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Processo n.º 1006/04
3.ª Secção Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, o Instituto Nacional de Habitação, ora recorrido, intentou contra A. e mulher, ora recorrentes, acção ordinária pedindo a condenação dos réus a reconhecerem o direito de propriedade do autor sobre determinada fracção autónoma de imóvel sito em Portimão, a restituírem-na, livre e devoluta, e a pagarem uma indemnização por danos. No despacho saneador conheceu-se do pedido, tendo a acção sido julgada parcialmente procedente e os réus condenados a reconhecer o direito de propriedade do autor e a desocuparem a fracção, restituindo-a livre e devoluta àquele. Inconformados com a decisão, recorreram para o Tribunal da Relação de Évora que negou provimento ao recurso. Ainda inconformados, recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo do seguinte modo:
“1) A matéria de facto apresentada pelos ora recorrentes era determinante para a decisão, devendo estes factos serem considerados relevantes para o presente Tribunal de Recurso.
2) A matéria de facto importa realidades que impõem ao Tribunal ' a quem ' a alteração da matéria de facto assente.
3) Existe um erro na apreciação das provas, nos termos da norma que se extrai do n.º 2 do artigo 722° do CPC.
4) O direito á tutela jurisdicional efectiva do direito é um direito fundamental que sujeita directamente o estado-juiz, pelo que não necessita da mediação do legislador ordinário para o concretizar.
5) Existe uma contradição insanável entre a contradição e a decisão, o que se pode verificar na análise do texto da decisão recorrida.
6) O ora recorrente goza do direito de retenção, com defesa possessória mesmo contra o próprio dono da coisa, qualquer que ele seja.
7) A relação jurídica relativa ao direito á tutela jurisdicional efectiva é regulada pela norma judicial que o juiz cria em cada caso concreto, para o que tem de ter sempre em consideração o respectivo critério da norma constitucional e as necessidades de cada situação.
8) Pelo que o douto acórdão deve ser revogado.”
2. O Supremo Tribunal de Justiça considerou suscitadas pelos recorrentes três questões, a saber: “a) se é de alterar a matéria de facto assente; b) se os factos provados se revelam insuficientes para a decisão de mérito no despacho saneador; c) se os réus gozam do direito de retenção sobre a fracção objecto do contrato-promessa. Tendo concluído não poder apreciar o primeiro ponto de facto suscitado, que não há insuficiência de matéria de facto para decisão no saneador e que os réus não podiam opor direito de retenção ao autor, por acórdão de 23 de Setembro de 2004, negou provimento ao recurso e confirmou o acórdão recorrido.
3. É deste acórdão que foi interposto o presente recurso de constitucionalidade, através de um requerimento do seguinte teor:
“[...]recorrentes nos autos á margem identificados, não se conformando com a douta decisão que lhe foi notificada, vem dela interpor recurso para o Tribunal Constitucional o que fazem nos termos e com os seguintes fundamentos: Introdução Pretende-se com o presente recurso que seja apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 729° n.º 3 do Código de Processo Civil com a interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida . Vem o presente recurso interposto do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, por se reputar de inconstitucional a norma do artigo 729° n.º 3 do CPC, quando aplicada com a interpretação e o alcance dados àquele normativo de que estão provados os factos necessários à apreciação e decisão desta problemática sem ter em consideração ao que determina o referido preceito legal: ' ....Em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito ou que ocorram contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito ', As decisões jurisdicionalmente equilibradas só se podem obter com a submissão dos órgãos de função jurisdicional ao resultado da procura e da compreensão das circunstâncias em que os direitos e deveres de cada um foram criados, por ser nessas circunstâncias que reside a equidade ( o equilíbrio dos interesses, a justiça material ). O STJ, como Tribunal de Revista, verifica a suficiência ou insuficiência da matéria de facto apurada e constante da decisão recorrida, assistindo-lhe a faculdade de mandar ampliar a matéria de facto quando as instâncias a seleccionaram de forma insuficiente , amputando-a de elementos tidos por indispensáveis para que o tribunal recorrido defina o direito aplicável ao caso. Para que o STJ possa e deva socorrer-se da faculdade prevista no artigo 729° n
º3 do C PC, é necessário que a matéria de facto a ampliar conste dos articulados, não bastando meras conclusões. O Tribunal de 1ª instância decidiu do mérito da causa no despacho saneador quando existem factos relevantes e prova documental que deveria ter sido avaliada em sede de audiência de julgamento . Compete ao STJ apreciar os elementos de facto fixados nas instância são ou não suficientes para conhecer de mérito A questão da inconstitucionalidade foi suscitada nos autos pelos recorrentes quando referem o direito à tutela jurisdicional efectiva suscitada nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, devendo ser assegurada a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos nos termos da norma que se extrai do artigo 20° da Constituição da República Portuguesa.
