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Processo n.º 185/2005
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos, a Relatora proferiu a seguinte Decisão Sumária:
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos
do Tribunal da Relação de Lisboa, em que figura como recorrente A. e como
recorrido o Ministério Público, o recorrente interpôs recurso do acórdão do
Tribunal de Círculo da Comarca de Cascais, de 17 de Dezembro de 2003, que o
condenou, pela prática de um crime de aquisição de moeda falsa para ser posta em
circulação, na pena de 2 anos de prisão, para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Nas respectivas alegações, sustentou o seguinte:
1) Há em processo penal um duplo grau de jurisdição, abrangendo tanto a matéria
de facto, como a de direito.
2) A matéria de facto decidida em acórdão pelo tribunal colectivo, pode ser
sindicada pelo tribunal superior se for impugnada em sede de recurso.
3) Tal é o que se retira do Art° 32°/1 da Constituição da República e dos Artºs
do C. P. Penal nºs 410º/1, 412º/3, e até do Art° 433°.
4) Para tanto, porém, é ónus do recorrente cumprir o preceituado nas alíneas
a), b) e c) do Art° 412° do CPPenal.
5) É ainda ónus do recorrente dar cumprimento ao n.º 4 da mesma disposição
legal, no que diz respeito à referência aos suportes técnicos onde estão
registados os pontos de facto que impugnou, e as provas que indicou.
6) É ónus do tribunal proceder à transcrição dos elementos necessários para a
reapreciação da matéria de facto impugnada - n° 4 in fine do mesmo artº 412°.
7) A obrigação de transcrição decorre já das disposições conjugadas dos artºs
99º/2, 101º/2 e 363º todos do C.P.Penal, tal como é ensinado por jurisprudência
referida na motivação.
8) Da acta da audiência do julgamento dos autos em crise não consta a
transcrição da prova produzida, nem a referência aos elementos identificativos
que permitam localizar nas cassetes áudio/vídeo a identificação dos
declarantes/depoentes e as metragens dos respectivos depoimentos/declarações.
9) Por esse facto, não pode o arguido cumprir o disposto nas alíneas a) e b) do
n.º 3 do Art° 412.º, e 1ª parte do n.º 4 do mesmo Artº do C. P. Penal,
impedindo-o de recorrer da matéria de facto.
10) Já que o seu mandatário foi informado pela secretaria do processo que a
requerida acta não continha a transcrição da prova, nem os elementos
identificativos referidos na conclusão VIII.
11) A omissão - na acta da audiência de julgamento - dos referidos elementos
integra a nulidade da alínea d) do n.º 2 do Atrº 120.° do C. P. Penal.
12) E tem como consequência a nulidade do julgamento e consequente repetição -
n.ºs 1 e 2 do Artº 122. ° do mesmo código.
13) Há ainda - sem conceder - a irregularidade prevista no Artº 123.º, com o
regime da sua arguição aí determinado, ou seja, e no caso concreto, a sua
arguição nesta peça. como acto nele (processo) praticado.
14) Em qualquer dos casos a cominação é a nulidade do julgamento e consequente
repetição, uma vez que as omissões da acta não são passíveis de reparação.
15) Foram assim violadas as disposições legais ínsitas nos Artºs 31.° 1 e 2 da
Constituição da República, 412.º, n.° 4, parte final, em conjugação com os Artºs
99.º n.° 2, 101°, n.° 2 e 363.º todos do C. P. Penal em vigor, com a cominação
da nulidade do julgamento prevista nos n.ºs 1 e 2 do Artº 122.° com referência à
al d) do n.° 2 do Artº 120.º ou, se assim se não entender, à mesma nulidade
prevista e cominada no Artº 123.º, todos do mesmo diploma adjectivo.
16) Se interpretadas correctamente, as mencionadas disposições legais implicavam
a inclusão na acta da audiência de julgamento de toda a transcrição da prova
gravada, e respectivos elementos identificativos, por forma a dela se poder
servir o arguido recorrente a fim de preparar de forma conveniente o seu recurso
de impugnação da matéria de facto.
