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Processo n.º 184/05
2.ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.No processo comum colectivo n.º 387/03, que correu termos no 3.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Figueira da Foz, o arguido A. foi condenado como autor material de um crime continuado de abuso sexual de criança, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 172.º, n.ºs 1, 2 e 3, alíneas a), b) e c), 22.º, n.ºs 1 e 2, alíneas b) e c), e 30.º, n.º 2, do Código Penal, na pena de cinco anos de prisão, com desconto do tempo da prisão preventiva sofrida. Mais foi o arguido condenado a pagar à menor ofendida a importância de
25.000,00 € (vinte e cinco mil euros). Desta decisão interpuseram recurso o Ministério Público e o arguido. O arguido interpusera ainda recurso interlocutório da deliberação do tribunal colectivo, tomada na sessão de julgamento do dia 28 de Maio de 2004, que não homologou a desistência de queixa apresentada pela assistente B., por si e em representação da sua filha (a menor ofendida), por considerar relevante a oposição deduzida pelo Ministério Público a essa desistência, bem como a sua promoção no sentido da continuação do procedimento criminal, nos termos do artigo 178.º, n.º 4, do Código Penal, não obstante esse procedimento não ter sido iniciado pelo Ministério Público. No recurso interlocutório o arguido apresentou as seguintes conclusões:
«1.ª A decisão recorrida, de não homologação da desistência da queixa, viola o disposto nos artigos 48.º e 51.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o disposto no artigo 178.º, n.ºs 1 e 4, do Código Penal, e o disposto nos artigos 2.º,
29.º, n.º 1, e 164.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa.
2.ª A decisão recorrida estriba-se, exclusivamente, na suposta faculdade que o n.º 4 do artigo 178.º do Código Penal concederia ao Ministério Público, no sentido de lhe permitir opor-se relevantemente à desistência de uma queixa apresentada pelos titulares do direito respectivo.
3.ª Ora, o único poder concedido ao Ministério Público pelo n.º 4 do artigo
178.º do Código Penal é o poder de, na ausência de queixa apresentada pelo titular do direito respectivo, iniciar o procedimento criminal.
4.ª A possibilidade de aplicação desse n.º 4 está condicionada ao preenchimento de um pressuposto prévio: a ausência de queixa!
5.ª Existindo queixa, como in casu acontece, falece a possibilidade de aplicação desse n.º 4.
6.ª Da conjugação n.º 4 do artigo 178.º do Código Penal com o n.º 1 da mesma norma, e com os artigos 48.º a 51.º do Código de Processo Penal, resulta que os crimes previstos no artigo 172.º do Código Penal revestem sempre natureza semi-pública.
7.ª Apenas nos casos excepcionais expressamente tipificados e descritos nas alíneas a) e h) do n.° 1 do artigo 178.º, a lei penal qualifica os delitos previstos no artigo 172.º do Código Penal como crimes públicos!
8.ª O n.° 4 do artigo 178.º do Código Penal constitui, tão-só, uma norma especial complementar da disposição geral constante do artigo 49.º do Código de Processo Penal.
9.ª O n.º 4 do artigo 178.º do Código Penal não constitui, nem sistemática nem teleologicamente, uma suposta nova alínea c) do n.° 1 do artigo 178.º do Código Penal!
10.ª Ao permitir ao Ministério Público a prossecução de um procedimento criminal que não iniciou e relativamente ao qual existe uma desistência de queixa apresentada pelo titular do direito respectivo, a decisão recorrida representa uma inconstitucional extensão analógica das excepções tipificadas nas duas alíneas do n.º 1 do artigo 178.º do Código Penal.
11.ª A decisão recorrida significa, assim, a inconstitucional qualificação e conversão judicial como crimes públicos de crimes que o legislador penal no artigo 178.º, n.º 1, do Código Penal, expressamente considerou e tipificou como delitos semi-públicos.
12.ª A decisão recorrida viola também, portanto, os artigos 2.º (princípio da separação de poderes), 29.º, n.º 1 (princípios da lega1idade e tipicidade criminal) e 165.º, n.º 1, alínea c), da CRP (reserva exclusiva da Assembleia da República em matéria de definição dos crimes e dos respectivos pressupostos).
13.ª A mãe da menor, assistente que deu início ao procedimento criminal apresentando em representação daquela a queixa, exerce sem qualquer limitação ou restrição o seu poder paternal.
14.ª O tribunal a quo não apresenta qualquer razão concreta, palpável, consistente ou credível da suposta “incapacidade” da assistente queixosa em exercer adequadamente o poder paternal e em zelar pelo interesse da menor. Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, homologando-se a apresentada desistência de queixa.» Responderam assistente e Ministério Público, a primeira concordando com a posição defendida pelo arguido e o segundo defendendo a confirmação da decisão recorrida. O representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra emitiu parecer em que sustentou a improcedência de todos os recursos interpostos. O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 3 de Novembro de 2004, decidiu negar provimento ao recurso interlocutório, bem como ao recurso interposto pelo Ministério Público. Decidiu ainda conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido da decisão condenatória, reduzindo a pena de prisão aplicada para 4 anos. Pode ler-se no referido aresto, no que ora importa:
«[...] Desistência da Queixa A questão suscitada no recurso interlocutório interposto pelo arguido, qual seja a de saber se a desistência da queixa apresentada pela assistente deve ou não ser considerada relevante e, caso afirmativo, ser homologada e assim determinar o arquivamento do processo, obviamente que deve ser conhecida imediatamente. Decidindo, dir-se-á. No caso vertente estamos perante uma desistência de queixa apresentada pela queixosa/assistente e mãe da menor ofendida (menor de 9 anos), já na fase de julgamento, designadamente já depois de o arguido e de duas testemunhas de acusação terem sido ouvidas. Não são pois razões atinentes ao interesse da menor, maxime a reserva da sua intimidade e da sua imagem, bem como a preservação do seu equilíbrio emocional e da sua personalidade, subtraindo-a à exposição pública, que subjazem à desistência apresentada. Ao que parece, serão razões puramente economicistas que estão na base do comportamento de favor relativamente ao arguido assumido pela assistente. Deste modo, a motivação nuclear ou a razão de ser da natureza semi-pública do crime objecto do processo, (já) não está em causa neste momento. O interesse da menor inflecte-se e projecta-se, pois, de forma exclusiva no sentido da procura e da descoberta da verdade, da reparação do mal que eventualmente lhe foi causado e da punição do responsável pela produção desse mal e prática do respectivo facto típico, ou seja, no sentido do exercício da acção criminal. Feita esta breve observação, tendo em vista um melhor enquadramento da questão jurídica submetida à nossa apreciação, vejamos se a lei concede ou não ao Ministério Público a faculdade de prosseguir com o processo ou procedimento nos casos em que o procedimento criminal pelo crime do artigo 172.º do Código Penal
(abuso sexual de crianças) se iniciou com a apresentação de queixa pelo respectivo titular, havendo posteriormente uma desistência, suposto que a vítima
é menor de 16 anos. Primeira observação a fazer é a de que, podendo o Ministério Público, de acordo com o artigo 178.º, n.º 4, do Código Penal, dar início ao procedimento criminal se o interesse da vítima o impuser, entre outros, no caso de crime do artigo
172.º, certo é que este crime, nesse contexto, perde a natureza de crime semi-público e, portanto, o respectivo estatuto ou regime. Segunda observação é a de que a lei ao exigir como requisito do exercício daquela faculdade pelo Ministério Público o interesse da vítima, pressupõe, por um lado, a inércia ou a posição de quem, sendo representante legal daquela, podia e devia exercer o direito de queixa e não o faz por razões alheias ao interesse da mesma e, por outro lado, a existência de razões atinentes à protecção e ao interesse da vítima que exijam ou justifiquem o exercício da acção criminal. Isto é, a lei pretende suprir uma omissão ou falha por parte de quem tem o dever de velar e zelar pela vitima (representante legal), com o intuito de o interesse da mesma ser salvaguardado e defendido e, daí que (se possa e deva concluir), quem cometeu a falha ou a omissão (representante legal da vítima), não possa, mais tarde, vir a atingir o mesmo desiderato mediante a apresentação de desistência de queixa. Tal raciocínio, evidentemente, não pode deixar de ser extensível e aplicável aos casos em que o representante da vítima, conquanto inicialmente tenha actuado de acordo com o seu dever, apresentando queixa, obviamente, no interesse da vítima, venha mais tarde, por razões alheias àquele interesse, postergar o mesmo desistindo injustificadamente da queixa apresentada e, daí que neste caso se tem de reconhecer ao Ministério Público a possibilidade (legitimidade) de se opor à desistência da queixa e de promover o prosseguimento do procedimento. Acresce que no caso do crime de maus tratos do art.º 152.º do Código Penal
(redacção pré-vigente introduzida pela Lei n.º 65/98), o legislador, tendo atribuído também legitimidade ao Ministério Público para iniciar o procedimento
– n.º 2 –, previu expressamente a possibilidade de a vítima se opor ao prosseguimento do processo. Ora, nada se tendo previsto de idêntico ou similar na redacção dada ao actual n.º 4 do artigo 178.º e na redacção que tinha o n.º 2 daquele artigo, a qual foi introduzida pela Lei n.º 65/98, uma só conclusão se pode e deve extrair, qual seja a de que no caso do crime de abuso sexual de crianças e nos demais crimes previstos no artigo 178.º, n.º 1, é irrelevante a oposição ou a desistência do titular do direito de queixa, quando o Ministério Público decide iniciar ou continuar o procedimento criminal nos termos do artigo 178.º, n.º 4, conclusão que, obviamente, em nada colide com os princípios da separação de poderes, da legalidade e da tipicidade nem com os direitos do arguido constitucionalmente consagrados. Nesta conformidade, tendo por certo, como já consignado se deixou, que o interesse da vítima C. impõe o prosseguimento do procedimento, é evidente que improcede o recurso interlocutório interposto.
(...)»
2.Deste acórdão interpôs o arguido recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, na parte em que aquele negou provimento ao recurso interlocutório e, consequentemente, confirmou a decisão proferida pela 1.ª instância de não homologação da desistência de queixa apresentada pela assistente, por si e em representação da sua filha menor, concluindo nos mesmo termos das conclusões apresentadas no recurso para o Tribunal da Relação. Esse recurso não foi admitido por despacho do relator no Tribunal da Relação de Coimbra, com fundamento no artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal. O arguido reclamou desta decisão para o Presidente daquele Supremo Tribunal, aduzindo as seguintes razões:
«1.ª O artigo 399.º do Código de Processo Penal, em concretização da injunção do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, afirma o princípio geral da possibilidade de recurso dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver expressamente prevista na lei;
2.ª O arguido, não se tendo conformado com o douto acórdão da Relação de Coimbra de fls. 739-752, proferido nos autos em epígrafe, apenas na parte concernente à negação de provimento ao recurso da decisão confirmativa da não homologação da desistência de queixa apresentada pela assistente B., dele interpôs recurso, por requerimento de fls. 757, nos termos dos artigos 399.º, 401.º, n.º 1, alínea b),
403.º, n.º 1, 432.º, alínea b), e 434.º do CPP, para o que juntou a competente Motivação;
3.ª Por despacho de fls., o tribunal recorrido não admitiu o mencionado recurso, considerando o acórdão “irrecorrível na parte em que vem impugnado”, e apresentando como única “razão” dessa recusa uma mera remissão para o teor do artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, consubstanciada no seguinte parágrafo: “Estabelece o artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, que não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não ponham termo à causa”;
4.ª Assim, desde logo, à luz do disposto nos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º
1, alínea a), é patente a nulidade da decisão ora reclamada, por padecer de total ausência de fundamentação! ;
5.ª Por outro lado, a irrecorribilidade prevista no artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal compreende, tão-só, os acórdãos insusceptíveis, em abstracto, de colocar termo à causa;
6.ª Ora, como no caso vertente, um acórdão que tenha por objecto a decisão de homologação ou de não homologação da desistência de uma queixa apresentada pela titular do respectivo direito é, indiscutivelmente, em abstracto, um acórdão susceptível de colocar termo à causa. Basta que se pense, elementarmente, no caso dos acórdãos que, em concreto, sejam homologatórios de tais desistências!;
7.ª Acresce que, de acordo com a jurisprudência e doutrina dominantes (cfr., v.g., David Valente Borges de Pinho, Dos Recursos Penais, Almedina, pág. 24 e ss), quando, como no caso sub judice, o recurso verse apenas matéria de direito, o arguido-recorrente pode optar por recorrer (da decisão do tribunal colectivo) para a Relação (como fez) ou directamente para o STJ;
8.ª Sendo indiscutível o poder de cognição do STJ no que toca aos recursos das decisões finais ou interlocutórias do tribunal colectivo que versem exclusivamente matéria de direito – artigo 432.º, alíneas d) e e), do CPP;
9.ª E sendo óbvio que esse poder de cognição não lhe é nem lhe pode ser retirado em caso de (primeira) opção pela apresentação do Recurso na Relação, circunstância em que, no que concerne a esta específica situação, que é a do caso sub judice, pode existir um triplo grau de jurisdição (artigo 432.º, alínea b), do CPP; no mesmo sentido, Simas Santos/Leal Henriques, Código de Processo Penal, vol II, anotações aos artigos 400.º e 432.º). Termos em que, pelas elencadas razões, deve o recurso ser admitido.» A reclamação foi indeferida por decisão de 21 de Janeiro de 2005, com os seguintes fundamentos:
«Para a decisão da presente reclamação impõe-se desde logo fazer apelo à alínea b) do art.º 432.º, onde se determina que se recorre para o STJ “de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º”. E deste preceito destaca-se a alínea c) do seu n.º 1, que estabelece serem irrecorríveis os “acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não ponham termo à causa”. A questão consiste em saber se a decisão da Relação que negou provimento ao recurso interlocutório da decisão de não homologação da desistência da queixa apresentada pela assistente, deve considerar-se como pondo termo à causa para efeitos do disposto no art.º 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP. Ora, o dito acórdão, proferido em recurso, nesse segmento em que vem impugnado, não pôs termo à causa, porquanto apenas apreciou e decidiu uma questão prévia suscitada no processo: é na parte em que condenou o arguido na pena de 4 anos de prisão em consequência da apreciação dos recursos interpostos da decisão final proferida em 1.ª instância que pôs termo à causa.
É assim insusceptível de recurso a decisão ora impugnada. E também não se verifica a invocada nulidade do despacho reclamado por falta de fundamentação.»
3.O arguido pretendeu então interpor recurso de constitucionalidade ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional), querendo ver apreciada a constitucionalidade “da norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, com a interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida, ou seja, com a interpretação de que a recorribilidade prevista no artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal compreende, apenas, os acórdãos que coloquem concretamente fim à causa, e nunca os acórdãos (v.g., aqueles que, como no caso sub judice, tenham por objecto a decisão de homologação ou de não homologação da desistência de uma queixa apresentada pela titular do respectivo direito) susceptíveis, em abstracto, de colocar termo à causa”, por entender que tal norma, “assim interpretada, viola o artigo 32.º, n.º 1, da CRP”, e ainda pretendendo ver apreciada a constitucionalidade “da norma do artigo 178.º, n.º 4, do Código Penal, com a interpretação com que foi
(directa e indirectamente, expressa e implicitamente) aplicada na(s) decisão(ões) recorridas(s), ou seja, com a interpretação de que permite ao Ministério Público prosseguir um procedimento criminal que não iniciou (por não se ter verificado o pressuposto da inércia do representante legal) e relativamente ao qual existe uma desistência de queixa apresentada pelo titular do direito respectivo”, por entender que “tal norma, assim interpretada, viola os artigos 2.º (princípio da separação de poderes), 29.º, n.º 1 (princípios da legalidade e tipicidade criminal) e 165.º, n.º 1, alínea c) (reserva exclusiva da Assembleia da República em matéria de definição dos crimes e dos respectivos pressupostos) da CRP e, assim aplicada, redunda na criação judicial de crime público (por sua inconstitucional extensão analógica), crime esse que, contudo, por ela foi expressamente tipificado como crime semi-público”. Por despacho de 11 de Fevereiro de 2005, o recurso de constitucionalidade não foi admitido. É o seguinte o teor desse despacho:
«Face ao disposto no n.º 2 do art.º 72.º da LTC, o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do art.º 70.º da LTC só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”. Ora, o recorrente apenas refere na reclamação que “o art.º 399.º do Código de Processo Penal, em concretização da injunção do art.º 32.º, n.º 1, da CRP, afirma o princípio geral da possibilidade de recurso dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver expressamente prevista na lei”. No Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 421/2001 – DR, II Série de 14.11.2001 entendeu-se “... que uma questão de constitucionalidade normativa só se pode considerar suscitada de modo processualmente adequado quando o recorrente identifica a norma que considera inconstitucional, indica o princípio ou a norma constitucional que considera violados e apresenta uma fundamentação, ainda que sucinta, da inconstitucionalidade arguida. Não se considera assim suscitada uma questão de constitucionalidade normativa quando o recorrente se limita a afirmar, em abstracto, que uma dada interpretação é inconstitucional, sem indicar a norma que enferma desse vício, ou quando imputa a inconstitucionalidade a uma decisão ou a um acto administrativo”. Donde a invocação feita na reclamação ser inadequada para efeitos de admissão de recurso para o Tribunal Constitucional. E, manifestamente, como a doutrina tem assinalado, é momento inidóneo para suscitar a questão da inconstitucionalidade o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, por, após a sua apresentação, o tribunal a quo já não poder emitir juízos de inconstitucionalidade. Nem se diga que o recorrente não teve oportunidade processual de suscitar a questão da inconstitucionalidade antes do despacho que ora impugna. Com efeito, a interpretação encontrada neste despacho no que concerne à norma da alínea c) do n.º 1 do art.º 400.º do CPP coincide com a do despacho que não admitiu o recurso para este Supremo Tribunal. Por todo o exposto, indefere-se nesta parte o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional. No que concerne à inconstitucionalidade imputada ao art.º 178.º, n.º 4, do C. Penal, não nos compete pronunciar sobre a admissibilidade do recurso ora interposto para o Tribunal Constitucional nesta parte, atento o disposto no art.º 76.°, n.º 1, da LTC, mas sim ao Tribunal da Relação de Coimbra por ser à sua decisão (e não à que proferimos aquando do conhecimento da reclamação para nós interposta do despacho que não admitiu o recurso) que vem assacada a aplicação de uma norma considerada inconstitucional. Assim sendo, remetam-se oportunamente os autos ao Tribunal da Relação de Coimbra para se pronunciar sobre a admissibilidade do recurso nesta parte.”
4.Contra este despacho de indeferimento vem deduzida a presente reclamação, ao abrigo do n.º 4 do artigo 76.º da Lei do Tribunal Constitucional, pelas seguintes razões:
«1.º O ora reclamante não se tendo conformado com a douta decisão de fls. do Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, confirmativa da não admissão do recurso da decisão de não homologação da desistência da queixa, dela interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, o que fez nos seguintes termos:
2.º O recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1, do n.º 2 e do n.º
3 do artigo 70.º da LTC.
3.º Nele, por um lado, pretendeu o reclamante ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, com a interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida, ou seja, com a interpretação de que a recorribilidade prevista no artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal compreende, apenas, os acórdãos que coloquem concretamente fim à causa, e nunca os acórdãos (v.g., aqueles que, como no caso sub judice, tenham por objecto a decisão de homologação ou de não homologação da desistência de uma queixa apresentada pela titular do respectivo direito) susceptíveis, em abstracto, de colocar , termo à causa;
4.º Indicou o ora reclamante que, como já havia (expressa e implicitamente, directa e indirectamente) referido no ponto 1 do articulado da sua anterior Reclamação (do despacho da Relação de Coimbra de não admissão do recurso) endereçada ao Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, tal norma, assim interpretada, violava o artigo 32.º, n.º 1, da CRP;
5.º Não é, pois, verdade que o ora reclamante apenas tenha suscitado esta questão de constitucionalidade no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional;
6.º Por outro lado, ainda que essa questão de inconstitucionalidade não tivesse sido, que foi, suscitada pelo ora reclamante no articulado da sua anterior Reclamação (do despacho da Relação de Coimbra de não admissão do recurso), a verdade é que tal não lhe era razoavelmente exigível!
7.º De facto, como poderia o ora reclamante “adivinhar”, ou supor, ainda que como remotíssima hipótese, que a decisão do Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, contrariando jurisprudência e doutrina pacíficas (cfr., v.g., David Valente Borges de Pinho, Dos Recursos Penais, Almedina, pág. 24 e ss; Simas Santos - Leal Henriques, Código de Processo Penal, vol. II; anotações aos artigos 400.º e 432.º), a) negasse o poder de cognição do STJ no que toca aos recursos das decisões finais ou interlocutórias do tribunal colectivo que versem exclusivamente matéria de direito - artigo 432.º, alíneas d) e e), do CPP; e, sobretudo, b) negasse esse poder de cognição (e, logo, a possibilidade de um triplo grau de jurisdição) nos casos em que, como no caso sub judice, versando o recurso apenas matéria de direito, o arguido-recorrente-reclamante optou por recorrer (da decisão do tribunal colectivo) primeiro para a Relação?
8.º É patente que – ainda que essa questão de inconstitucionalidade não tivesse sido, que foi, suscitada no articulado da sua anterior Reclamação –, o ora reclamante encontra-se confrontado com “uma situação de aplicação ou interpretação normativa de todo imprevista ou inesperada, feita pela decisão”
(Guilherme da Fonseca e Inês Domingues, Breviário de Direito Processual Constitucional, Coimbra Editora, 2.ª Edição, pág. 54);
9.º Não dispondo, em consequência, de uma real oportunidade processual para adequadamente suscitar a questão antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo, por não poder razoavelmente antever a possibilidade dessa imprevisível decisão,
10.º Pelo que nunca lhe seria, in casu, exigível a imposição do ónus de suscitar a questão antes da decisão (acs. 61/92, 188/93, 569/95, 596/96, 499/97, 642/99,
674/99, 124/00, 155/00, 192/00, 79/02, 120/02).
11.º Com o recurso, por outro lado, o ora reclamante pretendeu, também e sobretudo, ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 178.º, n.º
4, do Código Penal, com a interpretação com que foi (directa e indirectamente, expressa e implicitamente) aplicada na(s) decisão(ões) recorrida(s), ou seja, com a interpretação de que permite ao Ministério Público prosseguir um procedimento criminal que não iniciou (por não se ter verificado o pressuposto da inércia do representante legal) e relativamente ao qual existe uma desistência dessa queixa apresentada pelo titular do direito respectivo;
12.º Referiu que tal norma, assim interpretada, viola os artigos 2.º (princípio da separação de poderes), 29.º, n.º 1 (princípios da legalidade e tipicidade criminal) e 165.º, n.º 1, alínea c) (reserva exclusiva da Assembleia da República em matéria de definição dos crimes e dos respectivos pressupostos) da CRP, e, assim aplicada, redunda na criação judicial de crime público (por sua inconstitucional extensão analógica ), crime esse que, contudo, por ela foi expressamente tipificado como crime semi-público;
13.º Indicou que esta última questão da inconstitucionalidade foi por si repetidamente suscitada, tanto nas Motivações de Recurso apresentadas na Relação de Coimbra (cujo Acórdão não apenas dessa questão não tomou conhecimento como expressamente assumiu e invocou, a fls. 743-verso, nos seus três primeiros parágrafos, a extensão analógica desse artigo 178.º, n.º 4, do Código Penal) como nas apresentadas no Supremo Tribunal de Justiça (e aqui não apreciada, por força da supra mencionada interpretação inconstitucional concedida ao artigo
400.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal!);
14.º Ora, o não conhecimento por parte de um Tribunal da inconstitucionalidade de uma norma, quando podia e devia fazê-lo, equivale a aplicação implícita da mesma – acs. 88/86, 47/90, 235/93 e 318/90!
