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Processo n.º 1032/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1.Por acórdão de 23 de Setembro de 2004, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso interposto por A. da decisão do 2º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa que, no âmbito do processo de inquérito contra ele instaurado, indeferira a arguição de nulidade do despacho do representante do Ministério Público junto daquele tribunal, que lhe negara o acesso aos meios de prova que fundamentaram a aplicação, em 1º interrogatório judicial, da medida de coacção de prisão preventiva. Pode ler-se no referido aresto:
«É o objecto do presente recurso a decisão do Mm.º Juiz “a quo”, que indeferiu a arguição, pelo recorrente, da nulidade da decisão do M.º P.º, que lhe negou o acesso aos autos, com vista à suposta instrução de recurso a interpor do despacho que lhe impôs a prisão preventiva como medida coactiva, e, bem assim, também da parte que, novamente, lhe negou o referido acesso. Ora, e antes de mais, atentando-se no “Auto de interrogatório de arguido detido” reproduzido a fls. 52, ss., destes autos, que não foi posto em causa pelo recorrente, o qual, aliás, até se mostra por si rubricado e assinado, logo se vê que aquele, no decurso do referido interrogatório, não só foi informado pelo Mm.º Juiz dos factos que lhe eram imputados, como, também, foi confrontado pelo mesmo com todas as provas até então produzidas contra si, designadamente, as intercepções telefónicas, e os nomes de pessoas com quem ele, supostamente, se relacionou na imputada actividade de tráfico de drogas. Assim, e para além de o mesmo ter ficado a conhecer os referidos factos, bem como as provas que os suportavam, certo é ainda que, como resulta de fls. 30 destes mesmos autos, foi-lhe, também, facultada cópia do atrás referido “Auto de interrogatório” e do “auto de busca e apreensão”. Resulta daqui que, consequentemente, o arguido/recorrente dispôs de todos os elementos necessários à sua defesa, a exercer na motivação do recurso interposto da decisão que lhe fixou a medida coactiva, tendo podido, assim, contraditar as imputações que lhe eram, feitas. Agora, permitir-se-lhe, como parece pretender, a livre consulta dos autos, para além de se estar, claramente, a violar o disposto no art.º 89.º, n.º 2, do C.P.P., era, também, facultar-lhe o conhecimento de outros factos e provas irrelevantes para a defesa da sua posição processual, num claro prejuízo para a investigação em curso. Daí que, ante o infundado da sua pretensão, a decisão mais simples e ajustada fosse, aqui, a rejeição do recurso, por manifesta improcedência. Porém, se o recorrente pretende colher mais uma posição relativamente à invocada inconstitucionalidade, sempre lhe diremos que não se acolhe a sua pretensão. Vejamos: Dispõe o art.º 86.º, n.º 1, do C.P.P. - diploma onde se integram as disposições legais a seguir citadas sem menção de origem - que “O processo penal é, sob pena de nulidade, público, a partir da decisão instrutória ou, se a instrução não tiver lugar, do momento em que já não pode ser requerida. O processo é público a partir do recebimento do requerimento a que se refere o artigo 287.º, n.º 1, alínea a), se a instrução for requerida apenas pelo arguido e este, no requerimento, não declarar que se opõe à publicidade”. O n.º 4, por sua vez, diz que “o segredo de justiça vincula todos os participantes processuais, bem como as pessoas que, por qualquer título, tiverem tomado contacto com o processo e conhecimento de elementos a ele pertencentes, e implica as proibições de: a) Assistência à prática ou tomada de conhecimento do conteúdo de acto processual a que não tenham o direito ou o dever de assistir; b) Divulgação da ocorrência de acto processual ou dos seus termos, independentemente do motivo que presidir a tal divulgação”. Contudo, o n.º 5 do referido preceito já prevê que “pode, todavia, a autoridade judiciária que preside à fase processual respectiva dar ou ordenar ou permitir que seja dado conhecimento a determinadas pessoas do conteúdo de acto ou de documento em segredo de justiça, se tal se afigurar conveniente ao esclarecimento da verdade”; Assim como o seu n.