17) Na audiência de julgamento foi alterada a qualificação jurídica dos factos
constantes da acusação, passando relativamente aos arguidos: B. e A., a ser
feita referência que os factos constantes da acusação também integram a autoria
material de um crime de aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação,
descrito e declarado passível de pena pelo disposto nos Artºs 255°, d) e 266°,
n.° 1, a) do C.P., o qual se encontra contudo consumido pelo crime de passagem
de moeda falsa de conserto com o falsificador, que é imputado aos dois arguidos.
18) Tal circunstância é permitida pelo n.º 3 do Artº 358.º do C.P.Penal, desde
que cumprido o comando da parte final do n.º 1 desse normativo e ao arguido seja
comunicada a alteração para que, se assim o entender a defesa, este se prepare
convenientemente para enfrentar - digamos assim - a alteração efectuada.
19) E nem se diga que o facto de se tratar de uma simples convolação para
preceito incriminador mais favorável, dispensa aquela comunicação.
20) Questões relacionadas com os princípios do contraditório, do acusatório, da
plenitude da defesa, da imediação da prova, da lealdade processual e da
exigência da consciência da ilicitude por parte do arguido, impedem que tal
interpretação seja dada à mencionada disposição legal.
21) Está positivado e é pacífico - jurisprudência citada na motivação - que ao
arguido será dado sempre conhecimento da alteração da qualificação jurídica dos
factos, mesmo que daí resulte, ou possa resultar, um beneficio em termos da sua
incriminação.
22) Assim sendo, como é, ao não ter sido comunicada ao arguido a alteração da
qualificação jurídica dos factos constantes da acusação - como não o foi
violaram-se as garantias da defesa do arguido, os princípios do acusatório e do
contraditório assegurados no Artº 32.º, n.ºs 1 e 5 da Constituição, assim como o
n.º 3 do Artº 358.º do C. P. Penal, sendo nulo o julgamento e o acórdão, no que
ao arguido recorrente diz respeito, nos termos do disposto nas als. b) e c) do
Artº 379.º do C. P. Penal, o que aqui se requer seja declarado.
23) Se interpretadas correctamente, tais disposições legais impunham que fosse
dado ao arguido o conhecimento da alteração da qualificação jurídica, assim lhe
permitindo, se o entendesse, alterar a sua estratégia de defesa.
24) As escutas telefónicas transcritas nos presentes autos foram determinantes
na douta perspectiva do Tribunal - para que se firmasse a convicção
condenatória. Cfr. fundamentação da prova dos factos 10 a 18.
25) Porém, compulsado o conteúdo das referidas transcrições, lidos e relidos os
autos, não se encontra nada que permita - sequer com dúvidas - concluir que as
conversas escutadas estivessem relacionadas com o tipo legal de crime que vem
imputado ao arguido.
26) Para as esclarecer - as eventuais dúvidas - o arguido quis prestar
declarações em audiência de julgamento, a fim de ser confrontado com as
transcrições das escutas que lhe foram dirigidas, para, ponto por ponto, se tal
fosse necessário, exercer o contraditório.
27) O tribunal recusou a produção dessa prova em relação ao arguido, e sempre
que qualquer outra instância a procurasse produzir.
28) A requerida prova deveria ter sido produzida nos termos do disposto no n.º
1 al. a) do Artº 357° do C. P. Penal, e constar da acta a sua produção ou a
respectiva recusa - n.º 8 do art.º 356° do C. P. Penal.
29) Violaram-se assim, e mais uma vez, as garantias da defesa e os princípios
do acusatório e do contraditório constantes do Artº 32° n.ºs 1 e 5 da
Constituição da República, assim como o disposto no Art° 355° n.º 1 do C. P.
