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Processo n.º 249/03
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
Contra a Decisão Sumária proferida no processo a fls. 1530 reclama o recorrente
A. nos seguintes termos:
1. O douto despacho de fls. não admitiu o recurso para apreciação da
inconstitucionalidade do art. 359º do CPP com fundamento em que o recorrente
'não visa obter a apreciação da conformidade constitucional de uma norma em
determinada interpretação, pois questiona, manifestamente, a conformidade
constitucional da decisão jurisdicional'.
2. Salvo o devido respeito e melhor opinião, o Recorrente visa obter a
apreciação da constitucionalidade da norma e não da decisão.
3. Efectivamente, antes de mais é de notar que a norma em causa é o art. 359º do
CPP, que respeita à alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na
pronúncia.
4. E para concluir pela verificação ou não da alteração, o Tribunal recorrido
interpretou a norma do art. 359º com base no confronto desses factos.
5. Mas, o que o Recorrente pretende é que o Tribunal Constitucional se pronuncie
sobre a constitucionalidade do critério interpretativo utilizado pelo Tribunal
recorrido para chegar à conclusão a que chegou.
6. Na verdade, o que o Recorrente pretende ver apreciado não é se houve ou não
condenação no caso concreto por prejuízos patrimoniais de valor superior aos da
pronúncia.
7. O que está em causa no presente recurso é unicamente saber se, em abstracto,
num crime contra o património, como seja a burla - crime dos presentes autos -
se pode interpretar a norma do art. 359º do CPP no sentido de excluir do seu
âmbito de aplicação uma condenação penal por prejuízos superiores aos constantes
da pronúncia, entendendo-se que não se verifica uma alteração substancial dos
factos mas uma mera alteração do relato dos factos.
8. E essa interpretação não tem apenas aplicação ao caso concreto, pois pode
estender-se a todos os casos em que existe uma condenação penal por prejuízos
superiores aos que constam da pronúncia.
9. Por tudo, pois, o Recorrente suscitou uma questão de inconstitucionalidade
normativa e não da própria decisão recorrida.
Á reclamação responde o representante do Ministério Público neste Tribunal nos
seguintes termos:
1º A reclamação deduzida é, a nosso ver, improcedente, já que o reclamante não
suscita a questão da inconstitucionalidade de um critério normativo,
suficientemente explicitado e densificado, da norma questionada – e que tenha
sido efectivamente aplicado pelo Supremo à dirimição do caso.
2° Assente, na verdade, que ocorreu alguma modificação na exacta e precisa
descrição da matéria de facto que constava da pronúncia – a mais relevante
situada em sede de localização temporal dos factos imputados (cfr. Fls. 1515) –
consideramos que é desprovido de carácter normativo a referência a 'uma mera
alteração de relato' de tais factos que ocorra, aliás, sem qualquer referência
expressa no acórdão recorrido à relevância da ponderação judicial de 'prejuízos
superiores' aos invocados no despacho de pronúncia.
3° E sendo certo que – como decorre do acórdão recorrido – permaneceram
'intocáveis os factos que constavam da imputação' feita na pronúncia ao arguido.
A decisão reclamada é do seguinte teor:
A. foi julgado nas Varas de Competência Mista Cível e Criminal de Sintra pela
prática, em co-autoria, de um crime de burla qualificada e condenado na pena de
três anos de prisão, com a execução suspensa por um período de três anos, e ao
pagamento, solidário, de 7.054.673$00 às demandantes B. e C..
Recorreu para a Relação de Lisboa que julgou o recurso improcedente, confirmando
a condenação. Inconformado, interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça,
mas também sem êxito.
É da decisão que negou provimento a este último recurso que recorre, ao abrigo
da alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC, nos seguintes termos:
[...] notificado do douto acórdão:
A) que aplicou a norma do art.º 374 n.º 2 do Código de Processo Penal
interpretada no sentido de permitir que se possa fundamentar as decisões dizendo
que se analisou a matéria de facto e que não existem os erros invocados pelo
recorrente (conforme se fez no douto Acórdão da Relação), cuja
inconstitucionalidade foi suscitada nas alegações e conclusões do recurso para o
Supremo Tribunal de Justiça (vide n.º 9 e conclusões 5ª e 27ª, respectivamente)
;
B) que aplicou a norma do art.º 359 do Código de Processo Penal interpretada
no sentido de considerar que não se verifica qualquer alteração substancial dos
factos constantes da pronúncia, mas mera alteração do relato dos factos quando
existe condenação penal por prejuízos patrimoniais de valor superior ao valor
que consta da pronúncia, cuja inconstitucionalidade foi suscitada nas alegações
e conclusões do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (vide n.º 24 e
conclusões 15ª,16ª e 27ª, respectivamente); e
C) que aplicou a norma do art.º 82 do Código de Processo Penal interpretada
no sentido de permitir a condenação em sede de liquidação em execução de
sentença de prejuízos que os Demandantes Cíveis pediram e quantificaram no
pedido cível mas não lograram provar, cuja inconstitucionalidade foi suscitada
nas alegações e conclusões do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (vide
nºs 38 e 39 e conclusões 26ª e 27ª, respectivamente);
vem, ao abrigo da alínea b) do artigo 70 da Lei dele interpor recurso para o
Venerando Tribunal Constitucional, por violação, respectivamente, do art. 205º
n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (al. A), dos princípios do
acusatório, contraditório e garantias de defesa do arguido consagrados no art.
32º n.º 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa (al. B) e por violação doa
princípios constitucionais da segurança e certeza jurídica consagrados no art.º
2º da Constituição da República Portuguesa (al. C).
O recurso foi admitido por despacho que, como é sabido, não vincula este
Tribunal (n.3 do artigo 76º da LTC).
