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Processo nº 905/04
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é
recorrente A. e são recorridos o Ministério Público, B. – Cooperativa Agrícola
de Produtores de Leite do Centro Litoral, CRL, o Banco C., S.A., D. e outros,
foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no
artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do
Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 24 de Junho de
2004.
2. Em autos de reclamação e graduação de créditos, na sequência de declaração de
falência da E. – Cooperativa Agrícola Leiteira do Ribatejo e Oeste, CRL, os
créditos dos trabalhadores foram graduados em 1º lugar, relativamente a bem
imóvel, pelo Tribunal Judicial da Comarca das Caldas da Rainha. Interposto
recurso de apelação, o Tribunal da Relação de Lisboa graduou tais créditos em 3º
lugar, graduando os créditos do Banco C., S. A. e da B. – Cooperativa Agrícola
de Produtores de Leite Centro Litoral, CRL, garantidos por hipoteca, em 1º e 2º
lugares, respectivamente.
Foi então interposto recurso de revista, entre outros, pelo ora recorrente, que
concluiu nas respectivas alegações, para o que agora releva, o seguinte:
«17- (…) é materialmente inconstitucional, por violação do princípio da
confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático, consignado no
artigo 2º da Constituição da República, as normas contidas no artigo 12º da Lei
nº 17/86, de 14 de Junho, quando interpretadas, como o fez o acórdão recorrido,
no sentido de que a hipoteca prefere ao privilégio imobiliário geral nela
conferido.
18- Nos termos do nº 1, alínea a) do artigo 59º da Constituição da República,
“todos os trabalhadores têm direito à retribuição do trabalho, segundo a
quantidade, natureza e qualidade...”
E nos termos do nº 3 do mesmo normativo “os salários gozam de garantias
especiais, nos termos da Lei”.
19- Ora, na prática, a dar-se como boa a solução vertida no acórdão recorrido,
tal teria por consequência que os trabalhadores em geral, e o recorrente em
particular, veriam em grave crise a possibilidade de receberem os créditos
emergentes das suas retribuições de trabalho, designadamente os seus salários,
ficando desproporcionalmente desprotegidos perante outros credores,
especialmente os hipotecários.
20- O que, como já se referiu, não quis o legislador ordinário, e muito menos o
permitiria a Constituição da República.
21- Assim, e mais uma vez, seria, ainda, materialmente inconstitucional,
designadamente por violação do direito à justa retribuição, consignada na alínea
a) dos nº 1 e nº 3 do artigo 59º da Constituição da República, as normas
contidas no artigo 12º da Lei nº 17/86, de 14 de Junho, quando interpretadas,
como faz o acórdão recorrido, no sentido de que os créditos garantidos por
hipoteca devem ser graduados com preferência aos créditos dos trabalhadores que
gozem de privilégios imobiliários gerais».
3. Por acórdão de 24 de Junho de 2004, o Supremo Tribunal de Justiça negou a
revista pretendida pelo recorrente. É o seguinte, para o que agora cumpre
apreciar e decidir, o teor desta decisão:
«As questões propostas, e a resolver, são as seguintes:
(...)
- Devem os créditos dos trabalhadores a que o art.12° da Lei nº17/86, de 14/6,
confere privilégio imobiliário geral prevalecer, ou não, sobre hipotecas
anteriormente registadas?
(...)
Depois de, na respectiva pág.8, a fls.1231 dos autos, largamente transcrever os
arts.686º, nº1º, 733°, nºs lº e 2º, 735º, nos lº, 2º, e 3º, 737º, nºlº, al.d),
C.Civ., e 12°, nos lº e 2°, da Lei nº17/86, de 14/6, o acórdão sob revista acaba
por concluir, com apoio, nomeadamente, em jurisprudência do Tribunal
Constitucional relativa aos créditos da segurança social e de IRS, que o art.7°,
al.b ), do DL 437/78, de 28/12, ao criar um privilégio imobiliário geral que, à
margem do registo, preferisse, nos termos do art. 751º C.Civ., à hipoteca,
estaria inquinado de inconstitucionalidade, por violação do art.2º da
Constituição (…).