Penal, e ainda do n.º 2 deste último normativo conjugado com a al. a) do n.º 1
do Artº 357° do mesmo diploma, assim sendo inválidas como meios de prova as
transcrições das escutas telefónicas constantes da acusação, e que fundamentaram
o acórdão condenatório.
30) Se interpretadas correctamente, tais disposições legais impunham que o
arguido fosse confrontado com as referidas transcrições, assim se produzindo em
audiência esse meio de prova com respeito pelo contraditório.
31) Somente com base no seu CRC e nas certidões de acórdãos e cúmulos juntos
aos autos, o arguido foi condenado como reincidente, nos termos e para os
efeitos do disposto nos Artºs 75° e 76° do C. Penal.
32) A fundamentação para tal condenação consta do douto acórdão e refere 'no
certificado do registo criminal de fls. 1029, nas certidões de j1s. 2406, 2669,
2707, 2718, e 2797, e em raciocínio presuntivo, retirado das regras da
experiência, relativamente à ineficácia das referidas sanções criminais'.
33) A reincidência não opera de forma automática, antes é conceito conclusivo de
direito que exige factualidade provada, após sujeita a contraditório, para lhe
ser subsumida - pacificamente aceite por jurisprudência referida nas motivações.
34) Inverteu-se o ónus da prova, presumindo-se a culpa atinente à factualidade
que o tipo legal exige, com apelo às regras da experiência.
35) Da acusação nada foi alegado como facto material que permitisse sequer
qualquer contestação contraditória, quanto mais extrair, como se extraiu, um
raciocínio conclusivo.
36) E nulo o acórdão assim sustentado, por violação grosseira do princípio da
presunção de inocência ínsito no n.º 2 do Artº 32 da Constituição da República,
ainda por violação do disposto no Artº 76.º do C. Penal e 127.º do C. P. Penal,
nulidade que se invoca e requer declarada nos termos do disposto na al. h) do
Artº 379.º do C. P. Penal.
37) Se interpretadas correctamente, as referidas disposições legais conduziriam
à absolvição do arguido recorrente pela agravante reincidência, beneficiando, ou
podendo beneficiar desse modo, face à moldura penal aplicável, de eventual
escolha de pena não privativa da liberdade.
38) Não podendo dar cumprimento ao que dispõe a 1ª parte do nº 4 do Art. 412.º
do C. P. Penal - pelo já antes referido - o arguido pretende impugnar o
julgamento da matéria de facto.
39) Concretamente, impugna os seguintes factos dados como provados: Factos 10,
no que se refere ao intuito de compra das notas ao arguido C. e à intenção de as
vender a terceiros, ou as utilizar na compra de bens; Factos 13, 17, 18, 50, 63
no que diz respeito aos conclusivos para o preenchimento do tipo de reincidência
Para tal, requer a transcrição dos seguintes depoimentos prestados em audiência
de julgamento: Do arguido recorrente; Do arguido D.; Do arguido E.; Da arguida
F.; Do arguido C.; Do Sr. Inspector da PJ G. e do Sr. Inspector da PJ H..
40) Dos depoimentos das aludidas testemunhas, ao contrário do que se refere na
fundamentação do acórdão condenatório, resulta que não foi o arguido A. que
comprou as notas, e que estas não estavam na sua posse.
41) Não se determinou a quem foram apreendidas as notas falsas, resultando
apenas do acórdão recorrido - factos 14 - que os arguidos A., E. e F.,
juntamente com o I. regressaram ao norte no carro do I., trazendo as referidas
notas.
42) O arguido D., nas suas declarações, afirmou ter fabricado cerca de 100.000
€, que nunca conheceu, falou, ou vendeu qualquer nota ao arguido recorrente,
tendo vendido as apreendidas nos Carvalhos ao I..