[...] Conclusões
1) Deve ser apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 729° n.º 3 do CPC, com a interpretação com que foi aplicada pelo tribunal recorrido.
2) Houve uma clara violação do direito à tutela jurisdicional efectiva dos ora recorrentes:
3) O direito á tutela jurisdicional efectiva do direito é um direito fundamental que sujeita directamente o estado-juiz, pelo que não necessita da mediação do legislador ordinário para o concretizar . Nestes termos, deve tal norma ser julgada inconstitucional, quando interpretada e aplicada em termos de não se admitir a ampliação da matéria de facto em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, por na definitividade das decisões estar implicada a ideia de certeza do direito[...]”.
4. Foi, então, proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. É o seguinte, na parte relevante, o seu teor:
“[...] Os recorrentes não mencionam a alínea do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional ao abrigo da qual pretendem interpor o recurso. Acontece, porém, que referindo que pretendem ver apreciada “a inconstitucionalidade da norma do artigo 729° n.º 3 do CPC, com a interpretação com que foi aplicada pelo tribunal recorrido” e que “a questão da inconstitucionalidade foi suscitada nos autos pelos recorrentes quando referem o direito á tutela jurisdicional efectiva suscitada nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”, não pode deixar de concluir-se ser a alínea b) do n.º 1 daquele artigo aquela em que se podem fundar. Ora, o recurso previsto nessa alínea pressupõe, designadamente, que o recorrente tenha suscitado, durante o processo e de forma processualmente adequada, a inconstitucionalidade de determinada norma jurídica - ou de uma sua dimensão normativa. Vejamos então. Dizem os recorrentes que “a questão da inconstitucionalidade foi suscitada nos autos pelos recorrentes quando referem o direito á tutela jurisdicional efectiva suscitada nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, devendo ser assegurada a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos nos termos da norma que se extrai do artigo 20° da Constituição da República Portuguesa.” No entanto, basta ler as alegações para o Supremo Tribunal de Justiça, cujas conclusões se transcreveram integralmente supra, para facilmente se verificar que não foi aí suscitada qualquer questão de constitucionalidade normativa. Em primeiro lugar, não há nessas conclusões (nem, de resto, em qualquer das 8 páginas da alegação de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça), uma única referência expressa à violação da Constituição por parte de qualquer norma de direito infraconstitucional. De facto, a única referência que à Constituição é aí feita é a que consta do n.º 11º, onde se afirma: “O princípio do estado de direito impõe a conformidade máxima dos actos de poder com a Constituição. A função do poder judicial é a de criar condições de confiança e de certeza de que esses limites jurídicos não serão ultrapassados.” Em segundo lugar, é por demais evidente que uma tal referência não corresponde, de modo algum, à suscitação de qualquer questão de constitucionalidade normativa. Em face do exposto, e sem necessidade de maiores considerações, torna-se evidente que não pode conhecer-se do objecto do recurso que o recorrente pretendeu interpor, por manifesta falta de um dos seus pressupostos legais de admissibilidade; a saber: ter o recorrente suscitado, durante o processo e de forma processualmente adequada, uma questão de constitucionalidade normativa susceptível de integrar o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC. [...]”
