cit., pág. 959) – o que
importará saber é se a Constituição permite a solução contida na norma ordinária
(neste sentido, cfr. o Acórdão nº 408/89). E, assim, se ocorre uma alteração do
parâmetro de constitucionalidade que permita a solução adoptada pela norma
ordinária, pode operar-se a “constitucionalização superveniente” desta última.
Ora, no caso presente, coloca o requerente, entre o mais, a questão dos limites
da competência legislativa das regiões autónomas – trata-se de saber, numa das
vertentes em que tal questão vem equacionada, se existe interesse específico da
Região Autónoma da Madeira em legislar em matéria de saúde e segurança social,
interesse específico esse que constituía, antes da sexta revisão constitucional,
um dos pressupostos ou requisitos da competência legislativa regional.
Tal qualificação do “interesse específico regional” (como requisito ou
pressuposto de competência do poder legislativo regional) encontra apoio na
jurisprudência constitucional portuguesa. Recorde-se, a este propósito, a
afirmação que é feita no Acórdão nº 235/94 (Diário da República, Série I-A, de 2
de Maio de 1994): “Em jurisprudência reiterada e uniforme, vem este Tribunal
reafirmando que as assembleias legislativas regionais, ao editarem legislação ao
abrigo da referida alínea a) [alínea a) do nº 1 do então artigo 229º da CRP],
devem respeitar os seguintes parâmetros condicionadores daquela competência:
a) As matérias a tratar devem ser matérias de interesse específico da região
(parâmetro positivo);
b) Tais matérias não podem estar reservadas à competência própria dos órgãos de
soberania (parâmetro negativo);
c) Ao tratar legislativamente tais matérias, as assembleias legislativas
regionais – para além de haverem de obedecer à Constituição – não podem
estabelecer disciplina que contrarie «leis gerais da República» (…).
Os diplomas legislativos regionais que ultrapassem aqueles limites, quer
invadindo a competência própria dos órgãos de soberania quer tratando matérias
desprovidas de interesse específico, violam as regras de competência (…)”.
Mantém-se, no caso sub iudice, este entendimento, ou seja o de que o interesse
específico das regiões é “um parâmetro autónomo de atribuição de competência
legislativa (funcionando embora sempre com respeito pela Constituição e pelas
leis gerais da República e em matérias não reservadas à competência própria dos
órgãos de soberania)”. Trata-se de um dos mecanismos de que a Constituição se
socorreu para regular o sistema de repartição de competências entre os órgãos
estaduais e os órgãos regionais.
A falta dos requisitos assinalados impede os órgãos regionais de legislar, pelo
que, nesta circunstância, o exercício do poder legislativo se mostra inquinado
por vício de incompetência legislativa. Neste sentido se tem pronunciado o
Tribunal Constitucional quer quanto ao desrespeito dos princípios fundamentais
das leis gerais da República (cfr. o Acórdão nº 483/03, Diário da República,
Série II, de 11 de Fevereiro de 2004), quer quanto à intromissão na reserva de
competência da Assembleia da República (cfr. Acórdão nº 242/02, Diário da
República, Série I-A, de 28 de Agosto de 2002), quer, ainda, quanto à
inexistência de interesse específico regional (cfr. o já citado Acórdão nº
206/87 e o Acórdão nº 120/99, Diário da República, Série II, de 5 de Julho de
1999).
A caracterização do interesse específico regional como requisito ou pressuposto
da competência legislativa das regiões autónomas é de igual modo adoptado pela
doutrina. A generalidade dos autores assenta a análise da figura em questão na
sua natureza de requisito de competência, qualificando-a como “critério de
atribuição do poder legislativo às regiões autónomas” (Jorge Miranda, Manual de
Direito Constitucional, Tomo V, pág. 399), “primeiro limite de competência dos
órgãos legislativos regionais” (Maria Lúcia Amaral, “Questões regionais e
jurisprudência constitucional: para o estudo de uma actividade conformadora do
Tribunal Constitucional”, Estudos em memória do Professor Doutor João de Castro
Mendes, Lex, s.d., pág. 529), “critério delimitador autónomo dos poderes
legislativos regionais” (Jorge Pereira da Silva, O conceito de interesse
específico e os poderes legislativos regionais, Gabinete do Ministro da
República para a Região Autónoma dos Açores, 1994, pág. 5), “critério aferidor
da competência legislativa regional” (Margarida Salema, “Autonomia regional”,
Nos dez anos da Constituição, INCM, 1987, pág. 219) ou “pressuposto do exercício
de qualquer poder regional constitucionalmente conferido” (Pedro Machete,
“Elementos para o estudo das relações entre os actos legislativos do Estado e
das Regiões Autónomas no quadro da Constituição vigente”, Estudos de direito
regional, Lex, 1997, pág. 105). Outros autores afirmam, ainda, que a violação do
limite imposto pelo interesse específico à actividade legislativa regional
determina a “inconstitucionalidade orgânica dos decretos legislativos regionais
que perpetrem a mesma lesão” (Carlos Blanco de Morais, “As competências
legislativas das regiões autónomas no contexto da revisão constitucional de
1997”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 57, 1997, pág. 988, e “O modelo de
repartição da função legislativa entre o Estado e as Regiões Autónomas”, Estudos
de direito regional, Lex, 1997, pág. 219).
É certo que se escreveu no Acórdão nº 408/98 (Diário da República, Série II, de
9 de Dezembro de 1998) que se está perante a violação de um “requisito de
constitucionalidade material da legislação regional”. Todavia, a verdade é que
este requisito tem por objectivo determinar as matérias sobre as quais certo
órgão pode legislar, tratando-se de um dos mecanismos de que a CRP se socorre
para regular o sistema de repartição de competências entre os órgãos estaduais e
os órgãos regionais, pelo que a falta daquele requisito suscita directamente um
problema de competência legislativa. Note-se que, mesmo quando qualifica
expressamente a falta de interesse específico regional como vício de
inconstitucionalidade orgânica, não deixa o Tribunal Constitucional de mencionar
que se trata de um parâmetro de condicionamento e limitação da competência
legislativa das regiões autónomas, cuja violação origina um vício de
inconstitucionalidade, por “incompetência absoluta” (neste sentido, cfr. Acórdão
nº 212/92, Diário da República, Série I-A, de 21 de Julho de 1992). E o Tribunal
tem, ainda, entendido uniformemente que a falta de tal requisito gera
inconstitucionalidade por violação do artigo 227º da CRP, que contém uma norma
de competência.
Nesta conformidade e independentemente da qualificação deste vício como vício de
inconstitucionalidade de natureza orgânica, não se vislumbra qualquer razão para
distinguir as situações em que o autor da norma invade a esfera de competência
de outro órgão daquelas em que ultrapassa os limites da sua competência
definidos pela Constituição, no que concerne ao regime quer da aplicação da lei
constitucional no tempo quer da sanação do vício por “constitucionalização
superveniente”.
Em ambos os casos, quando o legislador constituinte revê as suas opções,
conferindo a determinado órgão uma competência que dela carecia, não está a
“legitimar” procedimentos legislativos que tivessem ofendido os comandos
constitucionais ao tempo aplicáveis; e isto seja a competência conferida
resultante da atribuição directa de novos poderes seja a mesma derivada da
eliminação de limites ou condicionamentos dos poderes originais.
Em suma, estando em causa, no presente processo, uma questão de competência
legislativa e na ausência de motivos para tratar a falta de interesse específico
regional de forma diferente dos vícios orgânicos, conclui-se que o parâmetro de
aferição de constitucionalidade das normas questionadas é o que vigorava à data
da emissão das normas sub judicio, ou seja o regime de competência legislativa
das regiões autónomas anterior ao que resulta da sexta revisão constitucional,
não sendo, pois, relevantes para efeitos decisórios, as alterações
constitucionais posteriores.
Assim, importa agora apreciar a inconstitucionalidade das normas questionadas à
luz do regime anterior à Lei Constitucional nº 1/2004, de 24 de Julho.
6. As normas questionadas no presente processo visam regular, essencialmente, a
situação de permanência de utentes em meio hospitalar após alta clínica.
Trata-se de um problema atinente, em simultâneo, às áreas da saúde e da
segurança social.
Como resulta do próprio pedido e respectiva resposta, o regime instituído
pretende desincentivar e onerar a utilização dos serviços hospitalares após alta
clínica, ou seja, o uso desses serviços para fins diversos daqueles para que
foram criados. A oneração consiste no pagamento de uma comparticipação nos
custos de internamento, por parte dos utentes e seus familiares mais próximos,
que reverte a favor do Serviço Regional de Saúde.
Importa, desde logo, averiguar se as matérias assinaladas se situam no âmbito do
interesse específico regional, nos termos delimitados pela Constituição (na
versão anterior à sexta revisão). Embora a saúde e segurança social não
constassem expressamente do elenco constitucional das matérias de interesse
específico regional (artigo 228º, na versão anterior à sexta revisão), elas
estão incluídas na lista prevista no artigo 40º do EPARAM. Com efeito, o elenco
do artigo 228º da CRP não era taxativo, permitindo aos estatutos das regiões
qualificar outras matérias como de interesse específico, desde que tais matérias
respeitassem exclusivamente à região ou nela assumissem particular configuração
(cfr. a alínea o) deste artigo da Constituição).
Mas a simples circunstância de a saúde e a segurança social pertencerem ao
elenco de matérias que o EPARAM classifica como de “interesse específico”
(alínea m) do artigo 40º) não é, por si só, suficiente para se dar como
preenchido o requisito de existência de interesse específico regional. Constitui
entendimento sedimentado da jurisprudência constitucional e da doutrina
portuguesas que a enumeração estatutária de matérias de interesse específico é
meramente indiciária, significando apenas o reconhecimento, por parte do Estado
(uma vez que os estatutos político-administrativos são aprovados por actos
legislativos do Estado), da hipotética especificidade regional de certas
situações (cfr., neste sentido, o Acórdão nº 583/96, Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 33º vol., pág. 65 e ss., e Pedro Machete, “Elementos para o
estudo…, pág. 99).
A qualificação estatutária das matérias de interesse específico regional não
dispensa, assim, uma valoração concreta, tomando em conta as especificidades de
cada caso. A jurisprudência constitucional tem reiterado a necessidade de
proceder a uma avaliação caso a caso, referindo-se mesmo ao carácter de
presunção abstracta e ilidível de cada uma das categorias da enumeração
estatutária (cfr., nomeadamente, os Acórdãos nºs 42/85, 57/85, 164/86, 326/86,
308/89, 139/90, 328/92, 235/94 e 473/02, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º
vol., pág. 181 e ss., e pág. 71 e ss., 7º vol., pág. 219 e ss., 8º vol., pág. 63
e ss., 13º vol., tomo II, pág. 899 e ss., 16º vol. pág. 199 e ss., 23º vol.,
pág. 35 e ss., 27º vol., pág. 7 e ss., e 54º vol., pág. 7 e ss.,
respectivamente). Uma medida legislativa regional não pode, portanto, haver-se
como detentora de credencial constitucional bastante apenas porque versa sobre
matéria que o respectivo estatuto considera como sendo de interesse específico
para a região.
E tal significa, no caso, a relativa irrelevância de o EPARAM incluir, no seu
artigo 40º, a saúde e a segurança social entre as matérias de interesse
específico regional; decisivo é que essas matérias respeitem exclusivamente à
região ou que nela exijam tratamento especial por aí assumirem peculiar
configuração.
Sobre o sentido do artigo 228º da Constituição, escreveu-se no acima mencionado
Acórdão nº 473/02 o seguinte: “(...) o artigo 228º da Constituição dá conta,
através de uma enunciação exemplificativa, de um conjunto de matérias em que se
revela normalmente interesse específico. Não sendo taxativo, o artigo 228º tem,
no entanto, uma função «expressiva» do que seja interesse específico,
revelando-se nas suas alíneas um elemento comum de conexão com as condições de
vida materiais e culturais nas regiões. Esse elemento comum é explicitado na
alínea o) do artigo 228º, que admite que matérias diversas das enunciadas nas
alíneas anteriores sejam também de interesse específico, por respeitarem
exclusivamente a uma região ou por nela assumirem particular configuração. (...)
Em face da difícil delimitação, em abstracto, do parâmetro constitucional, é a
própria natureza do caso concreto que suscita, normalmente, a percepção do
critério definidor do interesse específico. Como se assevera no Acórdão nº
220/92, «o interesse específico tem sempre de ser apreciado em concreto, ao que
corresponde a emissão de um juízo de valor...». Nessa apreciação, a alínea o) do
artigo 228º fornece um critério interpretativo geral – a exclusividade ou a
particular configuração das matérias – critério esse que constitui o elemento
unificador das matérias expressamente previstas nas alíneas anteriores e
daquelas que escapam à previsão não taxativa do legislador constitucional”.
Ora, como se passará a demonstrar, não se verifica, no caso, um interesse
específico regional – o problema da permanência dos utentes em estabelecimento
hospitalar após alta clínica não respeita apenas à Região Autónoma da Madeira
(facto que, aliás, não é posto em causa pelo autor da norma) nem nela assume
particular configuração.
Não se deixa, desde já, de assinalar que as informações fornecidas pelo autor da
norma relativamente ao problema da permanência dos utentes em estabelecimento
hospitalar após alta clínica na Madeira não permitem justificar a intervenção
regional neste domínio. Nem o Decreto Legislativo Regional nº 2/2003/M nem a
resposta da Assembleia Legislativa Regional da Madeira ao presente processo
apresentam dados concretos sobre a problemática em questão. Ambos se limitam a
alicerçar a existência de interesse específico regional na regulamentação da
matéria em causa nos seguintes pontos:
a) envelhecimento da população;
b) nuclearização das famílias, esbatimento dos laços
comunitários e ausência dos familiares (por motivos laborais, escolares e de
emigração);
c) custos elevados da sobreocupação de camas e equipamentos
hospitalares, escassos e imprescindíveis aos doentes agudos.
Estas observações não são apoiadas em dados concretos. E conveniente seria que a
afirmação de particularidades regionais fosse suportada por dados estatísticos
específicos relativos, entre outros, ao número de doentes que permanecem em meio
hospitalar após alta clínica, na Região Autónoma da Madeira e no resto do país.
Ora, nem o Instituto Nacional de Estatística (INE) fez essa avaliação nem este
Tribunal dispõe de outras fontes de informação sobre a matéria. Todavia, a
análise de um conjunto de outros indicadores do INE, nomeadamente de dados
demográficos e respeitantes à distribuição do equipamento hospitalar pelo
território nacional, permite concluir que a questão em causa não assume, na
Região Autónoma da Madeira, contornos particularmente diferentes do resto do
país (informação retirada do sítio de Internet do INE –
http://www.ine.pt/prodserv/quadros/public.asp?ver=por&tema=C&subtema=03 –
disponível mediante registo on-line).
Em primeiro lugar, de acordo com os números do INE relativos a 2002, a
percentagem da população com mais de 65 anos é, na Madeira, significativamente
menor do que a média nacional. De facto, enquanto que, na referida região
autónoma, 13,45% da população se enquadra no escalão etário de 65 e mais anos, a
percentagem média nacional é de 16,67%. Em consequência deste facto, os índices
de envelhecimento e de dependência na Região Autónoma da Madeira são, pelo menos
por enquanto, menos preocupantes do que no resto do país.
Do mesmo modo, e se bem que também a nível regional se observe uma tendência,
uniforme a nível nacional, para o decréscimo da dimensão média da família, as
regiões autónomas mantinham, em 2001, os valores mais elevados dessa mesma
dimensão, claramente superiores à média portuguesa.