43) Os Srs. Inspectores que prestaram declarações, e que procederam às
diligências de vigilância iniciada no Porto, em Lisboa e, posteriormente, no
mesmo dia, procederam à apreensão na portagem dos Carvalhos, afirmaram não ter
observado qualquer encontro do arguido recorrente com o alegado vendedor das
notas, o arguido C., nem com qualquer outra pessoa que não fosse o arguido E., a
arguida F. e o I..
44) Ainda segundo as regras da experiência, a acrescer o mistério que envolveu
toda a posição processual do I., nos leva a concluir o inevitável, isto é,
45) A atribuir-se a posse e propriedade das notas a alguém, terá que o ser ao
dono da viatura onde elas se encontravam e onde foram apreendidas.
46) O crime de aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação exige um
dolo específico - a intenção de o agente pôr em circulação, por qualquer meio,
incluindo a exposição à venda, as notas.
47) Não foi produzida qualquer prova que permita entender como provada quanto
ao arguido recorrente - essa intenção, o que acarreta a inexistência do elemento
específico do dolo, assim se não tendo preenchido o imputado tipo legal.
48) Aliás, os factos não provados nos itens 91, 93, 95, 101, permitem concluir
ter havido erro notório na apreciação da prova, pois como conciliar a prova da
intenção da venda constante nos factos provados 10, com os factos não provados e
com a circunstância de não se ter determinado quem era possuidor das notas
apreendidas?
49) Violou-se assim o disposto no Artº 266° do C. Penal, que a ser
correctamente subsumido nos factos devidamente provados, não teria aplicação no
caso em apreço.
Assim, e reapreciada que seja a matéria de facto que foi impugnada, impõe-se
que o arguido seja destinatário do princípio do 'in dubio pro reo', face à
dúvida insanável que subjaz à precariedade dos elementos de prova produzidos,
sendo em consequência absolvido do imputado crime de aquisição de moeda falsa
para ser posta em circulação.
Nos termos expostos, nos de direito que doutamente serão supridos, deverá:
a) Ser anulado o julgamento com a sua consequente repetição;
b) Ser declarado nulo o julgamento e o correspondente acórdão no que ao arguido
recorrente diz respeito;
c) Ser declarada inválida a prova constante das transcrições das escutas
telefónicas nos termos do disposto no n.º 1 do Artº 355.º do C. P. Penal.
d) Ser declarado nulo o acórdão em crise nos termos da al. b) do Artº 379.º do
C. P. Penal.
Se assim se não entender, o que se admite por mera hipótese de raciocínio, e se
requer por dever de patrocínio,
e) deverá ser revogado o acórdão condenatório e substituído por outro em que se
absolva o arguido do imputado crime por insuficiência de prova, porque errado o
julgamento da matéria de facto em 1ª instância, ou
f) deverá ser revogado o acórdão em crise e substituído por outro em que se
absolva o arguido por insuficiência/inexistência do elemento específico do dolo
previsto no tipo legal de crime que lhe foi imputado por requalificação jurídica
dos factos constantes da acusação.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 3 de Junho de 2004, negou
provimento ao recurso.
2. A. interpôs recurso de constitucionalidade nos seguintes termos:
1 - O douto acórdão em crise não admite recurso ordinário nos termos do disposto
nas alíneas e) e f) do n.º 1 do art.º 400.º do C. P. Penal.
Assim.
2 - O recurso para o Tribunal Constitucional é admissível, o arguido recorrente
tem para tal legitimidade e está em tempo - disposições conjugadas do n.º 2 do
art.º 70, al. b) do n.º 1 e n.º 2 do art.º 72.º e art.º 75.º, todos da Lei do
Tribunal Constitucional - Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro, com as alterações
sucessivamente introduzidas pelas Leis n.ºs 143/85 de 26 de Novembro, Lei n.º
85/89 de 7 de Setembro, Lei n.º 88/95 de 1 de Setembro e pela Lei n.º 13-Al98 de
26 de Fevereiro.
3 - O recurso tem ainda efeito suspensivo nos termos do disposto no art.º 78.º,
n.ºs 1 e 4 da referida Lei do Tribunal Constitucional.
