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Processo n.º 109/05
1.ª Secção Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
Em 28 de Fevereiro de 2005 foi proferida a seguinte decisão sumária:
A. recorre nos termos das alíneas b) e f) do n. 1 do artigo 70º da LTC. Pretende ver julgada inconstitucional a norma contida no artigo 127º do Código de Processo Penal “no sentido de o tribunal colectivo poder dar como provados factos delituosos a que ninguém assistiu ou referiu ter assistido”. Diz que não suscitou a questão de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal de Justiça, “porquanto a interpretação dada à norma na decisão recorrida foi de todo imprevisível, não podendo razoavelmente o recorrente contar com a sua aplicação”. Apesar de, nos termos do artigo 75º-A da LTC, ter sido convidado a indicar com qual dos fundamentos previstos na alínea f) do n. 1 do artigo 70º da LTC suscitara a ilegalidade da norma impugnada, nada logrou esclarecer. Os recursos, porém, não podem ser conhecidos; o da alínea f), por ser manifesto que o recorrente nunca invocou, nem mesmo no requerimento de recurso, a especial ilegalidade da norma questionada, não podendo, por isso, o Tribunal analisá-la nessa perspectiva; o da alínea b), porque a discordância do recorrente reside na decisão em si mesmo considerada e não na norma aqui impugnada. Ora o recurso tem natureza normativa, pelo que nele não cabe crítica à decisão recorrida, enquanto tal.
B. recorre nos termos da alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC. Pretende, de igual modo, ver julgada inconstitucional a norma contida no artigo 127º do Código de Processo Penal “no sentido de o tribunal colectivo poder dar como provados factos delituosos a que ninguém assistiu ou referiu ter assistido”. Também diz que não suscitou a questão de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal de Justiça, agora recorrido, “porquanto a interpretação dada à norma foi de todo imprevisível”. Tal como o anterior, também este recurso não pode ser conhecido, já que é patente que a discordância do recorrente reside na decisão em si mesmo considerada e não na norma aqui impugnada. Conforme se disse, o recurso em análise tem natureza normativa, pelo que a decisão recorrida, enquanto tal, não pode constituir seu objecto.
C. recorre nos termos das alíneas b) e f) do n. 1 do artigo 70º da LTC. Pretende ver julgada inconstitucional a norma contida no artigo 127º do Código de Processo Penal e 666 a 670º do Código de Processo Civil “na interpretação acolhida na decisão recorrida”. Também adianta que não suscitou a questão de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal de Justiça, porquanto a interpretação dada à norma foi de todo “imprevisível”, não podendo razoavelmente o recorrente contar com a sua aplicação. Esclareceu, a convite do Tribunal, que o recurso visa julgar inconstitucional a “apreciação” da prova feita em julgamento, na medida em que não teve em conta critérios de “experiência comum”, mas de “livre arbítrio, ou valoração puramente subjectiva”. Não revelou, contudo, com qual dos fundamentos previstos na alínea f) do n. 1 do artigo 70º da LTC invoca a ilegalidade das normas impugnadas. Os recursos também não podem ser conhecidos, e por razões idênticas: o da alínea f), por ser manifesto que o recorrente nunca invocou, nem mesmo no requerimento de recurso, a ilegalidade da norma questionada, não podendo, por isso, o Tribunal analisá-la; o da alínea b), porque a discordância do recorrente mais uma vez se localiza na decisão em si mesmo considerada e não na norma aqui impugnada. Tendo o recurso natureza normativa, nele não cabe uma crítica à decisão recorrida, enquanto tal.
D. recorre nos termos das alíneas b), f), g), h) e i) do n. 1 do artigo 70º da LTC. No seu requerimento parece querer ver julgada inconstitucional a norma contida no artigo 127º do Código de Processo Penal, “que viola a Constituição”. Em requerimento posterior, apresentado a convite do Tribunal, veio dizer, para além do mais, que “na interpretação do acórdão recorrido é inconstitucional a norma do n. 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, que não explicitou minimamente nem credivelmente o processo racional da formação da convicção do Tribunal”. Apesar de algum esforço no sentido de captar o seu real fundamento, não é absolutamente seguro que o recorrente apenas queira impugnar as aludidas normas, pois parece certo que a sua discordância se revela sobretudo no que toca à decisão, enquanto tal. O recurso também não é de conhecer. Em primeiro lugar, por não ser possível aditar outras normas ao objecto do recurso em requerimento posterior. Por outro lado, o que o recorrente pretende é questionar a decisão recorrida e não as normas nela contidas, mesmo quando aponta determinados preceitos legais como infractores da Constituição. Para além disso, não há qualquer invocação da especial ilegalidade da norma impugnada; de menção dessa norma haver sido anteriormente julgada inconstitucional; ou de tal norma ofender alguma convenção internacional. Não pode, portanto, conhecer-se do recurso.
Termos em que, ao abrigo do artigo 78º-A n. 1 da LTC, se decide não conhecer dos recursos.
Reclamam desta decisão, nos termos do n. 3 do citado artigo 78º-A da LTC, os arguidos A. e B..
Diz o primeiro:
No nosso entender, estão reunidos os requisitos da admissibilidade do recurso do arguido e, não obstante o facto de inúmeros recursos serem inadmissíveis por faltar o requisito de tal inconstitucionalidade não ter sido arguida durante o processo. O certo é que este não será o caso. Sendo o requisito da admissibilidade deste tipo de recurso e o de que a questão de inconstitucionalidade da norma seja suscitada “durante o processo”. E arguir a questão de inconstitucionalidade durante o processo significa que ela tenha de ser levantada enquanto a causa se encontra «pendente», ou seja, antes de o tribunal recorrido ter proferido a decisão final. Como se refere no Ac. 15/95: “a locução” durante o processo exprime precisamente o desiderato da suscitação na pendência da causa da questão de constitucionalidade, em termos de essa mesma questão ser tida em conta pelo tribunal que decide. Essa ideia é, afinal, corolário da natureza e do sentido da fiscalização concreta de constitucionalidade das normas e, em especial, do recurso de parte que dela participe. Aí a questão de constitucionalidade é uma questão incidental, em estreita relação com o feito submetido a julgamento (CRP, art. 207º) só podendo incidir sobre normas relevantes para o caso. E o interesse pessoal na invalidação da norma (G. Canotilho e Vital Moreira) só faz sentido e se concretiza na medida em que a parte confronte, em tempo, o tribunal que decide a causa com a controversa validade constitucional das normas que aí são convocáveis. - Esta é a regra. Mas, se esta é a regra, ressalvados ficam, porém, os casos em que o poder jurisdicional, por força de norma processual específica, se não esgota com a prolação da decisão recorrida e há ainda alguma hipótese, de todo excepcional ou anómala, em que o interessado não dispôs da oportunidade processual para
1evantar a questão de inconstitucionalidade antes de proferida a decisão, casos em que lhe deve ser reconhecido o direito ao recurso (Acs. 318/89, 329/95,
521/95, 364/00, 374/00). E nos presentes autos verificam-se os requisitos específicos, ou seja: a) Trata-se de matérias relativamente às quais o poder jurisdicional do tribunal
“a quo” para sobre elas decidir se não haja esgotado com a “decisão final”, de modo a ser-lhe possível, por essa via pronunciar-se sobre as questões que lhe foram colocadas; b) A norma invocada de inconstitucional seja relevante para a resolução das ditas questões. Assim, sendo a relevância da questão de inconstitucionalidade traduzida na exigência de que seja decisiva para a decisão do tribunal e constitua o seu fundamento postula, pois, “(...) que a inconstitucionalidade normativa tem, necessariamente, de ser levantada em tempo útil; antes da decisão de mérito quanto a norma que releve para a decisão do objecto do processo, antes de decisão de forma quanto a norma que releve para a resolução da questão formal e antes de decisão incidental quanto a norma que releve para a solução do incidente. (...)”. De facto, só nos casos em que se haja suscitado pregressamente, e em relação de preordenação com a decisão a proferir a questão de inconstitucionalidade, é que, sendo a norma apesar disso aplicada, se poderá dizer que houve, de facto, decisão de tal questão (Ac. 228/89). Precisando melhor: o requisito da admissibilidade do recurso previsto no art.
70º, n.º 1, al. b), no que respeita ao significado da locução “durante o processo” deve ser tomado não em sentido puramente “formal”, tal que a inconstitucionalidade possa ser suscitada até a extinção da instancia, mas num sentido puramente “funcional”, tal que essa invocação haverá de ser feita em momento em que o tribunal a quo ainda possa conhecer da questão. Por outras palavras: a inconstitucionalidade haverá de suscitar-se antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a mesma questão de inconstitucionalidade respeita (Acs. 90/85,94/88, 352/94, 584/96, 507/99 674/99,
155/00, 192/00). E, para além das situações referidas, ainda existem casos excepcionais ou anómalos em que o interessado, por não ter disposto de oportunidade processual para levantar a questão antes de proferida a decisão, a levantou após a sua prolação e o TC a considerou atempadamente suscitada. Trata-se de casos em que não se torna possível aplicar a regra da arguição da inconstitucionalidade até à decisão; casos em que tal exigência é dispensada por se ter verificado uma situação excepcional ou anómala que justifica essa dispensa. A jurisprudência do TC permite-nos constatar a existência de três tipos de situações: a) O interessado não teve a possibilidade de suscitar a questão em virtude de não lhe ter sido dada qualquer oportunidade para intervir no processo antes da decisão; b) Tendo intervindo, a questão da inconstitucionalidade só pode colocar-se perante um circunstancialismo ocorrido já após a sua última intervenção processual e antes da decisão. c) Ao interessado não foi exigível que antevisse a possibilidade de aplicação da norma ao caso concreto, de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão antes da decisão. Ora o recorrente foi confrontado com a aplicação de uma norma que, no sentido em que lhe foi atribuído, suscita “azedumes” de inconstitucionalidade. Foi o caso da aplicação do artigo 127° do C. P. Penal na medida em que referindo que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente mas, segundo o Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 1165/96
- BMJ 461/93) a regra da livre apreciação da prova em processo penal não se confunde com a apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova, de todo em todo imotivável. E o julgador, se apreciar livremente a prova, ao procurar através dela atingir a verdade material, deve observância à regra da experiência comum utilizando como método da avaliação a aquisição do conhecimento critérios objectivos, genericamente susceptíveis de motivação e controlo; (citação em C. P. Penal - Anotado e Comentado - Maia Gonçalves, 12. Edição, págs. 339 e 340), o que não foi o caso. Tal interpretação era de todo imprevisível face à produção de prova efectuada. Pelo que a orientação geral de que, após a prolação da decisão já não é possível suscitar a questão de inconstitucionalidade, também não é de aplicar naqueles casos anómalos, ou excepcionais, em que o recorrente é confrontado. Daí que deverá ser proferida decisão sobre a constitucionalidade da aplicação do artigo 127° do C. P. Penal, no sentido arbitrário que lhe foi dado. No demais se repercute o anteriormente alegado, esperando como sempre que, atendendo-se à presente reclamação, V. Ex.as. façam a costumada e sã Justiça.
Por sua vez, o arguido B. diz:
No requerimento de interposição do recurso referiu-se que foi violado o disposto no art. 127º, tanto assim que se proferiu decisão contraditória e nenhum homem médio, suposto pelo direito, a aceitaria por ser desigual, injusta e arbitrária. E violadora do disposto no art. ° 127 do C. P. Penal na medida em que refere que
“a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente” mas, segundo o Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 1165/96
- BMJ 461/93) a regra da livre apreciação da prova em processo penal não se confunde com a apreciação arbitrária discricionária ou caprichosa da prova, de todo em todo imotivável. Sendo o recurso foi efectuado ao abrigo da alínea b) - (recurso de decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo); E, sendo certo que a admissibilidade deste tipo de recurso depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos específicos: a) Que a decisão recorrida tenha aplicado norma arguida de inconstitucional durante o processo; b) Que tenha sido o recorrente a suscitar essa inconstitucionalidade durante o processo (art. 280.º, n.º 4, da CRP e art. 72.º, n.º2, da LTC); c) Que a decisão recorrida não seja passível de recuso ordinário, seja por já haverem sido esgotados todos os que, no caso cabiam (regra da exaustão) dos meios ordinários de recurso, seja por a lei o prever (art. 70.º, n.º2, da LTC) - salvo os destinados a uniformização de jurisprudência. No nosso entender, estão reunidos os requisitos da admissibilidade do recurso do arguido e, não obstante o facto de inúmeros recursos serem inadmissíveis por faltar o requisito de tal inconstitucionalidade não ter sido arguida durante o processo, o certo é que este não será o caso. Tal inconstitucionalidade foi arguida perante o Supremo Tribunal de Justiça, não tendo o mesmo se pronunciado sobre tal questão. E como se refere no Art. 15/95: “a locução” o processo exprime precisamente o desiderato da suscitação na pendência da causa da questão de constitucionalidade, em termos de essa mesma questão ser tida em conta pelo tribunal que decide.
É essa ideia, afinal, corolário da natureza e do sentido da fiscalização concreta de constitucionalidade das normas e, em especial, do recurso de parte que dela participe. Aí a questão de constitucionalidade é uma questão incidental, em estreita relação com o feito submetido a julgamento (CRP, art. 207º só podendo incidir sobre normas relevantes para o caso. E o interesse pessoal na invalidação da norma (G. Canotilho e Vital Moreira) só faz sentido e se concretiza na medida em que a parte confronte, em tempo, o tribunal que decide a causa com a controversa validade constitucional das normas que aí são convocáveis. Precisando: o requisito da admissibilidade do recurso previsto no art. 70.º, n.º. 1, al. b), no que respeita ao significado da locução “durante o processo” , deve ser tomado não em sentido puramente “formal”, tal que a inconstitucionalidade possa ser suscitada até à extinção da instancia, mas num sentido puramente “funcional”, tal que essa invocação haverá de ser feita em momento em que o tribunal a quo ainda possa conhecer da questão (Acs. 90/85,
94/88, 352/94, 584/96, 507/99, 674/99, 155/00, 192/00). Daí que deverá ser proferida decisão sobre a constitucionalidade da aplicação do artigo 127° do C P. Penal, no sentido da interpretação arbitrária que lhe foi dada. Inconstitucionalidade essa invocada perante o Supremo Tribunal de Justiça à qual o arguido não obteve resposta. No demais, se repercute o anteriormente alegado nos demais articulados apresentados, esperando-se como sempre que, atendendo-se à presente reclamação, V. Ex.as farão a costumada e sã justiça.
As reclamações não atacam verdadeiramente o fundamento da decisão sumária, na parte que lhes respeita. Aliás, para além de um conjunto de frases cujo sentido não é, sequer, útil nesta demanda, nada se adianta que possa realmente haver-se como uma impugnação das razões que levaram o Tribunal a decidir não conhecer dos recursos interpostos pelos reclamantes.
Cabe, assim, reafirmar a decisão sumária nessa parte, pois continua a ser claro que a discordância dos recorrentes reside na decisão em si mesmo considerada e não na norma aqui impugnada; conforme se disse, o recurso em análise tem natureza normativa, pelo que a decisão recorrida, enquanto tal, não pode constituir seu objecto.
Pelo exposto, decide-se manter a decisão reclamada, não conhecendo do recurso interposto pelos recorrentes A. e B..
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 30 de Março de 2005
Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Rui Manuel Moura Ramos