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Processo n.º 1035/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1.Por acórdão de 29 de Setembro de 2004, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu negar provimento ao recurso interposto por A. do despacho proferido pelo Juiz de Instrução Criminal, junto do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, a 19 de Junho de 2004, que “não declarou a nulidade da situação de prisão atípica da arguida”, bem como do despacho que, nessa mesma data, determinou a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, por indiciarem os autos a prática, em co-autoria, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e a existência de perigo de fuga e de continuação da actividade criminosa. Consequentemente, foi mantido o despacho recorrido. Pode ler-se no referido aresto:
«[...]
2.2 – O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na respectiva motivação, nos termos preceituados nos art.ºs 403.°, n.º 1, e 412.°, n.º 1, ambos do C.P.P., sem embargo do conhecimento doutras questões que deva[m] ser conhecida[s] oficiosamente. São as conclusões que irão habilitar o tribunal superior a conhecer dos motivos que levam o recorrente a discordar da decisão recorrida, quer no campo dos factos quer no plano do direito. Ora, as conclusões destinam-se a resumir essas razões que servem de fundamento ao pedido, não podendo confundir-se com o próprio pedido pois destinam-se a permitir que o tribunal possa conhecer, de forma imediata e resumida, qual o
âmbito do recurso e os seus fundamentos. E, sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recurso (art.º
412.º, n.º 1, do CPP), às quais o tribunal se deve restringir (AC. STJ de
9.12.98, BMJ, 482.º, 68), não basta que na motivação se indique, de forma genérica, a pretensão do recorrente pois a lei impõe a indicação especificada de fundamentos do recurso, nas conclusões, para que o tribunal conheça, com precisão, as razões da discordância em relação à decisão recorrida. Essa definição compete exclusivamente ao recorrente e tem a finalidade útil e garantística de permitir que não existam dúvidas de interpretação acerca dos motivos que levam o recorrente a impugnar a decisão, o que poderia acontecer perante a mera leitura das alegações, por natureza mais desenvolvidas definindo-se claramente quais os fundamentos de facto e/ou de direito, já que é através das conclusões que se conhece o objecto do recurso. Neste sentido se pronunciaram os Acs. do STJ de 21.4.93, 19.4.94, 9.11.94, C.J.-STJ, tomos 2.º e 3.º dos anos respectivos, p. 206, 189, 245. Como se viu, a lei exige conclusões em que o recorrente sintetize os fundamentos e diga o que pretenda que o juiz decida, certamente porque são elas que delimitam o objecto do recurso. Não pode o tribunal seleccionar as questões segundo o seu livre arbítrio nem procurar encontrar no meio das alegações, por vezes extensas e pouco inteligíveis, o que lhe pareça ser uma conclusão. As conclusões nada têm de inútil ou de meramente formal. Constituem, por natureza e definição, a forma de indicação explícita e clara da fundamentação das questões equacionadas pelo recorrente e destinam-se, à luz da cooperação devida pelas partes, a clarificar o debate quer para exercício do contraditório, quer para enquadramento da decisão.
2.3 – O objecto do recurso está limitado, portanto, aos fundamentos da aplicação da prisão preventiva vertidos no despacho recorrido. Sendo o objecto de um recurso penal delimitado pelas conclusões da respectiva motivação - art.ºs
403.°, n.º 1, e 412.°, n.º 1, do Cód. Proc. Penal -, no caso dos autos as questões que se colocam à apreciação do Tribunal resumem-se a saber: se a interpretação dos artigos 141.º e 254.° do CPP, revelada na decisão recorrida, é inconstitucional, por violação dos artigos 27.° e 28.°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa; se estamos perante a inexistência ou a nulidade insanável da detenção da arguida, do seu interrogatório judicial e de todos os seus actos subsequentes, anulando-se todos esses actos, por incumprimento das finalidades da detenção da arguida e do seu interrogatório judicial, previstas nos artigos 141.° e 254.° do CPP, bem como, no artigo 28.°, n.º 1, da Constituição Portuguesa; se estão verificados os indícios suficientemente fortes da prática pela arguida do aludido crime, mas os factos não têm a gravidade necessária à determinação da prisão preventiva; se há insuficiente indiciação do perigo de continuação da actividade criminosa e perigo de fuga; se não se verificam nenhum dos pressupostos de facto e de direito determinantes da prisão preventiva.
2.4 – Análise do objecto do recurso e das questões suscitadas pelo recorrente. Vejamos! A) – Questões referentes à inconstitucionalidade, inexistência ou nulidade invocadas. Em face do conteúdo da motivação e respectivas conclusões de recurso, a questão, fulcral, que sobre esta matéria se coloca, é a de saber se ao Mm.º Juiz de Instrução era permitido validar a detenção de A. e impor-lhe uma medida de coacção, já depois de ultrapassado o prazo de 48 horas sobre essa mesma detenção, não obstante a apresentação da detida e o início do interrogatório judicial terem ocorrido dentro do aludido prazo. Analisemos a factualidade já discriminada: Cerca das 23h30m, do dia 14 de Junho de 2004, nas bombas de combustível de Almodôvar, no sentido Sul/Norte, elementos da PSP interceptaram os arguidos A., B., C., D. e E., quando estes regressavam a Lisboa, vindos do sul de Espanha, transportando cerca de 86 kg. de haxixe. Depois, já no dia 15 de Junho de 2004, a partir das 07h00m, foram efectuadas buscas e apreensões que determinaram a detenção de outros indivíduos igualmente envolvidos no tráfico de estupefacientes em apreço. No dia 16 de Junho de 2004, todos os arguidos (33, no total) foram apresentados ao Mmo. Juiz de Instrução Criminal, que pelas 15h50m, desse mesmo dia, proferiu despacho determinando a imediata realização de interrogatório, nos termos do art.º 141.º, do CPP. O interrogatório dos arguidos teve início às 16h15m, do dia 16 de Junho de 2004. Entre as 16h15m e as 19h00m, do dia 16 de Junho de 2004, todos os arguidos (33) foram interrogados a respeito da sua identidade e dos seus antecedentes criminais. Os arguidos e os respectivos mandatários e defensores foram sendo sucessivamente informados que posteriormente seriam interrogados a respeito dos factos que lhes eram imputados, dado o elevado número de arguidos detidos no âmbito do mesmo processo. A arguida A. foi confrontada com os factos que lhe eram imputados pelas 19h00m, do dia 16 de Junho de 2004. O seu interrogatório terminou às 20h30m, do mesmo dia 16 (e não na madrugada do dia 17 de Junho, como refere). De seguida, foram interrogados os demais arguidos, sendo que o último interrogatório terminou pelas 18h38m, do dia 18 de Junho de 2004. Seguiu-se um intervalo, tendo a diligência sido reiniciada pelas 23h15m, do dia
18 de Junho de 2004. Nessa altura, constatou-se que o defensor que havia sido nomeado à arguida F. não se encontrava presente. Assim, o Mm.º Juiz de Instrução nomeou outro defensor à arguida F., em substituição do defensor anteriormente nomeado. Logo depois, o Mandatário da arguida A. formulou requerimento arguindo a nulidade insanável do interrogatório a que tinha sido sujeita e a inconstitucionalidade da interpretação dada ao art.º 141.º, n.º 1, do CPP, solicitando, que, consequentemente, se determinasse a sua imediata libertação. Tal requerimento foi indeferido, julgando-se improcedente a invocada nulidade, pelos fundamentos constantes do despacho supra enunciado. A arguida A. não se conformou com tal indeferimento, pelo que interpôs o presente recurso.