Do cumprimento do ónus estabelecido nos n.ºs 1 e 2 do art.º 75.º da mesma Lei.
4 - O presente recurso é interposto ao abrigo da al. b) do art.º 70.º da Lei do
Tribunal Constitucional, incidindo a apreciação sobre:
I - A inconstitucionalidade da interpretação dada no acórdão em crise às normas
dos art.ºs 412.º/4, parte final em conjugação com os art.ºs 99.º/2, 101.º/2 e
363.º, todos do C. P. Penal, no sentido que na acta da audiência de julgamento
não é necessário constar a identificação dos depoentes e a referência aos
depoimentos gravados e respectiva localização nos suportes magnéticos ou
audio/video, assim como a transcrição desses depoimentos, tendo sido considerada
inconstitucional esta interpretação na motivação e conclusões do recurso
apresentada no Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, por violação do
princípio da garantia de um duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto
constante no art.º 31.º/1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.
II - A inconstitucionalidade da interpretação dada no acórdão de 1.ª instância.
Confirmada no acórdão ora em crise - às normas dos art.ºs 75.º e 76.º do C.
Penal e 127.º do C. P. Penal, no sentido de que a condenação pela agravante
reincidência é possível com base na fundamentação invocada, isto é, unicamente
no certificado do registo criminal do arguido e num raciocínio presuntivo
retirado das regras da experiência, relativamente à ineficácia das anteriores
sanções criminais, tendo sido considerada inconstitucional tal interpretação na
motivação e conclusões do recurso apresentado no Venerando Tribunal da Relação
de Lisboa, por violação dos princípios da presunção de inocência, do acusatório
e do contraditório ínsitos no art.º 32.º/2 e 5 da Constituição da República
Portuguesa.
Cumpre apreciar.
3. Sendo o presente recurso interposto ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea
b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, é
necessário, para que se possa tomar conhecimento do seu objecto, que a questão
de constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
O Tribunal Constitucional tem entendido este requisito num sentido funcional. De
acordo com tal entendimento, uma questão de constitucionalidade normativa só se
pode considerar suscitada de modo processualmente adequado quando o recorrente
identifica a norma que considera inconstitucional, indica o princípio ou a norma
constitucional que considera violados e apresenta uma fundamentação, ainda que
sucinta, da inconstitucionalidade arguida. Não se considera assim suscitada uma
questão de constitucionalidade normativa quando o recorrente se limita a
afirmar, em abstracto, que uma dada interpretação é inconstitucional, sem
indicar a norma que enferma desse vício, ou quando imputa a
inconstitucionalidade a uma decisão ou a um acto administrativo.
Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem igualmente entendido que a questão
de constitucionalidade tem de ser suscitada antes da prolação da decisão
recorrida, de modo a permitir ao juiz a quo pronunciar-se sobre ela. Não se
considera assim suscitada durante o processo a questão de constitucionalidade
normativa invocada somente no requerimento de aclaração, na arguição de nulidade
ou no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade (cf., entre
muitos outros, o Acórdão nº 155/95, D.R., II Série, de 20 de Junho de 1995).
Nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o recorrente
afirma que não fazer constar da acta de julgamento a transcrição da prova
produzida e a condenação como reincidente com fundamento nas certidões do
registo civil viola vários preceitos constitucionais e infraconstitucionais.
Seguidamente, afirma que a interpretação correcta dos preceitos indicados
levaria a fazer constar da acta de julgamento a transcrição integral da prova e
a não condená-lo como reincidente.
Ora, através desta linha argumentativa, o recorrente somente impugna a decisão,
não identificando em momento algum uma norma ou dimensão normativa que
considerasse inconstitucional. Na perspectiva do recorrente, é inconstitucional
a actuação de não fazer constar da acta de julgamento a transcrição integral da
prova assim como condená-lo como reincidente, mas discute tal problema no âmbito
da correcta aplicação do Direito, invocando a interpretação errada de certas
normas, e não uma qualquer contradição entre aquelas normas ou critérios
normativos delas emanados e a Constituição.
De resto, o tribunal a quo não apreciou qualquer questão de constitucionalidade
normativa, dado perante si não ter sido suscitada uma questão dessa natureza
(cfr. fls. 115 e 116 e 122 a 124).
Não se verifica, assim, o pressuposto processual do recurso interposto,
consistente na suscitação durante o processo da questão de constitucionalidade
normativa, pelo que não se tomará conhecimento do objecto do presente recurso
[artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional].
4. Em face do exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do presente
recurso.
O recorrente vem agora reclamar nos seguintes termos:
A., recorrente nos autos em referência em que é recorrido o MºPº e em crise o
douto acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, notificado que foi da
decisão sumária que lhe nega o conhecimento do objecto do recurso, e com ela não
se podendo conformar , vem reclamar para a conferência ao abrigo do disposto no
art.º 78.º-A/3 da Lei do Tribunal Constitucional - com a redacção que lhe foi
introduzi da pela Lei n.º l3-A/98 de 26 de Fevereiro.
Ex.mo Sr. Presidente do Tribunal Constitucional
Excelência
Entendeu a M.ª Sr.ª Juíza Conselheira Relatora no processo em apreço determinar
não conhecer do mérito do mesmo, porquanto – aqui referimos os fundamentos em
síntese - as arguidas questões de constitucionalidade não foram suscitadas na
pendência do processo - pelo menos com a dimensão e alcance exigíveis para que
dessas questões se possa conhecer - e que, mesmo que assim tivesse procedido o
recorrente, a tal obstava a circunstância de o tribunal 'à quo' não ter
apreciado qualquer questão de constitucionalidade, dado perante si não ter sido
suscitada uma questão dessa natureza.
Sem prejuízo da incomensurável consideração que nos merece a Ex.ma Conselheira
Relatora, assim como todos os Srs. Juízes que compõem esse mais alto Tribunal,
ousamos discordar da sua douta decisão, a qual peca - repete-se, sempre na nossa
humilde opinião - por uma leitura das peças processuais em análise efectuada de
uma forma algo precipitada.
Quanto à primeira questão:
Nas alegações e conclusões do recurso do acórdão de 1.ª instância interposto
para o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa - o recorrente mencionou
expressamente que o acórdão condenatório havia violado determinadas disposições
da Constituição da República e princípios nela expressamente consignados;
Designadamente, invocou o recorrente a inexistência de elementos na acta da
audiência de discussão e julgamento que permitissem o recurso sobre o julgamento
da matéria de facto que o Tribunal de 1.ª instância efectuou. Sobre tal matéria
se refere o recorrente - de uma forma exaustiva - nas alegações ínsitas nos
itens 6 a 25 e nas suas conclusões I a XVI. Refere expressamente a violação do
art.º 32.º/1 da Constituição - por referência à violação do consagrado princípio
que assegura todas as garantias de defesa, e de recurso - mais referindo, no
item 14 das suas alegações, determinados acórdãos do Tribunal Constitucional, do
STJ e das Relações em suporte da tese que defende.
Invocou ainda de forma exaustiva - itens 51 a 60 das suas alegações e XXXI a
XXXVIII das suas conclusões - a violação do art.º 32.º/2 da Constituição da
República por referência à violação do princípio da presunção de inocência ali
ínsito.
Referiu no item 57 das alegações vasta jurisprudência do STJ sustentando a sua
tese.
Esta - em síntese - radica na impossibilidade de operar o mecanismo da
reincidência com base na fundamentação expressa no acórdão ali em crise - o de
1.ª instância. Tal fundamentação tem por base unicamente o CRC do arguido e
raciocínio presuntivo, retirado das regras da experiência, relativamente à
ineficácia das referidas sanções criminais. Cfr. Acórdão condenatório de 1.ª
instância.
Data Vénia, não nos parece haver dúvidas que nas alegações e conclusões do
recurso interposto perante o Tribunal da Relação de Lisboa, foram suscitadas
normas e princípios constitucionais violados pelo acórdão de 1.ª instância,
tendo-se indicado as normas violadas e os princípios que lhes estão subjacentes.
De igual forma se estabeleceu - em concreto - uma contradição entre os critérios
normativos emanados da Constituição e os critérios interpretativos utilizados
pela 1.ª instância com referência às normas subsumidas aos factos.
Quanto à segunda questão
Se o Tribunal da Relação não se pronunciou sobre questões de
inconstitucionalidade normativa, não o foi certamente por tais questões lhe não
terem sido suscitadas - e repete-se agora o referido no antecedente.
Na verdade, se tivermos em consideração as motivações e conclusões do recurso
interposto do acórdão de 1.ª instância, e o acórdão da Relação de Lisboa que
confirmou tal acórdão, ver-se-á que aquela Relação, de facto, não se pronunciou
sobre questões de inconstitucionalidade.
Mas tal omissão não decorre do facto dessas questões não terem sido suscitadas -
porque o foram - mas simplesmente porque houve omissão de pronúncia, a qual, se
possível processualmente, seria motivo para a respectiva arguição de nulidade
perante o Supremo Tribunal de Justiça. Perante essa impossibilidade - art.º
400.º/1 alíneas e) e f) do C.P.Penal - não restava ao recorrente outra
alternativa senão suscitar a intervenção desse mais alto Tribunal, a fim de
sindicar as inconstitucionalidades normativas que se arguiram.
Face ao exposto, entende o recorrente que a M.ª Conselheira Relatora do presente
processo não deveria ter negado o conhecimento do mérito das questões
levantadas, podendo, quando muito, e face à omissão de pronuncia da Relação de
Lisboa, mandar baixar o processo àquele Venerando Tribunal para que ali fossem
conhecidas as questões de constitucionalidade normativa suscitadas. Art.º 78-B/1
in fine da Lei do Tribunal Constitucional.
Nos termos do que antecede, nos demais suprido pela superior conferência, deverá
ser admitido o presente recurso com vista à apreciação concreta das
inconstitucionalidades normativas suscitadas perante o Tribunal da Relação de
Lisboa, assim prosseguindo o recurso os ulteriores termos. Se assim se não
entender, deverá ser ordenado o reenvio do processo para a Relação de Lisboa, a
fim de ali serem conhecidas e objecto de pronúncia as questões de
inconstitucionalidade suscitadas na motivação e conclusões do recurso interposto
do acórdão condenatório de 1.ª instância.
O Ministério Público pronunciou-se do seguinte modo:
1°
A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2°
Na verdade, o reclamante não suscitou, durante o processo e em termos
processualmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa,
idónea para servir de base ao recurso interposto para este Tribunal, com base na
alínea b) do n° 1 do artigo 70° da Lei n° 28/82.
Cumpre apreciar.
2. Na Decisão Sumária reclamada sustentou-se e demonstrou-se que o reclamante
não suscitou durante o processo qualquer questão de constitucionalidade
normativa.
Na presente reclamação, o reclamante afirma que foi suscitada uma questão de
constitucionalidade.
No entanto, e mais uma vez, apenas refere que suscitou a inconstitucionalidade
do “acórdão condenatório”. Nunca suscitou uma questão de constitucionalidade
reportada a uma norma jurídica (como se demonstrou na Decisão Sumária
impugnada). De resto, na presente reclamação também não é indicada a norma que o
recorrente pretende ver apreciada. Mais uma vez o reclamante apenas invoca a
inconstitucionalidade da decisão.
É, pois, manifesta a improcedência da presente reclamação.
3. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente
reclamação, confirmando consequentemente a Decisão Sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 27 de Abril de 2005
Maria Fernanda Palma
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos