Imprimir acórdão
Processo n.º 68/05
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I
1. A fls. 363 e seguintes, foi proferida decisão sumária que não tomou
conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A., pelos
seguintes fundamentos:
“[...]
Tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, deve o seu objecto ser constituído
por uma norma, a apreciar pelo Tribunal Constitucional sob o ponto de vista da
sua conformidade constitucional.
Sucede, porém, que a recorrente pretende a apreciação de uma cláusula constante
de um acordo colectivo de trabalho. Deverá tal cláusula ser qualificada como uma
norma, para efeitos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional?
A esta pergunta tem o Tribunal Constitucional dado resposta negativa.
Na verdade, constitui orientação maioritária do Tribunal Constitucional a de que
as normas das convenções colectivas de trabalho não estão sujeitas à
fiscalização concreta da constitucionalidade a cargo deste Tribunal, pois que
não integram o conceito de norma utilizado na alínea b) do n.º 1 do artigo 280º
da Constituição (e, consequentemente, na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei
do Tribunal Constitucional).
Tal orientação foi nomeadamente perfilhada pelo Tribunal Constitucional nos
acórdãos n.ºs 172/93, de 10 de Fevereiro (publicado no Diário da República, II
Série, n.º 141, de 18 de Junho de 1993, p. 6454), 250/97, de 18 de Marco,
637/98, de 4 de Novembro, 697/98, de 15 de Dezembro, 284/99, de 5 de Maio,
492/00, de 22 de Novembro, 10/03, de 15 de Janeiro e 92/03, de 14 de Fevereiro
(estes disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
No primeiro dos acórdãos referenciados – em que estava em causa a apreciação da
inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade, da norma
constante da cláusula 5ª do Anexo I ao Contrato Colectivo de Trabalho entre a
Associação Portuguesa das Empresas Industriais de Produtos Químicos e outras e
a Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores das Indústrias Químicas e
Farmacêuticas de Portugal e outros (in Boletim do Trabalho e Emprego, I Série,
n.º 16, de 29 de Abril de 1983), quando interpretada no sentido de impedir que
uma empresa, depois de entrar no Grupo A, possa alguma vez baixar de grupo,
ainda que baixe a sua facturação anual, devendo, em consequência, continuar a
remunerar sempre os seus trabalhadores de acordo com as tabelas em vigor para o
referido Grupo A –, disse o Tribunal Constitucional o seguinte:
[...]
Com base na fundamentação transcrita, o Tribunal Constitucional decidiu, no
mencionado acórdão n.º 172/93, não tomar conhecimento do recurso.
É esta a jurisprudência que agora também se perfilha e para a qual se remete.
Não pretendendo a recorrente a apreciação da conformidade constitucional de uma
norma, no sentido em que este conceito é utilizado na alínea b) do n.º 1 do
artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, conclui-se que não está preenchido
um dos pressupostos processuais do presente recurso, não sendo consequentemente
possível conhecer do respectivo objecto.
[...].”.
2. Notificada desta decisão, A. veio reclamar para a conferência, nos
termos do artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, através do
requerimento de fls. 389 e seguintes), em que concluiu do seguinte modo:
“[...]
1. Através da douta decisão sumária ora reclamada, que pelas razões constantes
dos Acórdãos, deste mesmo Tribunal, com os n.º 172/93, 250/97, 637/98, 697/98
entre outros citados, entendeu não ser possível tomar conhecimento do recurso
interposto pelo ora Reclamante, defende-se a ideia de que tudo o que respeita a
acordos e convenções colectivas de trabalho não está sujeito a controlo de
constitucionalidade.
2. A posição acima expressa decorre do facto de o Tribunal Constitucional, ainda
que por maioria, ter vindo a entender que «as normas das convenções colectivas
de trabalho não estão sujeitas à fiscalização concreta da constitucionalidade a
cargo deste Tribunal, pois que não integram o conceito de norma utilizado na
alínea b) do n.º 1 do artigo 280º da Constituição e consequentemente na alínea
b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional».
3. Mais tem vindo a defender o Tribunal Constitucional e citando o Acórdão n.º
172/93, que «(...) como as normas das convenções colectivas de trabalho não
provêm de entidades investidas em poderes de autoridade, e muito menos provêm de
poderes públicos, então não estão sujeitas à fiscalização concreta de
constitucionalidade que incumbe a este Tribunal exercer, nos termos do art.
280°, n.° 1, alínea b), da Constituição».
4. Tal posição, igualmente expressa na decisão ora reclamada, não pode merecer,
como é óbvio, a concordância da Recorrente e ora Reclamante.
5. Na verdade, encontrando-nos no domínio do Direito do Trabalho, começaremos
por dizer, com recurso aos Professores Vital Moreira e Gomes Canotilho, que se
trata de um verdadeiro direito fundamental dos cidadãos, um direito positivo dos
cidadãos perante o Estado (Constituição da República Portuguesa anotada, 1978,
anotação ao art. 51°, II).
6. Por outro lado, qualquer instrumento de regulamentação colectiva de trabalho,
como sucede, «in concreto», com o ACTV para o sector bancário, para além de
fonte de direito de trabalho é, ao mesmo tempo, um acto normativo (neste
sentido, Conselheiro Mário de Brito, in Separata ao BMJ, Direito do Trabalho,
pág. 136), podendo também ele ver-se afectado de inconstitucionalidade quer em
termos formais, quer em termos materiais.
7. Não admira, pois, que a esse propósito, tenha Carnelutti, afirmado que a
convenção colectiva tem o corpo do contrato e a alma da lei.
8. E a concepção do mundo laboral e da negociação colectiva que se intui através
do recurso a estes Ilustres Juristas corresponde, ao fim e ao cabo, a uma parte
de grande importância na vida das nossas sociedades, dada a sua íntima ligação
às vertentes sociais, económicas, políticas, «et pour cause», jurídicas.
9. Como afirma o Professor Monteiro Fernandes, in Temas Laborais, Almedina,
1984, pág. 117, «A negociação colectiva, como processo de produção normativa,
reflecte, em cada momento, as preocupações sociais dominantes, em função dos
dados da conjuntura económica», concluindo que «A convenção colectiva tem-se
afirmado como a mais influente fonte do Direito do Trabalho» – sublinhado nosso.
10. Dentro de todo o contexto sumariamente exposto, parece à ora Reclamante, com
todo o respeito, que as razões invocadas para não conhecer do recurso
interposto, perdem toda a razão de ser.
11. E perdem toda a razão de ser sobretudo, por razões de natureza
jurídico/constitucional e por razões ligadas ao leque de atribuições e
competências do Tribunal Constitucional.
12. Em primeiro lugar, da análise dos preceitos constitucionais em causa, não se
alcança o entendimento avançado pela Ilustre Conselheira Relatora quando, é
indiscutível, que o ACTV em discussão comporta um conjunto de normas jurídicas,
como tal reconhecidas pelo Estado.
13. Por outro lado, da leitura do art. 70° da Lei do Tribunal Constitucional, em
particular, do seu n.º 1 alíneas a) e b), o vocábulo «norma» aí empregue, não
autoriza qualquer interpretação limitativa, incompatível, aliás, com a ideia de
fiscalização concreta de constitucionalidade.
14. Importa não olvidar que a matéria suscitada no recurso interposto, prende-se
com a Lei de Bases da Segurança Social e com o art. 63° n.º 4 da Constituição da
República Portuguesa.
15. Aliás, este preceito constitucional ao dispor que «Todo o tempo de trabalho
contribui, nos termos da lei, para o calculo das pensões de velhice e invalidez
(...)» (sublinhado nosso), está a reconhecer expressamente a natureza e
dignidade pública de ordenamentos jurídicos – como os instrumentos de
regulamentação colectiva – que a decisão sumária ora reclamada não reconhece,
para mais num domínio fundamental da vida dos cidadãos (a segurança social).
16. Doutro modo, a aceitar a tese em discussão, não se compreende a
possibilidade de recurso a órgãos de soberania, como os Tribunais, para dirimir
conflitos desta natureza.
17. Não pode, assim, o ora Reclamante aceitar o entendimento defendido pela
Ilustre Conselheira Relatora dada a inexistência de qualquer correspondência com
a letra da lei.
18. O que importa apurar é se uma norma, num determinado caso concreto, ofende
ou não o tecido constitucional.
19. Se dúvidas existissem quanto a este entendimento, bastaria o recurso aos
eminentes constitucionalistas atrás citados (Direito Constitucional, 5ª edição,
Almedina, 1992, pág. 1061) onde, no âmbito da fiscalização concreta de
inconstitucionalidade, depois de afirmarem que «Não há, porém, qualquer
restrição quanto à natureza das normas impugnadas: podem ser normas materiais ou
processuais, podem incidir sobre o mérito da causa ou apenas sobre meios
probatórios ou pressupostos processuais, podem ou não lesar direitos
fundamentais ou interesses legítimos das partes. Isto não significa que os
problemas de inconstitucionalidade digam apenas respeito a actos normativos,
pois não são impensáveis hipóteses de actos privados... directamente violadores
da constituição...».
20. Os citados ilustres constitucionalistas, Gomes Canotilho e Vital Moreira
referem ainda, in Constituição da República Portuguesa, Anotada, 2° Vol.,
Coimbra Editora, 1985, pág. 471, que «(...) é possível estabelecer um elenco dos
actos, cujo conteúdo, por ser constituído por normas, está sujeito a
fiscalização da constitucionalidade» (negrito nosso), elencando especificamente
para o efeito as convenções colectivas de trabalho.
21. Igualmente acrescentam que «Embora a Constituição não seja explícita quanto
ao valor jurídico dos contratos e acordos colectivos de trabalho e remeta para a
lei a determinação da eficácia das respectivas normas (art. 56º n.º 4), é
entendimento corrente de que eles são fonte de direito com valor pelo menos
idêntico ao das portarias regulamentares. Deve, pois, entender-se que estão
sujeitos ao controlo da constitucionalidade» – ob. supra cit., pág. 474.
22. Na verdade, e conforme alude igualmente o recente Acórdão n.º 580/2004 deste
Tribunal, a propósito do mencionado art. 56°, n.º 4 da Constituição, «a
jurisdicidade de tais normas é indiscutível, por estar fundamentada na lei».
23. E saliente-se que o aludido douto acórdão deste tribunal, ainda que por
maioria, concluiu que «as normas constantes de convenções colectivas de trabalho
se devem ter como normas para efeitos de controlo de constitucionalidade
cometido a este tribunal».
24. E, na modesta opinião do ora Reclamante, a prevalecer o entendimento
plasmado na douta decisão sumária ora reclamada, qualquer questão emergente de
interpretação de um instrumento de regulamentação colectiva, ainda que viciada
de manifesta inconstitucionalidade, nunca era passível de apreciação pelo
Tribunal Constitucional, continuando a norma afectada a vigorar no ordenamento
jurídico.
25. Tal condicionalismo, a verificar-se, constituiria, decerto, uma evidente
contradição com a natureza e objectivos prosseguidos pelo Tribunal
Constitucional.
Termos em que, deve a presente reclamação ser deferida e, em consequência, ser
admitido o recurso interposto pelo ora Reclamante, ordenando-se o prosseguimento
dos autos.”.