Pronunciando-se expressa e concretamente sobre essa proposição em acórdão
(nº498/2003 - Proc. nº317/2002) de 22/10/2003, publicado no DR, II Série, nº2,
de 3/1/2004, pp.40 a 43, aquele Tribunal decidiu - pág.43-12.- a) : 'Não julgar
inconstitucional a norma constante da al.b) do nº1 do artigo 12° da Lei nº17/86,
de 14 de Junho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral
nela conferido aos créditos emergentes do contrato individual de trabalho
prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751 o do Código Civil'.
Cuidou-se no entanto, nesse acórdão, de deixar claro não caber àquele Tribunal
pronunciar-se sobre as posições em confronto a este respeito no âmbito da
interpretação do direito ordinário - idem, 42-8.
Neste outro âmbito, e com, aliás, o sólido apoio doutrinal que o acórdão a que
se vem aludindo igualmente menciona - ibidem, 7. (…), mostra-se actualmente
firmado neste Tribunal o entendimento de que o art. 751º C.Civ. contem um
princípio geral insusceptível de aplicação aos privilégios imobiliários gerais,
não conhecidos aquando do início da vigência desse Código, e tal assim visto
também que, não sujeitos a registo, afectam gravemente os direitos de terceiros,
sendo, pois, o art.749º C.Civ. que no caso há-de valer - v. Acs.STJ de de
3/4/2001 e de 25/6/2002 da 6ª Secção, citados no acórdão recorrido, o segundo
publicado na CJSTJ, X, 2º, 135, e com sumário, ambos, na edição anual
respectiva dos Sumários de Acórdãos Cíveis organizada pelo Gabinete dos Juízes
Assessores deste Tribunal., pág.127 , 2ª col. (1º-II), e 208,2ª col., V e VI,
ainda respectivamente.
São no mesmo sentido acórdão da mesma Secção de 24/9/2002, publicado na CJSTJ,
X, 3º, 55 e com sumário na 2ª col da pág.255 (2º) da edição anual de 2002 desses
Sumários, e os de 6/3 e 12/6/ 2003 da 2ª Secção, e de 3/4/2003, ainda da 6ª
Secção, com sumário nos nºs 69, 72, e 70 dos Sumários referidos (edição mensal
competente), págs.18, 1ª col. ( I e II ), 33, 2ª col- VIII, e 10, 2ª col.,
sempre respectivamente. Desta ( 7ª ) Secção, refere-se o de 27/6/2002, publicado
na CJSTJ, X, 2°, 146.
Não se vê que seja de contradizer essa orientação, a qual, contra o que o
primeiro recorrente pretende, de modo nenhum também se entende que efectivamente
contrarie o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito
democrático estabelecido no art.2º da Constituição, nem, em boa verdade, directa
e desproporcionadamente afecte o direito à retribuição assegurado no art.59º,
nºs 1º, al.a), e 3º, ambos da Constituição”.
4. Notificado para alegar, o recorrente concluiu que:
«1- O douto acórdão da Relação de Lisboa julga parcialmente procedente o recurso
interposto pela B..
2- Apenas na parte que se refere à graduação especial A, feito em 1ª instância,
decidindo que pelo produto da venda do bem imóvel descrito no número 626 da
freguesia de Tornada, da Conservatória do Registo Predial de Caldas da Rainha,
seja verificado da seguinte forma:
1º Crédito do Banco C., S.A.;
2º Crédito da B. até ao limite de 400.000.000$00;
3º Créditos reclamados pelos trabalhadores.
3- Entendendo que ao privilégio imobiliário geral estatuído na Lei nº 17/86 não
se deverá aplicar o artigo 751 do Código Civil, pelo que os créditos
hipotecários deverão ser graduados antes do crédito emergente do contrato de
trabalho, designadamente os relacionados com o salário.
4- Ao contrário do decidido em 1ª instância que gradua os créditos dos
trabalhadores, nos termos do artigo 12 da Lei nº 17/86, e artigo 751º do Código
Civil, à frente dos créditos garantidos por hipotecas, mesmo que anteriormente
registados.
5- O entendimento daquele acórdão da Relação de Lisboa foi seguido no acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça.
6- A B. quando, em 1988, constituiu a hipoteca sobre o prédio descrito sob o nº
126, fê-lo em interesse próprio.
7- Bem sabendo das dificuldades económico-financeiras da falida.
8- E tendo tido em consideração que já estava em vigor a lei 17/86, cuja
interpretação doutrinal e jurisprudencial era absolutamente unânime a definir a
prevalência na graduação dos créditos dos trabalhadores sobre outros créditos,
designadamente as garantias por hipoteca mesmo que anteriormente registadas.
9- Ao contrário foi o recorrente que, convicto do seu direito, nunca antes posto
em causa, quer pela lei, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência unânime
dos tribunais, viu violar o princípio da confiança.
10- Pelo que é materialmente inconstitucional, por violação do princípio da
confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático, consignado no
artigo 2º da Constituição da República, as normas contidas no artigo 12º da Lei
nº 17/86, de 14 de Junho, quando interpretadas, como o fez o acórdão recorrido,
no sentido de que a hipoteca prefere ao privilégio imobiliário geral nela
conferido.
11- Nos termos do nº 1, alínea a) do artigo 59º da Constituição da República,
“todos os trabalhadores têm direito à retribuição do trabalho, segundo a
quantidade, natureza e qualidade...”
E nos termos do nº 3 do mesmo normativo “os salários gozam de garantias
especiais, nos termos da Lei”.
12- Ora, na prática, a dar-se como boa a solução vertida no acórdão recorrido,
tal teria por consequência que os trabalhadores em geral, e o recorrente em
particular, veriam em grave crise a possibilidade de receberem os créditos
emergentes das suas retribuições de trabalho, designadamente os seus salários,
ficando desproporcionalmente desprotegidos perante outros credores,
especialmente os hipotecários.
13- O que, como já se referiu, não quis o legislador ordinário, e muito menos o
permitiria a Constituição da República.
14- Assim, e mais uma vez, seria, ainda, materialmente inconstitucional,
designada mente por violação do direito à justa retribuição, consignada na
alínea a) dos nº 1 e nº 3 do artigo 59º da Constituição da República, as normas
contidas no artigo 12º da Lei nº 17/86, de 14 de Junho, quando interpretadas,
como faz o acórdão recorrido, no sentido de que os créditos garantidos por
hipoteca devem ser graduados com preferência aos créditos dos trabalhadores que
gozem de privilégios imobiliários gerais.
15- O artigo 12º da Lei nº 17/86, de 14 de Junho, na interpretação e com a
aplicação e alcance vertidos no acórdão da Relação de Lisboa e no acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça sub judice, mostra-se ferido de
inconstituciona1idade material por violação do artigo 2º, artigo 18º nº 2, do nº
1 e nº 3 do artigo 59 da Constituição da República, assim como do princípio da
proporcionalidade».
5. Contra-alegaram o Ministério Público, a B., CRL e o Banco C., S.A.,
formulando as conclusões que de seguida se transcrevem.
5.1. Ministério Público:
«1º - O facto de o Tribunal Constitucional, no acórdão nº 498/03, ter julgado
não inconstitucional a interpretação normativa do âmbito do privilégio
imobiliário geral, outorgado aos trabalhadores para garantia do seu direito à
retribuição, segundo a qual tal garantia prefere à hipoteca, nos termos do
artigo 751º do Código Civil, não significa que tal solução, tida por conforme à
Lei Fundamental, seja por ela necessariamente imposta.
2º - Na verdade, a tutela do direito aos salários mediante outorga de “garantias
especiais” (artigo 59º, nº 3, da CRP) é conferida “nos termos da lei”; o que
implica a outorga ao legislador ordinário de uma ampla margem de
discricionariedade na concretização de tal norma constitucional.
3º - Não colide com o disposto no artigo 59º, nº 3, da Constituição da República
Portuguesa a interpretação normativa que – realizando uma ponderação dos
interesses conflituantes dos trabalhadores na garantia do seu direito à
retribuição e dos credores, titulares de garantias reais registadas, na
manutenção dos seus créditos – considera inaplicável aos privilégios gerais de
qualquer natureza o regime estipulado no artigo 751º do Código Civil.
4º - Termos em que deverá improceder o presente recurso».
5.2. B., CRL:
«1ª.- A questão da inconstitucionalidade com base na qual o recorrente pretende
a reapreciação do acórdão do STJ por este Tribunal Constitucional, foi apreciada
e – aliás – decidida naquele acórdão em conformidade com as pretensões do
recorrente.
2ª.- A decisão da revista foi tomada não no âmbito da questão da
constitucionalidade mas no âmbito da interpretação do direito ordinário.
3ª.- Como o recorrente não suscitou no lugar próprio essa questão da
interpretação do direito ordinário, e como também não é essa a questão que
pretende ver reapreciada, então, é manifesto que o presente recurso para o
Tribunal Constitucional é inadmissível à luz do disposto nos arts. 70° e 72º, nº
2 da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro).
4ª.- O único efeito útil do recurso desejado consistiria em apurar se a
interpretação do direito ordinário dada pelo acórdão sub judice à decisão da
hierarquização e graduação dos vários privilégios em confronto sofreria
eventualmente de alguma inconstitucionalidade, mas tal questão não foi suscitada
no processo nem é, manifestamente, objecto do presente recurso.
Sem prescindir,
5ª.- A questão que eventualmente interessaria a este Tribunal Constitucional a
propósito do presente recurso seria a de saber “se a interpretação normativa do
artº 12º, nº1, al. b) da Lei nº 17/86, de 14 de Junho, segundo a qual todos
créditos emergentes do contrato individual de trabalho gozam de privilégio
imobiliário geral e prevalecem, nos termos previstos no artigo 751° do Código
Civil, sobre a hipoteca, mesmo que anteriormente registada - interpretação que
constitui o objecto do presente recurso (…) - é ou não compatível com a
constituição”.
6.ª- Sucede porém que essa questão está há muito definitivamente esclarecida por
este Tribunal Constitucional e também não foi posta em crise pelo Acórdão do STJ
que o presente recurso quer por em crise.
7.ª- O que a este respeito o STJ decidiu foi que o que está em causa é uma
questão de interpretação e aplicação do direito ordinário, no que toca aos
princípios legais e doutrinários a que obedece a hierarquização dos vários
privilégios - neles incluindo o instituído pelo art° 12º da citada Lei 17/86 -
no sentido de saber se essa interpretação (…) é ou não sindicável pelo Tribunal
Constitucional.
8ª- E, no âmbito dessa questão, o STJ mais não fez do que aderir ao decidido
pois este Tribunal Constitucional – supõe-se que com força obrigatória geral –
no sentido de que não cabe ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre as
posições em confronto no âmbito de interpretação do direito ordinário.
9ª.- É o que se espera que venha a ser confirmado no Acórdão que vier a recair
sobre o presente recurso,
Ainda e sempre sem prescindir,
10ª.- Embora sejam irrelevantes - salvo o devido respeito - as conclusões 6 10
das alegações do recorrente, o certo é que, se relevo tivessem, estaria por
demonstrar no interesse de quem é que foi constituída a hipoteca que protege o
crédito da B., designadamente se não terá sido no interesse dos trabalhadores da
E. e do próprio recorrente, por ter por base empréstimos para lhes pagar já os
salários que, a vencer a sua tese, estaria a pagar segunda vez sem obrigação de
o fazer; e quando, por outro lado, se fala de confiança, ocorreria perguntar
porque não mereceria tutela a confiança da Cooperativa B. e de todos os seus
trabalhadores e associados produtores agrícolas quando decidiram ajudar a
Cooperativa E. e os seus trabalhadores emprestando-lhes dinheiro para a sua
sobrevivência confiando na protecção, segurança, estabilidade, certeza e
garantia que lhes resultava do registo legítimo da hipoteca».
5.3. Banco C., S.A.:
«1. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, entende que a graduação especial
efectuada pelo Tribunal de comarca das Caldas da Rainha, não podia ter sido
alterada relativamente ao Banco C. S.A., porquanto não tinha o banco recorrido
dessa decisão.
2. Não obstante, esta linha argumentativa, vem o Tribunal “A Quo” proceder a
nova graduação, em total oposição com o que proferira acerca do Acórdão do
Tribunal da Relação de Lisboa.
3. De tal graduação resulta que o crédito do banco que anteriormente se
encontrava em primeiro lugar passe para terceiro lugar.
4. Ou seja, o crédito do aqui alegante, garantido por hipoteca de 1.º grau, foi
graduado atrás de um crédito garantido por hipoteca de 2.º grau.
5. Tal decisão, profundamente contraditória com a argumentação utilizada pelo
próprio Supremo Tribunal de Justiça, violou o Direito de Propriedade do banco.
Direito esse constitucionalmente garantido pelo art. – 62.º da Constituição da
República Portuguesa».
6. Notificado para se pronunciar sobre o entendimento da B., CRL no sentido do
não conhecimento do objecto do recurso de constitucionalidade, o recorrente não
apresentou qualquer resposta.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. Nos presentes autos é questionada a constitucionalidade do artigo 12º da Lei
nº 17/86, de 14 de Junho, na interpretação segundo a qual o privilégio
imobiliário geral de que gozam os créditos dos trabalhadores não prefere à
hipoteca anteriormente registada, por referência aos artigos 2º e 59º, nºs 1,
alínea a), e 3, da Constituição da República Portuguesa.
Esta questão de constitucionalidade foi suscitada pelo recorrente, durante o
processo (cf. supra ponto 2. do Relatório), pelo que, verificados os demais
pressupostos do recurso interposto, nada obsta ao conhecimento do seu objecto.
É a seguinte a redacção do artigo 12º (Privilégios creditórios) daquela lei:
«1 – Os créditos emergentes de contrato individual de trabalho regulados pela
presente lei gozam dos seguintes privilégios:
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário geral.
2 – Os privilégios dos créditos referidos no nº 1, ainda que resultantes de
retribuições em falta antes da entrada em vigor da presente lei, gozam de
preferência nos termos do número seguinte, incluindo os créditos respeitantes a
despesas de justiça, sem prejuízo, contudo, dos privilégios anteriormente
constituídos, com direito a ser graduados antes da entrada em vigor da presente
lei.
3 – A graduação dos créditos far-se-á pela ordem seguinte:
a) Quanto ao privilégio mobiliário geral, antes dos créditos referidos no nº 1
do artigo 747º do Código Civil, mas pela ordem dos créditos enunciados no artigo
737º do mesmo Código;
b) Quanto ao privilégio imobiliário geral, antes dos créditos referidos no
artigo 748º do Código Civil e ainda dos créditos de contribuições devidas à
Segurança Social.
4 – Ao crédito de juros de mora é aplicável o regime previsto no número
anterior».
2. A norma que é objecto deste recurso foi, recentemente, julgada não
inconstitucional por este Tribunal – Acórdão nº 284/07, tirado no Processo nº
891/04 –, com os seguintes fundamentos:
«5. Como dá conta o Acórdão n.º 498/03 (DR, II Série, de 3 de
Janeiro de 2004) citado pelos recorrentes, o Tribunal Constitucional já foi
solicitado a pronunciar-se, por diversas vezes, sobre questão idêntica, isto é,
sobre a questão da constitucionalidade de normas que, tal como aquela que agora
está em causa, ligam privilégios imobiliários gerais a determinados créditos,
considerando valer para tais privilégios a prevalência fixada no artigo 751º do
Código Civil. Tal questão tem sido analisada à luz do princípio da confiança
(artigo 2º da Constituição), quando, tal como agora, concorre com uma hipoteca,
anteriormente registada, que onera um imóvel abrangido pelo privilégio.
Assim, nos Acórdãos 362/2002 e 363/2002 (DR, I Série-A, de 16 de Outubro de
2002), o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força
obrigatória geral, por violação do artigo 2º da Constituição, da norma que, no
Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares confere privilégio
imobiliário geral à Fazenda Pública, com preferência sobre a hipoteca, nos
termos do artigo 751º do Código Civil e “das normas constantes do artigo 11º do
Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, e do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 512/76,
de 3 de Julho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral
nelas conferido à segurança social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º
do Código Civil”.
Ao fundamentar o juízo de inconstitucionalidade, o Tribunal notou que, em tais
casos, a lei garante com um privilégio imobiliário geral, não sujeito a registo,
onerando todos os imóveis do património do devedor, um crédito 'desprovido de
qualquer conexão' com aqueles imóveis e com eles não relacionado. Reconheceu-se,
em suma, que nesses casos o privilégio preferia sobre direitos reais de
garantia, da titularidade de terceiros, aos quais não era acessível o
conhecimento da existência do crédito, em virtude de estar protegido pelo
segredo fiscal, e do correspondente ónus, devido à inexistência de registo.
6. Porém, no já referido Acórdão n. 498/2003, o Tribunal
recusou julgar inconstitucional precisamente a norma constante da alínea b) do
n.º 1 do artigo 12º da Lei n.º 17/86 de 14 de Junho, na interpretação segundo a
qual o privilégio imobiliário geral nela conferido aos créditos emergentes do
contrato individual de trabalho prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do
Código Civil.
Nesse caso, o Tribunal reconheceu ser constitucionalmente lícito ao legislador
orientar-se por uma outra solução, atendendo às circunstâncias concretas: não
só não podia afirmar-se inexistir uma “qualquer conexão” entre os créditos
laborais reclamados e os imóveis onerados, visto que em causa estavam
privilégios incidentes sobre os bens imóveis da empresa ao serviço da qual se
encontram os trabalhadores beneficiários – ligação que atenuaria o carácter
oculto e imprevisível dos créditos laborais para o credor com garantia real
registada –, mas também por não haver segredo impeditivo do conhecimento da
existência dos aludidos créditos; por outro lado, os trabalhadores não têm à sua
disposição os meios alternativos de que, quer a Fazenda Pública, quer a
Segurança Social dispõem para cobrar os seus créditos, para além de, no caso de
falência do empregador, o único meio seguro de garantir a cobrança do crédito
laboral poderia consistir na prevalência da garantia creditória que os protege,
em homenagem à sua natureza de direito constitucionalmente incluído entre os
direitos fundamentais dos trabalhadores, conforme o artigo 59º n.º 1 alínea a)
da Constituição. A restrição do princípio da confiança operada pela norma então
impugnada seria um meio adequado e necessário à salvaguarda do direito dos
trabalhadores à retribuição, pelo que não havia contra tal solução obstáculo
constitucional.
7. Só que destas considerações – suficientes para aceitar a
conformidade constitucional de uma solução legislativa que admita que os
créditos laborais preferem ao crédito que é garantido por hipoteca anteriormente
registada –, não decorre a obrigação constitucional de a lei ordinária conferir
obrigatoriamente aos créditos laborais uma prevalência sobre crédito garantido
por uma hipoteca anteriormente registada.
O princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático,
consagrado no artigo 2º da Constituição da República postula um mínimo de
certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente
criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente
onerosas, com as quais não se poderia razoavelmente contar.
E a verdade é que, conforme se decidiu no já referido Acórdão n.º 363/2002,
tirado em plenário sem votos discordantes, 'o registo predial tem uma finalidade
prioritária que radica essencialmente na ideia de segurança e protecção dos
particulares, evitando ónus ocultos que possam dificultar a constituição e
circulação de direitos com eficácia real sobre imóveis, bem como das respectivas
relações jurídicas – que, em certa perspectiva, possam afectar a segurança do
comércio jurídico imobiliário”.
Ora, a norma impugnada respeita o princípio da confiança, constitucionalmente
consagrado.
8. Sustentam os recorrentes que a norma ofende o princípio da
dignidade humana, o direito à retribuição do trabalho e o direito à segurança no
emprego, previstos respectivamente no artigo 1º, artigo 59º n.º 1 alínea a) e
no artigo 53º da Constituição.
Na verdade, o artigo 1º da Constituição, para além de tudo o mais, pretende
garantir a dignidade da pessoa humana, como valor eminente de cada pessoa,
respeitando o direito à vida, à integridade pessoal, à identidade, à capacidade
civil, à cidadania, às liberdades cívicas, e concretiza-se num leque muito
variado de opções, em que sobressai, para o que agora releva, o estabelecimento,
pelo legislador ordinário, de garantias mínimas de subsistência e de condições
materiais de vida.
Estes valores desenvolvem-se em múltiplas outras normas da Constituição,
designadamente, como alegam os recorrentes, no artigo 59º, no qual se afirmam os
direitos fundamentais dos trabalhadores. A alínea a) do n.º 1 deste artigo 59º
consagra o direito fundamental a uma justa remuneração, que permita uma
existência condigna, e a mecanismos que garantam a tutela daquela retribuição. A
referida alínea a) protege, portanto, essencialmente o direito à retribuição
segundo a quantidade, a natureza e a qualidade do trabalho prestado, impondo que
a remuneração do trabalho obedeça a princípios de justiça.
O artigo 53º da Constituição tem outro âmbito: estabelece a garantia da
segurança no emprego, com proibição de despedimentos sem justa causa, e uma
proibição de princípio ao trabalho precário, ou a termo, à redução do período
normal de trabalho, à suspensão do contrato de trabalho, ou à modificação
substancial da relação de emprego.
Acontece, no entanto, que a protecção do direito à retribuição não é absoluta.
É certo que o legislador está vinculado, pelo n.º 3 do artigo 59º da
Constituição, a criar um regime de protecção especial dos salários dos
trabalhadores. Mas esta protecção não conduz necessariamente a uma solução
legislativa que consagre um privilégio creditório absoluto para garantia destes
créditos.
Na verdade, a referida incumbência constitucional confere ao legislador
suficiente liberdade para optar, num leque de soluções possíveis, por aquelas
que repute mais eficazes, habilitando-o a adoptar outros mecanismos de protecção
salarial, como, por exemplo, o sistema de garantia salarial, instituído pelo
Decreto-Lei n.º 50/85 de 27 de Fevereiro, e revisto pelo Decreto-Lei 219/99 de
15 de Junho – entre outras, precisamente com a finalidade de o articular com o
Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência –,
regulamentado pelo Decreto-Lei n.º 139/2001 de 24 de Abril, hoje previsto no
artigo 380º do Código do Trabalho e na Lei n.º 35/2004 de 29 de Julho, que
regulamenta este Código; ou quando proíbe a penhora em dois terços do salário do
executado (artigo 824º n.º 1 do Código de Processo Civil, na versão aplicável).
Todavia, o legislador ordinário dispõe, ainda assim, de uma ampla margem de
liberdade de conformação nesta matéria como aconteceu, por exemplo, quando criou
um regime de prescrição de créditos laborais (artigo 38º da Lei Geral do
Trabalho, hoje artigo 381º do Código do Trabalho), impensável num regime de
protecção absoluta do direito à retribuição, apesar de beneficiar os
trabalhadores face ao regime geral de prescrição de créditos.
Em suma, não é constitucionalmente proibido que a lei ordinária confira
prevalência ao crédito garantido por uma hipoteca anteriormente registada sobre
os créditos laborais. Nesta conformidade, deve entender-se que o princípio da
confiança, assim defendido pela norma impugnada, não encontra obstáculo
constitucional».
É este entendimento que agora se reitera, o que justifica que seja negado
provimento ao recurso interposto.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando a decisão
recorrida no que diz respeito ao juízo de não inconstitucionalidade.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 20 (vinte) unidades de conta a taxa de
justiça.
Lisboa, 8 de Maio de 2007
Maria João Antunes
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Carlos Pamplona de Oliveira
Rui Manuel Moura Ramos