Não se vê, assim, motivo para concluir que os fenómenos da nuclearização das
famílias, esbatimento dos laços comunitários e ausência dos familiares tenham,
na comunidade madeirense, relevância superior ao restante território nacional.
Por outro lado, a Região Autónoma da Madeira dispõe também, comparativamente, de
mais camas hospitalares do que as restantes regiões do país. Efectivamente, os
dados estatísticos relativos a 2002 demonstram que o número de camas por 1000
habitantes é, ali, de 7,5, enquanto que a média nacional não passa dos 4,2. Do
mesmo modo, enquanto que a média, a nível nacional, de internamentos por cama é
de 28,53, na Madeira não ultrapassa os 19,59, não podendo, assim, afirmar-se que
a sobreocupação de camas e a escassez de equipamentos hospitalares,
imprescindíveis a outros doentes, assume, na Região, contornos mais graves do
que no resto do país.
Em suma, todos os elementos disponíveis apontam em sentido contrário ao
sustentado pelo autor da norma – o problema da permanência de doentes em meio
hospitalar após alta clínica não se revela particularmente grave na Região
Autónoma da Madeira, quando comparado com a realidade nacional. E, também, face
aos mesmos elementos, não se evidencia que a problemática a que o diploma ora
analisado quis responder (não se duvidando da sua existência e graves
consequências) assuma na Região Autónoma da Madeira uma particular configuração.
Conclui-se, pois, pela inexistência de interesse específico regional que
permitisse à Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira legislar sobre
a permanência hospitalar após alta clínica.
As normas questionadas violam, assim, o disposto na alínea a) do nº 1 do artigo
227º da Constituição, na redacção anterior à sexta revisão constitucional,
tornando-se desnecessário indagar acerca do cumprimento dos restantes requisitos
de exercício da competência legislativa das regiões autónomas, bem como da
inconstitucionalidade material das soluções consagradas no diploma sub iudice.
E, verificada a inconstitucionalidade de tais normas questionadas, fica
igualmente prejudicada a apreciação da sua eventual ilegalidade.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide declarar, com força
obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 4º a
8º do Decreto Legislativo Regional nº 2/2003/M, de 24 de Fevereiro, por violação
do artigo 227º, nº 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa, na
redacção anterior à sexta revisão constitucional.
Lisboa, 10 de Maio de 2005
Maria João Antunes
Maria Fernanda Palma
Mário José de Araújo Torres
Vítor Gomes
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos
Bravo Serra
Gil Galvão
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Maria Helena Brito
Paulo Mota Pinto
Carlos Pamplona de Oliveira (com declaração em anexo)
Artur Maurício
DECLARAÇÃO DE VOTO
Subscrevo a decisão por entender que o interesse específico regional, à luz do
qual a conformidade das normas em causa deve ser aferida, não habilitava a
Região a disciplinar esta matéria; mas não acompanho o acórdão na parte relativa
à qualificação do correspondente vício.
Em meu entender, a inconstitucionalidade de normas legais comporta um vício não
equiparável aquele que a doutrina construiu a propósito da ilegalidade dos actos
administrativos; o problema da inconstitucionalidade normativa é bem mais
complexo, designadamente quanto aos efeitos jurídicos entretanto produzidos
pelas normas afectadas, e suporta mal, por se apresentar demasiado redutor, um
juízo de mera nulidade/anulabilidade da norma. Nos termos do artigo 282º da
Constituição, a declaração de inconstitucionalidade normativa tem efeitos
consequentes automáticos a par de outros efeitos que são moduláveis, em
consideração do caso concreto, pelo Tribunal Constitucional. Afigura-se-me,
portanto, que a violação dos limites em que deve desenvolver-se a legislação
regional constitui um vício que, não sendo totalmente coincidente com o
resultante da incompetência orgânica – a disciplina da matéria em causa não se
inclui nas atribuições da Região –, determinará a invalidade da norma editada
nos termos prescritos no aludido artigo 282º da Constituição.
Carlos Pamplona de Oliveira