3. O recorrido Banco B. (anteriormente, C.) respondeu à reclamação
apresentada (fls. 396), sustentando que a mesma deve ser indeferida, pelas
seguintes razões:
“[...] vem em conformidade, acolher tudo quanto foi decidido na douta decisão
sumária proferida naquela data, porquanto, efectivamente, a recorrente não pugna
pela apreciação da constitucionalidade de uma «norma» no sentido previsto na
alínea b) do n.° 1 do art° 70° da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que não
estando preenchido o pressuposto aí exigido, não é possível conhecer, desde
logo, do objecto do presente recurso.
[...].”.
Tendo sido determinada pelo Presidente do Tribunal Constitucional a
intervenção do plenário, nos termos do artigo 79º-A, n.º 1, da LTC, cumpre
apreciar e decidir.
II
4. A decisão sumária reclamada, que não tomou conhecimento do objecto do
recurso, invocou como fundamento o não preenchimento de um pressuposto
processual do recurso interposto.
Entendeu-se, de acordo com a orientação maioritária perfilhada pela
jurisprudência do Tribunal Constitucional, que as cláusulas das convenções
colectivas de trabalho não estão sujeitas à fiscalização concreta da
constitucionalidade a cargo deste Tribunal, por não integrarem o conceito de
norma utilizado na alínea b) do n.º 1 do artigo 280º da Constituição (e,
consequentemente, na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional).
Proferida ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei do
Tribunal Constitucional, a decisão sumária reclamada assentou na fundamentação
utilizada em acórdãos proferidos pelo Tribunal Constitucional – e designadamente
no acórdão n.º 172/93, de 10 de Fevereiro (publicado no Diário da República, II
Série, n.º 141, de 18 de Junho de 1993, p. 6454), que parcialmente se
transcreveu.
5. Na reclamação agora deduzida, a reclamante procura sustentar que a
competência do Tribunal Constitucional deve abranger a apreciação da
conformidade constitucional das cláusulas constantes das convenções colectivas
de trabalho.
Invoca a reclamante, apoiando-se em numerosas citações doutrinárias,
que “qualquer instrumento de regulamentação colectiva de trabalho”, como sucede,
no caso concreto, com o ACTV para o sector bancário, é “fonte de direito de
trabalho” e, “ao mesmo tempo, um acto normativo” que diz respeito a direitos
fundamentais dos cidadãos – o que não seria reconhecido pela decisão sumária ora
reclamada, “para mais num domínio fundamental da vida dos cidadãos (a segurança
social)”.
Como este Tribunal teve oportunidade de esclarecer em diversas
ocasiões – e concretamente no já mencionado acórdão n.º 172/93, de 10 de
Fevereiro –, não importa aqui saber se as cláusulas constantes das convenções
colectivas de trabalho “devem ou não ser consideradas como normas para qualquer
outro efeito, nomeadamente para efeitos de classificação doutrinal: do que se
cura é de apurar se a Constituição pretendeu submetê-las ao específico sistema
de controlo da constitucionalidade constante do artigo 280º (e 281º)”.
Ora, na averiguação e determinação do que seja norma, para efeitos
de fiscalização da sua constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional, este
Tribunal tem sublinhado que deve utilizar-se “um conceito funcional adequado ao
sistema de fiscalização da constitucionalidade [...] e consonante com a sua
justificação e sentido” (acórdão n.º 26/85, publicado no Diário da República, II
Série, n.º 96, de 26 de Abril de 1985, p. 3871). Não se trata portanto de um
conceito material, ou de outro tipo, de norma, mas antes de um conceito adequado
à justificação do sistema de fiscalização da constitucionalidade.
Especificamente quanto ao problema de saber se as cláusulas
constantes das convenções colectivas de trabalho integram o conceito de norma
para efeitos de fiscalização concreta da constitucionalidade a cargo deste
Tribunal – e não obstante as divergências detectadas entre os autores
portugueses que se pronunciaram sobre tal problema durante os últimos anos –
mantém-se actual a posição definida pelo Tribunal Constitucional no leading case
que tem vindo a ser citado (o acórdão n.º 172/93) e que agora se recorda:
“[...]
4 - Seja qual for a concepção que se queira adoptar sobre a natureza jurídica
das convenções colectivas de trabalho (isto é, quer se propenda para uma
concepção contratualista, jurisprivatística, quer para uma concepção
jurispublicística, quer para uma concepção intermédia, quer para a de um
tertium genus), uma coisa é certa: no nosso direito vigente, as convenções
colectivas de trabalho não têm constitucionalmente fixado o regime da sua
eficácia, já que a Constituição remete tal fixação para a lei ordinária no
artigo 56º, n.º 4 (57º, n.º 4, na versão anterior à revisão de 1989).
E a lei ordinária concretiza essa norma remissiva no Decreto-Lei n.º 519-C1/79,
de 29 de Dezembro. Dispõe o artigo 7º deste diploma:
«1. As convenções colectivas de trabalho obrigam as entidades patronais que as
subscrevem e as inscritas nas associações patronais signatárias, bem como os
trabalhadores ao seu serviço que sejam membros quer das associações sindicais
celebrantes, quer das associações sindicais representadas pelas associações
sindicais celebrantes.
2. As convenções outorgadas pelas uniões, federações e confederações obrigam as
entidades patronais empregadoras e os trabalhadores inscritos, respectivamente,
nas associações patronais e nos sindicatos representados nos termos dos
estatutos daquelas organizações, quando outorguem em nome próprio ou em
conformidade com o mandato a que se refere o artigo 4º.».
Daqui resulta que a lei estabelece que as convenções colectivas obrigam
exclusivamente as entidades que as celebram, e bem assim as organizações e
trabalhadores que nelas estão ou venham a estar inscritos. E tanto assim que,
para estender a eficácia dessas convenções a terceiros, se torna necessário usar
um acto normativo público, a portaria de extensão prevista no artigo 29º, n.º 1,
do mesmo diploma.
Comparativamente, o artigo 39º, último parágrafo, da Constituição italiana
estabelece que «I sindacati [organizações profissionais de trabalhadores ou
empresários] registrati [...] possono, rappresentati unitariamente in
proporzione dei loro iscritti, stipolare contratti collettivi con efficacia
obbligatoria per tutti gli appartenenti alle categorie alle quali il contrato si
referisce». Gustavo Zagrebelsky começa por comentar que aquela norma implica o
reconhecimento explícito do contrato colectivo de trabalho como modo de
produção de normas jurídicas, isto é, como fonte de direito (segundo a
conhecida formulação de Carnelutti, para quem tal contrato tem corpo de
contrato e alma de lei). Todavia, logo acrescenta que aquela norma
autorizatória nunca teve qualquer concretização, por obstáculos técnicos e
políticos que foram opostos à sua regulamentação, e que radicam sobretudo na
contradição, latente em tal norma, entre o princípio da liberdade de organização
sindical e a necessidade de regulamentar as associações profissionais, para
tornar efectiva a eficácia erga omnes prevista naquele artigo 39º; e, daí,
retira, como consequência, que os contratos colectivos hoje efectivamente
celebrados não assumem a natureza de fontes de direito em sentido próprio
(Manuale di Diritto Costituzionale, 1 – Il sistema delle fonti del diritto,
UTET, Torino, 1988, págs. 247 e segs.).
Quanto ao direito português, e apesar de o artigo 56º, n.º 4, da Constituição
(actual redacção) dar ao legislador ordinário a possibilidade de estabelecer a
eficácia das normas das convenções colectivas de trabalho, estas não são
efectivamente configuradas, na legislação ordinária, como actos normativos
públicos, as entidades que as subscrevem não têm poderes de autoridade, e o
clausulado normativo que elas integram não obriga terceiros.
5 - Segundo A. Menezes Cordeiro (Manual de Direito do Trabalho, Almedina, 1991,
pág. 321), «com as particularidades acima examinadas, que têm a ver com deveres
instrumentais, as convenções colectivas surgem no termo do livre exercício de
poderes de celebração e de estipulação. Elas formam-se nos moldes contratuais e
têm eficácia porque as pessoas constituíram livremente associações para que
estas, também em liberdade, contratassem em termos colectivos. – Os poderes que
explicam este mecanismo não são originários, antes assentando numa
normativização conferida pelo Direito objectivo. Mas isso ocorre precisamente
com os diversos negócios jurídicos. – A autonomia colectiva representa assim
uma particular forma de autonomia privada; as convenções colectivas de trabalho
são negócios (privados) colectivos».
Mas, mais à frente, este autor acrescenta que «a privatização das convenções
colectivas, fortemente alicerçada no princípio da filiação e na liberdade
sindical e de associação, não pode ser levada até ao fim... O regime em vigor
reconhece expressamente a contratação colectiva – artigo 57º/3 e 4 da
Constituição – e aponta-a como fonte – artigo 12º/1 da LCT – sendo um facto que
ela permite a revelação de normas jurídicas. [...] As convenções colectivas são,
pois, negócios (privados) colectivos e fontes mediatas do Direito» (ib. pág.
322).
O argumento retirado do texto do artigo 12º, n.º 1, da Lei do Contrato
Individual de Trabalho não será assim tão decisivo na determinação da natureza
jurídica da convenção colectiva de trabalho: é preciso ter em conta que tal
diploma é o Decreto-Lei n.º 49 408, de 24 de Novembro de 1969, e que aí as
convenções colectivas de trabalho são colocadas em último lugar na ordem de
precedência, depois das normas legais, das emitidas pelo Ministério das
Corporações e Previdência Social, e mesmo depois das normas corporativas.
Trata-se, como se vê, de uma disposição legal estabelecida no quadro do anterior
sistema jurídico corporativo, e cuja desactualização é patente.
Em resumo: a lei regulamenta a eficácia específica das convenções colectivas
impondo a sua obrigatoriedade unicamente quanto àqueles que devem considerar-se
representados pelas entidades que as subscrevem, à luz dos princípios do
direito do trabalho. As organizações profissionais que as celebram não têm
poderes de autoridade mas apenas poderes de representação, isto é, de defesa e
de promoção da defesa dos direitos e interesses dos respectivos filiados (cfr.
artigo 56º, n.º 1, da Constituição). E, assim, o clausulado que elas incorporam
não contém normas, entendidas como padrões de conduta emitidos por entidades
investidas em poderes de autoridade.
6 - Ora, se pode discutir-se qual o exacto alcance da palavra norma
estabelecida no artigo 280º, n.º 1, alínea b), da Constituição, parece seguro,
pelo menos, que com ela se teve em vista apenas os actos dispositivos de
entidades investidas em poderes de autoridade e, mais precisamente, os actos
dispositivos dos poderes públicos. Por exemplo, esta questão é dada como
assente no Acórdão n.º 26/85 (Diário da República, 2ª série, de 26 de Abril de
1985), onde se concluiu que nem todos os actos dos poderes públicos devem
considerar-se normas (e, portanto, sujeitos à fiscalização do Tribunal
Constitucional): aí se optou por um conceito funcionalmente adequado, segundo o
qual não são normas as decisões judiciais e os actos da administração sem
carácter normativo, nem os actos políticos ou actos de governo em sentido
estrito.
Tal conceito funcionalmente adequado seria retomado depois no Acórdão n.º
150/86 (Diário da República, 2ª série, de 26 de Julho de 1986), onde se
considerou ser o mesmo aplicável, não só aos casos de fiscalização abstracta,
mas também aos casos de fiscalização concreta, e que neste domínio o que importa
verificar é se o preceito a examinar tem por parâmetro de validade imediata a
lei ou a Constituição, pois que neste último caso nada justificará que esse
exame escape à jurisdição e à competência do Tribunal Constitucional.
O Tribunal, contudo, sempre afirmou com clareza que escapam ao seu poder de
cognição as normas provenientes da autonomia privada, salvo quando decorrentes
da atribuição de poderes ou funções públicas a entidades privadas (Acórdão n.º
472/89, in Diário da República, 2ª série, de 22 de Setembro de 1989; e Acórdãos
n.º 156/88 e n.º 157/88, in Diário da República, 2ª série, de 17 de Setembro e
de 26 de Julho de 1988, respectivamente).
7 - Ora, como as normas das convenções colectivas de trabalho não provêm de
entidades investidas em poderes de autoridade, e muito menos provêm de poderes
públicos, então não estão sujeitas à fiscalização concreta de
constitucionalidade que incumbe a este Tribunal exercer, nos termos do artigo
280º, n.º 1, alínea b), da Constituição.
É certo que o artigo 56º, n.º 4, da Constituição se refere a normas das
convenções colectivas de trabalho. Todavia, com isto não pretende obviamente
usar o termo no sentido de normas provenientes dos poderes públicos, as únicas
que são consideradas no sistema de fiscalização de constitucionalidade pelo
artigo 3º, n.º 3, da Constituição, como nota Jorge Miranda no texto acima
referido.
E esta conclusão não conflitua com o decidido no Acórdão n.º 392/89 (Diário da
República, 2ª série, de 14 de Setembro de 1989), na medida em que aí se
conheceu de uma norma constante de uma convenção colectiva de trabalho objecto
de uma portaria de extensão. É que, como então se assinalou, «a cláusula foi
aplicada ex vi de uma portaria de extensão, que, assim, a ‘apropriou’, fazendo
seu o respectivo conteúdo normativo», sendo certo que «as normas de uma portaria
preenchem, seguramente, o conceito de norma para o efeito da sua submissão ao
controlo de constitucionalidade».
[...].”
As considerações constantes do acórdão que se transcreveu mantêm
plena validade perante o texto do actual Código do Trabalho (cfr. artigo 552º).
Reafirma-se, assim, que as convenções colectivas de trabalho, porque
fundadas no exercício da autonomia privada, não contêm actos normativos sujeitos
à fiscalização concreta da constitucionalidade que incumbe a este Tribunal
exercer, nos termos do artigo 280º da Constituição da República Portuguesa.
A esta conclusão não pode objectar-se com a invocação de uma
eventual violação do princípio da igualdade que decorreria da circunstância de a
jurisprudência do Tribunal Constitucional incluir no conceito de norma,
relevante para efeitos do artigo 280º da Constituição, as denominadas “portarias
de extensão”. É que, como assinalou o Conselheiro Paulo Mota Pinto em declaração
de voto junta ao acórdão n.º 580/04 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), “é seguro que, para o conceito de norma
relevante para efeitos do controlo de constitucionalidade, há uma diferenciação
relevante – ou, pelo menos, não arbitrária e razoável – entre normas, como as
resultantes de portarias de extensão, que são fruto do imperium estadual, e
cláusulas, como as das convenções colectivas de trabalho, que se fundam no
exercício da autonomia das partes”.
6. Os argumentos aduzidos na reclamação em apreciação nada trazem, pois,
de inovatório relativamente aos que foram considerados nos acórdãos mencionados
na decisão sumária reclamada e não são, por isso, susceptíveis de alterar o
entendimento deste Tribunal segundo o qual as cláusulas das convenções
colectivas de trabalho não estão sujeitas à fiscalização concreta da
constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional.
Conclui-se, assim, que o Tribunal Constitucional não pode conhecer
do objecto do presente recurso, por ele não ser constituído por normas, na
acepção da alínea b) do n.º 1 do artigo 280º da Constituição e da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
III
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal
Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando a decisão
reclamada que não tomou conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em vinte
unidades de conta.
Lisboa, 27 de Abril de 2005
Maria Helena Brito
Paulo Mota Pinto
Carlos Pamplona de Oliveira
Benjamim Rodrigues
Gil Galvão
Bravo Serra
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Maria João Antunes (vencida, nos termos da declaração junta)
Maria Fernanda Palma (vencida pelas razões constantes dos
Acórdãos n.ºs 214/94, 368/97 e 580/2004 deste Tribunal).
Mário José de Araújo Torres (vencido, nos termos da declaração de voto junta)
Vítor Gomes (vencido nos termos da declaração anexa).
Rui Manuel Moura Ramos (vencido, nos termos da declaração
de voto junta).
Artur Maurício
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não acompanho o entendimento segundo o qual as cláusulas das convenções
colectivas de trabalho não estão sujeitas à fiscalização concreta da
constitucionalidade, por não integrarem o conceito de norma utilizado nos
artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa e 70º, nº
1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional.
Acompanho antes o entendimento expresso na declaração de voto do Senhor
Conselheiro José de Sousa e Brito, no Acórdão nº 172/93 (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 24º vol, p. 458 e ss.), e depois no Acórdão nº 214/94 (Acórdãos
do Tribunal Constitucional, 27º vol, p. 1057 e ss.).
As cláusulas das convenções colectivas de trabalho devem estar sujeitas à
fiscalização concreta da constitucionalidade por parte do Tribunal
Constitucional, na medida em que nelas concorrem as características que integram
o conceito funcional de norma que foi sendo delineado pela jurisprudência deste
Tribunal – “um conceito funcionalmente adequado ao sistema de fiscalização da
constitucionalidade” instituído no artigo 277º e ss. da Constituição da
República Portuguesa “e consonante com a sua justificação e sentido” (Acórdão nº
26/85, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol, p. 18).
Maria João Antunes
DECLARAÇÃO DE VOTO
Discordei quer da submissão a Plenário do julgamento da
questão que constituiu objecto do precedente acórdão, quer do sentido da
decisão nele maioritariamente acolhida.
1. A intervenção do Plenário do Tribunal Constitucional,
no âmbito dos processos de fiscalização concreta da constitucionalidade, pode
resultar de iniciativa do Presidente, “quando o considerar necessário para
evitar divergências jurisprudenciais” (artigo 79.º‑A da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional – Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro – LTC),
ou de recurso interposto pelas partes (obrigatório para o Ministério Público,
quando intervier no processo como recorrente ou recorrido), “se o Tribunal
Constitucional vier a julgar a questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade
em sentido divergente do anteriormente adoptado quando à mesma norma” (artigo
79.º‑D da LTC).
Constitui entendimento pacífico deste Tribunal o de que
este último recurso só é admissível se as decisões divergentes respeitarem a
juízos de inconstitucionalidade (ou de ilegalidade) tendo por objecto a mesma
norma, e já não em situações de divergências jurisprudenciais de índole
adjectiva, incluindo as relativas à competência do Tribunal ou à determinação
das questões idóneas a integrar o objecto do recurso de constitucionalidade
(cf., por último, o Acórdão n.º 649/2004, onde se sustentou a conformidade dessa
solução com o disposto no artigo 224.º, n.º 3, da Constituição da República
Portuguesa – CRP). A incerteza e insegurança que derivariam da coexistência,
prolongada no tempo, de juízos de inconstitucionalidade e de não
inconstitucionalidade da mesma norma, prolatados pelo Tribunal a quem a
Constituição – com óbvios propósitos de segurança jurídica e de uniformização
jurisprudencial – atribuiu uma função de concentração da justiça constitucional
acarretam inconvenientes [todas as decisões dos restantes tribunais relativas à
norma em causa passariam a ser recorríveis para o Tribunal Constitucional ou
com fundamento em terem recusado a aplicação da norma por inconstitucionalidade
ou com fundamento em terem aplicado tal norma em sentido contrário ao
anteriormente decidido pelo Tribunal Constitucional – cf. artigos 280.º, n.ºs 1,
alínea a), e 5, da CRP e 70.º, n.º 1, alíneas a) e g), da LTC] claramente
superiores aos inerentes a divergências relativas a questões de índole
processual, como, por exemplo, a da competência do Tribunal para conhecer de
questões de desconformidade entre normas de direito ordinário e direito
internacional convencional (suscitada, antes da revisão de 1998 da LTC, a
propósito da alteração da taxa de juros das letras e livranças em
desconformidade com a respectiva Lei Uniforme e da sua qualificação como
inconstitucionalidade indirecta ou como ilegalidade), ou de questões de
violação, pelas interpretações normativas aplicadas pelas decisões recorridas,
dos princípios da legalidade penal ou fiscal (cf. Acórdãos n.ºs 353/86, 141/92,
634/94, 221/95, 682/95, 756/95, 154/98, 205/99, 285/99, 674/99, 122/2000,
383/2000, 358/2001, 32/2003, 196/2003, 197/2003, 203/2003, 210/2003, 238/2003,
331/03, 334/2003, 336/03, 385/2003, 394/2003, 412/2003, 494/2003, 506/2004 e
183/2005, e as observações de Rui Medeiros, “A força expansiva do conceito de
norma no sistema português de fiscalização concentrada da constitucionalidade”,
Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Armando M. Marques Guedes, Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa, 2004, pp. 183‑202, em especial pp. 190‑194, e
de Carlos Lopes do Rego, “O objecto idóneo dos recursos de fiscalização
concreta da constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo
Tribunal Constitucional”, Jurisprudência Constitucional, n.º 3, Julho‑Setembro
2004, pp. 4‑15, em especial pp. 11‑15), ou, como no presente caso, da
qualificação das normas constantes de convenções colectivas de trabalho como
normas idóneas a integrarem o objecto de recurso de constitucionalidade.
Sendo menos relevantes os inconvenientes da persistência
de divergências jurisprudenciais em questões processuais do que em questões de
mérito relativas à constitucionalidade de normas, compreende‑se que só quanto a
estas últimas situações o legislador tenha aberto às partes a via de recurso
para o Plenário e daí também decorre, a meu ver, que deve ser extremamente
parcimonioso o uso da faculdade prevista no artigo 79.º‑A da LTC. Ela só deverá
ser usada em situações de insuperável cristalização das posições dos diversos
juízes do Tribunal, que, originando divergentes decisões consoante as maiorias
formadas em cada uma das três Secções do Tribunal, sejam tidas como gravemente
inconvenientes, tendo em conta, designadamente, a “natureza da questão a
decidir”. E não deverá ser usada, na minha opinião, em questões relativamente
às quais se verificaram alterações recentes das posições dos juízes do Tribunal.
Ora, quanto à questão de as normas das convenções colectivas de trabalho
constituírem, ou não, normas idóneas a integrarem o objecto do recurso de
constitucionalidade, a evolução recente das posições dos juízes do Tribunal
revela que não se trata de uma “questão fechada”: se é certo que a resposta
negativa ainda obtém o voto da maioria, trata‑se de uma maioria que “tende cada
vez mais a sê‑lo cada vez menos”. É público que os três últimos juízes que
integraram o Tribunal aderiram, todos eles, à corrente que responde
afirmativamente a essa questão (cf. declarações de voto do Cons. Rui Manuel de
Moura Ramos aposta aos Acórdãos n.ºs 531/2004, 26/2005 e 177/2005, do Cons.
Vítor Manuel Gonçalves Gomes aposta ao Acórdão n.º 66/2005, e da Cons.ª Maria
João Antunes aposta aos Acórdãos n.ºs 26/2005 e 177/2005). Por outro lado, é
sabido que em 2007 ocorrerá a recomposição do Tribunal, com o termo do mandato
dos juízes designados em 1998, e das posições conhecidas dos sete juízes que, em
princípio, continuarão no exercício de funções para além daquela data resulta
que, a serem mantidas essas posições, existe nesse grupo uma maioria no sentido
de que as normas das convenções colectivas de trabalho são normas idóneas a
integrarem o objecto de recurso de constitucionalidade.
Neste quadro evolutivo, considerei desnecessária e mesmo
inconveniente a provocação da intervenção do Plenário, que, com o silenciamento
da posição actualmente minoritária, terá o efeito perverso de “matar”
definitivamente a questão, sendo altamente improvável que, após um período de
cerca de dois anos em que serão sistematicamente rejeitados, com inerente
condenação em custas, todos os recursos tendo por objecto questões de
inconstitucionalidade reportadas a normas das convenções colectivas de
trabalho, alguém ainda venha tentar interpor recursos desse género.
2. Quanto à questão decidida no precedente acórdão,
desde sempre aderi à posição que entende que as normas constantes de convenções
colectivas de trabalho são normas para efeitos de integrarem o objecto do
recurso de constitucionalidade.
2.1. Esta tese foi proficientemente defendida na
declaração de voto do Cons. José de Sousa e Brito aposta ao Acórdão n.º 172/93,
que, apesar da sua extensão, interessará reproduzir para facilitar o acesso ao
conhecimento directo e completo dos seus fundamentos:
“I – Sobre a «norma» como objecto do processo constitucional
2 – Conceito funcional de norma. A normatividade como elemento do conceito. O
ponto de partida só pode ser um conceito funcional de norma ou seja, nas
palavras do acórdão n.º 26/85 (Acórdãos cit., 5.º vol., pág. 18) «o que há‑de
procurar‑se, para o efeito do disposto nos artigos 277.º e seguintes da
Constituição, é ... um conceito funcionalmente adequado ao sistema de
fiscalização da constitucionalidade aí instituído e consonante com a sua
justificação e sentido».
A primeira grande clarificação consistiu em substituir as exigências de
generalidade das pessoas e abstracção dos factos abrangidos pela previsão da
norma pela de normatividade, ou função orientadora do comportamento, relativa
à estatuição da norma. Reconheceu‑se, assim, o carácter de norma a «preceitos
legais de conteúdo individual e concreto ainda mesmo quando possuam eficácia
consuntiva», como eram as normas dos decretos‑leis em apreço no Acórdão n.º
26/85, que extinguiam, cada uma delas, uma empresa pública. Já, no mesmo
sentido, a Comissão Constitucional tinha considerado normas os preceitos de
decretos‑leis que regulavam uma classe fechada de casos (...). A razão
essencial que justifica esta jurisprudência foi expressa, em minha opinião,
já no Parecer n.º 13/82:
«... é decerto seguro e indiscutível que a Constituição, ao prever o controlo
da constitucionalidade das “normas” jurídicas, e ao fazê‑lo quer no artigo
281.º quer no seguinte, teve em vista não toda a actividade dos poderes
públicos mas apenas um sector dela, a saber, o que se traduz na emissão de
regras de conduta ou padrões de valoração de comportamentos (isto é, de
“normas”): deste modo, fora desse específico controlo ficam os puros actos de
aplicação dessas regras ou padrões, que são os actos jurisdicionais e os actos
administrativos, stricto sensu. Simplesmente – e este outro argumento será, no
nosso modo de ver, decisivo – cumpre atentar em que um preceito legal que rege
para um caso concreto, e que nessa medida se apresenta com uma eficácia
equivalente à de um acto administrativo, nunca é um puro acto de “aplicação” do
direito preexistente, pois que simultaneamente se traduz num acto de “criação”
de direito novo: é que nele estabelece‑se também a regra aplicável ao caso,
regra que muitas vezes (se não normalmente) constitui um desvio ou uma excepção
às que de outro modo seriam aplicadas, mas que justamente se torna necessária
para conferir à providência administrativa adoptada o seu mesmo fundamento de
validade (de validade “legal”, claro). Em tal preceito ou disposição legal vai
implicitamente contida, por conseguinte, uma norma – uma norma “individual”,
decerto, mas que não há razão para subtrair só por esse facto, e como já se
disse, à possibilidade do controlo previsto no artigo 281.º da Constituição» (p.
159).
Formulou‑se assim um critério de normatividade: só actos de criação normativa
(em sentido amplo, abrangendo manifestamente a modificação e a revogação total
ou parcial de normas), por oposição a actos de aplicação normativa são
controlados por via da fiscalização de inconstitucionalidade do Tribunal. É
esta a razão material que explica porque os actos com forma legislativa contêm
sempre normas, mesmo quando contêm materialmente também actos administrativos:
é que contêm então as normas que regem estes actos, que obrigam, como leis
formais, particulares, autoridades e tribunais, e relativamente à
constitucionalidade das quais as decisões dos tribunais administrativos estão
sujeitas à última palavra, em fiscalização concreta, do Tribunal
Constitucional.
Mal seria que violações directas da Constituição, por parte de órgãos de
soberania ou de região autónoma, com conteúdo normativo e, portanto,
projectando‑se no futuro através da orientação de comportamentos, não pudessem
ser prevenidas em geral e eliminadas em concreto, em última instância, pelo
Tribunal Constitucional, podendo, contudo, ser julgadas por outros tribunais.
Como assim, se o Tribunal Constitucional foi especificamente instituído «para
administrar a justiça em matérias de natureza jurídico‑constitucional» (artigo
223.º da Constituição)?
(...)
3 – Afastamento de um conceito formal de norma. Como se disse no Acórdão n.º
157/88, ao adoptar a doutrina do carácter normativo do conteúdo dos actos
legislativos (artigo 115.º, n.º 1, da Constituição), isto é, ao concluir que
todas as leis em sentido formal são normas, o Tribunal limita‑se a «extrair a
consequência» postulada pela «consideração teológica e funcional (isto é,
“material”) das coisas» (p. 30 ss). Isto não é equivalente a dizer, como o mesmo
Acórdão equivocadamente disse, que tal consideração postula «um critério ou
noção “formal' de norma». A não ser que se entenda a expressão «formal» no
sentido amplíssimo de «qualquer preceito ou disposição inserida num diploma
normativo», referido no Parecer n.º 13/82 (p. 161). Tratar‑se‑ia então de um
conceito que só seria formal pela abstracção de toda a determinação de
conteúdo para lá da simples normatividade e da restrição, aliás injustificada,
ao direito escrito. Mas quando se fala em «conceito formal de norma» tem‑se
mais frequentemente em vista o conceito de «lei em sentido formal», que Baenel
definiu, na esteira de Laband, como «aquele acto do Estado que – segundo
determina mais de perto o direito positivo – foi produzido e declarado de uma
forma solene determinada, especialmente com intervenção da representação
popular», e que pode ter ou não como conteúdo uma proposição jurídica (Das
Gesetz im formellen und materiellen Sinne, 1888, reimp., 1968, pp. 204‑5). A
exigência material de normatividade equivale à de ter como conteúdo uma
proposição jurídica, o que afasta um conceito formal no sentido referido,
independentemente da questão de saber onde passariam os seus limites no direito
português – onde se justificaria uma delimitação baseada no conceito de «acto
legislativo» do n.º 1 do artigo 115.º da Constituição.
4 – Necessidade de outros critérios adicionais. Normatividade do objecto do
processo e «generalidade» de norma jurídica. Mas é claro que todos estes
argumentos, incluindo a razão essencial primária referida, implicam que as leis
formais sejam «normas», para efeito de fiscalização da constitucionalidade,
mas não implicam que só elas o sejam. Os tribunais judiciais aplicam outras
formas de regulação e orientação de comportamentos, nomeadamente normas gerais
e individuais criadas por autoridades públicas, normas gerais do costume,
interno e internacional, normas de direito estrangeiro recebidas por remissão
das normas do direito internacional privado, decisões de tribunais com força
obrigatória geral, normas de convenções colectivas de trabalho, normas gerais
(como os regulamentos de empresa, de uso, de instalação, estatutos, etc.) e
individuais criadas por pessoas privadas. Em todos estes casos pode haver
violação directa da Constituição (pensa‑se em violação do princípio da
igualdade, ou da proibição da perda de direitos civis ou profissionais como
efeito necessário de penas criminais, para referir exemplos actualmente
presentes no Tribunal) por normas do caso e se aplicam os argumentos baseados
na «normatividade» tida em vista pelo Tribunal. Uma delimitação das normas
relativamente às quais se justifica a fiscalização da constitucionalidade pelo
Tribunal implica outros critérios adicionais. Os principais contributos da
jurisprudência do Tribunal para a formulação desses critérios foram os
Acórdãos n.ºs 150/86 e 168/88, para a formulação do critério do reconhecimento
estatal, os Acórdãos n.ºs 156/88 (Diário da República, II Série, de 17 de
Setembro de 1988, p. 8579 ss) e 472/89, para a formulação do critério da
heteronomia e os Acórdãos n.ºs 26/85 e 150/86 para o critério da imediação (ou
da violação directa da Constituição). Antes de tentar demonstrar esta
doutrina, cumpre esclarecer a relação essencial entre a normatividade e a
generalidade, relação decisiva para fixar o exacto alcance de todos os
critérios envolvidos. A «normatividade», se exclui a generalidade e
abstracção, como características essenciais das previsões das normas que são
objecto possível do processo constitucional, não exclui, antes possibilita, a
apreciação da «generalidade» das estatuições, como exigência da conformidade
destas à vontade geral. O apuramento desta conformidade é a própria essência do
processo constitucional. O objecto do processo tem que ser uma norma, como
razão de agir, para se apurar se é uma recta ratio, uma razão correcta,
sustentável perante a Constituição. A exigência de generalidade da lei surge
historicamente em Rousseau como exigência de racionalidade, baseada na
igualdade e na consequente concepção do bem comum como o maior bem de todos:
«como a coisa estatuída se refere necessariamente ao bem comum, segue‑se que o
objecto da lei deve ser geral bem como a vontade que o dita, e é esta dupla
universalidade que faz o carácter da lei» (Rousseau, Du contrat social (1.ère
version, Oeuvres complètes, ed. Pleiade, III, p. 438). Estabelece‑se assim uma
dialéctica entre a «vontade de todos» e a «vontade geral», que é a base de toda
a teoria do Estado de direito: a vontade de todos, determinada por órgãos
legitimados democraticamente, só obriga se conforme à «vontade geral» e só
através da «vontade de todos» «se pode assegurar que uma vontade particular é
conforme à “vontade geral”» (Du contrat social, 1.2, e 7, ed. cit., p. 383).
Assim entendida, a exigência de generalidade não depende do carácter mais ou
menos determinado dos casos a que se aplica, mas da conformidade com a vontade
geral, ou correcção, ou racionalidade, do ponto de vista do Estado de direito,
da estatuição normativa, isto é, da susceptibilidade da sua generalização,
como diz, no mesmo sentido, Krüger: «a lei é geral (e portanto correcta) quando
passa a prova do critério da capacidade de generalização» (Allgemeine
Staatslehre, 2.ª ed., 1966, p. 306‑7).
A norma que é objecto do processo constitucional não tem que ser geral neste
sentido, pois poderá concluir‑se pela sua inconstitucionalidade, mas tem que
pretender sê‑lo. A pretensão da generalidade confunde‑se com a pretensão de
constitucionalidade e não é um requisito autónomo do objecto de processo
constitucional, mas fundamenta a heteronomia e o reconhecimento. O momento
dialéctico da legitimação democrática conduz à doutrina do reconhecimento. Os
dois momentos dialécticos da legitimação democrática e da legitimação racional
(pela referência ao bem comum do Estado de direito) implicam a doutrina da
heteronomia.
5 – A imediação como elemento do conceito funcional de norma. A exigência de
mediação tem a ver com a dimensão fiscalizadora das competências
constitucionais da jurisdição constitucional: o Tribunal Constitucional só
excepcionalmente julga acerca da legalidade de quaisquer normas, nomeadamente
quando se trata da ilegalidade de um acto legislativo – a que os tribunais,
por consequência de inconstitucionalidade, não devem obediência –, ou quando
está em causa a autonomia regional (n.º 2 do artigo 280.º da Constituição;
artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional). Em todos estes casos a
ilegalidade implica a violação de limites à competência de órgãos soberanos ou
de autonomia regional, regulados na Constituição, e assim, uma
inconstitucionalidade orgânica indirecta. O Tribunal Constitucional então
intervém na sua função típica de fiscalizar competências constitucionalmente
definidas, tal como nos juízos de inconstitucionalidade. Esta problemática não
existe nas restantes inconstitucionalidades indicadas por ilegalidade. São,
portanto, os fins da jurisdição constitucional que implicam a imediação.
A imediação foi formulada logo no já citado Acórdão n.º 26/85: «também os
preceitos com a natureza agora considerada têm como parâmetro de validade
imediato, não a lei (“outra” lei), mas a Constituição. Nada justifica, por
consequência, que o seu exame escape ao controlo específico da
constitucionalidade – é dizer, à jurisdição e à competência deste Tribunal»
(p. 19). Identicamente se pronunciou o Acórdão n.º 150/86 (p. 299). Em rigor,
são os fins da jurisdição constitucional e, portanto, o conceito funcional de
norma, que implicam a imediação. Assim, se não houvesse violação directa da
Constituição é que haveria uma razão para escapar ao controlo específico de
constitucionalidade e tal não se verifica nas hipóteses dos acórdãos. A
imediação não era problemática no caso do Acórdão n.º 26/85, em que se julgavam
normas de actos legislativos, que estavam imediatamente sujeitos à Constituição.
Mas já se tornava decisiva quanto às normas do regulamento de arbitragem
julgadas inconstitucionais no Acórdão n.º 150/86, que só violavam directamente
a Constituição por não estar em vigor a Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto (artigo
16.º), que as teria tornado ilegais. Assim foi com base na falta de imediação
que o Acórdão n.º 266/92, de 14 de Julho, considerou inadmissível o recurso da
alegada inconstitucionalidade de uma norma de convenção colectiva de trabalho,
por se tratar de mera ilegalidade, deixando debaixo do tapete as questões
relativas a outros elementos do conceito de norma (supra n.º 1).
A jurisprudência do Tribunal tem justamente deduzido a exigência da imediação
da alínea i) do n.º 4 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional,
introduzida pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, negando que haja
inconstitucionalidade no sentido da alínea b) do mesmo n.º 1 quando há
violação directa da convenção internacional e indirecta do n.º 2 do artigo 8.º
da Constituição (cf. os Acórdãos n.ºs 185/92, 277/92, 351/92, 603/92 e 162/93,
todos inéditos).
Contudo, tal como a normatividade, a imediação é uma condição necessária mas
não suficiente da existência de uma norma, como objecto do processo
constitucional: os negócios jurídicos podem violar directamente a Constituição,
mas tal inconstitucionalidade é apenas fundamento de nulidade absoluta do
negócio por o seu objecto ser «contrário à lei», no sentido do artigo 280.º do
Código Civil, em que a «lei» inclui a Constituição.
6 – A heteronomia como elemento do conceito funcional de norma. No Acórdão n.º
150/86 tratou‑se da questão de saber se as normas de um regulamento de
arbitragem aprovado pela «determinação» de uma comissão arbitral, prevista nas
Condições Gerais da Venda de Energia Eléctrica em Alta Tensão, anexas ao
decreto-lei e constituída para resolver um litígio entre a Electricidade de
Portugal, E. P., e a Federação dos Municípios do Distrito de Faro, podem ser
objecto de fiscalização concreta do Tribunal Constitucional. Depois de afirmar a
normatividade de tal «determinação», e a imediação das normas questionadas do
regulamento de arbitragem que era conteúdo do Acórdão n.º 150/86, trilhou novos
caminhos ao discutir a questão de saber se o regulamento de arbitragem é um acto
normativo privado. O Acórdão recusa uma concepção segundo a qual «os preceitos
em causa só seriam susceptíveis de constituírem objecto da fiscalização
concreta de constitucionalidade, caso tivessem sido editados sob a forma de acto
legislativo ou, quando conceito, no exercício de um poder regulamentar» (p.
297). E continua:
«Dando por adquirido – o que faltaria demonstrar – que os actos normativos
privados estão todos eles subtraídos à fiscalização da constitucionalidade, a
verdade é que tal natureza não pode, em rigor, ser atribuída à determinação em
causa.
E isto, desde logo, porque sendo a comissão arbitral um tribunal arbitral
necessário, o afastamento das normas legais vigentes em matéria de processo e a
consequente subordinação aos termos processuais fixados por aquela comissão em
nada resulta da vontade das partes, pelo que se não pode aí descortinar uma
manifestação da autonomia privada.
Mas também, acrescente‑se, porque os tribunais, arbitrais exercem poderes
soberanos, tal como os restantes tribunais, não sendo legítimo, por isso,
negar o carácter público da função que desempenham.»
Estes dois últimos argumentos apontam para duas diferentes determinações do
conceito de norma. A subordinação à norma independentemente da vontade das
partes aponta para o elemento da heteronomia, o apelo à soberania dos tribunais
arbitrais aponta para o elemento do reconhecimento estatal.
A exigência de heteronomia é fácil de demonstrar. Heteronomia é a
característica de uma orientação de comportamento que se impõe
independentemente da vontade daqueles a quem se dirige. Excluem‑se, portanto,
as normas criadas pela autonomia privada. Só as normas heterónomas suscitam o
problema típico da administração de justiça constitucional, que é o do
conflito entre liberdade e autoridade, entre a vontade individual e a vontade
geral, que as normas heterónomas resolvem fazendo depender a liberdade e a
autodeterminação da pessoa, que são valores que decorrem imediatamente da
dignidade da pessoa humana, da vontade alheia, que se impõe, se necessário pela
força coercitiva do Estado, em nome da racionalidade do bem comum (neste
sentido, citando Herzog, Ferdinand Kirchhof, Private Rechtssetzung, 1987, p.
86). Consequentemente, o Tribunal Constitucional tem vindo a excluir as normas
que considera de autonomia privada, da sua esfera de fiscalização.
A heteronomia funcionalmente relevante para a definição de norma jurídica como
objecto do processo constitucional não se basta com a simples susceptibilidade
de imposição a terceiros. Também as normas de uso por terceiros de certas
instalações, de coisas ou de prédios privados, emitidas pelo seu proprietário
como tal, e não no âmbito de relações obrigacionais de que seja sujeito,
obrigam terceiros independentemente da vontade destes. E, no entanto, tais
normas pertencem à autonomia privada. A vontade privada – incluindo a vontade
particular de associações infra‑estatais – exprime-se nelas dentro da sua
esfera própria de actuação no prosseguimento de fins pessoais ou particulares,
que não se integram num sistema de fins do Estado. Não têm pretensão de
«generalidade», como qualidade da estatuição normativa, no sentido atrás (n.º
4) apontado. Não têm, por isso, que se legitimar democraticamente, nem
racionalmente pelo bem comum do Estado de direito, pelo que não se justifica
o específico controlo da sua constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional.
É a «generalidade» que fundamenta a heteronomia do direito objectivo, a qual
nessa medida se contrapõe à autonomia privada, mesmo quando esta se impõe ao
respeito de terceiros. Assim o Tribunal considera no Acórdão n.º. 156/88 que
uma norma do Regulamento da Prevenção e Controlo do Alcoolismo da CP –
Caminhos de Ferro Portugueses, E. P., não podia ser objecto de controle da
constitucionalidade pelo Tribunal por ser proveniente de autonomia privada. Do
mesmo modo, o Tribunal decidiu, no Acórdão n.º 472/89 – desta vez
profundamente dividido, não quanto à doutrina, mas quanto à sua aplicação –
que duas normas, uma do Estatuto e outra do Regulamento de Disciplina da
Federação Portuguesa de Futebol, não podiam ser objecto de fiscalização de
constitucionalidade por parte deste Tribunal, porque os poderes regulamentar
e disciplinar em questão são poderes privados, que a lei reconhece às
associações de direito privado, no quadro da sua autonomia própria (p. 9585).
7 – O reconhecimento como elemento do conceito funcional de norma. O direito
heterónomo que os tribunais aplicam e de que o Tribunal Constitucional controla
a constitucionalidade não é apenas constituído por normas criadas por órgãos do
Estado. A Constituição incorpora no direito português o direito internacional,
nos termos do artigo 8.º (cf. ainda o artigo 16.º) e 278.º, n.º 1, e refere‑se
às «normas» das convenções colectivas de trabalho (n.º 4 do artigo 56.º),
resultantes do direito à contratação colectiva que é reconhecido às
associações sindicais (n.º 3 do artigo 58.º). Sendo indiscutível o controlo da
constitucionalidade das convenções internacionais (n.º 1 do artigo 278.º), que
o Tribunal tem feito, tanto preventiva (cf., por exemplo, o Acórdão n.º
168/88) como sucessivamente (cf., por exemplo, o Acórdão n.º 423/87, Acórdãos,
cit., 10.º vol., p. 77 ss), é difícil conceber outra solução para o restante
direito internacional, incluindo as normas emanadas dos órgãos competentes das
organizações internacionais (n.º 3 do artigo 8.º) e o costume internacional
(n.º 1 do artigo 8.º). Ora nenhuma forma de ratificação, assinatura ou
incorporação transforma os órgãos de Estados estrangeiros e de organizações
internacionais e os sujeitos das práticas e das convenções jurídicas costumeiras
em poder público do Estado português, nem este se investe em poderes de
autoridade, para usar a dicotomia que fez vencimento no presente acórdão. Tanto
basta para negar o monopólio normativo do Estado português. Tal monopólio não
deriva aliás de nenhum princípio constitucional. A soberania interna do Estado
apenas exige que o Estado tenha «a última palavra» (Ossenbühl fala numa
«prerrogativa de criação normativa»), o que equivale à supremacia da
Constituição. O monopólio da força física coercitiva apenas exige que as
sanções jurídicas garantam coercitivamente o cumprimento das obrigações
contidas naquelas normas que o Estado reconhece para tal efeito, a que empresta
a força do seu braço. Não impede a existência de outros poderes que não são
públicos, nem por si nem por delegação, com competência para criar normas
heterónomas, que são reconhecidas como tais pelo Estado. Numa palavra: o Estado
detém não o monopólio de criação, mas apenas o do reconhecimento das normas
como normas jurídicas (neste sentido: Ferdinand Kirchhof, ob. cit., p. 133 ss.,
Fritz Ossenbühl, em Josef Isensee, Paul Kirchhof, Handbuch des Staatsrechts,
1988, § 61, Rn. 30 ss.).
A jurisprudência do Tribunal tem procurado manter a doutrina do monopólio da
criação normativa através da noção de «atribuição de poderes ou funções
públicas a entidades privadas». Segundo o Acórdão n.º 472/89, «essa atribuição
ou devolução de poderes pode incluir também a outorga de faculdades normativas
– e, então, as correspondentes normas serão normas públicas, porque justamente
produzidas no exercício desse poder público devolvido ou delegado no ente
privado» (p. 9584). Não se nega a possibilidade de delegação de poderes
normativos públicos. Só que tal delegação é uma ficção indesejável sempre que
implica a atribuição a um acto de um sentido diferente daquele que corresponde à
intenção do seu autor e ao sentido explícito das palavras em que se manifesta.
Não é necessário, para explicar a validade das regras de processo a observar na
arbitragem, atribuir um poder público, e menos ainda «poderes soberanos» (como
pretende o Acórdão n.º 150/86, p. 299), às partes e na falta do seu exercício
por estas, aos árbitros que elas escolheram. Como é pura ficção falar de um
poder público estatal português derivado atribuído ao governo de um Estado
estrangeiro ou ao órgão de uma organização internacional para criar direito
internacional convencional. O mesmo se deve dizer, como procurarei mostrar a
seguir, do poder de contratação colectiva. Basta, em todos estes casos, evocar
as normas legais ou constitucionais, de remissão ou de reconhecimento, que são
aplicáveis. Quanto ao costume, tal atribuição nem sequer é concebível, pelo que
não pode ser ficcionada.
A imposição dogmática do modelo da delegação de competência normativa pública
corresponde, aliás, a uma doutrina da identidade – isto é, dos critérios de
pertença de uma norma jurídica a uma ordem jurídica – e da unidade da ordem
jurídica – isto é, dos elementos comuns a todas as normas da ordem jurídica –,
que encontrou a sua mais acabada expressão na teoria de Kelsen. A consequência
indesejável desta doutrina é a impossibilidade de admitir a simultânea validade
de ordens normativas diversas – a internacional, as estrangeiras, as
eclesiásticas, as institucionais infra‑estaduais. A doutrina mais recente tem
seguido a orientação pluralista propugnada por Santi Romano (L'ordinamento
giuridico, 1918, reimp. 1977), que chama a atenção para os factos institucionais
ligados à criação, à aplicação e à garantia das normas e considera a ordem
estatal como uma entre outras ordens institucionais. Nesta linha, Hart
(«Kelsen's Doctrine of the Unity of Law», em Ethics and Social Justice, ed. for
H. E. Kiefer, M. K. Munitz, 1970, p. 171 ss.) defendeu que o critério de
pertença de normas jurídicas a um único sistema depende de critérios comuns de
reconhecimento dessas normas pelos agentes da aplicação e garantia delas, e
não de uma relação de delegação de competência ou de derivação de validade e,
portanto, de uma inexistente origem comum. E Wengler («Betrachtungen über den
Zusammenhang der Rechtsnormen in der Rechtsordnung und die Verschiedenheit der
Rechtsordnungen», em Festschrift für Laun, 1953, p. 719 ss) mostrou como a
unidade sistémica da ordem jurídica se revelava, não na origem comum das suas
normas, mas na comum contribuição de todas elas para a definição dos mesmos
bens jurídicos. Não importa aqui decidir esta questão doutrinária, apenas
mostrar que a transformação de poderes privados ou outros não‑estatais em
poderes públicos é uma desnecessária hipóstase de evitável dogmatismo para
explicar a validade dentro do Estado de normas de origem não estatal, validade
que resulta simplesmente de normas remissivas, de incorporação normativa ou de
reconhecimento de fontes de direito.
8 – Outros elementos do conceito funcional de norma. A determinação que
anteriormente se fez dos elementos do conceito funcional de norma como objecto
do processo constitucional não pretende ser exaustiva, mas apenas destacar
aqueles elementos que importa questionar na generalidade dos casos e justificar
suficientemente a solução a dar ao presente caso. Noutras hipóteses poderá haver
outros problemas de delimitação, nomeadamente os relacionados com o âmbito de
aplicação espacial e temporal das normas (quanto ao direito estrangeiro, dos
órgãos de Governo próprio de Macau, pretérito, etc.) que não são aqui
relevantes.
II – Sobre as convenções colectivas de trabalho como normas.
9 – Nada mais resta do que aplicar os resultados que uma ponderação da
jurisprudência anterior do Tribunal permitia alcançar, às convenções colectivas
de trabalho.
Não é duvidosa a normatividade das convenções colectivas de trabalho, porque
regulam o comportamento dos membros das associações sindicais subscritoras, dos
membros das associações patronais subscritoras e ainda dos trabalhadores ao
serviço de empresas públicas ou de capitais públicos, cujo processo de
negociação foi autonomizado, sejam ou não membros das associações negociantes.
Não se aplicam [só] aos membros actuais, mas também aos futuros e aos que não
são membros mas já alguma vez o foram durante o período da sua vigência
(artigos 8.º, 9.º e 3.º, n.º 3, da Lei da Regulamentação Colectiva de Trabalho
(Decreto‑Lei n.º 519‑C1/79, de 29 de Dezembro)). Uma vez que a generalidade da
previsão normativa não é exigida pelo conceito funcional de norma, sempre seria
irrelevante para a normatividade que as convenções não se apliquem aos
trabalhadores não filiados nem às entidades patronais não subscritoras ou não
filiadas. Mas, dada a delimitação que a lei faz do âmbito de aplicação pessoal
das normas das convenções colectivas, é claro que elas não se aplicam a uma
classe fechada, mas a uma classe aberta de casos e de pessoas, são susceptíveis
de aplicação indefinidamente repetida, são, portanto, gerais e abstractas.
Aplicam‑se, nomeadamente da forma indicada, a trabalhadores futuros e a
futuras entidades patronais.
10 – Também contra o que diz o acórdão, não é duvidoso que a norma sub judicio
viola directamente a Constituição, nomeadamente o princípio da igualdade, e não
há uma primária ilegalidade que exclua o pretendido exame. É certo que as
convenções colectivas não podem «limitar o exercício dos direitos fundamentais
constitucionalmente garantidos» (alínea a) do n.º 1 do artigo 6.º da Lei da
Regulamentação Colectiva de Trabalho), mas a disposição do artigo 6.º da Lei da
Regulamentação Colectiva de Trabalho não transforma as normas constitucionais em
normas legais, não incorpora o princípio da igualdade, que é aplicável à relação
de trabalho por força da Constituição e não por força da Lei da Regulamentação
Colectiva de Trabalho.
11 – As normas das convenções colectivas são potencialmente heterónomas,
vinculam as pessoas por elas abrangidas nos termos da lei independentemente e
eventualmente contra a vontade dos destinatários das normas. Impõem‑se aos
contratos individuais de trabalho que lhes estão subordinados como se fossem
leis imperativas e mesmo contra leis imperativas: ao alterarem mínimos legais
de remuneração, por exemplo, proíbem cláusulas de contratos individuais
permitidas por lei (alínea c) do n.º 1 do artigo 6.º e n.º 1 do artigo 14.º da
Lei de Regulamentação Colectiva de Trabalho). As convenções colectivas de
trabalho têm, é certo, uma imperatividade em sentido único, só enquanto
estabelecem condições mais favoráveis para os trabalhadores: impõem níveis
mínimos e não tectos máximos, os quais só podem ser estabelecidos por lei. Além
disso, valem para trabalhadores e entidades patronais que não se integram em
associações ou entidades subscritoras no momento da celebração da convenção ou
que deixaram de as integrar. É certo que para as partes outorgantes, as
normas das convenções colectivas são autónomas, são resultado de um processo
negocial de criação normativa, regulam de acordo com a sua vontade os seus
interesses, mas impõem‑se depois aos seus destinatários por força e nos termos
da lei, independentemente da contribuição destes para a sua criação.
Dizer que os destinatários são representados pelas associações outorgantes só
faz sentido relativamente aos que são associados ao tempo da celebração. Mas
mesmo quanto a estes cumpre acentuar que a filiação numa associação sindical ou
patronal não tem o sentido de um mandato de representação em futuras
convenções colectivas nem é um acto de submissão voluntária a prévias ou
futuras convenções colectivas – do mesmo modo que a aquisição de cidadania por
naturalização, por exemplo, não é um acto de submissão voluntária às leis do
Estado. A sua submissão às convenções colectivas – como além, no caso de
naturalização – não deriva normativamente da vontade mas da lei (assim,
Ferdinand Kirchhof, ob. cit., p. 184 ss).
Decisiva é, porém, a questão de saber se as convenções colectivas de trabalho
têm pretensão de «generalidade», isto é, se se integram no sistema do direito
objectivo, se prosseguem ao fim e ao cabo os fins da Constituição, não obstante
o espaço da autonomia na sua negociação. De tal depende justificar‑se ou não,
quanto a elas, o controlo específico de constitucionalidade pelo Tribunal
Constitucional. O mesmo é dizer, na terminologia adoptada (supra n.º 6), que de
tal depende serem ou não heterónomas no sentido funcional relevante.
São úteis a este respeito os contributos constitucionalistas alemão e
italiano, não obstante o contexto constitucional e legal seja parcialmente
diferente. Na Alemanha é discutida e ainda não foi decidida pelo Tribunal
Constitucional Federal a questão de saber se as convenções colectivas são
actos de criação de direito e se, por isso, é possível contra eles um
Verfassungsbeschwerde (recurso de agravo constitucional). Benda (Benda, Klein,
Lehrbuch des Verfassungsprozessrechts, 1991, p. 1835) põe, em minha opinião, o
dedo na ferida, embora as suas considerações estejam afinal em contradição com
toda a evolução do direito do trabalho para a sua plena integração na ordem
constitucional, com paralelas consequências no entendimento das relações entre o
Estado e a sociedade como relações jurídicas subordinadas à Constituição. Benda
começa por expor a opinião contrária nos seguintes termos: «A opinião que, além
do mais, vê nos contratos colectivos objectos possíveis de um agravo
constitucional, invoca não por acaso a função objectiva do agravo
constitucional. A sua função não é simplesmente esgotar‑se na protecção da
esfera dos direitos fundamentais do indivíduo. Antes deve preencher também uma
“função geral” dentro da ordem jurídica na medida em que defende o direito
constitucional e promove a sua interpretação e desenvolvimento. Daqui resulta
a tarefa de conceber o conceito de poder público de modo tão amplo que não fique
limitado ao exercício da autoridade estatal, mas abranja outras relações de
autoridade, que se tivessem estabelecido a par do poder estatal e subsistissem
por força do reconhecimento estatal». Passando a expor a sua própria opinião
escreve: «tais considerações têm, porém, consequências para o entendimento da
liberdade no domínio da liberdade sindical (artigo 9.º, secção 3, da Lei
Fundamental), que é uma parte importante da liberdade dos cidadãos. A liberdade
sindical e a autonomia das convenções colectivas não são expressão de uma
divisão de trabalho entre Estado e partes convencionais ou da assunção pelas
forças sociais de funções públicas. Elas devem, ao contrário, respeitar um
espaço livre do Estado. Nisso tem‑se em conta que as decisões tomadas neste
domínio independentemente do Estado, tais como a conclusão de contratos
colectivos podem ter reflexos muito importantes, mas também prejudiciais, sobre
a política económica e financeira. Se as partes convencionais fossem “poder
público”, estariam nas suas convenções vinculadas ao bem comum. É certo que a
consciência de ser corresponsável pelo todo é um pressuposto essencial também
da autonomia convencional. Mas se associações, que representam interesses
parciais legítimos, são vinculadas juridicamente ao bem comum ou se lhes é
imposta uma “vinculação social”, então não só se limita o carácter liberal da
autonomia convencional, como também o Estado se desonera da sua obrigação de
actuar no interesse do bem comum, no caso de derivarem perigos da actividade
de associações livres e não incorporadas no Estado». Quanto à avaliação que
Benda faz dos argumentos dos que defendem que as convenções colectivas são
fontes de direito, já aqui se mostrou que o reconhecimento estatal das normas
não implica o carácter de poder público das partes convencionais como entidades
criadoras de direito. Por outro lado, se é verdade que é a vinculação ao bem
comum que fundamenta o reconhecimento das convenções colectivas como direito
objectivo e não o invés, não é menos que se trate de uma questão a responder na
base do direito positivo, e aí as várias manifestações do reconhecimento podem
ser outras tantas provas do carácter jurídico e não de novas regras da
autonomia privada, das normas das convenções colectivas. A ser assim, como se
pretenderá para o direito português, haverá que concluir‑se que as regras
achadas por concordância de empregadores e trabalhadores na prossecução dos
seus interesses parciais são, em princípio, as mais conformes com o bem comum a
que estão não obstante vinculadas e que o Estado não está desonerado de promover
através da legislação económica financeira e da legislação laboral de
enquadramento e suprimento que lhe competem. Uma orientação relevante, apesar
das críticas, parece, aliás, ser a do Tribunal Constitucional Federal Alemão,
embora formulada em contextos diferentes do do objecto do processo
constitucional. Assim aquele Tribunal disse que «a convenção colectiva contém
na sua parte normativa regras jurídicas, isto é, disposições imperativas – nos
termos do § 4, secção 3.ª, da Lei da Convenção Colectiva – gerais‑abstractas
sobre o conteúdo das relações jurídicas de trabalho por ela abrangidas» (BVerfGE
34, 307 [317]). «Na criação de normas pelas partes convencionais trata‑se de
legislação no sentido material que produz normas em sentido técnico‑jurídico»
(acórdão de 24 de Maio de 1977: BVerfGE 44, 341).
Em Itália existia a prática de obter a eficácia erga omnes das normas dos
contratos colectivos de âmbito limitado através de decretos legislativos
delegados de recepção daquelas normas. Estes decretos tinham a natureza de uma
lei transitória, provisória e excepcional, mas podiam ser reiterados,
obtendo‑se assim um efeito semelhante às portarias de extensão do direito
português. A Corte Costituzionale (Sentença 70/1963) considerou
inconstitucionais as leis de reiteração, por serem uma forma de estabilizar um
sistema de eficácia erga omnes das convenções colectivas diverso do previsto no
artigo 39.º da Constituição Italiana que prevê a possibilidade de convenções
colectivas de trabalho com eficácia obrigatória para todos os que pertencem às
categorias profissionais a que as convenções se referem. Mas a jurisprudência
passou a entender que as convenções colectivas assumiam indirectamente uma
eficácia geral por aplicação imediata do artigo 36.º da Constituição Italiana,
na parte relativa aos direitos retributivos do trabalhador. Em síntese da
descrição que faz desta solução, conclui Zagrebelsky (Manuale di Diritto
Costituzionale, I, 1984, p. 252 ss.) que «o direito efectivo triunfou sobre o
direito formal. Se bem que de modos indirectos, a contratação actual chega a
valer de um modo que se assemelha bastante mais ao que é típico das fontes de
direito do que dos actos de autonomia privada».
12 – Passando finalmente ao exame do direito português, deverá dizer‑se que ele
claramente reconhece as convenções colectivas de trabalho como fontes de
direito e que as integra na unidade sistemática do direito objectivo
subordinado à Constituição, pelo que as normas das convenções colectivas não
são só reconhecidas como heterónomas.
Desde logo, o n.º 4 do artigo 56.ºda Constituição tem o sentido de reconhecer
como «normas» jurídicas as das convenções colectivas de trabalho. Quando
dispõe que «a lei estabelece as regras respeitantes à legitimidade para a
celebração das convenções colectivas de trabalho, bem como à eficácia das
respectivas normas», a Constituição não deixa ao arbítrio do legislador
ordinário a própria existência das convenções colectivas como normas jurídicas,
mas apenas as modalidades do seu regime. De qualquer modo, a lei tem de
respeitar a garantia constitucional às associações sindicais do direito de
contratação colectiva (n.º 3 do mesmo artigo 56.º). A redacção do n.º 4 é
altamente significativa na medida em que atribui à lei e não à vontade das
partes a determinação da legitimidade das partes e do âmbito da eficácia pessoal
das convenções colectivas. Se se tratasse de autonomia privada, essa
legitimidade e esse âmbito estariam predeterminados pela natureza das coisas:
as convenções só poderiam obrigar as partes contratantes. A redacção revela
assim que a Constituição teve em vista a manutenção das características
essenciais do instituto jurídico no direito português da altura, que se mantêm
hoje (artigo 12.º da Lei do Contrato Individual de Trabalho, ainda em vigor;
artigos 4.º, 5.º e 9.º da Lei n.º 169‑A/76, de 28 de Fevereiro, correspondentes
aos artigos 6.º, 14.º e 7.º do Decreto‑Lei n.º 519‑C1/79), dando
justificadamente uma base constitucional à heteronomia, como fonte de direito,
das convenções colectivas.
Isto é confirmado, de forma decisiva, pelo confronto entre o n.º 3 e o n.º 4
do artigo 56.º. Na verdade, a Constituição não reconhece as normas das
convenções colectivas como consequência da atribuição de um poder público ou
sequer normativo a certas entidades ou órgãos. Apenas ressalva o direito de
contratação colectiva de cada associação sindical, como uma possível parte
contratual, direito que terá que ser respeitado pela lei definidora das regras
respeitantes à legitimidade para a celebração das convenções, além de que
implica desde logo um espaço de autonomia reservado à contratação colectiva. O
reconhecimento das normas das convenções colectivas é feito pela Constituição
através da criação da forma jurídica da convenção colectiva, cujas normas, por
revestirem essa forma, têm a eficácia que a lei, não a vontade das partes,
determinar.
13 – O regime legal veio desenvolver e reafirmar as determinações
constitucionais. Além do que já se disse sobre o âmbito da eficácia pessoal das
convenções colectivas, importante é a inserção das convenções colectivas no
sistema de fontes do direito do trabalho. Do artigo 12.º da Lei do Contrato
Individual de Trabalho e dos artigos 5.º, 6.º e 14.º, n.º 1, da Lei da
Regulamentação Colectiva do Trabalho deriva, nomeadamente, que as convenções
colectivas se situam hierarquicamente abaixo das normas jurídicas de origem
estatal, mas que regulam os direitos e deveres recíprocos dos trabalhadores e
das entidades patronais reconhecido por contrato individual de trabalho, não
podendo ser afastadas por estes salvo para estabelecer condições mais favoráveis
aos trabalhadores. As normas convencionais que estabelecem condições mais
favoráveis aos trabalhadores prevalecem nessa parte sobre as normas estatais
que derrogam relativamente às entidades patronais e aos trabalhadores
abrangidos pela convenção. Nestas as normas que impõem limites mínimos não são
dispositivas mas imperativas, contêm uma proibição de limites contratuais
abaixo dos mínimos e uma permissão de limites contratuais superiores. As normas
mais favoráveis dos contratos individuais movem‑se dentro do permitido, não
derrogam parcialmente a norma que as permite. Quanto às normas estatais
dispositivas, são derrogadas parcialmente pelas convenções colectivas mais
favoráveis, e são afastadas pelos contratos individuais em todos os casos. Ora
a derrogação parcial de normas estatais só pode ser feita por outras normas
jurídicas igualmente heterónomas.
O argumento também vale, por maioria de razão, quando não há subordinação
hierárquica, mas identidade de nível, entre a norma estatal e a convenção
colectiva. É o que se passa entre as portarias de regulamentação e as
convenções colectivas. Estas últimas fazem cessar automaticamente a vigência
das portarias em cujo âmbito são aplicáveis, relativamente aos trabalhadores e
identidades patronais abrangidas pelas convenções (artigo 38.º da Lei da
Regulamentação Colectiva do Trabalho).
O mesmo se diga das decisões arbitrais em conflitos colectivos que resultem da
celebração ou revisão de uma convenção colectiva, decisões que têm os mesmos
efeitos das convenções colectivas (n.º 8 do artigo 34.º da mesma Lei). Ora,
segundo a doutrina do Acórdão n.º 150/86, as decisões arbitrais contêm normas
sujeitas ao controlo de constitucionalidade do Tribunal. É inadmissível que
deste ponto de vista as normas das convenções colectivas tenham natureza
diferente das normas das decisões arbitrais.
14 – O âmbito da eficácia pessoal das convenções colectivas pode ser estendido,
total ou parcialmente, a entidades patronais do mesmo sector económico e a
trabalhadores da mesma profissão ou profissão análoga mediante portarias de
extensão (artigos 27.º a 29.º da Lei da Regulamentação Colectiva de Trabalho).
As portarias de extensão tornam‑se necessárias por força do princípio da
igualdade (artigo 13.º da Constituição) e da sua especial aplicação que é o
princípio de que para trabalho igual salário igual (alínea a) do n.º 1 do
artigo 59.º da Constituição). A relatada jurisprudência constitucional
italiana (supra n.º 11) pôs este ponto em relevo. Mesmo sem portaria, a
imediata aplicabilidade do princípio já impõe que na mesma empresa os
trabalhadores de igual qualificação tenham as mesmas condições remuneratórias,
independentemente da sua filiação sindical. Todos eles devem ser considerados
no número de trabalhadores por categoria profissional envolvidos no processo
que se situem no âmbito da aplicação do acordo a celebrar (n.º 4 do artigo 22.º
da Lei da Regulamentação Colectiva do Trabalho). Mas o princípio também vale
para empresas e trabalhadores fora da convenção mas em iguais circunstâncias.
As portarias de extensão não se aplicam aos trabalhadores abrangidos
directamente pelas convenções colectivas que estendem. Ora o princípio da
igualdade que fundamenta a extensão do âmbito pessoal de um certo regime
jurídico, proíbe também que tenham diferente regime jurídico trabalhadores e
empresas que se encontram em circunstâncias iguais do ponto de vista relevante
da igualdade. Ora não há dúvida de que as portarias de extensão são fontes de
direito objectivo, contêm normas jurídicas «gerais» e, portanto, vinculadas ao
bem comum como é entendido no Estado de direito democrático da Constituição e
sujeitas ao controlo de constitucionalidade do Tribunal Constitucional. É
jurisprudência assente (Acórdão n.º 392/89, Diário da República, 2.ª Série, de
14 de Setembro p. 9177 ss.) e o acórdão também o confirma (n.º 7). Seria uma
ofensa da igualdade, se as normas da convenção colectiva não estivessem
sujeitas aos mesmos critérios de validade, e se as pessoas por esta abrangidas
não tivessem os mesmos direitos garantidos da mesma maneira, inclusivamente do
ponto de vista da fiscalização concreta da constitucionalidade. E que a lei
assim o considera depreende‑se desde logo de se tratar de portarias de extensão
e não, como na Alemanha, de generalização. Se a portaria tivesse uma diferente
natureza jurídica (norma jurídica em vez de regra da autonomia privada),
diferentes critérios de apreciação da sua conformidade com a Constituição e
diferente regime de controlo da constitucionalidade, então o princípio da
igualdade exigiria que o Estado substituísse o título e o regime dos direitos e
obrigações resultantes da convenção e «generalizasse» o regime desta. Não o faz
porque pressupõe que as normas da convenção já têm a mesma qualidade jurídica e
o mesmo regime que a portaria se limita a estender a outra classe de pessoas.
As portarias não visam, portanto, essencialmente, controlar a conformidade das
convenções colectivas com a Constituição e a lei e com a política
económico‑financeira do Governo. Não há controlo do fundo deste tipo no
processo de depósito para publicação e entrada em vigor das convenções, que o
Governo controla (artigos 24.º a 26.º da Lei da Regulamentação Colectiva do
Trabalho). A interpretação correcta é antes a de que se comete aos parceiros
sociais a determinação de certos aspectos da política económico‑social e de que
essa comissão serve melhor o bem comum do que a interferência do Estado nessa
esfera.
15 – Finalmente o Código de Processo do Trabalho prevê acções de anulação e
interpretação de cláusulas de convenções colectivas de trabalho (artigo 177.º e
ss.), estatuindo‑se que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça sobre tais
questões tem o valor de assento e como tal é designado, e será publicado na
1.ª Série do Diário da República e no Boletim do Trabalho e Emprego. Sem caber
discutir aqui a constitucionalidade dos assentos, tem justamente o Tribunal
considerado que os assentos contêm normas susceptíveis de controlo específico
da constitucionalidade (cf. Acórdão n.º 359/91, Diário da República, I Série‑A,
de 15 de Outubro de 1991, p. 5332 ss.). Seria absurdo que a norma interpretativa
de uma cláusula de convenção colectiva de trabalho fosse uma norma jurídica
objecto possível do processo constitucional, e que a materialmente idêntica
norma interpretada já não o fosse. O assento fixa direito, e por isso só anula
ou interpreta normas jurídicas, nunca regras da autonomia privada.”
2.2. Salvo o devido respeito pela opinião que logrou
vencimento, afigura‑se‑me claramente insuficiente afirmar, contra a sólida
argumentação desenvolvida na declaração de voto parcialmente transcrita, que “as
convenções colectivas de trabalho, porque fundadas no exercício da autonomia
privada, não contêm actos normativos sujeitos à fiscalização concreta da
constitucionalidade que incumbe a este Tribunal exercer, nos termos do artigo
280.º da Constituição da República Portuguesa”.
Como na aludida declaração de voto se demonstrou, as
normas das convenções colectivas de trabalho não apenas se mostram dotadas de
generalidade e abstracção como satisfazem os requisitos da noção funcional de
norma que o Tribunal adoptou desde o Acórdão n.º 26/85: elas integram regra de
conduta ou padrão de valoração de comportamento para os particulares e para a
Administração e critério de decisão para esta e para o juiz.
Além do preenchimento destes critérios de normatividade,
as normas das convenções colectivas de trabalho também cumprem, na síntese de
José Carlos Vieira de Andrade (“A fiscalização da constitucionalidade das
«normas privadas» pelo Tribunal Constitucional”, Revista de Legislação e de
Jurisprudência, ano 133.º, n.º 3921, 1 de Abril de 2001, pp. 357‑363, em
especial p. 358), os “critérios adicionais como a heteronomia (determinação, em
casa espécie concreta, de um acto normativo dotado de vinculatividade não
dependente da vontade dos destinatários, ou de subordinação à norma
independentemente da vontade das partes), o reconhecimento estatal
(reconhecimento jurídico‑político da força vinculativa heterónoma dos actos
normativos, capaz de os impor a terceiros ou a destinatários não participantes
no seu processo formativo) e a imediação (a violação directa da Constituição,
significando a imediação das normas e princípios constitucionais como parâmetros
de controlo)”.
A relevância normativa das cláusulas das convenções
colectivas de trabalho enquanto fonte constitucionalmente reconhecida do direito
do trabalho (cf., por último, Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do
Trabalho, Parte I – Dogmática Geral, Coimbra, 2005, pp. 229‑236, 469‑472 e
799‑847) foi reforçada com a publicação do Código do Trabalho (CT), ao consentir
o afastamento de normas legais por convencionais mesmo que estas se não
mostrassem mais favoráveis para os trabalhadores (artigo 4.º, n.º 1), mas ao
manter a regra da subsidiariedade dos instrumentos não negociais de
regulamentação colectiva de trabalho face aos negociais (artigo 3.º) e ao
reafirmar que as mesmas vinculam mesmo trabalhadores e empregadores não
representados pelas associações signatárias no momento da celebração (artigo
553.º) ou que delas se venham a desfiliar (artigo 554.º). Assinale‑se ainda que,
como resulta do n.º 21 do Acórdão n.º 306/2003, emitido em sede de fiscalização
preventiva da constitucionalidade de diversas normas do CT, a pronúncia do
Tribunal Constitucional no sentido da não inconstitucionalidade dos
regulamentos de extensão radicou, no fundo, no reconhecimento de que eles não
representam o exercício (autónomo) do poder regulamentar do Estado, mas antes o
alargamento, consentido pelo artigo 56.º, n.º 4, da CRP, do âmbito pessoal das
normas constantes de convenções colectivas de trabalho, tidas
constitucionalmente como fonte de direito, a par das fontes de origem estatal.
Nada tendo sido aduzido no precedente acórdão que abale
a construção desenvolvida na declaração de voto atrás parcialmente transcrita,
nem se tendo registado entretanto alteração relevante no sistema das fontes de
direito laboral, antes se tendo reforçado a função central da contratação
colectiva, votei convictamente no sentido de que questões de
constitucionalidade reportadas a normas de convenções colectivas de trabalho
constituem objecto idóneo de recurso para o Tribunal Constitucional.
Para além de essa ser, a meu ver, a solução
jurídico‑constitucionalmente correcta, ela é também a única que – numa época em
que parece existir alargado consenso no sentido da necessidade de revitalização
da contratação colectiva e em que, portanto, cada vez mais as relações laborais
serão reguladas por normas convencionais e não por normas “públicas” – poderá
evitar que todo um vastíssimo sector da vida dos cidadãos, com particular
relevância constitucional, como o que se prende com os direitos dos
trabalhadores, fique privado de acesso ao Tribunal Constitucional.
Mário José de Araújo Torres
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não acompanho o entendimento que não reconhece as normas contidas em
convenções colectivas de trabalho como normas para efeito de poderem ser
apreciadas em fiscalização de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional,
aderindo ao essencial das razões da corrente que, neste domínio, é minoritária
na jurisprudência do Tribunal e de que, por mais recente, refiro o acórdão n.º
580/2004.
Muito em resumo, são para mim decisivos os seguintes elementos positivos que
caracterizam especificamente estas normas, no plano das fontes normativas,
quanto aos atributos (cfr. J.C. Vieira de Andrade, “A fiscalização da
constitucionalidade das “normas privadas” pelo Tribunal Constitucional”, Revista
de Legislação e de Jurisprudência, Ano 133º, n.º 3921, p.357 e ss.) de
heteronomia (determinação, em cada espécie concreta, de um acto normativo dotado
de vinculatividade não dependente da vontade dos destinatários, ou de
subordinação à norma independentemente da vontade das partes) e reconhecimento
estatal (reconhecimento jurídico-político da força vinculativa heterónoma dos
actos normativos, capaz de os impor a terceiros ou a destinatários não
participantes no seu processo formativo) e que claramente as distinguem de
outras hipóteses de “normas privadas” que deles não comungam, permitindo
qualificá‑las de modo diferenciado para efeito do artigo 280.º da Constituição:
- são reconhecidas como “normas” pela própria Constituição que como tal
se lhes refere expressamente, embora deferindo para a lei as condições da sua
eficácia (artigo 56.º, n.º 4);
- têm a sua força regulada no capítulo das fontes do direito laboral,
não estando o seu âmbito pessoal de aplicação necessariamente dependente da
existência de relação actual de representação dos destinatários pelas entidades
celebrantes, ficando sujeitos ao seu regime trabalhadores e empregadores que, no
momento em que se conclui o processo negocial e se tornam eficazes, não integram
as associações signatárias (cfr. artigos 553.º e 554.º do Código de Trabalho);
- pertencem à questão de direito para todos os efeitos da competência
dos restantes tribunais, incluindo quanto ao valor e publicação dos acórdãos do
Supremo Tribunal de Justiça sobre as questões interpretativas, nos termos do
artigo186.º do Código de Processo de Trabalho.
Vítor Gomes
DECLARAÇÃO DE VOTO
Discordei da intervenção do Plenário no julgamento da questão
objecto deste processo assim como da decisão que nele fez vencimento.
1. Não tendo as divergências reveladas entre as decisões do Tribunal, em
matérias processuais, os mesmos inconvenientes que se reconhecem às que se
traduzem em juízos de constitucionalidade ou de não inconstitucionalidade sobre
a mesma norma, não nos pareceu justificada uma intervenção uniformizadora,
contrária à tradição do Tribunal neste domínio (vide o que se passou com a
questão do conhecimento das questões de desconformidade entre regras de direito
ordinário e de direito internacional convencional), sobretudo quando se
manifesta no seio do Tribunal uma evolução no sentido que tem colhido o favor de
parte significativa da doutrina. Não se compreende na verdade, para além das
demais razões apontadas na declaração de voto do Senhor Conselheiro Mário
Torres, que a coexistência e o diálogo das diferentes posições a este respeito
manifestadas tenha passado a deixar de ser aceitável quando uma destas posições
lograva obter um maior eco entre os juízes e fazia vencimento numa secção.
2. Quanto à questão central discutida no acórdão, reafirmamos a posição que
assumimos em declarações de voto apensas aos Acórdãos nºs. 531/2004, 26/2005 e
177/2005 e que fez vencimento no Acórdão nº 580/04, que subscrevemos: as regras
contidas nas convenções colectivas de trabalho devem considerar-se como
“normas”, para os efeitos do sistema português de controlo da
constitucionalidade.
Esta posição não é nova, como é sabido, tendo sido inicialmente desenvolvida na
declaração de voto do Senhor Conselheiro Sousa e Brito aposta ao Acórdão nº
172/92 e vindo a ser posteriormente acolhida nos Acórdãos nºs. 214/94, 368/97,
229/98 e 580/04, para além de ser igualmente assumida em declarações de voto
anexas a outras decisões. Limitar-nos-emos pois a relembrar brevemente as razões
essenciais que alicerçam a nossa posição.
Acompanhamos na verdade a tese central avançada naqueles locais quando ela
sublinha que para a densificação do conceito de norma “funcionalmente adequado
ao sistema de fiscalização da constitucionalidade e consoante com a sua
justificação e sentido” (Acórdão nº 26/85) o Tribunal tem essencialmente
recorrido aos critérios da normatividade, da heteronomia, do reconhecimento
estadual e da imediação (veja-se por último José Carlos Vieira de Andrade, “A
fiscalização da constitucionalidade das “normas privadas” pelo Tribunal
Constitucional”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 133, nº 3921,
pp. 357-363). Ora temos por indubitável que as convenções colectivas de
trabalho, cujas normas se impõem contra ou independentemente da vontade das
pessoas concretas a quem se dirigem, satisfazem a característica da heteronomia;
e que o seu conhecimento estadual é por igual inegável, uma vez que obtém sanção
estadual, sanção que vai ao ponto, na actualidade, de as suas regras, nos termos
do artigo 4º do Código do Trabalho, afastarem os preceitos deste Código.
Integram pois a ordem vigente entre nós e a sua não submissão ao controlo de
constitucionalidade por parte deste Tribunal contraria de forma clara a
justificação e sentido deste. Foi fundamentalmente por isto que dissentimos da
doutrina do presente acórdão.
Rui Manuel Moura Ramos