º 7 dispõe que “a autoridade judiciária pode autorizar a passagem de certidão em que seja dado conhecimento do conteúdo de acto ou de documento em segredo de justiça, desde que necessária a processo de natureza criminal ou à instrução de processo disciplinar de natureza pública, bem como à dedução do pedido de indemnização civil”. Temos assim que, sendo a publicidade do processo a regra, enquanto possível meio de garantia dos cidadãos na realização da justiça, que, deste modo, melhor a podem controlar, também é certo que, como diz Germano Marques da Silva, no seu Curso de Processo Penal, II vol., pág. 18, “a complexidade da sociedade moderna e da criminalidade, criminalidade frequentemente organizada e transnacional, torna, porém, necessário, para combate àquela e defesa da comunidade, uma fase de investigação da notícia do crime que decorra com reserva da publicidade de modo a evitar que os criminosos frustrem a descoberta da verdade, antecipando-se aos investigadores e escondendo ou destruindo as provas dos factos criminosos. Por outro lado, também a defesa da honra e da consideração dos suspeitos, que se presumem inocentes até à condenação, justificam que se evite a publicidade da suspeita, pelo menos até que nos autos haja provas bastantes que indiciem a sua eventual responsabilidade”. Daqui advém a razão de ser do chamado segredo de justiça. Porém, se isto é assim, e se dos n.ºs 5 e 7 do referido art.º 86.º parece resultar apenas uma mera faculdade da autoridade judiciária em permitir o fornecimento de dados processuais em segredo de justiça, já o art.º 141.º, n.º
4, preceitua que o juiz que procede ao primeiro interrogatório do arguido, imposto para a fixação de medidas coactivas, conforme art.º 194.º, n.º 2, comunica a este os motivos da detenção e expõe-lhe os factos que lhe são imputados, Do mesmo modo, e numa clara consagração formal do princípio do contraditório, dizem os art.ºs 20.º, n.º 4, e 32.º, n.º 5, da C. R. Portuguesa, que, “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses, mediante processo equitativo, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório”. Luís Osório, em anotação aos art.ºs 71.º e 286.º do C.P.Penal de 1929, prevendo, também estes, o referido segredo de justiça, já dizia que, embora essa fosse, igualmente, uma faculdade concedida ao juiz, este deveria mostrar ao arguido, quando fosse interrogado, e o julgasse conveniente, “quaisquer peças do processo, documentos que a ele respeitem, ou os instrumentos com que a infracção foi cometida, para melhor investigação da verdade”. Germano Marques da Silva, ob. cit., pág. 23, por sua vez, reportando-se aos dispositivos actualmente em vigor, diz também que “estando em causa a aplicação de medidas de coacção, deve dar-se ao arguido a possibilidade de ilidir as provas que, na perspectiva do M.º P.º, justificam a aplicação de uma medida, o que, necessariamente, terá de passar pelo conhecimento por parte da defesa dessas provas. As restrições a este princípio devem ser a excepção e não a regra”. Ainda segundo este, “assim não sendo, o próprio recurso da decisão que aplique uma medida de coacção é eminentemente formal. O arguido não pode impugnar o fundamento da decisão (...)”. Assim sendo, e porque esta posição também perfilhamos, a interpretação conjugada dos art.ºs 86.º, n.º 5, e 89.º, n.º 2, no respeito pelos inquestionáveis direitos do arguido à sua defesa, haverá de ser feita no sentido de um poder-dever da autoridade judiciária de facultar àquele todos os elementos constantes dos autos, em segredo de justiça, e que se mostrem necessários ao apuramento da verdade, no pressuposto de que é mesmo esta que aquele pretende, ao querer recorrer de decisão que lhe impôs a medida coactiva. Porém, e como se referiu, apenas, e só, caso o solicite, aos elementos processuais, em segredo de justiça, necessários à sua defesa, deverá ser permitido o acesso pela autoridade judiciária competente, intervindo então aqui o poder discricionário desta. Assim, reportando-nos, agora, ao caso dos autos, havendo a pretensão do recorrente, nos termos expostos, sido satisfeita, ao serem-lhe facultados os elementos necessários à instrução do respectivo recurso, haverá o aqui em causa de ser julgado improcedente.»
(sublinhados e itálicos aditados). Notificado do teor do referido acórdão, veio o arguido/recorrente requerer a sua aclaração, por entender que o mesmo “enferma de ambiguidade e obscuridade”, desde logo por não precisar a que “elementos necessários à instrução do respectivo recurso” se reporta, “se aos requeridos pelo arguido, e entendidos pela decisão recorrida que lhe negou acesso, ou aos facultados pelo M.º P.º
(auto de interrogatório, auto de apreensão e despacho que aplicou a prisão preventiva)”. Respondendo, o Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento do referido pedido de aclaração, dizendo:
“1º Face ao decidido, nada se afigura haver a esclarecer, ou corrigir, quanto à afirmação de não lhe terem sido facultados os elementos necessários à instrução do presente recurso.
2º O recorrente manifesta apenas divergência de entendimento com a posição que obteve vencimento, pelo que não tem cabimento, para efeitos do invocado art.º
380º, al. b), do CPP, que sempre tem de se reportar a modificação não essencial.” Por despacho de 14 de Outubro de 2004, do relator no Tribunal da Relação de Lisboa, decidiu-se:
“Não se vendo no acórdão em causa qualquer um dos vícios constantes do art.º
380º do Cód. [de Processo] Penal, designadamente os invocados ambiguidade e obscuridade, indefere-se o requerido a fls. 99 ss.”
2.Veio, então, o arguido/recorrente interpor o presente recurso de constitucionalidade ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional), pretendendo “ver apreciada a inconstitucionalidade das normas dos artigos 86.º, n.º 1 e n.º 2, 89.º, n.º 2, 97.º, n.º 4 e 141.º, n.º 1, n.º 4 e n.º 5, todos do Código de Processo Penal, com a interpretação com que fo[ram] aplicada[s] na decisão recorrida, ou seja, de que não é permitido ao recorrente, conhecer dos elementos de prova que serviram para fundamentar o despacho que lhe aplicou a prisão preventiva, quando queria impugnar aquele despacho”, por entender que “tal interpretação, diminui a extensão e alcance do conteúdo essencial das normas dos artigos 18.º, n.º 1, 28.º, n.º 1, 32.º, n.º 1, n.º 2, n.º 3 e n.º 5, todos da Constituição da República Portuguesa, pois nega garantias de defesa e afronta o princípio do contraditório”. Admitido o recurso, e notificado para produzir alegações, concluiu assim o recorrente:
“1.º Ao arguido foi aplicada a medida de coacção prisão preventiva em 1.º interrogatório judicial.
2.º O arguido, pretendendo impugnar aquele despacho, solicitou ao Sr. Juiz de Instrução, acesso aos elementos de prova em que se tinha fundado para aplicar a prisão preventiva.
3.º Respondeu o Sr. Procurador adjunto, negando acesso a qualquer outro elemento de prova que não fosse o auto de interrogatório, auto de detenção, auto de apreensão e despacho, pois o arguido não tinha direito a mais, mesmo que quisesse impugnar a fundamentação do despacho que aplicou aquela medida de coacção.
4.º O arguido arguiu a nulidade deste despacho do MP perante o Sr. Juiz de Instrução, reafirmando o seu pedido de acesso aos elementos de prova que fundamentaram a aplicação da prisão preventiva.
5.º Indeferiu o Sr. Juiz de Instrução a arguição de nulidade e ao requerimento do arguido.
6.º Defendeu este despacho, o douto voto de vencido no acórdão 121/97 e o entendimento plasmado num douto acórdão da Relação de Coimbra.
7.º Recorreu o arguido para a Relação de Lisboa, vindo contudo esta, através do acórdão agora recorrido, negar provimento ao recurso.