O recurso previsto na alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC, como o presente,
serve para sindicar a conformidade constitucional de normas jurídicas aplicadas
no aresto recorrido, como razão de decidir; daqui decorre que a obrigatória
suscitação durante o processo da questão de inconstitucionalidade se deva
concretizar no exacto sentido em que a norma foi aplicada no tribunal recorrido.
Acontece, porém, a decisão aqui recorrida – o acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça – não aplicou a norma do n.2 do artigo 374º do Código de Processo Penal,
tendo-se limitado a declarar que tudo quanto diga respeito a matéria de facto
(vícios, factualidade provada ou não provada e exame critico dos respectivos
suportes probatórios) já foi devidamente tratada no 1º acórdão tirado pelo
Tribunal da Relação e que o recorrente deixou transitar sem que alguma oposição
lhe houvesse feito em tempo oportuno.
Assim, em virtude de a norma ora questionada não ter sido aplicada na decisão
recorrida, não pode este Tribunal conhecer, nesta parte, do recurso.
Quanto à segunda questão colocada pelo recorrente, verifica-se que este não visa
obter a apreciação da conformidade constitucional de uma norma em determinada
interpretação, pois questiona, manifestamente, a conformidade constitucional da
decisão jurisdicional.
Na verdade, perante os termos em que tenta identificar a interpretação normativa
do artigo 359º do Código de Processo Penal, apura-se que o recorrente não está
verdadeiramente a pôr em causa a adopção pela decisão recorrida de um critério
normativo com carácter de generalidade que possa ser aplicado a outros casos,
mas antes a reportar-se à aplicação da norma à especificidade do caso concreto e
a ele indissociavelmente ligado.
Conforme o Tribunal Constitucional tem afirmado repetidamente, o controlo de
constitucionalidade que, nos recursos das decisões dos outros tribunais, lhe é
atribuído, só pode ter por objecto as normas jurídicas (ou a sua interpretação)
que tais decisões tenham aplicado. O modo como as decisões judiciais operam a
subsunção dos factos à norma não pode ser objecto de tal controlo.
Neste contexto, não pode considerar-se ter sido suscitada qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa, mas antes ter sido dirigida à própria decisão
recorrida uma censura de inconstitucionalidade, pelo que se não verificam os
pressupostos de admissibilidade deste tipo de recurso.
Por último, no que respeita à norma do artigo 82º do Código de Processo Penal,
interpretada no sentido de permitir a condenação em sede de liquidação em
execução de sentença de prejuízos que os Demandantes Cíveis pediram e
quantificaram no pedido cível mas não lograram provar, verifica-se que tal
interpretação não foi a acolhida na decisão sob recurso.
O que o acórdão recorrido disse foi que a condenação em execução de sentença não
pressupõe pedido expresso nesse sentido dos demandantes, sendo apenas condição
de tal condenação que o tribunal não se encontre habilitado para o fazer a
partir dos dados que o processo penal lhe oferece (art.º 82° do C.P.P.),
independentemente de os interessados terem expressado em números um valor certo
do que cuidam deverem ser ressarcidos.
A decisão recorrida não fez, portanto, aplicação da norma invocada com a
interpretação que o recorrente lhe atribui. Isto é, a exacta dimensão normativa
cuja inconstitucionalidade vem agora suscitada não constitui, efectivamente, a
ratio decidendi da decisão recorrida.
É, assim, de concluir que também nesta parte não pode conhecer-se do recurso.
Conforme se refere na decisão acabada de transcrever, o recorrente começou por
impugnar, no presente recurso, as normas constantes dos artigos 82º, 359º e 374º
n.º 2 todos do Código de Processo Penal.
Na aludida decisão julgou-se no sentido do não conhecimento do recurso quanto a
qualquer destas normas; as respeitantes aos artigos 82º e 374º n.º 2 não teriam
sido aplicadas, na concreta formulação impugnada, na decisão recorrida; e quanto
à norma do artigo 359º, por não ter sido suscitada qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa, mas antes ter sido dirigida à própria decisão
recorrida uma censura de inconstitucionalidade.
Ora, na reclamação em apreço apenas é questionada a decisão quanto a esta última
norma, pelo que nada caberá dizer para além da matéria que lhe é referente.
Vejamos.
O recorrente visa, conforme afirma no requerimento de interposição do recurso,
impugnar a norma do artigo 359º do Código de Processo Penal interpretada no
sentido de considerar que não se verifica qualquer alteração substancial dos
factos constantes da pronúncia, mas mera alteração do relato dos factos quando
existe condenação penal por prejuízos patrimoniais de valor superior ao valor
que consta da pronúncia.
Assim suscitada a questão, concluiu-se que o recorrente não está verdadeiramente
a pôr em causa a adopção pela decisão recorrida de um critério normativo com
carácter de generalidade que possa ser aplicado a outros casos, mas antes a
reportar-se à aplicação da norma à especificidade do caso concreto e a ele
indissociavelmente ligado.
E a verdade é que o modo como as decisões judiciais operam a subsunção dos
factos à norma não pode ser objecto de tal controlo, por nesse momento já não
estar em causa uma regra geral e abstracta, mas a consideração dos factores
concretos e particulares que caracterizam a causa. Neste caso, a pretensão do
recorrente conduziria a que o Tribunal aquilatasse da bondade do julgamento
quanto à qualificação da modificação de determinado facto ocorrida na sentença
face ao que constava no despacho de pronúncia, o que na verdade nada tem a ver
com uma questão normativa.
Nestes termos, é de continuar a entender que não pode considerar-se suscitada
qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, razão pela qual se não
verificam os pressupostos de admissibilidade deste tipo de recurso. Em
consequência, é de indeferir a reclamação.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 6 de Julho de 2005
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos