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Processo n.º 587/12
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A Exma. Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal Tributário de Lisboa, interpôs recurso, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei de Organização, Processo e Funcionamento do Tribunal Constitucional, doravante LTC, do despacho proferido naquele Tribunal, em 14 de agosto de 2012, neste processo.
Na decisão recorrida, e no que ora importa, decidiu-se que:
“Nos presentes autos, veio o recorrente A. alegar factos que, na sua perspetiva, carecem de ser objeto de prova testemunhal.
Tem aplicação ao caso o disposto no artigo 146.º-B, n.º 3, do CPPT, ex vi artigo 89.º-A, n.º 8, da LGT, do qual decorre estar vedada a produção de prova testemunhal no âmbito deste meio processual.
Contudo, temos por certo que esta norma padece de inconstitucionalidade, por violar o direito de acesso à justiça e a um processo equitativo, assim contendendo com o disposto no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que exclui em absoluto a produção de prova testemunhal, nos casos em que esta é, em geral, admissível, tal como reconhecido nos acórdãos do Tribunal Constitucional de 28/11/2006 (proc. n.º 748/2006) e de 22/01/2008 (proc. n.º 813/07), e do Supremo Tribunal Administrativo de 07/11/2007 (proc. n.º 0590/07), fazendo nossos os fundamentos aí expendidos.
Isto posto, verifica-se também que, na perspetiva do autor e tendo em consideração as várias soluções plausíveis da questão de direito, existe matéria de facto relevante para a decisão da causa que deve considerar-se controvertida, cabendo garantir o direito à prova na sua dimensão mais ampla.
Pelo exposto:
julgo inconstitucional a norma do artigo 146.º-B, n.º 3, do CPPT, nos termos descritos;
admito a produção de prova testemunhal e sugiro para inquirição das testemunhas arroladas o próximo dia 04/09/2012;
determino se proceda aos contactos prévios previstos no artigo 155.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi do artigo 2.º, al. e), do CPPT.”
Convidado a alegar, veio o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto junto deste Tribunal, dizer que a constitucionalidade da «norma do artigo 146.º-B, n.º 3 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aplicável por força do disposto no artigo 89.º-A, n.º 8, da Lei Geral Tributária (…) já foi objeto de apreciação por parte do Tribunal Constitucional, que sempre proferiu juízos positivos de inconstitucionalidade. Fê-lo pelos Acórdãos n.ºs 646/2006, 681/2006 e 24/2008. Também foi essa, desde o início a posição que o Ministério Público neste Tribunal adotou, como se poderá ver pelas primeiras Alegações apresentadas» que de seguida transcreve. Remetendo para a fundamentação expendida nos arestos citados, conclui que «o segmento final da norma constante do artigo 146.º-B, n.º 3, do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 89.º-A, n.º 8, da Lei Geral Tributária, ao restringir à prova documental o tipo de meios probatórios ao dispor do contribuinte que pretenda recorrer da decisão da administração tributária, precludindo qualquer apreciação ou valoração judicial, suscetível de permitir adequar os meios probatórios requeridos à natureza dos factos controvertidos e à previsível utilidade para a justa composição do litígio – viola o direito de acesso aos tribunais, na dimensão do “direito à prova” por parte do litigante onerado com o “ónus da prova”. Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado pela decisão recorrida».
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
2. Nos presentes autos foi recusada pelo Tribunal Tributário de Lisboa, com fundamento em inconstitucionalidade material, a aplicação da norma contida no artigo 146-B, n.º 3 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força do disposto no artigo 89.º-A, n.º 8, da Lei Geral Tributária.
A referida norma tem a seguinte redação:
“Artigo146.º-B
Tramitação do recurso interposto pelo contribuinte
(…)
3 – A petição referida no número anterior não obedece a formalidade especial, não tem de ser subscrita por advogado e deve ser acompanhada dos respetivos elementos de prova, que devem revestir natureza exclusivamente documental.
(…).”
O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar sobre a dimensão normativa em análise em arestos que abordam questão em tudo idêntica à dos presentes autos, designadamente nos Acórdãos n.os 646/2006 e 24/2008, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt,
Neles se pode ler:
«“…) de harmonia com os números 1 e 2 do artº 89º-A da Lei Geral Tributária aprovada pela Lei nº 41/98, de 4 de agosto (e que sofreu já algumas alterações – cfr. citada Lei nº 15/2001, Lei nº55-B/2004, de 30 de dezembro, e Lei nº 50/2005, de 30 de agosto), há lugar a avaliação indireta da matéria coletável quando falte a declaração de rendimentos e o contribuinte evidencie as manifestações de fortuna constantes da tabela prevista no n.º 4 (anexa àquela Lei) ou quando declare rendimentos que mostrem uma desproporção superior a 50%, para menos, em relação ao rendimento padrão resultante da referida tabela, para cuja aplicação se tomam em consideração os bens adquiridos no ano em causa ou nos três anos anteriores pelo sujeito passivo ou qualquer elemento do respetivo agregado familiar, os bens de que frua no ano em causa o sujeito passivo ou qualquer elemento do respetivo agregado familiar, adquiridos nesse ano ou nos três anos anteriores, por sociedade na qual detenham, direta ou indiretamente, participação maioritária, ou por entidade sediada em território de fiscalidade privilegiada ou cujo regime não permita identificar o titular respetivo.
E, de acordo com o nº 3, também do dito artº 89º-A, verificadas as situações que conduzam à avaliação indireta da matéria coletável, cabe ao sujeito passivo a prova de que correspondem à realidade os rendimentos declarados e de que é outra a fonte das manifestações de fortuna evidenciadas, nomeadamente herança ou doação, rendimentos que não esteja obrigado a declarar, utilização do seu capital ou recurso ao crédito, sendo que (nº 4 desse artigo), se não efetuar essa prova, considera-se como rendimento tributável em sede de IRS, a enquadrar na categoria G, quando não existam indícios fundados, de acordo com os critérios previstos no art.º 90.º (que cura da determinação da matéria tributável por métodos indiretos), que permitam à administração tributária fixar rendimento superior, o rendimento padrão apurado nos termos da tabela seguinte: (…)
Perante o que se consagra no nº 6, ainda do mesmo artº89º-A, da decisão de avaliação da matéria coletável pelo método indireto constante deste artigo cabe recurso para o tribunal tributário, com efeito suspensivo, a tramitar como processo urgente, não sendo aplicável o procedimento constante dos artigos 91.º e seguintes(que tratam dos pedido de revisão da matéria tributável e do procedimento de revisão dessa matéria).
Destas citadas disposições resulta, pois, não olvidando o que se dispõe no nº 8 do artº 89º-A da Lei Geral Tributária, que ao recurso da decisão de avaliação da matéria coletável pelo método indireto previsto no seu artº 89º-A é aplicável o que se prescreve na parte final do nº3 do artº 146º-B do Código de Procedimento e de Processo Tributário, ou seja, que não é possível ao contribuinte apresentar prova testemunhal destinada à comprovação de factos que invoque e que, na sua perspetiva, são suscetíveis de infirmar os dados que conduziram à avaliação indireta, sendo que é sobre o mesmo contribuinte que recai o ónus de demonstrar que a declaração de rendimentos que apresentou corresponde à realidade ou que outra foi a fonte das ‘manifestações de fortuna’ evidenciadas.
A questão que, assim, se coloca, reside em saber se a limitação decorrente daquela parte final é de considerar como conflituante com a Lei Fundamental, enquanto se reporta à exclusão da prova testemunhal nos casos em que esta é admissível como meio de prova (e isto atendendo a que foi nessa dimensão que o despacho recorrido operou a desaplicação normativa em causa).
3.1.Recaindo sobre o contribuinte, como se disse acima, o ónus de demonstração da realidade das declarações tributárias, não obstante as «manifestações de fortuna» indiciarem a perceção de rendimentos superiores aos constantes daquelas declarações, entendeu o legislador, com a norma em apreço, que os elementos de prova a carrear pelo contribuinte no sentido de infirmar a ‘presunção’ decorrente de tais ‘manifestações’ somente poderiam ser apresentados desde que revestissem a natureza documental.
Certamente que o fez com base na consideração, em primeiro lugar, que esses meios se apresentavam como detendo maior eficácia e fiabilidade do que os restantes; em segundo, que, como as declarações tributárias apresentadas são, em regra, demonstradas por documentos, igualmente por estes haveria de ser provado que as ‘manifestações de fortuna’ indiciadoras de uma perceção de superiores rendimentos não corresponderiam à indiciação; em terceiro, que, como o processo é, por sua natureza, urgente, a utilização de outros meios de prova, designadamente testemunhal, não se compadeceria com a desejada celeridade adjetiva.
Justamente por isso, é de aceitar que – nas situações em que a prova de que as ‘manifestações de fortuna’ não correspondem a um auferir de rendimentos superiores ao declarado possa, com suficiência, ser alcançada por meio documental – o intento do legislador precipitado no normativo em causa não se anteveja como desrazoável.
Na verdade, como tem este Tribunal assinalado por mais de uma vez (cfr., verbi gratia, o seu Acórdão nº 489/2002, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 54º volume, 861 e seguintes), goza o legislador, nomeadamente o legislador fiscal, de um grau de discricionariedade no estabelecimento, quer dos pressupostos que condicionam a invocabilidade de determinados factos sujeitos a tributação ou das causas de abatimento ou dedução à matéria coletável, quer dos meios de prova, ainda que ‘tarifada’, das circunstâncias que atestem a seriedade e plausibilidade das declarações.
Neste particular, como refere Miguel Teixeira de Sousa (As partes, o Objeto e a Prova na Ação Declarativa, 1995, 228) ‘o direito de acesso à justiça comporta indiscutivelmente o direito à produção de prova.E, ainda segundo esse mesmo autor, tal ‘não significa, porém, que o direito subjetivo à prova implique a admissão de todos os meios de prova permitidos em direito, em qualquer tipo de processo e relativamente a qualquer objeto do litígio ou que não sejam possíveis limitações quantitativas na produção de certos meios de prova (por exemplo, limitação a um número máximo de testemunhas arroladas por cada parte). Bastará percorrer as normas de direito probatório constantes do Código Civil ou do Código de Processo Civil para verificar que há diversas proibições de utilização de certos meios de prova cuja constitucionalidade nunca foi posta em causa’. ‘Em muitos casos, a inadmissibilidade, estabelecida pela lei, de prova testemunhal tem como fundamento o juízo do legislador sobre as graves consequências de um testemunho inverídico, dada a especial fiabilidade desse meio probatório. Tais casos de inadmissibilidade têm, porém, natureza excecional e hão de ter uma justificação racional”(cfr., ainda, sobre o que se insere no direito de acesso aos tribunais, o Acórdão deste Tribunal nº 86/88, in Diário da República. II Série, de 22 de agosto de 1988).
3.2.Simplesmente, mesmo aceitando o que se expôs no antecedente ponto, e partindo agora da premissa que o direito de acesso à justiça integra, inter alia, o direito de o interessado produzir demonstração dos factos que, na sua ótica, suportam o ‘direito’ ou o ‘interesse’ que visa defender pelo recurso aos tribunais, o problema que se põe há de residir na formulação de um juízo que pondere se o legislador, ao editar a norma em análise, respeitou, proporcionada e racionalmente, aquele direito na vertente em questão, em termos de conduzir a que, para a generalidade de situações, o interessado se não veja constrito à impossibilidade de uma real defesa dos seus direitos ou interesses em conflito.