5. Desta decisão é interposta a presente reclamação, através de requerimento onde se afirma, nomeadamente, o seguinte:
“[...] Pretende-se com a presente reclamação demonstrar que nas alegações apresentadas pelos ora recorrentes para o Supremo tribunal de Justiça existe todo um capítulo I denominado “Direito à tutela Jurisdicional Efectiva, “que diz respeito ao artigo 20º da Constituição Da República Portuguesa. I – Violação do Direito à tutela jurisdicional efectiva O princípio de confiança e de protecção jurídica e das garantias processuais manifesta-se na Constituição no artigo 20º da CRP. A questão da inconstitucionalidade foi suscitada pelos recorrentes desde o n.º 1 ao n.º 11 das alegações juntas, pressupondo a questão da inconstitucionalidade um juízo de desconformidade de um acto normativo com princípios de força e valor constitucional. Esse acto normativo foi a incorrecta apreciação da matéria de facto assente, por terem sido desconsiderados factos alegados e documentalmente provados relevantes para a decisão jurídica. Houve um erro na apreciação das provas que foi suscitado como uma violação do equilíbrio dos interesses: e uma violação da justiça material. A violação do princípio da confiança e da segurança jurídica foram referidos ao longo de todas as alegações incluídas no capítulo 1. Nos termos da norma que se extrai da alínea d) do n.º 1 do artigo 668º do CPC, o juiz deveria ter resolvido todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, o que não aconteceu, assim como nos termos da norma que se extrai do n.º 1 do artigo 721º do CPC o STJ deveria ter conhecido em recurso de questões de facto pela violação da lei substantiva, o que foi referido nas alegações apresentadas pelos ora recorrentes. Com efeito, foram descriminados, transcritos e referidos os factos relevantes e a prova documental que deveriam ter sido avaliadas em sede de audiência de julgamento e não através da decisão do mérito da causa no despacho saneador e que levaram os ora recorrentes a referir expressamente que esta decisão constitui uma clara violação da Constituição pela violação do equilíbrio dos interesses e violação da justiça material. Sem a confiança na garantia efectiva dos direitos, o indivíduo não tem confiança em si próprio. A confiança de cada pessoa no Estado-juiz depende da justiça das decisões jurisdicionais e não da certeza do direito que advém da aplicação mecânica das normas. No caso concreto, os ora recorrentes suscitaram durante o processo e de forma processualmente adequada, uma questão de constitucionalidade normativa susceptível de integrar o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC. Por esse motivo, deve ser apreciado o recurso interposto pelos recorrentes, devendo tomar-se conhecimento do recurso. A lei, além de poder não transportar consigo qualquer vestígio de justiça, pode mesmo, como sucedeu com o despacho do Exmº Juiz Conselheiro converter-se em um modo de organização anti-jurídico! Ao ser-lhes negado a faculdade de tomar conhecimento do recurso devido a um sancionamento de cariz meramente processual, violam-se as garantias de defesa do ora recorrente, viola-se o princípio da descoberta da verdade material e a tutela efectiva dos direitos. A justiça devida a cada pessoa, além da participação desta, exige como condição a proximidade entre o órgão do Estado e o direito contextual próprio de cada caso decidendo, proximidade sem a qual não é possível realizar a ponderação de todos os bens jurídicos em confronto. Por esta razão, sendo necessária a proximidade com o caso concreto para que o estado com os seus juízos não coloque em perigo os valores superiores da nossa ordem jurídica, e estando esta tarefa reservada aos órgãos da função jurisdicional[], o juiz tem necessariamente de ter o poder e a obrigação de afastar o uso da lei, sempre que com o seu uso viole o direito contextual de cada caso. Se assim é, como estamos convictos que é, compete a V.Ex.ªs, neste caso decidendo, preencher o conteúdo específico do direito à tutela jurisdicional efectiva, tarefa na qual têm de ter sempre em consideração a realidade das circunstâncias concretas de cada situação juridicamente relevante[] ( o direito contextual) e, se necessário for, têm ainda de afastar o uso dos comandos do legislador, mesmo se abstractamente constitucionais. São estas exigências que obrigam o juiz a deixar de operar com o conceito de homem ideal, ou com o conceito bom pai de família[] , e que o remetem para a análise da vida de cada pessoa em concreto, para o homem situado na sua vida. No caso concreto, a justiça a realizar implica que não se possa usar os critérios do legislador, devendo a decisão jurisdicional de ter exclusivamente em consideração a ideia de justiça vigente numa determinada situação[], o que faz com que o direito contextual não possa ser lesionado ou afastado pelo legislador ou pelo juiz sem que lesione a autonomia da pessoa humana. Quando os órgãos da função jurisdicional, devendo-o fazer, não garantem efectivamente os direitos de cada um, estamos perante uma lesão de um direito fundamental subjectivo (o direito à tutela jurisdicional efectiva)[] que tem consequências devastadoras na autonomia da pessoa humana. Como se compreende, a realização da justiça que a nossa Constituição ordena, convoca um juiz que na execução da sua tarefa, como diz PAULO FERREIRA DA CUNHA, não se comporte como «uma máquina de resolver silogismos[] , porque a qualidade da justiça que se pretende só se pode obter, como refere LUIS CABRAL MONCADA,
«mediante a avaliação dialéctica de factos e valores»[].
É por esta razão que os órgãos da função jurisdicional têm de ter capacidade para penetrar no interior dos direitos, porque, efectivamente, como ensina CASTANHEIRA NEVES, a justiça é um valor «imanente aos acontecimentos da vida social – mais precisamente, vai implicada na dialéctica de acontecimento da vida e norma, de ser e dever ser»[]. A ideia de justiça vigente numa determinada situação, só pode ser captada no direito contextual próprio de cada situação.[] [] Conclusões
1) Houve uma clara violação do direito à tutela jurisdicional efectiva dos ora recorrentes: O direito à tutela jurisdicional efectiva do direito é um direito fundamental que sujeita directamente o estado-juiz, pelo que não necessita da mediação do legislador ordinário para o concretizar
2) Ao abrigo do princípio da descoberta da verdade material e da tutela efectiva do direito dos ora recorrentes, deve ser admitido o recurso para o Tribunal Constitucional, para assegurar a defesa de direitos e interesses legalmente protegidos dos ora recorrentes. Nestes termos, deve a presente reclamação ser admitida por ser justa, sendo injusto o despacho do Exmº Juiz Conselheiro Relator que impede que seja dada aos recorrentes a possibilidade de recorrer [...]”
6. Notificado o recorrido, nada disse.
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
III – Fundamentação
7. Na decisão sumária reclamada considerou-se que não estavam preenchidos os pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, única que, apesar de os recorrentes a não citarem, poderia ser aplicável ao caso, já que estes nunca suscitaram perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida e de forma processualmente adequada, qualquer questão de constitucionalidade normativa.
Os recorrentes vêm reclamar desta decisão. Limitam-se, porém, a afirmar, de relevante para a decisão da presente reclamação, não obstante as eruditas citações efectuadas, que cumpriram o ónus de suscitar, durante o processo, de modo processualmente adequado, uma questão de constitucionalidade normativa, que, aliás, também nunca identificam.
Não têm, porém, razão, como sucintamente se verá.
7.1. De facto, os ora reclamantes alegam que “suscitaram durante o processo e de forma processualmente adequado, uma questão de constitucionalidade normativa, susceptível de integrar o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC” e que o fizeram “desde o n.º 1 ao n.º 11 das alegações juntas”.
Ora, basta ler os textos produzidos pelos recorrentes, que acima se reproduziram, bem como os números 1 a 11 das alegações – que a seguir se transcrevem por, pelos reclamantes, terem sido expressamente referenciados como sendo a peça processual em que suscitaram a questão - para verificar que, tal como se afirmou na decisão ora reclamada, neles, nenhuma questão de constitucionalidade normativa foi suscitada:
“I - Direito á tutela jurisdicional efectiva
1º A douta sentença recorrida não fez uma correcta apreciação da matéria de facto assente, por terem sido desconsiderados factos alegados e documentalmente provados relevantes para a decisão jurídica.
2º Efectivamente, em 1ª instância foram considerados relevantes e provados por documentos e por acordo das partes os seguintes factos: “Os réus ocupam a referida fracção “P” sem consentimento do autor - admitido por acordo”; “A Cooperativa B. e o réu marido celebraram em data não apurada, mas anterior à da aquisição pelo autor, um contrato que teve por objecto um apartamento T4 no lote
--- do prédio urbano sito em ---------- na freguesia e concelho de Portimão, em regime de direito de superfície do qual ambos se obrigaram a outorgar um contrato de compra e venda daquel[e] fogo – Doc.170 e admissão por acordo”.
3° Nos termos da norma que se extrai da alínea d) do n º1 ) do artigo 668° do C PC “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”, pelo que essas “questões” distinguem-se de “razões” ou “argumentos”, razão porque só a falta de apreciação das “questões” é que integram a nulidade prevista no normativo citado e não a mera falta de discussão das razões e dos argumentos invocados para concluir sobre as questões, no âmbito da nossa doutrina e jurisprudência maioritária (Alberto dos Reis, ob. E vol. Cits' pág.143; RT, 78°-172,89°-456, e 90°-219; Acs STJ, de 2.7.1974, de 13.2.1985, de
5.6.1985 ).
4° Nos termos da norma que se extrai do n º1 do artigo 721º CPC , cabe recurso de revista do Acórdão da Relação que decida do mérito da causa e constitui jurisprudência uniforme ser vedado ao STJ conhecer em recurso de revista de questões de facto, a menos que com a modificação dos factos apurados por parte da Relação, esta proceda ilegalmente, o que acontece no caso sub-judice.
5° Com efeito, O Tribunal da relação de Évora considerou que a celebração do contrato de promessa e o teor das obrigações de vender e de comprar neles assumidas por ambas as partes não são objecto de discussão, como considerou que não se discute a anterioridade da celebração do contrato de promessa relativamente á data da arrematação pelo apelado , desinteressando se aquela teve lugar em 1980, como dizem os apelantes ou em 1984 como sustentou a apelada.
6º O réu marido e ora recorrente só poderia ter celebrado o contrato de promessa de compra e venda da fracção autónoma objecto do contrato no ano de 1980, por lhe terem sido entregues vários recibos relativos ao pagamento e amortização da fracção desde o ano de 1980, durante o ano de 1981, 1982 e 1983 conforme documentos junto aos autos.
7° Deste modo, existe erro de apreciação das provas , nos termos da norma que se extrai do n.º 2 do artigo 722° do CPC, pelo que existe fundamento para a interposição do recurso de revista pelos ora recorrentes.
8° As decisões jurisdicionalmente equilibradas só se podem obter com a submissão dos órgãos de função jurisdicional ao resultado da procura e da compreensão das circunstâncias em que os direitos e deveres de cada um foram criados, por ser nessas circunstâncias que reside a equidade (o equilíbrio dos interesses, a justiça material). O Tribunal de 1ª instância decidiu do mérito da causa no despacho saneador, quando existem factos relevantes e prova documental que deveria ter sido avaliada em sede de audiência e julgamento.
9° Para que os réus e ora recorrentes se possam realizar como pessoas têm necessariamente de ter confiança na garantia que a ordem jurídica lhes fornece de que os direitos resultantes do contrato de promessa de compra e venda outorgado são direitos obrigatórios e eficazes, no sentido em que a ordem jurídica lhes concede a protecção efectiva. A existência dos sentimentos de auto-confiança e de confiança nas instituições permitem a cada um optar e tomar decisões com responsabilidade, depende em muito do modo como os órgãos da função jurisdicional executam a sua actividade.[1]
10° O Tribunal de 1ª instância refere que “Não colhe a alegação dos réus do desconhecimento do processo de execução, posto que não alegaram nem provaram que tivesse sido omitida naquele processo a formalidade da citação dos credores desconhecidos, por, edital, o que, de qualquer modo, caso por mera hipótese, académica se verificasse sempre teria que ser invocado e apreciado naqueles autos”. Salvo o devido respeito e melhor opinião, como poderiam os réus invocar a falta de citação se desconheciam a existência do processo de execução?
11° O princípio do estado de direito impõe a conformidade máxima dos actos de poder com a Constituição. A função do poder judicial é a de criar condições de confiança e de certeza de que esses limites jurídicos não serão ultrapassados. Não se pode conceber a vida sem o mínimo de certeza de que os direitos dos recorrentes são efectivamente garantidos, e sem a ideia de que, se forem violados, esta anomalia será corrigida pelo Estado-Juiz. A segurança jurídica é um valor que só existe se também existir um direito justo e justiça material, sendo sempre causa de sacrifício e de motivo de revolta daqueles que vêm os seus direitos injustamente abalados[2] ”
De facto, como se afirmou na decisão reclamada, em termos que, não obstante a discordância agora manifestada, em nada são infirmados pela presente reclamação, afirmar que “o princípio do estado de direito impõe a conformidade máxima dos actos de poder com a Constituição”, “não corresponde, de modo algum, à suscitação de qualquer questão de constitucionalidade normativa”. Aliás, da própria reclamação apresentada, parece resultar que os reclamantes crêem que o mero discretear sobre um qualquer tema de direito constitucional ou relacionado com quaisquer direitos fundamentais, sem a imputação de uma concreta violação da Constituição a uma determinada norma jurídica ou a uma certa interpretação normativa, corresponde ao preenchimento da exigência legal de suscitar uma questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado, durante o processo.
Lavram, porém, como resulta da lei e de jurisprudência constante deste Tribunal, em erro manifesto.
Improcede, por isso, a alegação de que está preenchido este pressuposto de admissibilidade do recurso exigido pelo disposto no n.º 2 do artigo 72º da Lei do Tribunal Constitucional.
7.2. Por outro lado, acaba por resultar igualmente da reclamação apresentada que o que os reclamantes efectivamente pretendiam era que o Tribunal Constitucional apreciasse, única e simplesmente, a eventual inconstitucionalidade do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, uma vez que afirmam, nomeadamente, que – “esse acto normativo [alegadamente desconforme com “princípios de força e valor constitucional”] foi a incorrecta apreciação da matéria de facto assente, por terem sido desconsiderados factos alegados e documentalmente provados relevantes para a decisão jurídica”, acrescentando que “foram descriminados [sic], transcritos e referidos os factos relevantes e a prova documental que deveriam ter sido avaliadas em sede de audiência de julgamento e não através da decisão do mérito da causa no despacho saneador e que levaram os ora recorrentes a referir expressamente que esta decisão constitui uma clara violação da Constituição”.
Ora, resultando do disposto no artigo 280º da Constituição e no artigo 70º da Lei n.º 28/82 e sendo jurisprudência pacífica e sucessivamente reiterada que, não estando em causa uma dimensão normativa de um preceito legal aplicado na decisão, mas, quando muito, a própria decisão em si mesma considerada, não há lugar ao recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal, só por lapso ou indesculpável desconhecimento se pode pretender que o Tribunal Constitucional, sujeito à Constituição e à lei – artigo 203º da Constituição -, julgue um recurso cujo conhecimento lhe está legalmente vedado, sendo, então, inteiramente irrelevantes e descabidas quaisquer considerações sobre o justo ou o injusto.
Também por esse motivo nunca seria possível conhecer do objecto do recurso.
8. Assim sendo, pelo exposto e pelas razões já constantes da decisão reclamada, que mantém inteira validade e em nada é infirmada pela presente reclamação, é efectivamente de não conhecer do objecto do recurso que os ora reclamantes pretenderam interpor.
III – Decisão
Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 11 de Fevereiro de 2005
Gil Galvão Bravo Serra Artur Maurício
[1] ' O direito da consciência é satisfeito pela confiança na subjectividade de quem decide'. Hegel, Princípios da Filosofia do Direito, Lisboa, 1959. p.229.
[2] A segurança jurídica não se obtém com a simples aplicação da lei mas ' requer a obtenção concreta da justiça '. Cf. Luís CABRAL MONCADA, Estudos de Direito Público, Coimbra, 2001, p. 280,
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050069.html ]