É indiscutível que a pessoa detida deve ser apresentada a um magistrado no prazo máximo de 48 horas a contar da data da sua detenção, nos termos preceituados nos art.ºs 28.º da CRP, e 141.º e 254.º do C.P.P.. Contudo, dessa obrigação não decorre, directa e necessariamente, o direito da pessoa detida ser ouvida num determinado prazo. Na verdade, o Código de Processo Penal e a Constituição da República vigentes não referem expressamente um prazo dentro do qual deverá ocorrer o interrogatório do arguido detido e ser proferida decisão sobre a aplicação de medida de coacção, o que facilmente se compreende já que a duração dessa tarefa dependerá forçosamente do caso concreto, não se podendo deixar de ter em conta os diversos factores que, caso a caso, condicionam a celeridade da prolação fundamentada desse mesmo despacho, designadamente, o tipo e gravidade dos ilícitos praticados, a complexidade do caso, o número de arguidos envolvidos, etc... No mesmo sentido, pronunciou-se o acórdão do Tribunal Constitucional, de
2003/11/19, publicado no DR, II série, de 2004/01/30, mencionado no despacho recorrido, que refere: «se o prazo de quarenta e oito horas se reportasse ao momento em que é proferido despacho de validação da prisão, após o interrogatório, teríamos de admitir que a legalidade da detenção dependeria em boa medida não só da actuação policial e da prontidão com que o detido havia sido entregue em tribunal como ainda do próprio arguido e das opões que ele entendesse tomar no primeiro interrogatório, designadamente quanto ao tempo despendido nas respostas da sua defesa. Isto é a legalidade da detenção ficaria dependente de acto do próprio interessado, o que seria incompreensível atentos os riscos que a solução acarretaria não só para a utilidade do interrogatório como para os direitos de natureza garantística que a lei confere aos arguidos neste momento processual. Além disso, a finalidade da intervenção do juiz de instrução neste primeiro interrogatório ultrapassa a apreciação da legalidade da detenção efectuada e a consideração das respectivas «causas» no momento em que ela se efectivou, pois reside também na aplicação de uma medida de coacção, caso em que a decisão tem a ver com um juízo de prognose sobre a necessidade da prisão preventiva e, logicamente com a dinâmica da instrução.» Portanto, entendemos que o art.º 141.º, n.º 1, do CPP, ao fixar o prazo de 48 horas, pretende, tão-só, garantir que um arguido não possa permanecer detido, por tempo superior àquele, sem que se tenha iniciado o interrogatório judicial, podendo a decisão judicial subsequente, relativamente às medidas de coacção aplicáveis, ser proferida já depois de esgotado esse prazo, caso se justifique, o que ocorre no caso “sub judice”, dado o elevado número de arguido[s] detidos a ouvir, trinta e três, e a impossibilidade prática e temporal de todos os interrogatórios estarem findos nesse período de tempo. Concluindo, dada a circunstância de a arguida/recorrente ter sido apresentada dentro do prazo de 48 horas ao Mmo. JIC, que determinou que se procedesse a interrogatório, o que ocorreu logo de seguida, bem como, ao controlo sempre manifestado pelo Mmo. JIC sobre a situação da arguida, assim como a dos restantes trinta e dois arguidos, teremos de afirmar que os citados preceitos legais – art.ºs 141.°, n.º 1, e 254.°, alínea a), do CPP -, mostram-se interpretados e aplicados de acordo com o direito e com os princípios constitucionais, não se vislumbrando que se tenham violado quaisquer preceitos legais e constitucionais, nomeadamente, os alegados pela recorrente/arguida. Portanto, não se vislumbra a existência de qualquer inconstitucionalidade, inexistência, nulidade ou irregularidade que cumpra conhecer. B) Restantes questões relativas à medida de coacção imposta - prisão preventiva. A prisão preventiva, porque matéria respeitante à liberdade dos cidadãos, implica a definição rigorosa e clara dos pressupostos que a determinaram. O cidadão, em regra, deve ter assegurado o direito fundamental de viver em liberdade. Constitucionalmente (art.ºs 27.° e 28.° da CRP) a liberdade das pessoas só pode ser limitada pelas medidas de coacção previstas na lei e inspiradas pelos princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade, havendo fortes indícios da prática de um crime doloso punível com o máximo abstracto de pena de prisão superior a três anos (art.º 202.°, n.º 1, al. a), do CPP). Importa referir, ainda, que quando a lei - alínea a) do n.º 1 do artigo 202.° do CPPenal - “fala em fortes indícios há que ter em conta a compreensão ou abrangência exacta dessa realidade, pois que o legislador se não limitou a falar em indícios, mas em fortes indícios, o que inculca a ideia da necessidade de que a suspeita sobre a autoria ou participação no crime tenha uma base de sustentação segura. Isto é: não basta que essa suspeita assente num qualquer extracto factual, mas antes em factos de relevo que façam acreditar que eles são idóneos e bastantes para imputar ao arguido essa responsabilidade”.
À luz dos princípios expostos, importa apurar se, na situação aprecianda, a medida de coacção imposta ao recorrente - prisão preventiva - é conforme às exigências prescritas nos artigos 193.°, 202.° e 204.° do CPPenal e 27.° e 28.° da Constituição da República. Ou seja, há que indagar se existem fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos, se ocorre qualquer dos perigos enunciados no despacho sindicado e, ainda, se apenas a prisão preventiva é adequada ou suficiente e proporcional às exigências cautelares reclamadas pelo caso e à gravidade do crime e às sanções que, previsivelmente, ao recorrente poderão vir a ser aplicadas. E, mesmo assim, nem a prisão preventiva nem qualquer outra medida de coacção, à excepção do termo de identidade, poderão ser aplicadas se, em concreto, se não verificarem os requisitos alternativos fuga ou perigo de fuga, perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo, perigo em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa - art.º 204.º do CPP. No caso em apreço, já se viu que a prisão preventiva a que se sujeitou a recorrente tem por fundamentos os requisitos gerais de perigo de continuação da actividade criminosa e perigo de fuga. E, indubitavelmente, estão presentes nos autos aqueles fortes indícios, consolidados com a prolação do despacho recorrido, que considerou a arguida/recorrente, como co-autora material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21.°, n.º 1, do D.L. 15/93, de 22 de Janeiro. Esses indícios ressaltam dos diversos elementos carreados, nomeadamente, as declarações dos trinta e três arguidos prestadas em sede de primeiro interrogatório judicial, as transcrições das sessões obtidas na sequência de intercepções telefónicas, os relatórios de vigilância policial e os autos de busca e apreensão. A análise das escutas telefónicas e os relatórios de vigilâncias policiais esclarece que os arguidos se vêm dedicando ao tráfico de droga, adiantando pormenores relacionados com as qualidades e quantidades dos produtos estupefacientes transaccionados, tendo a factualidade extraída desses meio de obtenção de prova sido reforçada com o resultado das apreensões efectuadas, Os meios empregues na prática do crime de tráfico de estupefacientes fortemente indiciado, com deslocações a Marrocos e a Espanha, este último país, por parte da arguida/recorrente, a fim de adquirirem produtos estupefacientes para posterior revenda a terceiros, a que acrescem as quantias monetárias envolvidas. Assim, as medidas de coacção distintas da prisão preventiva, apesar de menos gravosas para o exercício de direitos e liberdades pessoais da arguida, segundo o regime constitucional e legal, não têm aplicabilidade prática útil, pelo que não podem prevalecer sobre a mais restritiva e aplicada, nos termos dos art.ºs
18.º, n.º 2, da Lei Fundamental, 204.º, 193.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Questão diversa daquela será a de saber se a medida aplicada, necessária e adequada à contenção dos perigos identificados, é também proporcional. Quanto a esta questão rege o critério estabelecido no citado art.º193.º, n.º 1, in fine, estabelecendo como padrão o da reacção contrafáctica que se prognostica em concreto. Ora, atenta a pena aplicável em abstracto, a tipologia de factos e os critérios estabelecidos nos art.ºs 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal, tanto na sua vertente de necessidades de prevenção geral, como especial, atenta a concreta condição do recorrente, facilmente se atinge um grau de segurança
óptimo, no sentido de que a medida de coacção imposta (e tendo também em linha de conta o tempo por que perdura) está salvaguardada de qualquer excesso ou desproporção em relação ao sancionamento previsível. O crime em causa é punível com pena de prisão de 4 a 12 anos. Como já afirmado, a prisão preventiva, por possuir carácter de excepção, só deve ser imposta, quando, no caso, forem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção, nos termos preceituados nos art.ºs 196.º a 201.º, do CPP.