Este Tribunal, no seu Acórdão nº 187/2001 (in II Série do Diário da República de 26 de junho de 2001) teve ocasião de referir: –
‘(…) enquanto a administração está vinculada à prossecução de finalidades estabelecidas, o legislador pode determinar, dentro do quadro constitucional, a finalidade visada com uma determinada medida. Por outro lado, é sabido que a determinação da relação entre uma determinada medida, ou as suas alternativas, e o grau de consecução de um determinado objetivo envolve, por vezes, avaliações complexas, no próprio plano empírico (social e económico). É de tal avaliação complexa que pode, porém, depender a resposta à questão de saber se uma medida é adequada a determinada finalidade
(…) Ora, não pode deixar de reconhecer-se ao legislador – diversamente da administração –, legitimado para tomar as medidas em questão e determinar as suas finalidades, uma ‘prerrogativa de avaliação’, como que um crédito de confiança’, na apreciação, por vezes difícil e complexa, das relações empíricas entre o estado que é criado através de uma determinada medida e aquele que dela resulta e que considera correspondente, em maior ou menor medida, à consecução dos objetivos visados com a medida
(…) Contra isto não vale, evidentemente, o argumento de que, perante o caso concreto, e à luz do princípio da proporcionalidade, ou existe violação – ou não existe – e a norma é constitucionalmente conforme. Tal objeção, segundo a qual apenas poderia existir uma ‘resposta certa’ do legislador, conduz a eliminar a liberdade de conformação legislativa, por lhe escapar o essencial: a própria verificação jurisdicional da existência de uma inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade por uma determinada norma, depende justamente de se poder detetar um erro manifesto de apreciação da relação entre a medida e os seus efeitos, pois aquém desse erro deve deixar-se na competência do legislador a avaliação de tal relação, social e economicamente complexa.(…)
Ora, são cogitáveis situações em que, no que ora importa, a demonstração de que as «manifestações de fortuna» não produziram rendimentos diversos daqueles que foram trazidos às declarações se não alcança unicamente (ou, mais propriamente, não se pode alguma vez atingir) através de meios documentais, carecendo-se de prova testemunhal e, obviamente, nos casos em que esta seja admissível nos termos gerais de direito.
Nessas situações, perante a determinação ínsita na norma em causa, o interessado, perante uma, então, manifesta e, quiçá, insuperável, dificuldade em alcançar o objeto probandi, ver-se-ia postado numa impossibilidade de demonstrar os factos que suportavam os seus direitos ou interesses.
Essa limitação, que, em tais situações, redunda numa absoluta constrição de quanto à utilização desse específico meio de prova, não se revela ponderada e adequada em face do direito fundamental que deflui do nº 1 do artigo 20º da Constituição.
O direito à tutela judicial efetiva, como vincam Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 163) ‘sob o ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á, sobretudo, quando a não observância … de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar [e, acrescentar-se-á agora, de provar], daí resultando prejuízos efetivos para os seus interesses.
Também Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 190) referem que, muito embora disponha o legislador de uma ampla margem de liberdade na concreta modelação do processo, não sendo incompatível com a tutela jurisdicional a imposição de determinados ónus processuais às ‘partes’,o que é certo é que o direito ao processoinculca que ‘os regimes adjetivos devem revelar-se funcionalmente adequadosaos fins do processo e conformar-se com o princípio da proporcionalidade, não estando, portanto, o legislador autorizado, nos termos dos artigos 13.º e 18.º, n.ºs 2 e 3, a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva’.
Neste circunstancialismo, e perante situações em que, face ao normativamente consagrado, a demonstração dos factos – que, no entendimento da ‘parte’, conduzam à defesa do seu direito ou interesse legalmente protegido – não é possível, de todo, deixar de fazer-se através de prova testemunhal, desde que, repete-se, essa seja, nos termos gerais legalmente admissível, claramente que vai ficar afetada aquela defesa, porventura tornando inviável ou inexequível o direito de acesso aos tribunais.
E, nesse contexto, a solução legislativa que isso consagre não pode deixar de considerar-se como desproporcionada e afectadora do direito consagrado no nº 1 do artº 20º da Lei Fundamental, pois que totalmente preclude uma apreciação e valoração dos factos invocados como consubstanciadores da pretensão deduzida em juízo.”»
Esta doutrina é inteiramente transponível para a situação em apreço, pelo que resta decidir em conformidade.
III – Decisão
3. Nestes termos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 20.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 18.º, n.º 1, ambos da Lei Fundamental, a norma constante da parte final do n.º 3 do artigo 146.º-B, do Código de Processo e Procedimento Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de outubro, quando aplicável por força do disposto no n.º 8 do artigo 89.º-A da Lei Geral Tributária, na medida em que exclui em absoluto a produção de prova testemunhal, nos casos em que esta é, em geral, admissível;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 10 de janeiro de 2013. Maria de Fátima Mata-Mouros – José da Cunha Barbosa – Mária Lúcia Amaral – Maria João Antunes – Joaquim de Sousa Ribeiro