8.º O douto acórdão agora sob censura, perfilhou a interpretação inicial do M.º P.º e do Sr. Juiz de instrução, que, quanto aos artigos 86.º, n.º 1 e n.º 2,
89.º, n.º 2, 97.º, n.º 4 e 141.º, n.º 1, n.º 4 e n.º 5 do CPP, aplicando-os na sua decisão, os interpretaram no sentido de que estando o processo em segredo de justiça, não é permitido ao arguido que pretende recorrer do despacho que lhe aplicou a prisão preventiva, conhecer dos elementos de prova em que este se fundou.” Contra-alegando, o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional veio suscitar a questão prévia da “não aplicação, pelo acórdão recorrido, do sentido normativo alegadamente inconstitucional”, concluindo:
“1 – A decisão recorrida – ao admitir o acesso a determinados elementos probatórios pelo arguido/recorrente, com vista a possibilitar-lhe o exercício do direito ao recurso contra medidas de coacção, com base num juízo concreto e prudencial de balanceamento ou prolação dos interesses em jogo – não realizou a interpretação normativa delineada pelo recorrente como objecto do recurso de constitucionalidade interposto.
2 – Termos em que não deverá conhecer-se deste, por inverificação dos respectivos pressupostos de admissibilidade.” Notificado para se pronunciar, querendo, sobre a referida questão prévia, disse o recorrente:
«O Digno Magistrado do MP, vem advogar pelo não conhecimento do recurso, por inverificação dos respectivos pressupostos de admissibilidade. Para tanto, alega que a decisão recorrida - ao admitir o acesso a determinados elementos probatórios pelo arguido/recorrente, com vista a possibilitar-lhe o exercício do direito ao recurso contra medidas de coacção, com base num juízo concreto e prudencial de balanceamento ou prolação dos interesse em jogo - não realizou a interpretação normativa delineada pelo recorrente como objecto do recurso de constitucionalidade interposto. Com todo e o devido respeito, o recorrente não podia estar mais em desacordo com a fundamentação aduzida pelo Digno Magistrado do Ministério Público.
É que o Ministério Público parte de uma premissa errada, sendo que desenvolve e constrói todo o seu raciocínio partindo de um princípio errado. Na verdade, e ao contrário do que diz o MP, o recorrente não dispôs de todos os elementos necessários à sua defesa não tendo podido contraditar as imputações que lhe foram feitas em sede de 1º interrogatório Judicial. No entendimento do MP, é suficiente o auto de interrogatório e o auto de busca e apreensão, para o recorrente exercer o direito constitucionalmente consagrado de defesa, mais concretamente de recorrer desta decisão que lhe era desfavorável. Ora, tal entendimento viola manifestamente o normativo constitucional em vigor. E óbvio, porque legal e inquestionavelmente admissível, que o recorrente devia ter acesso às suas declarações (auto de interrogatório) e às diligências de prova a que tenha assistido (auto de busca e apreensão). A questão é de saber se, neste caso em concreto, a circunstância de o acórdão recorrido ter negado acesso aos elementos de prova que fundamentaram a prisão preventiva é inconstitucional como alega o recorrente. O argumento de que o arguido foi confrontado, em 1º interrogatório judicial, com os elementos de prova que fundamentaram a sua prisão preventiva também não colhe. Se foi confrontado e deles teve conhecimento então é mais uma razão para que esses elementos, e só esses, fossem facultados posteriormente ao mandatário do arguido quando este requereu o seu acesso, porquanto já não eram novidade e por conseguinte não se estava a violar nenhum segredo porque desses elementos de prova o arguido já havia tido conhecimento. E óbvio que o mandatário em sede de 1º interrogatório não vai transcrever tudo o que é dito pelo Sr. Juiz de instrução, isso seria impraticável e absurdo. E manifesto que só depois de conhecer a medida de coacção aplicada é que o mandatário com rigor e zelo vai querer cotejar os elementos de prova que fundamentaram a Prisão Preventiva, no sentido de, se for caso disso, contraditá-los com igual rigor. E foi o acesso a esses elementos que a defesa reputa de essenciais para o exercício do direito constitucionalmente consagrado de recurso, que incompreensivelmente foi negado ao recorrente pelo douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa. Por mais que o MP tente escudar-se em formalismos que de certo são relevantes para outras situações que não esta, o facto é que “in casu”, o recorrente requereu acesso aos elementos de prova que fundamentaram a prisão preventiva, recorreu do indeferimento para o tribunal da Relação de Lisboa levantando a questão da inconstitucionalidade de algumas normas interpretadas em determinado sentido. O douto Tribunal entendeu conforme se alcança a fls. 7 do douto acórdão que “... se o recorrente pretende colher mais uma posição relativamente à invocado inconstitucionalidade, sempre lhe diremos que não se acolhe a sua pretensão.”» Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3.Importa começar por delimitar o objecto do recurso, pois é patente que algumas das normas impugnadas não vêm acusadas de qualquer desconformidade com a Constituição. Assim, por exemplo, o artigo 97.º, n.º 4, do Código de Processo Penal (“Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”) só pode ser mencionado pelo recorrente como parâmetro (deficiente) da própria decisão, já que nenhum sentido lhe é imputado que seja diverso do seu sentido literal, e este, patentemente, não é, nem se pretende que seja, desconforme com o texto constitucional. Por sua vez, os três números do artigo 141.º do Código de Processo Penal que foram impugnados dizem respeito a um momento processual anterior – o do interrogatório de arguido detido – ao que está em causa no presente recurso, e ao qual, portanto, são alheias as questões de constitucionalidade neste postas. Do que se trata é de aceder a elementos de prova mencionados no despacho judicial que decretou a prisão preventiva ao arguido, após o referido interrogatório. Poderá, eventualmente, a extensão do cumprimento das obrigações previstas nesse artigo 141.º interferir no juízo a proferir sobre as normas dos artigos 86.º, n.º 1, e 89.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mas o artigo
141.º do Código de Processo Penal não é, em si mesmo, constitucionalmente sindicável nestes autos.
4.Em segundo lugar, atentar no exacto entendimento normativo cuja apreciação constitui objecto do presente recurso: designadamente, ou o Ministério Público tem razão, e a interpretação impugnada pelo recorrente não foi aplicada – interpretação, essa, que já se viu só poder ser referente às normas dos artigos
86.º e 89.º do Código de Processo Penal – e não se pode conhecer do objecto do recurso, ou tem razão o recorrente, e a premissa de que parte o Ministério Público está errada. Recapitulemos, pois: a) Em 30 de Junho de 2004, o arguido pediu à Juíza do 2º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa “os elementos de prova que serviram para fundamentar a decisão que decretou a prisão preventiva”; b) O Ministério Público decidiu o pedido nestes termos:
“Os elementos de prova que serviram para fundamentar a prisão preventiva aplicada ao arguido, e mencionados no despacho judicial que o arguido pretende impugnar, não podem ser facultados ao arguido nesta fase do processo. Assim, face ao requerido pelo arguido e satisfeito (acesso a cópia do despacho judicial) apenas se autoriza agora a extracção de cópia de fls. 1245-1246 (auto de busca e apreensão) e de fls. 1337 a 1340, que o arguido poderá consultar, na Secção, pelo prazo de três dias.” c) Arguida a nulidade de tal despacho com fundamento na inconstitucionalidade das normas que sustentariam o entendimento assumido pelo Ministério Público no primeiro parágrafo supra transcrito – as normas dos artigos 81.º, n.º 1 e n.º 2,
89.º, n.º 2, 97.º, n.º 4, e 141.º, n.ºs 1, 4 e 5, do Código de Processo Penal -, veio essa arguição a ser indeferida sendo de novo recusadas as “requeridas cópias”, e acrescentando-se no despacho da Juiz de Instrução:
“No caso concreto haverá sempre que ter em atenção que em inquérito vigora o segredo de justiça, pelo que há que limitar, sob pena de se pôr em causa o segredo de investigação, o acesso aos autos por parte dos arguidos, o que, contrariamente ao defendido pelo arguido, em nada põe em causa os seus direitos, porquanto no seu interrogatório tomou conhecimento dos motivos da sua detenção e foi confrontado com as provas que justificam a sua indiciação pela prática de crime de tráfico de estupefacientes. Por outro lado, o arguido, conforme despacho de fls. 1399, teve acesso ao despacho judicial que determinou a sua prisão preventiva e foram-lhe facultadas para consulta cópias dos autos de busca e apreensão e do auto de primeiro interrogatório.” d) Ao interpor recurso deste despacho para o Tribunal da Relação de Lisboa, a inconstitucionalidade das normas objecto do presente recurso de constitucionalidade foi suscitada nos precisos termos em que o fora na arguição de nulidade do despacho do Ministério Público na 1ª instância:
“a interpretação conjugada dos artigos 86.º n.º 1 e n.º 2, 89.º, n.º2, 97.º, n.º
4, e 141.º, n.º 1, n.º 4 e 5, segundo a qual, não podem ser entregues ao arguido, fora das circunstâncias previstas no art.º 86.º, n.º 1, e 89.º, n.º 2, do CPP, os elementos de prova mencionados no despacho judicial que decretou a prisão preventiva ao arguido e que agora quer impugnar, é inconstitucional por limitar de uma forma desproporcional e intolerável os seus direitos de defesa e assim contender com as normas constantes nos artigos 18.º, n.º 1, 28.º n.º 1,
32.º, n.º 1, n.º 2, n.º 3, n.º 5, e 205.º da C.R.P.” e) Como já acima se deixou sublinhado, a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa foi no sentido de que o arguido “dispôs de todos os elementos necessários
à sua defesa e de que a sua pretensão fora “satisfeita ao serem-lhe facultados os elementos necessários à instrução do respectivo recurso.” f) O arguido pediu aclaração do acórdão por encontrar incongruência entre reconhecer-se que tinha pedido elementos que lhe não foram dados, considerando-se que não tinham de o ser, e concluir-se que foi satisfeito o que pediu, mas por despacho do relator no Tribunal da Relação foi indeferido tal requerimento.
5.Já atrás se transcreveu o sentido das normas que, no requerimento de recurso, o recorrente reputa desconformes com a Constituição – o entendimento “de que não
é permitido ao recorrente, conhecer dos elementos de prova que serviram para fundamentar o despacho que lhe aplicou a prisão preventiva, quando queria impugnar aquele despacho”. Confrontando este sentido normativo com a argumentação produzida nas sucessivas decisões tomadas sobre a sua pretensão, logo ressalta, porém, que a interpretação impugnada foi defendida apenas na posição do Ministério Público na
1ª instância, tendo, diversamente, nas decisões judiciais posteriores, o fundamento da recusa da sua pretensão sido outro. Simplificando, e quanto ao acórdão recorrido, dir-se-á que, enquanto a posição do Ministério Público se suportou na interpretação de uma questão de direito (o que pode ou não ser facultado ao arguido na fase de inquérito), a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa recorrida se baseou antes na resolução de uma questão de facto (o arguido teve ou não teve acesso às informações de que carecia?). Ou seja: o acórdão recorrido afirma claramente a possibilidade de autorizar o acesso do arguido ao processo, mediante uma ponderação a realizar no confronto da posição do arguido com os objectivos processuais que, em concreto, pudessem ser postos em causa por esse acesso. Todavia, acaba por responder à questão que lhe era posta em concreto, e num plano de facto: já teria sido concedido ao arguido o acesso aos elementos necessários. Ora, o controlo da exactidão da resposta dada a esta questão de facto – a de saber se efectivamente foi ou não concedido ao arguido acesso aos elementos que serviram para fundamentar a medida de coacção – não compete a este Tribunal, e, por outro lado, a questão de constitucionalidade de eventuais dimensões normativas referentes à aferição da necessidade dos elementos segundo um critério do Tribunal (e não do arguido), ou à suficiência de um acesso permitido apenas no momento do interrogatório, sem suporte documental duradouro, não é posta no presente recurso de constitucionalidade: mesmo depois de confrontado com o teor da decisão recorrida, o arguido/recorrente continuou a pôr o problema como sendo apenas o da constitucionalidade da norma segundo a qual lhe é proibido o acesso aos elementos que serviram para fundamentar a prisão preventiva, sem considerar a diversa fundamentação da decisão recorrida. Nesta medida, pode concordar-se com o Ministério Público quando nota, nas contra-alegações no presente recurso de constitucionalidade, que a interpretação impugnada – que permaneceu ligada ao entendimento professado nos autos pelo Ministério Público na 1ª instância – não foi aplicada na decisão recorrida. Significa isto que, por causa da referida alteração de fundamentação, o recorrente terá ficado impossibilitado de conseguir a apreciação de um certo entendimento eventualmente inconstitucional de uma norma que lhe foi aplicada? Há que responder negativamente a esta questão. De facto, se uma interpretação reputada contrária à Constituição cedeu passo a outra, e esta última implica uma alteração da decisão, no seu sentido e/ou fundamentação, não há razão para pretender ainda a aferição dessa primeira interpretação. Ou seja: se a alteração de fundamentação pode excluir certos entendimentos normativos da sindicância constitucional, não o faz, nesse caso, sem incluir outros. Bastaria, antes, ao recorrente ter reposto adequadamente a questão de constitucionalidade: se os tribunais entendem, então, que o arguido teve acesso a tudo o que precisava para preparar eficazmente a sua defesa e o arguido entende que não, aquilo a que este Tribunal deveria ser chamado a decidir era sobre a conformidade constitucional de um entendimento que se baseasse na prevalência desse critério judicial sobre o do arguido, ou que se bastasse com o acesso já concedido no interrogatório. Imputando inconstitucionalidade à interpretação normativa que fizesse prevalecer, nesta matéria, o juízo dos tribunais ao juízo dos arguidos, ou que se bastasse com o acesso naquelas condições, preencher-se-iam os pressupostos do recurso de constitucionalidade, porque esse foi o sentido com que as normas impugnadas foram entendidas e aplicadas. Descurando fazê-lo, porém, o recorrente trouxe a este Tribunal o pedido de apreciação de um sentido normativo que, se poderia preencher os requisitos do tipo de recurso de constitucionalidade interposto se a decisão recorrida fosse
(se pudesse ser) a decisão do Ministério Público da 1ª instância que indeferiu o seu requerimento a 30 de Junho de 2004, já não os preenche quanto ao acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa recorrido: este não aplicou as normas impugnadas no entendimento que lhes é imputado, e isso é um requisito essencial do recurso de constitucionalidade em questão. Conclui-se, pois, que não estão preenchidos os requisitos para se poder tomar conhecimento do presente recurso. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se não tomar conhecimento do presente recurso e condenar o recorrente em custas, com 10 (dez) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 1 de Março de 2005 Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Mário José de Araújo Torres Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta) Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto
Votei vencida por entender que, no contexto deste processo, o recorrente questionou sempre, ao menos implicitamente, também a suficiência de um acesso permitido apenas no momento do interrogatório sem a possibilidade de qualquer conhecimento de um suporte documental. Nesse sentido, entendo que deveria ser conhecida a questão de constitucionalidade mesmo que isso implicasse uma redução do âmbito da dimensão normativa questionada o que, aliás, me parece caber nos poderes deste Tribunal. Não me parece, também, que o Tribunal da Relação se tenha baseado numa mera questão de facto (o acesso do arguido às informações que carecia), mas antes numa ponderação (controlável por ter natureza normativa), nos termos da qual o “acesso” no momento do interrogatório do arguido nos termos em que foi concedido (sem entrega de qualquer suporte documental) é bastante para realizar os direitos do arguido quanto à sua defesa. É essa ponderação que envolve um critério normativo que deveria ter sido conhecido, porque é ele que, interpretado o recurso à luz do contexto processual que estava necessariamente em causa, o arguido necessariamente questiona. Finalmente, sempre se poderia, ainda, dizer que mesmo uma dimensão normativa mais ampla, de acesso ilimitado aos autos, a ter sido questionada pelo arguido, também teria sido necessariamente aplicada quando o Tribunal, eventualmente, através de uma ponderação, não entregou ao arguido todos os elementos de prova. Assim, face a tudo o que disse, entendo que se deveria ter tomado conhecimento do presente recurso. Maria Fernanda Palma