É necessário, agora, definir se os elementos já carreados para os autos permitem um juízo, como o que é feito do despacho posto em crise: o de adequação, proporcionalidade e necessidade de aplicação da prisão preventiva, e com concluir, ou não, pela verificação, de qualquer omissão ou erro de direito ou em erro na avaliação dos pressupostos de facto que conduziram àquela. Neste momento, não é possível afirmar que, do teor dos elementos processuais que serviram à instrução do recurso, a prisão preventiva se perfila como a única medida de coacção adequada e proporcional à gravidade dos factos fortemente indiciados como praticados pelo recorrente e aos evidenciados, porque concretos e demonstrados, perigos de: continuação da actividade criminosa e de fuga. Vejamos! No caso em apreço, em nosso entender, a prisão preventiva é, neste momento e para já, a medida de coacção exigível e a mais apropriada, justificando-se sua aplicação, dado que os aludidos perigos estão, claramente, presentes. O simples facto de a arguida se mostrar indiciado da prática de um crime hediondo, socialmente muito reprovado pois afecta a vida de milhares de pessoas, a que corresponde pena de prisão de máximo superior a três anos, que apesar de não desencadear, automaticamente, a vontade da arguida em se furtar à actuação da justiça, pondo-se em fuga, potencia esses perigos. A lei exige que o perigo de fuga se aprecie em concreto. O Ac. RC, BMJ, 480, 553 refere: “(...) ocorrerá perigo de fuga sempre que, face
à contextualidade da situação no caso submetido à apreciação do Tribunal, seja legítimo concluir, mediante a formulação de um juízo de experiência, que ocorre um real risco de fuga ou, pelo menos, que se verifica uma forte probabilidade de aquele acontecer.”. Ora, tal como afirmado, no despacho recorrido, a facilidade, documentada nos autos, que os arguidos A. e outros demonstram ter em se deslocar para o estrangeiro, nomeadamente para Marrocos, faz com que se verifique quanto aos mesmos, em concreto, o perigo de fuga a que alude a al. a) do mencionado art.º
204.° do CPPenal.”. No que concerne à previsão da al. c) do art.º 204.º do C.P.P., é óbvio o perigo de continuação da actividade criminosa, no caso “sub judice” atenta a natureza do crime que proporciona enorme e fácil lucro aos agentes que traficam, ou, por de algum modo, intervêm na cadeia do tráfico de estupefacientes, apesar da destruição da vida e dignidade humana que acarretam. Tal como se refere no despacho recorrido: No caso em apreço, verifica-se o perigo de continuação da actividade delituosa por parte da arguida A., pese embora a existência dos alegados factores de integração sócio-económica. Tal receio resulta da natureza do próprio ilícito, sabendo-se, de experiência comum, que quem inicia tal actividade tendencialmente a continua, por força dos avultados lucros que proporciona aos seus agentes. Acresce que, como se disse, estamos perante uma actividade que se desenvolvia já há algum tempo, continuando a arguida na senda da actividade descrita até à sua detenção. É óbvio que não se justifica colocá-la em liberdade, pois que essa situação tornava mais fáceis a actuação criminosa, e, consequentemente, agravaria o perigo de continuação da actividade criminosa. Perante o actual circunstancialismo, é manifesto, em nosso entender, que se verifica, em concreto, quer o perigo de fuga e o perigo de continuação da actividade criminosa. Assim, a medida de coacção de prisão preventiva é, neste momento, a única adequada e suficiente para acautelar tais perigos.
É insuficiente a aplicação ao recorrente de uma outra das medidas de coacção legal. A medida de coacção de prestação de caução ou de obrigação de permanência na habitação, com vigilância electrónica e sujeição a determinadas obrigações, prevista no art.º 201.º, do Código Processo Penal, pelos motivos supra mencionados, atendendo aos princípios constitucionais da proporcionalidade, subsidiariedade e adequação, não são suficientes. Dado que o traficante pode prosseguir na sua actividade criminosa mesmo que se encontre fisicamente circunscrito às paredes da sua casa, a prisão preventiva afigura-se a única medida de coacção capaz de assegurar o cumprimento das obrigações processuais do arguido, sendo ainda proporcional à gravidade do crime e à sanção que previsivelmente venha a ser aplicada (art.º 193.°, n.ºs 1 e 2, do C.P.P.). Nesta perspectiva, é de manter a prisão preventiva. Acresce que em qualquer fase do processo podem chegar ao conhecimento do tribunal factos que justifiquem reapreciar os pressupostos da prisão preventiva. Se os mesmos forem reveladores da inadequação da medida de coacção aplicada anteriormente, o tribunal deve rever a medida de coacção até aí imposta e aplicar a requerida pela nova situação. Em face do exposto, parece-nos, para já, tal como se entendeu, no tribunal recorrido, que a prisão preventiva mostra-se, de momento, como a medida de coacção necessária, no caso concreto, sendo, plenamente, justificada a sua imposição à arguida/recorrente. Improcede a pretensão da recorrente.»
2.Desta decisão interpôs a arguida/recorrente o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional), pretendendo ver apreciada e declarada a inconstitucionalidade dos artigos 141.º e 254.º do Código de Processo Penal,
“quando interpretados de forma a tolerar a persistência em prisão de um arguido detido que já foi ouvido em 1.º interrogatório judicial mas que ainda não viu a sua detenção validada judicialmente, nem tão-pouco ser-lhe aplicada qualquer medida de coacção”, por entender que tal interpretação viola os artigos 27.º e
28.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, devendo esse julgamento de inconstitucionalidade acarretar como consequência “a declaração de nulidade insanável de todos os actos praticados por acção e omissão pelo Mmo Juiz de Instrução, a partir da detenção da arguida, inclusivamente, devendo a mesma ser restituída à liberdade”. Admitido o recurso no Tribunal Constitucional, foi, na sequência da apresentação de pedido de escusa pela Ex.mª Conselheira Relatora a quem o mesmo havia sido distribuído, proferido o acórdão n.º 705/2004, em 17 de Novembro de 2004, pelo qual esse pedido foi deferido. Após redistribuição, a recorrente foi notificada para alegar, concluindo nos seguintes termos:
«1. A recorrente não se conforma com o decurso de dois dias durante os quais permaneceu presa, sem que a sua prisão se reconduzisse a qualquer uma das formas previstas e toleradas no artigo 27.º da Lei Fundamental, bem como com o período temporal de cinco dias durante os quais a sua detenção não obteve validação judicial.
2. Tal como se refere na decisão recorrida, a ora recorrente foi detida pelas autoridades policiais, à ordem dos presentes autos, na noite do dia 14 de Junho de 2004 e, já no final da tarde de 16 de Junho de 2004, cerca das 19 horas, seria sujeita a interrogatório judicial.
3. Em clara violação do comando constitucional plasmado nos artigos 27.°, n.° 1 e n.° 3, e 28.º, n.º 1, da Lei Fundamental, o Juiz de Instrução Criminal que a ouviu, findo esse acto, não se pronunciou sobre a sua detenção, não a tendo validado, nem tão-pouco procedeu à aplicação de qualquer medida de coacção à recorrente.
4. Não obstante, findo esse interrogatório, ordenou o regresso da arguida aos calabouços do Governo Civil de Lisboa, local onde a mesma permaneceria presa até ao dia 18 de Junho.
5. Nessa data, a arguida regressou ao Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa e só na madrugada do dia 19 de Junho veria a sua detenção validada, bem como ser-lhe aplicada a medida de coacção de prisão preventiva - cfr. Despacho que ordenou a aplicação da prisão preventiva à arguida.
6. Ou seja, entre a conclusão do seu interrogatório judicial, até às 04.55 do dia 19 de Junho, a arguida permaneceu numa situação de prisão atípica e claramente ilegítima que não está sequer prevista no nosso ordenamento jurídico.
7. É exactamente contra esse lapso de tempo durante o qual permaneceu numa situação de cárcere que, em sua opinião, é mesmo equiparável ao sequestro previsto e punível pelo artigo 158.º do nosso Código Penal, que a recorrente se insurge, considerando-a reveladora duma interpretação dos artigos 141.º, n.º 1, e 254.º do CPP que afronta, de forma intolerável, os artigos 27.º, n.ºs 1 e 3, e
28.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
8. Mais, entre o dia 14 de Junho de 2004 até à madrugada do dia 19 do mesmo mês
- período superior a quatro dias! - a arguida não viu a sua detenção validada por um juiz, quando, em conformidade com o artigo 28.º da Constituição, a finalidade da detenção se esgota com a realização do interrogatório judicial;
9. A recorrente não pretende reagir contra qualquer eventual atraso na sua apresentação ao Juiz de Instrução Criminal, tanto mais que a mesma teve lugar dentro das quarenta e oito horas posteriores à sua detenção, nem tão-pouco contra a duração do seu interrogatório;
10. Mas sim contra um lapso de tempo significativo - dois dias - durante o qual permaneceu presa, sem que a sua prisão se reconduzisse a qualquer uma das formas previstas e toleradas no artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa, bem como contra os cinco dias durante os quais a sua detenção não foi validada judicialmente, apesar da realização de interrogatório por Juiz de Instrução.
11. O artigo 27.º da nossa Constituição consagra e tutela a liberdade como um direito fundamental, prevendo, de forma taxativa, nos seus números 2 e 3, as restrições que tal bem essencial pode sofrer.
12. Tais excepções reportam-se, nomeadamente, ao cumprimento de uma pena ou medida de segurança, à detenção em flagrante delito ou à prisão preventiva, não constando, entre o leque das restrições previstas, a prisão de um arguido, já ouvido em primeiro interrogatório judicial por juiz, mas cuja detenção não foi validada e que não foi sujeito à medida de coacção de prisão preventiva.
13. O presente caso configura, assim, uma situação insustentável, em face das nossas normas processuais penais e constitucionais: o decurso de cinco dias, sem a validação de uma detenção, apesar da realização de interrogatório judicial, findas as 48 horas iniciais de detenção para esse efeito; e o decurso de dois dias em que uma arguida permanece presa, sem estar a aguardar o seu primeiro interrogatório judicial (já realizado) e sem lhe ter sido aplicada a medida de coacção de prisão preventiva.
14. E não estando a prisão da recorrente nestes dois dias prevista no nosso ordenamento jurídico, uma análise conjunta dos artigos 27.º e 28.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e dos 141.º e 254.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, demonstra-nos claramente que o Mmo Juiz de Instrução Criminal que validou a detenção e aplicou a prisão preventiva à arguida, tardiamente, estava obrigado a actuar e a decidir de forma diferente, tendo violado estes normativos.
15. O artigo 141.º, n.º 1, do Código de Processo Penal impõe a obrigatoriedade de apresentação do detido ao juiz de instrução em 48 horas, para interrogatório e a alínea a) do n.° 1 do artigo 254.º do CPP, define ser essa apresentação a finalidade da detenção;
16. Tais previsões merecem consagração e melhor concretização a nível constitucional, através do artigo 28.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, na sua redacção actual (consagrada na 4ª revisão constitucional de
1997), o qual impõe que a “detenção será submetida no prazo máximo de quarenta e oito horas, a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coacção adequada.”
17. Como se disse supra, a arguida foi detida e apresentada ao juiz em 48 horas, porém, nem durante, nem na sequência desse interrogatório, viu validada a sua detenção, nem tão-pouco ser-lhe aplicada qualquer medida de coacção, apesar de ter continuado presa até ao dia 19 de Junho.
18. E, como se pode concluir pela análise do despacho através do qual, dois dias mais tarde, lhe seria aplicada a prisão preventiva, foi só nesta decisão que o Meritíssimo Juiz de Instrução validou a detenção da recorrente.
19. É, assim, flagrante, o incumprimento, por parte do Magistrado em apreço, das obrigações processuais que sobre o mesmo impendiam, na data em que ouviu a arguida recorrente e a interpretação dos artigos 141.º e 254.º do CPP violadora dos normativos constitucionais dos artigos 27.º e 28.º da Lei Fundamental que esse incumprimento revela.
20. A intervenção de um juiz no primeiro interrogatório de um arguido detido assenta em duas vertentes fundamentais: dar oportunidade ao arguido deste exercer as suas garantias de defesa (com assento no artigo 32.º da CRP), devendo ser confrontado pelo Magistrado com os factos que lhe são imputados e, se assim o desejar, prestar declarações sobre os mesmos, mas também proceder à validação judicial de uma captura que se realiza ainda sem culpa formada do arguido (esta tutelada pelo artigo 28.º, n.º 1, da CRP).
21. E estando em causa um direito fundamental como a liberdade, cuja compressão só se pode fazer nos moldes restritivos da lei (cfr. art.º 18.º, n.º 2, da CRP), impõe-se o cumprimento rigoroso do disposto no artigo 28.º, n.º 1, da CRP e igualmente no artigo 141.º do CPP, designadamente a obrigação de se libertar um arguido findo o seu interrogatório judicial, se o mesmo não houver de permanecer em prisão preventiva.
22. Por sua vez, o artigo 254.º, n.º 1, alínea a), do CPP revela a natureza acessória da detenção, cuja finalidade se esgota exactamente na apresentação do detido perante o juiz, para primeiro interrogatório judicial ou aplicação de uma medida de coacção.
23. Pelo exposto, a interpretação dos artigos 141.º e 254.º do CPP revelada na decisão recorrida, porquanto confirma a posição manifestada nos autos pelo Juiz de Instrução Criminal que não declarou a nulidade e as inconstitucionalidades suscitadas pela ora recorrente, ao considerar admissível a manutenção da detenção da arguida por um prazo superior a 48 horas, sem que tal detenção tivesse sido validada judicialmente e sem que a prisão preventiva lhe tivesse sido aplicada, apesar de já ter sido sujeita a interrogatório judicial, é claramente inconstitucional, por violação dos artigos 27.º e 28.º, n.º 1, da CRP.
24. Em consonância com estes ditames constitucionais, impunha-se que a detenção da arguida em 14 de Junho de 2004, se tivesse verificado para a sua apresentação ao juiz em 48 horas, por forma a que este a ouvisse em primeiro interrogatório mas também para que validasse a sua detenção e lhe aplicasse uma medida de coacção adequada.
25. Porém, apenas o primeiro desses comandos foi cumprido pelo Mmo Juiz de Instrução, o qual não validou a detenção da arguida, nem tão-pouco lhe aplicou a prisão preventiva, mantendo-a numa prisão administrativa não tolerada pelo nosso sistema processual penal, não estando sequer prevista no artigo 27.º da Constituição.
26. Nestes termos, deverá ser considerada inconstitucional, por violação dos artigos 27.º e 28.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação dos artigos 141.º e 254.º do CPP que tolere que um arguido seja detido, apresentado ao Juiz de Instrução para interrogatório judicial em 48 horas e que, nem no decurso desse interrogatório, nem após a sua conclusão, veja a sua detenção validada, nem tão-pouco ser-lhe aplicada uma medida de coacção, sendo o mesmo novamente entregue ao Governo Civil de Lisboa preso e mantido nessa situação processual de prisão indefinida e sem qualquer suporte legal por mais dois dias.
27. A consequência da inconstitucionalidade interpretativa aqui arguida, deverá acarretar a declaração de nulidade insanável de todos os actos praticados por acção e omissão pelo Mmo Juiz de Instrução, a partir da detenção da arguida, inclusivamente, devendo a mesma ser restituída à liberdade.» Notificado para contra-alegar, concluiu o representante do Ministério Público:
“1 – Nem a Constituição, nem a lei ordinária, definem um concreto prazo para o juiz de instrução aplicar uma medida coactiva, maxime a prisão preventiva, a um arguido que lhe foi apresentado detido e assim permanece após ter sido interrogado judicialmente.
2 – Dependerá do caso concreto, tendo em conta a sua gravidade, complexidade e o número de arguidos detidos, o tempo a dispender pela autoridade judiciária na definição das medidas coactivas.
3 – Actuando o juiz de instrução de forma célere, com controlo da situação de todos os arguidos que lhe foram apresentados detidos, não viola a Constituição uma interpretação dos artigos 141.º e 254.º, ambos do Código de Processo Penal, que determinou, no caso em apreciação, que a prisão preventiva fosse aplicada na madrugada de 19 de Junho, tendo a detenção ocorrido no fim do dia 14 do mesmo mês e a apresentação à autoridade judicial antes que decorressem 48 horas a partir da data da detenção.
4 – Termos em que não deverá proceder o presente recurso.” Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3.O presente recurso tem por objecto, nos termos do respectivo requerimento, a apreciação da constitucionalidade dos artigos 141.º e 254.º do Código de Processo Penal, “quando interpretados de forma a tolerar a persistência em prisão de um arguido detido que já foi ouvido em 1.º interrogatório judicial mas que ainda não viu a sua detenção validada judicialmente, nem tão-pouco ser-lhe aplicada qualquer medida de coacção”. No presente caso, portanto, o que está em causa não é o atraso (ou a falta de cumprimento do prazo) na apresentação da arguida ao juiz de instrução criminal, a qual teve lugar dentro das quarenta e oito horas posteriores à sua detenção. Nem está em causa a duração do interrogatório da arguida. Simplesmente, sendo o processo do qual emerge o presente recurso um processo com
33 arguidos, e tendo sido realizadas várias diligências, bem como o interrogatório de todos os arguidos, desde a detenção da arguida até ao despacho que lhe aplicou a medida de coacção de prisão preventiva, esta vem reagir contra
“o decurso de cinco dias, sem a validação de uma detenção, apesar da realização de interrogatório judicial, findas as 48 horas iniciais de detenção para esse efeito; e o decurso de dois dias em que uma arguida permanece presa, sem estar a aguardar o seu primeiro interrogatório judicial (já realizado) e sem lhe ter sido aplicada a medida de coacção de prisão preventiva” (itálicos aditados). Recordem-se os factos tal como resultam dos presente autos:
- pelas 23h 30m do dia 14 de Junho de 2004, nas bombas de combustível de Almodôvar, no sentido Sul/Norte, a arguida foi detida transportando várias dezenas de quilogramas de estupefacientes;
- já no dia 15 de Junho de 2004, a partir das 7h00m, foram efectuadas buscas e apreensões que determinaram a detenção de outras pessoas também alegadamente envolvidas nos crimes de tráfico em causa;
- no dia 16 de Junho de 2004, os 33 arguidos foram apresentados ao juiz de instrução criminal, o qual pelas 15h50m desse mesmo dia proferiu despacho determinando a imediata realização de interrogatório; o interrogatório dos arguidos teve início às 16h15m, desse dia 16 de Junho;
- entre as 16h15m e as 19h00m, do dia 16 de Junho de 2004, os 33 arguidos foram interrogados sobre a sua identidade e os seus antecedentes criminais; os arguidos e respectivos mandatários e defensores foram informados de que posteriormente seriam interrogados sobre os factos que lhes eram imputados, devido ao elevado número de arguidos detidos no mesmo processo;
- a arguida foi interrogada sobre os factos que lhe eram imputados pelas 19h00m, do dia 16 de Junho de 2004, tendo o seu interrogatório terminado às 20h30m do mesmo dia 16;
- seguidamente foram interrogados os demais arguidos, sendo que o último interrogatório terminou pelas 18h38m do dia 18 de Junho de 2004;
- depois de um intervalo, a diligência foi reiniciada pelas 23h15m do dia 18 de Junho de 2004, e, depois de nomeado um novo defensor a outra arguida, pois o anterior não estava presente, e depois de ser apresentado pelo mandatário da arguida ora recorrente um requerimento a invocar a nulidade insanável do interrogatório a que fora submetida, foi proferido, já na madrugada do dia 19 de Julho de 2004, despacho a aplicar à arguida a medida de coacção de prisão preventiva. Confrontando estes factos com a decisão recorrida e com a dimensão normativa enunciada pela recorrente, pode-se precisar esta, atendendo às circunstâncias concretas dos autos, dizendo que há que apreciar no presente recurso a constitucionalidade de uma interpretação dos artigos 141.º e 254.º, ambos do Código de Processo Penal, nos termos da qual, sendo a arguida apresentada ao juiz de instrução, para apreciação judicial da sua situação, dentro do prazo de
48 horas, pode permanecer detida até que, menos de 72 horas depois da apresentação e do seu interrogatório, termine o interrogatório de todos os (33) arguidos detidos, realizado em acto contínuo, e que seja proferida decisão a validar as detenções e a aplicar medidas de coacção a alguns dos arguidos (entre os quais a recorrente).
4.O Tribunal Constitucional não apreciou ainda a questão de constitucionalidade que se acabou de identificar, e que se prende com o enquadramento de certas práticas, não já dos órgãos de polícia criminal, mas do próprio juiz de instrução, relativas à validação da detenção, ao primeiro interrogatório judicial de arguidos detidos e à decisão sobre a aplicação de medidas de coacção. Tal questão de constitucionalidade – em que a recorrente invoca como parâmetro violado os artigos 27.º e 28.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa – prende-se com o tempo destes actos, e, mais concretamente, com a demora entre a apresentação da arguida ao juiz (e o seu interrogatório), por um lado, e a decisão judicial de aplicação de medida de coacção, por outro lado. O Tribunal Constitucional já tratou de questão próxima desta no acórdão n.º
565/2003 (publicado no Diário da República, II série, n.º 25, de 30 de Janeiro de 2004), num caso em que estava em causa que o prazo máximo de 48 horas se contasse apenas até à apresentação ao juiz, podendo o arguido ser mantido detido depois desta apresentação (embora, naturalmente, um caso com contornos diversos, desde logo por, nesse caso, apenas terem decorrido 54 horas entre a detenção do recorrente e a validação da detenção, cerca de 6 horas após a sua apresentação em tribunal). Desde logo por estar também em causa o lapso de tempo decorrido até à decisão do juiz de instrução, importa recordar o que se disse nesse aresto:
«Ao questionar a conformidade constitucional das normas do Código de Processo Penal nela aplicadas, o Recorrente pretende acima de tudo sindicar uma interpretação segundo a qual o prazo de 48 horas referido quer na lei de processo, quer na própria Constituição, se conta até à simples apresentação do detido no tribunal e a sua entrega à custódia judicial. Além disso, será também inconstitucional uma interpretação dos questionados preceitos do Código de Processo Penal que permita ao juiz, após este prazo, manter detido o arguido, interrogá-lo nessa situação e determinar-lhe a medida de coacção de prisão preventiva.
2.5. A primeira destas questões deverá ser resolvida mediante a interpretação do próprio preceito constitucional cujo parâmetro é aqui invocado. O citado n. 1 do artigo 28.º da Constituição tem, actualmente, a seguinte redacção: A detenção será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas, a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coacção adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a determinaram e comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidade de defesa. Esta redacção resultou de alteração introduzida no preceito pela quarta revisão constitucional. Antes disso, o preceito proclamava o seguinte: A prisão sem culpa formada será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas, a decisão judicial de validação ou manutenção, devendo o juiz conhecer das causas da detenção e comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidade de defesa. Tal redacção podia razoavelmente suscitar uma dúvida de interpretação sobre se a decisão de validação, após o interrogatório, deveria ser proferida ainda dentro do referido prazo de 48 horas. Reflecte essa hesitação o seguinte comentário de Gomes CANOTILHO e Vital MOREIRA in CRP Anotada (3.ª ed., Coimbra, 1995). A prisão preventiva sem culpa formada, seja a efectuada em flagrante delito, seja a ordenada em caso de fortes indícios de grave crime doloso, carece sempre de validação ou de confirmação pelo juiz em curto prazo de tempo (parecendo que esse prazo de 48 horas vale para a apresentação de detido ao juiz e também para a decisão deste), de modo a limitar ao máximo a privação do direito à liberdade por via administrativa (especialmente, policial). É ao juiz que compete decidir da pertinência e necessidade da prisão, confirmando-a, substituindo-a por outra medida ou fazendo libertar o detido. Certo, porém, é que actualmente o preceito tem uma redacção diferente. A alteração deve-se, sem dúvida, à adequação a uma nova terminologia constitucional, mas apresenta ainda uma alteração de natureza gramatical: enquanto que anteriormente se dizia que a detenção deveria ser submetida no prazo máximo de 48 horas “a decisão judicial de validação ou manutenção...”, actualmente diz-se que a detenção deverá ser, no mesmo prazo, sujeita “a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coacção adequada,...”. Ora deve aceitar-se que o que o legislador constitucional pretende, no aludido preceito, é limitar a privação do direito à liberdade por via administrativa, especialmente a policial, como reconhecem os citados Anotadores, ou seja, o que o parâmetro constitucional impõe é um prazo máximo de prisão administrativa, que não poderá exceder as 48 horas. Tal entendimento sufraga-se ainda no disposto no artigo 5.,º §1, c), e §3, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e na doutrina que sobre ele se construiu. A alínea c) do §1 admite a privação de liberdade, sem condenação, “a fim” de o detido “comparecer perante a autoridade judicial competente”; o §3 estabelece: Qualquer pessoa presa ou detida nas condições previstas no parágrafo 1, alínea c) do presente artigo deve ser apresentada imediatamente a um juiz ou outro magistrado habilitado pela lei para exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada num prazo razoável ou posta em liberdade durante o processo. A colocação em liberdade pode estar condicionada a uma garantia que assegure a comparência do interessado em juízo. Em anotação, escreveu Ireneu Cabral Barreto (A CEDH anotada, 2.ª ed., Coimbra,
1999): “Pretende assim reduzir-se, tanto quanto possível, o risco de arbítrio e assegurar a preeminência do direito, um dos princípios fundamentais de uma sociedade democrática que implica um controlo judicial das ofensas ao direito individual e à liberdade”. Mais à frente: “Em primeiro lugar, a pessoa presa deve ser apresentada imediatamente (aussitôt na versão francesa, promptly na versão inglesa) a um juiz”. “Os órgãos da Convenção, confrontados com as divergências das legislações internas dos Estados membros sobre o prazo em que uma pessoa presa deve ser apresentada a um magistrado, não conseguiram definir um critério uniforme e preciso, limitando-se a afirmar que esta celeridade deve ser apreciada in concreto segundo as circunstâncias da causa, embora se possa admitir, no limite, alguns dias”. “A obrigação de apresentar uma pessoa a um magistrado é incondicional e automática, sem que isso implique o direito de ser ouvida num determinado prazo”. Equacionado nestes moldes o problema, certo é que a entrega do cidadão detido aos serviços judiciais significa a cessação de uma situação legal de poder administrativo sobre a pessoa privada de liberdade, mostrando-se, por isso, cumprida a garantia que a norma constitucional pretende consagrar. Outras razões de natureza prática, mas que se ligam com direitos processualmente conferidos aos suspeitos da prática de crime, também apontam para este sentido interpretativo. Com efeito, se o prazo de 48 horas se reportasse ao momento em que é proferido despacho de validação da prisão, após o interrogatório, teríamos que admitir que a legalidade da prisão dependeria em boa medida não só da actuação policial e da prontidão com que o detido havia sido entregue em tribunal, como ainda do próprio arguido e das opções que ele entendesse tomar neste primeiro interrogatório, designadamente quanto ao tempo gasto nas respostas e na exposição da sua defesa. Isto é, a legalidade da prisão ficaria dependente de acto do próprio interessado, o que seria incompreensível, atentos os riscos que a solução acarretaria não só para a utilidade do interrogatório, como para os direitos de natureza garantística que a lei confere aos próprios arguidos nesse momento processual. Além disso, a finalidade da intervenção do juiz de instrução, neste primeiro interrogatório, ultrapassa a apreciação da legalidade da detenção efectuada e a consideração das respectivas “causas” no momento em que ela se efectivou, pois reside, também, na aplicação de uma medida de coacção, caso em que a decisão tem a ver com um juízo de prognose sobre a necessidade da prisão preventiva e, logicamente, com a dinâmica da instrução. Pode assim aceitar-se que o n.º 1 do artigo 28.º da Constituição visa impor um prazo máximo de detenção administrativa, designadamente policial, e que, por força desta norma, o detido deverá ser nesse prazo entregue à custódia de um juiz; o que, em concreto, se cumpriu com a sua apresentação no Tribunal de Oeiras e com o facto, comprovado, de o Juiz ter despachado no processo ainda dentro do aludido prazo. Em suma, deve concluir-se que não viola a Constituição a interpretação perfilhada na decisão recorrida dos artigos 141.º, n.º 1, e 254.º, alínea a), do Código de Processo Penal.
2.6. Outra questão reside em saber se não ofende a garantia constitucional de liberdade individual prevista no n.º 1 do artigo 27.º da CRP a interpretação dos aludidos preceitos que permite ao juiz validar a detenção do recorrente, após interrogatório, 54 horas após a sua detenção e cerca de 6 horas após a sua apresentação em tribunal. Este é, na verdade, um outro problema, pois nem os questionados preceitos do Código de Processo Penal nem a Constituição referem expressamente um prazo certo dentro do qual deverá ocorrer o interrogatório do detido e ser proferida decisão sobre a aplicação de medida de coacção. Mas há uma clara indicação quanto a este prazo no disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 103.º do Código de Processo Penal: a diligência deverá ocorrer no mais breve espaço de tempo. É também este o sentido que se deve recolher do já aludido comando constitucional previsto nos artigos 18.º, n.º 2, e 27.º, n.º 1, da CRP. Compreende-se, por isso, que não seja concretizado um prazo determinado para o juiz ouvir e julgar da validade da detenção, porque a duração dessa tarefa dependerá do caso concreto. Inúmeros factores podem, na verdade, condicionar a celeridade da actividade do juiz, como, por exemplo, o tipo e a gravidade do crime praticado, a complexidade do caso, o número de agentes envolvidos, o estado físico e psíquico do próprio detido e as opções que elege quanto à exposição da sua defesa. Importa, porém, ter em conta a jurisprudência deste Tribunal sobre o dever de celeridade nos casos em que estão em causa direitos fundamentais. Designadamente no acórdão 407/97, de 21 de Maio, frisou-se que “o critério interpretativo neste campo não pode deixar de ser aquele que assegure a menor compressão possível dos direitos fundamentais” e que “a intervenção do juiz é vista como uma garantia de que essa compressão se situe nos apertados limites aceitáveis”, ponderando-se:
... no quadro de uma previsão legal atinente ao processo criminal (a única constitucionalmente tolerada), carecerá sempre de ser compaginada com uma exigente leitura à luz do princípio da proporcionalidade, subjacente ao artigo
18.º, n.º 2, da Constituição, garantindo que a restrição do direito fundamental em causa se limite ao estritamente necessário à salvaguarda do interesse constitucional na descoberta de um concreto crime e punição do seu agente. [...] Também o TEDH tem aceitado, como já se viu, que a obrigação de apresentar uma pessoa a um magistrado não implica o direito de ser ouvida num prazo determinado, mas no que, caso a caso, mostre ser o mais breve. Ora, procurando usar o mesmo critério, cumpre assinalar que não ocorreram in concreto hiatos no controlo, pelo Juiz, da situação do Recorrente. Com efeito, apresentados os detidos, entre os quais se contava o Recorrente, no Tribunal de Oeiras em 31 de Março de 2003, segunda-feira, logo o Juiz proferiu despacho a designar as 13 horas e 30 minutos para os interrogatórios dos presos, fazendo menção da hora a que despachou – 12 horas e 15 minutos – e referindo que essa foi também a hora em que o processo lhe foi entregue. Os interrogatórios iniciaram-se pelas 14 horas e 45 minutos; às 18 horas e 35 minutos do mesmo dia deu-se início ao interrogatório do arguido. Findo o interrogatório, o Juiz validou a prisão e determinou que o arguido ora recorrente aguardasse em prisão preventiva a instrução do processo. Ora, quer a circunstância de o Juiz haver imediatamente lavrado despacho a designar hora para o interrogatório, diligência que ocorreu logo de seguida, e o controlo sempre manifestado pelo Juiz sobre a situação do arguido – o que inequivocamente resulta da possibilidade conferida ao Advogado do arguido de requerer a sua libertação quando foi ultrapassado o prazo dentro do qual, no seu entendimento, deveria manter-se detido – determinam a convicção segura, no juízo de proporcionalidade que aqui é determinante, que as normas dos artigos 141.º, n.º 1, e 254.º, a), do Código de Processo Penal, tal como foram interpretadas e aplicadas, não violam a Constituição, designadamente os artigos 27.º, n.º 1,
28.º, n.º 1, e 32.º.»
5.As considerações que se transcreveram sobre o enquadramento constitucional da validação da detenção pelo juiz de instrução, após interrogatório, merecem ser reiteradas no presente caso, em que igualmente se depara com um lapso de tempo correspondente ao decurso do interrogatório de todos os arguidos, que eram várias dezenas (interrogatório que terminou menos de 72 horas após a apresentação ao juiz de instrução criminal). Na verdade, como também salientou o Ministério Público nas suas contra-alegações, nem a Constituição da República, nem a lei ordinária – designadamente, nos preceitos questionados – estabelecem um prazo certo para o juiz de instrução validar a detenção e aplicar a medida de coacção a um arguido que lhe foi apresentado detido, assim permanecendo depois do seu interrogatório. O prazo previsto no artigo 28.º, n.º 1, da Constituição, refere-se à submissão da detenção a apreciação judicial, e é de interpretar como um prazo para apresentação ao juiz, como resulta da própria letra e da evolução da disposição, bem como da sua razão de ser: embora até ser proferida uma decisão judicial não possa dizer-se que o fundamento da detenção deixa de estar na actuação dos
órgãos de polícia criminal, a verdade é que, a partir do momento da apresentação do arguido ao juiz, para apreciação judicial da sua situação, interrogatório e eventual aplicação de medida de coacção, o arguido passa a estar colocado à disposição judicial – possa embora não ter ainda sido interrogado, devido ao número de arguidos, ou possa (como aconteceu com a recorrente) ser logo interrogado, ficando a aguardar o final do interrogatório dos restantes arguidos para a decisão sobre a aplicação de medida de coacção. De resto, quando o legislador constitucional pretendeu fixar um prazo certo para o juiz decidir fê-lo claramente, como se pode ver pelo artigo 31.º, n.º 3, da Constituição (“O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória”; no artigo 28.º, n.º 1, diversamente, diz-se: “A detenção será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas, a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coacção adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a determinaram e comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidade de defesa” – sublinhados aditados). Assim, qualquer acto ou omissão ilícitos, qualquer ofensa aos seus direitos e garantias fundamentais devido ao retardamento da apreciação da sua situação, passa a ser de responsabilidade judicial, e não dos órgãos de polícia criminal. A situação de detenção depois da apresentação ao juiz, mesmo depois de decorrido um prazo de 48 horas sem decisão judicial, ou a situação da arguida no presente caso, está, assim, bem longe de qualquer situação de mera garde à vue, de detenção ou prisão administrativa, sem controlo judicial. Compreende-se, aliás, que não se concretize na lei ou na Constituição um prazo certo para o juiz ouvir e ajuizar da validade da detenção, pois a demora nessa tarefa dependerá naturalmente das particularidades do caso concreto, que podem legitimamente condicionar a celeridade da actividade do juiz e a apreciação dos pressupostos da medida de coacção: factores, como, por exemplo, o tipo e a gravidade do crime praticado, a complexidade do caso, o número de arguidos envolvidos e a conexão entre a sua situação e declarações, o estado físico e psíquico dos próprios detidos e mesmo a sua atitude durante o interrogatório. Como não deixou de se salientar no citado acórdão n.º 565/2003, encontra-se, porém, no Código de Processo Penal, uma “clara indicação” quanto ao tempo da actuação do juiz de instrução: da alínea a) do n.º 2 do artigo 103.º resulta que a diligência não deve ter lugar apenas “nos dias úteis, às horas de expediente dos serviços de justiça e fora do período de férias judiciais”, mas antes no mais breve espaço de tempo, devendo este último sentido colher-se, também, nos preceitos constitucionais sobre garantias do arguido em processo penal. Poderá, até, admitir-se que haverá forte conveniência em melhorar certas práticas que facilmente tendem a instalar-se neste domínio. O confronto das garantias constitucionalmente consagradas para o processo penal não deixa de sugerir que a prática que melhor realizará o seu espírito, e que pode mesmo corresponder mais plenamente à sua consagração, poderá ser diversa, e melhor, do que a que, nalguns casos, porventura se regista: seja mediante uma apresentação dos arguidos ao juiz logo que possível, antes de estar próximo o esgotamento do prazo de 48 horas para tal apresentação (que não está agora em questão); seja com libertação e eventual nova detenção do arguido; seja mediante o possível reforço, se forem muitos os arguidos (pense-se, por exemplo, num processo com várias centenas de arguidos), do número de juízes intervenientes; seja, ainda, pela imediata validação da detenção.
6.Dito isto, porém, importa reconhecer, também, a necessidade de alguma flexibilidade na fixação, ao juiz de instrução criminal, de prazos para a decisão sobre a aplicação de medida de coacção, pelo menos, desde que a diligência decorra realmente sem demora, de imediato. Basta, na verdade, pensar num processo com várias dezenas de arguidos, como o presente – ou até num processo com centenas de arguidos –, e numa sua apresentação ao juiz de instrução já próximo do final do prazo de 48 horas previsto no artigo 28.º, n.º
1, da Constituição, para concluir que pode haver casos em que este último prazo poderia não ser suficiente, sequer, para inquirir todos os arguidos sobre a sua identidade e antecedentes criminais. Para além de razões ligadas à praticabilidade, a função e importância do primeiro interrogatório judicial de arguido detido desaconselham igualmente o estabelecimento de um prazo certo para o termo desse interrogatório e decisão do juiz. O primeiro interrogatório judicial de arguido detido, sobre os factos que lhe são imputados, é – como este Tribunal tem reconhecido em várias decisões (cfr. os acórdãos n.ºs 416/2003 e 607/2003, tirados nesta mesma 2.ª secção, e disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt) – um momento fundamental na apreciação da situação do arguido, e uma diligência essencial, do ponto de vista também das garantias processuais do arguido, para a compreensão, por parte deste, daquilo que lhe é imputado e para a sua defesa. Por outro lado, para apurar, ainda que a título indiciário, a verificação dos pressupostos para aplicação de medida de coacção, pode ser importante confrontar as declarações de vários, ou até de todos, os arguidos já detidos para interrogatório, em diligências a realizar sucessivamente. Ora, tal entendimento do interrogatório judicial sobre os factos, que se impõe por razões constitucionais e à luz da sua função, não se compadece com a pressa sobre os intervenientes que inevitavelmente teria de se instalar, em resultado da fixação estrita de prazos muito curtos para o termo de todos os interrogatórios e para a decisão do juiz sobre a medida de coacção. Assim, o importante para não existir violação das disposições constitucionais é que a actuação do juiz de instrução, enquanto garante da posição do arguido durante o inquérito, decorra sem demora, com execução sem hiatos estranhos à matéria do processo, que, por si, acarretem uma dilação desrazoável da decisão. Pode, também, justificar-se a adopção de outras medidas – como a validação imediata da detenção, o recurso a outros juízes, ou, no limite, a libertação e nova detenção – em casos extremos, em que o período de detenção previsível até ao fim do interrogatório de todos os arguidos, sem possibilidade de decisão, mesmo decorrendo as diligências sem hiatos, seja verdadeiramente desproporcionado. E pode até admitir-se que, se o tempo de espera pelo termo do interrogatórios dos restantes arguidos for desrazoável, tal terá consequências também no plano da constitucionalidade. No presente caso, porém, não foi isso que aconteceu. A arguida foi apresentada ao juiz atempadamente, e foi também ouvida no próprio dia da apresentação. Mas, tendo em conta o número de arguidos detidos em conexão com os mesmos factos que haviam determinado a detenção da arguida, e a necessidade de proceder ao seu interrogatório, ficou a aguardar o fim destas diligências, que se processaram, não só num prazo breve, como sem demora – isto é, sem hiatos (salvo os motivados pelo indispensável descanso nocturno). Durante este tempo, a arguida esteve sob custódia do juiz de instrução criminal, que – é curial recordá-lo outra vez – se posta no processo criminal português, durante a fase de inquérito (a cargo do Ministério Público e dos órgãos de polícia criminal), como garante dos direitos fundamentais do arguido – como verdadeiro “juiz das garantias” –, e, designadamente, como garante do seu direito à liberdade, sem que tenha, com a sua conduta, violado qualquer disposição constitucional que lhe fixasse um prazo
(pois que esta não existe). E foi validada a detenção da arguida e proferida a decisão sobre a medida de coacção (na madrugada do dia 19) menos de 72 horas depois da apresentação ao juiz, após o termo do interrogatório de todos os arguidos (no final da tarde do dia 18) – sendo certo que, entretanto, se deparou ainda a necessidade de prover à defesa de uma co-arguida e de decidir a arguição de nulidade do interrogatório, por parte da própria da arguida ora recorrente. Não pode, pois, dizer-se que a circunstância de a detenção da arguida só ter sido objecto de validação judicial no final de todos os interrogatórios dos arguidos detidos, que decorreram sem interrupções, mas menos de 72 horas depois da apresentação ao juiz e conjuntamente com a decisão sobre a aplicação de medidas de coacção relativamente a todos os 33 arguidos, tenha violado o disposto nos artigos 27.º, n.º 1, e 28.º, n.º 1, da Constituição da República. A solução normativa em causa não é, assim, inconstitucional, e há que negar provimento ao presente recurso. III. Decisão Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao presente recurso de constitucionalidade e condenar a recorrente em custas, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 15 de Março de
2005 Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta) Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto
Votei vencida o presente Acórdão por duas razões fundamentais: A primeira razão é o facto de a interpretação do artigo 28º, nº 1, da Constituição, não me permitir concluir com segurança, como faz o Acórdão, que o prazo máximo de detenção sem decisão judicial possa exceder 48 horas, correspondendo tão-só a um prazo máximo de restrição não validada judicialmente do direito à liberdade. Tal interpretação é, na realidade, algo criativa, em face dos elementos literal, histórico, sistemático e até teleológico da Constituição. Com efeito, antes da 4ª Revisão Constitucional, o artigo 28º referia-se, expressamente, a um prazo máximo de 48 horas para decisão judicial de validação ou manutenção da detenção da “prisão sem culpa formada” e o sentido da alteração da letra do preceito, como reconhece a doutrina, foi apenas o de incluir também os casos de detenção já com “culpa formada” para aplicar, igualmente, medidas de coacção
(cf. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal, II, 2002, p. 229 e ss. e pp. 234 e 235). Não há qualquer clareza quanto a uma mudança essencial de sentido do preceito no que se refere à inclusão da decisão judicial no prazo das
48 horas. Por outro lado, considerar-se que um prazo até à apreciação judicial possa não incluir o momento fundamental da mesma – a decisão – é uma interpretação complacente e em caso algum “in dubio pro libertate”. A descrição no texto constitucional da acção de apreciação não terá de incluir a sua plena realização? Também a razão substancial de que o prazo de 48 horas seria justificado como limitação a uma detenção meramente administrativa (policial) não tem muita plausibilidade, porque a detenção não pode deixar de manter a sua natureza jurídica até à respectiva validação judicial. Finalmente, a argumentação que queira basear-se em hipotéticos argumentos sistemáticos em torno do artigo 31º da Constituição , nomeadamente por se pretender a partir daquele preceito concluir que a Constituição não visou estabelecer um prazo de decisão judicial, é desviada do sentido fundamental do artigo 28º, nº 1, da Constituição. Neste preceito, estabeleceu-se, muito claramente, um prazo máximo para uma privação da liberdade não validada judicialmente – essa é a sua ratio. Não é, na verdade, o tema do prazo necessário e razoável para a polícia e os tribunais validarem uma detenção o ponto de vista a partir do qual se constrói o texto constitucional, mas antes o do prazo máximo para se estar detido sem validação judicial. A lógica do preceito está construída a partir do direito à liberdade e não como expressão de um prazo para qualquer tipo de autoridade (administrativa ou judicial). A segunda ordem de razões que me levou a votar vencida, sem hesitação, é o facto de que a interpretação do artigo 28º, nº 1, levada a cabo pelo Tribunal Constitucional, embora prudentemente não chegue a admitir prazos desproporcionados de decisão judicial e, por isso, reconheça, implicitamente, um certo direito a um prazo razoável (que no caso concreto, porém, não terá sido excedido), admite que não tenha de caber ao legislador estabelecer esse prazo de garantia. Ora, a meu ver, se há matéria em que não é aceitável que vigorem meras razões de proporcionalidade e uma apreciação caso a caso é esta matéria do prazo máximo de detenção sem validação judicial. Poder-se-á mesmo falar aqui de um direito a um prazo legal máximo de garantia que está intimamente associado ao direito à liberdade num Estado de Direito. Aliás, numa primeira análise, o Direito Processual Penal de vários países da União Europeia não só estabelece, por vezes, um prazo de detenção policial mais restrito como não deixa, em geral, de prever prazos para a validação judicial (cf. Mireille Delmas-Marty, Procédures Pénales d’Europe, 1995). A análise da questão que motivou o presente Acórdão revela bem como há muito a fazer na articulação do sistema do Processo Penal com os direitos fundamentais, papel que cabe ao legislador. No entanto o facto de a prática levar a descobrir distorções várias do Processo Penal em matéria de coordenação dos direitos fundamentais com a realização da Justiça não deve impedir o Tribunal Constitucional de reconhecer violações da Constituição que o legislador democrático deve superar.
Maria Fernanda Palma