15.º Pelo que, contrariamente ao postulado na parte final da douta decisão ora reclamada, também ao STJ é assacada a aplicação dessa norma julgada inconstitucional;
16.º Pelo que competiria também ao seu Ex.m.º Senhor Presidente do STJ, em sede de decisão da reclamação, pronunciar-se, admitindo-o, sobre a admissibilidade do interposto recurso de constitucionalidade. Termos em que, pelas apontadas razões, deve o interposto recurso de constitucionalidade ser admitido.» No Tribunal Constitucional, o representante do Ministério Público pronunciou-se pela manifesta improcedência da reclamação, afirmando:
“A presente reclamação é, a nosso ver, manifestamente improcedente. Em primeiro lugar – e como é evidente – a decisão recorrida, proferida em processo de reclamação, pelo Presidente do STJ apenas aplicou as normas processuais definidoras da recorribilidade dos acórdãos da Relação, não se pronunciando, nem tendo de se pronunciar, sobre a questão de constitucionalidade reportada ao art.º 178.º, n.º 4, do C. Penal. Relativamente à questão de constitucionalidade colocada quanto à norma no art.º
400.º, n.º 1, alínea c), do CPP, não pode configurar-se como “decisão-surpresa”, de conteúdo insólito e imprevisível – e portanto, susceptível de dispensar o recorrente do ónus de suscitação, durante o processo – a que consiste em configurar como decisão desprovida de natureza “final”, não pondo termo ao processo, a que assegura o prosseguimento do processo penal, rejeitando a homologação da desistência da queixa – e sendo certo que, sobre tal matéria, se exerceu plenamente o duplo grau de jurisdição.” Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
5.Adianta-se já que, como defendeu o Ministério Público, a presente reclamação é manifestamente improcedente. Com efeito, o recurso de constitucionalidade que se pretendeu interpor era o referido no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional – de decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Ora, como é sabido, são requisitos específicos para se poder tomar conhecimento desse tipo de recurso, para além do esgotamento dos recursos ordinários, que a norma impugnada tenha sido aplicada como ratio decidendi pela decisão recorrida e que tenha sido suscitada, durante o processo, a questão da sua inconstitucionalidade. Ora, e em primeiro lugar, é claro que, sendo a decisão de que se pretendeu interpor recurso de constitucionalidade a decisão do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que, em processo de reclamação, confirmou a não admissão de recurso para esse Supremo Tribunal, não aplicou, nem expressa nem implicitamente, a norma do artigo 178.º, n.º 4, do Código Penal. Antes se limitou a verificar a recorribilidade da decisão do Tribunal da Relação de Coimbra e apenas aplicou as normas relativas a esse ponto – concluindo pela irrecorribilidade, nos termos do artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal. Em segundo lugar, quanto à norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, impugnada em determinada interpretação no requerimento de recurso, verifica-se que a sua inconstitucionalidade não foi suscitada durante o processo, designadamente, não o tendo sido perante o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, na reclamação que lhe foi dirigida – em particular, e diversamente do que afirma o reclamante, não se suscita qualquer questão de inconstitucionalidade de normas, em si mesmas ou numa determinada interpretação, no ponto 1.º de tal reclamação (supra transcrito), onde o reclamante apenas disse que o “artigo 399.º do Código de Processo Penal, em concretização da injunção do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, afirma o princípio geral da possibilidade de recurso dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver expressamente prevista na lei”. Acresce ser evidente que não se encontra na decisão recorrida, do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, qualquer interpretação insólita, inesperada ou imprevisível desse artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal – não o sendo, manifestamente, a interpretação que qualifica como decisão desprovida de natureza “final”, não pondo termo ao processo, aquela que assegura o prosseguimento do processo penal, por rejeitar a homologação da desistência da queixa (decisão sobre a qual, aliás, se exerceu plenamente já um duplo grau de jurisdição). De resto, como se pode ler na decisão ora reclamada, a interpretação da norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal efectuada pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, na decisão que indeferiu a reclamação contra a não admissão de recurso para esse Tribunal, até “coincide com a do despacho que não admitiu o recurso para este Supremo Tribunal”, proferido no Tribunal da Relação, sendo, portanto, conhecida pelo recorrente quando reclamou para o Supremo Tribunal de Justiça. E, apesar de ter tido plena oportunidade processual para suscitar a questão da sua inconstitucionalidade, antes do despacho de que pretendeu recorrer para o Tribunal Constitucional, o reclamante não o fez. A presente reclamação tem, pois, de ser indeferida. III. Decisão Pelo fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e condenar o reclamante em custas, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 16 de Março de
2005 Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos