Imprimir acórdão
Processo n.º 143/03
3.ª Secção Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A., B. e C. intentaram, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa
(Juízos Cíveis), uma acção contra D. pedindo que fosse reconhecida a caducidade de um contrato de arrendamento comercial com fundamento no facto de terem decorrido mais de 30 anos sobre o seu início, o que entendem como prazo máximo legalmente estabelecido para a duração de um contrato desta natureza, nos termos dos artigos 1025.º e 1051.º, n.º 1, alínea a) do Código Civil.
Da sentença que julgou a acção improcedente, interpuseram as autoras recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 5 de Dezembro de 2002 (fls. 183 e segs.), lhe negou provimento.
Deste acórdão vem o presente recurso para o Tribunal Constitucional, interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 70.º da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro (LTC), em cujas alegações as recorrentes sustentam, em síntese conclusiva, o seguinte:
a) As autoras pediam em 1ª instância que fosse reconhecida a caducidade de um contrato de arrendamento comercial, com fundamento no facto de o mesmo ter atingido o prazo máximo legalmente estabelecido para a respectiva duração, ou seja, pelo facto de terem decorrido (mais de) trinta anos sobre o início do mesmo. b) Para suportar o seu pedido, as autoras invocaram o disposto nos arts. 1025° e
1051°, n°1, alínea a) do Código Civil de 1966. c) Sucede que, os tribunais a quo entenderam, por um lado, que o regime legal em questão era afastado pelo princípio geral contido no art. 1054° do Código Civil, e por outro lado, que o mesmo regime não comportava o sentido e o alcance que lhe eram dados pelas autoras, julgando-o, nessa medida, inaplicável aos factos sub judice. d) No entanto, e com todo o devido respeito, a solução interpretativa sustentada nas doutas decisões recorridas, contraria o verdadeiro espirito e a razão lógica dos preceitos legais em questão, ignora a sua localização e função sistemáticas e, assim, os fins que aqueles pretendem atingir, dela resultando, na prática, um sacrifício injustificável de valores fundamentais do ordenamento jurídico actualmente vigente. e) Ora, uma correcta apreensão do sentido e do alcance das normas vocacionadas para resolver o caso sub judice, e a determinação do respectivo campo de aplicação, designadamente as dos arts. 1025° e 1054° do CC, exigem uma utilização rigorosa de todos os elementos de interpretação da lei. f) Começando a partir dos textos, em conformidade com os critérios enunciados no art. 9° do Código Civil, por tentar reconstituir o pensamento legislativo, e tendo sempre em conta as circunstâncias históricas em que o art. 1025° foi elaborado, podemos seguramente afirmar que a razão de ser desta norma e a intenção legislativa que lhe subjaz radicam na necessidade de se fixar um limite temporal efectivo para a vigência dos contratos de arrendamento, por forma a impedir eficazmente a sua perpetuidade, e assim, assegurar a plena realização da função económica e social da propriedade, bem como o núcleo essencial deste direito fundamental. g) E na realidade, a leitura que a grande maioria da doutrina faz das motivações históricas do art. 1025° não deixa qualquer espaço para dúvidas de que foram razões de natureza económica e social a ditar a limitação temporal expressamente ali estabelecida, impondo-a como princípio de ordem pública, e fazendo-a actuar como uma verdadeira garantia do direito de propriedade, e de outros princípios constitucionalmente garantidos. h) A verdade é que o espirito e razões de ser desta norma são bem evidenciadas quando o legislador sublinha: “...;quando estipulada por tempo superior, ou como contrato perpétuo...'. i) Com maior ou menor felicidade, certo é que a expressa, proibição do contrato de arrendamento perpétuo revela bem que, não estamos apenas perante uma simples limitação à liberdade de estipulação inicial do respectivo prazo de duração, ou perante uma simples proibição da estipulação expressa de um prazo infinito. j) O legislador não quis apenas restringir a liberdade contratual, mas impedir sim, a todo o custo, a perpetuidade do vinculo contratual, fixando para o efeito um limite máximo, um termo final inderrogável, para a respectiva vigência, em ordem a salvaguardar valores e princípios de ordem pública, constitucionalmente garantidos. k) Acresce que, considerando o espírito e unidade intrínseca do instituto jurídico do arrendamento, e do ordenamento jurídico visto na sua globalidade, podemos constatar que: l) Ao distinguir expressamente na letra do art. 1051°, alínea a), do CC, o decurso do “prazo estipulado” do decurso do prazo “estabelecido por lei”, o legislador referia-se, quanto à segunda hipótese, precisamente ao prazo máximo de duração estabelecido no art. 1025° da mesma lei. m) Resulta, por sua vez, claramente dos arts. 66°, 113° e 114° do RAU a aplicabilidade, com o sentido que se defende, do disposto nos arts. 1025° e
1051°, alínea a), parte final, do CC. n) E, decididamente, que também não é por acaso que o período de trinta anos referido na alínea b), do n° 1, do art. 107° do RAU, coincide precisamente com o prazo de duração máxima do arrendamento fixado pelo art. 1025° do CC!! o) Note-se que tal ressalva, de natureza eminentemente excepcional, é a prova incontrariável de que o legislador, em 1990, reconhecendo e respeitando o verdadeiro sentido e alcance do art. 1025° do CC, pretendeu deliberadamente impedir os efeitos práticos da sua aplicabilidade no domínio do arrendamento habitacional. p) E precisamente porque arrendamentos habitacionais e arrendamentos comerciais correspondem a relações e realidades jurídica, económica e socialmente muito distintas, é que a regra contida no art. 107°, n° 1, alínea b) do RAU não foi transposta para o domínio das formas de cessação do arrendamento comercial. q) Na realidade, a existência de todo um conjunto de regimes especiais e excepcionais no âmbito do regime legal do arrendamento urbano, acaba por evidenciar também alguns dos seus princípios fundamentais, como sejam o princípio geral da temporariedade do arrendamento e o princípio correlativo da sua caducidade efectiva. r) Mesmo no domínio do arrendamento habitacional, as disposições legais especialmente destinadas a retardar os efeitos da caducidade gerada pelas situações previstas pelo art. 1051°, revestem uma natureza claramente excepcional, e obedecem a razões económicas e sociais muito particulares, (por exemplo, as disposições do RAU referentes à transmissão do direito ao arrendamento em caso de morte do locatário). s) O nosso ordenamento jurídico é avesso à perpetuidade de vínculos contratuais, maxime, quando estes têm por objecto o gozo de coisas, e as razões de ser desta asserção são sobejamente reconhecidas pela doutrina nacional e internacional, pelo menos, em estados verdadeiramente liberais, democráticos, e justos. t) Repare-se, por exemplo, que o contrato de usufruto tem como limite temporal a vida do seu titular, e que se constituído a favor de uma pessoa colectiva, só poderá vigorar pelo prazo máximo de trinta anos. u) por sua vez, e ao contrário do que entendem os tribunais a quo, não é o disposto nos arts. 1054° do CC, e 68º e seguintes do RAU, que obsta à solução interpretativa que aqui se sustenta. v) Pois se recorrermos novamente aos elementos de interpretação definidos no art. 9°, chegaremos à conclusão de que o art. 1054° tem o seu campo de aplicação delimitado pelos arts. 1025° e 1051°, alínea a), parte final, do CC.
w) Quer isto dizer que, o alegado “princípio da prorrogação forçada” actua única e exclusivamente dentro do limite temporal dos trinta anos imposto pelo art.1025°, ou seja, que o contrato de arrendamento comercial vai-se renovando sucessivamente nos termos do art. 1054° do CC, até completar trinta anos de vigência, momento em que caduca definitivamente. x) E tanto assim é, que o art. 1056° prevê expressamente um regime especialmente destinado a regular a situação do contrato de arrendamento caduco, ali se prevendo não a prorrogação forçada do contrato de acordo com o regime legal da denúncia, mas sim o direito do senhorio a manifestar a sua oposição à dita renovação!
y) E na realidade, no âmbito do arrendamento comercial, aquele regime é respeitado e desenvolvido pelas regras dos arts. 113° e 114° do RAU, nas quais não se prevê qualquer limitação ao invocado direito de oposição, mas apenas se institui uma moratória bastante razoável para a restituição efectiva do locado, e a compensação de determinadas benfeitorias realizadas pelo inquilino. z) Com efeito, a regra inserida no art. 1054° do CC, e as limitações ao direito de denúncia estabelecidas, quer no regime revogado dos arts. 1096° e seguintes do CC e na Lei n° 55/79, como no actual RAU, têm uma natureza excepcional, explicada por razões históricas e políticas muito peculiares, e pontuais. aa) E repita-se que as limitações legalmente impostas, quer ao exercício do direito de denúncia pelo senhorio, como aos efeitos da caducidade gerada pelas situações previstas pelas alíneas b) a f) do art. 1051° do CC, assumem uma natureza claramente excepcional, justificada apenas pela tutela do direito à habitação, e nesta medida, intransponíveis para o domínio do arrendamento comercial. bb) De sublinhar também que, a prova de que a regra da prorrogação forçada não constitui qualquer princípio geral e absoluto, derrogatório daquele que se enuncia no art. 1025°, resulta ainda do confronto e análise dos regimes previstos para as diferentes situações geradoras da caducidade do arrendamento. cc) À excepção da hipótese prevista na parte inicial da alínea a), do art. 1051° do CC - decurso do prazo estipulado -, nenhuma das situações previstas nas restantes alíneas fica submetida a qualquer regra de prorrogação forçada! dd) Repare-se que nas referidas alíneas estão em causa situações em que a precariedade do arrendamento, e as expectativas jurídicas do inquilino são ainda mais prementes! ee) De tal forma que, se os contratos de arrendamento podem caducar pelos fundamentos previstos nas alíneas b) a d) do art . 1051° do CC, sem que lhes corresponda a aplicação da regra da prorrogação forçada, não tem qualquer sentido que tal regra se aplique, pelo contrário, à caducidade resultante do decurso do prazo máximo estabelecido por lei. ff) Pois que, se em todas estas situações, o legislador foi praticamente insensível à menor ou maior precariedade dos arrendamentos ali previstos, nenhuma razão tinha para o ser relativamente à hipótese do decurso do prazo máximo estabelecido por lei. gg) A verdade é que a imposição de um limite máximo para a vigência do contrato de arrendamento e a sua consagração como limite de ordem pública, constituem, efectivamente, as únicas garantias do legislador e do sistema de que o mesmo não se perpetuará. hh) Pelo que, não tem qualquer lógica ou sentido que o legislador assuma expressamente a intenção de evitar a perpetuidade dos vínculos arrendatícios, ao arrepio da própria autonomia privada e que, simultaneamente, possibilite e até mesmo force, como princípio geral de ordem pública, a sua eternização mediante a regra da prorrogação forçada. ii) Não pode, pois, deixar de se entender que, a lei que proíbe determinados fins, em ordem a acautelar certos valores - no caso concreto, a proibição da perpetuidade do contrato de arrendamento, e a correlativa defesa do núcleo essencial do direito de propriedade - terá de proibir também os meios que necessariamente conduzem ao fim proibido e à violação dos valores que tal proibição pretende acautelar! jj) E repare-se que a solução interpretativa defendida pelas recorrentes, adequa-se ainda com o sentido da evolução legislativa registada nesta matéria desde a entrada em vigor do actual CC. kk) Repare-se que o RAU, ao instituir os contratos de arrendamento de duração limitada, acabou, no futuro, com a regra da prorrogação força, e que, com maior ou menor justiça, procura compensar o senhorio em todas as situações em que lhe
é imposta uma renovação extraordinária. ll) Mas os preceitos legais em questão devem ainda ser interpretadas tendo em vista as condições específicas do tempo em que é aplicada, sendo neste aspecto indiscutível que, as razões que subjazem ao art. 1025° do CC mantêm plena acuidade prática, e que o mesmo já não sucede com a regra do art. 1054° do CC. mm) Recorde-se que foram precisamente as actuais situações de grave desequilíbrio contratual, geradas por mais de trinta anos de vinculismo, que o legislador quis acautelar no art. 1025° do CC, ao impor um limite máximo para a vigência dos contratos de arrendamento. nn) De tal forma que, a interpretação e a solução legal defendidas pelo tribunal a quo acabam por traduzir-se numa limitação injustificada do direito de propriedade, originada pela possibilidade do arrendamento durar indefinidamente sem qualquer contrapartida para uma das partes. oo) E nesta medida, uma compressão igualmente injustificada da garantia da igualdade das pessoas perante a lei, pela possibilidade dada ao inquilino de explorar economicamente a propriedade privada alheia, sem que ao senhorio seja reconhecida idêntica oportunidade. pp) De tal forma que, pode legitimamente afirmar-se que os arts. 1025°, 1051°, e
1054° do CC interpretados e aplicados com o sentido e o alcance que lhe são dados na douta sentença recorrida, constitui em si mesma, e nos seus resultados, uma solução claramente violadora das disposições da Constituição reguladoras dos direitos, liberdades e garantias. qq) Com efeito, a inexistência de um limite temporal para a vigência dos contratos de arrendamento, e a sua correlativa perpetuidade, constituem um cerceamento claramente intolerável do direito fundamental da propriedade, na medida em que tal perpetuidade faz do arrendatário o real beneficiário da propriedade, e do arrendamento comercial uma autêntica expropriação. rr) Ora, não só não quis o legislador os resultados a que se chegam pela interpretação que os tribunais a quo dão aos preceitos legais em apreço, como o restante sistema de normas e valores em questão o repudia inequivocamente. ss) Por tudo o exposto, permitem-se as recorrentes concluir que, na tarefa de interligação e valoração que pressupõe a apreensão do sentido literal do texto normativo, o tribunal a quo ignorou os elementos lógico, sistemático, histórico e teleológico inerentes aos preceitos legais em questão, acabando por lhes dar um alcance claramente inconstitucional e profundamente desfazado das condições económicas, sociais e culturais da actualidade.“
A recorrida contra-alegou sustentando, como questão prévia, (I) que não pode considerar-se que a questão de constitucionalidade tenha sido suscitada oportunamente, designadamente na resposta à contestação, uma vez que esta peça foi mandada desentranhar, não fazendo parte dos autos (II ) e que tudo o que, ao longo do processo, as recorrentes disseram acerca daquilo que designam por questão de constitucionalidade incidiu sobre a interpretação que as instâncias acolheram, o que não pode ser objecto do recurso para o Tribunal Constitucional.
Quanto ao fundo, sustenta que não se verifica violação dos princípios constitucionais referidos pelas recorrentes.
Ouvidas sobre as questões obstativas suscitadas pela recorrida, as recorrentes responderam que essas questões devem improceder, em síntese,
- Porque o artigo 70.º, n.º1 alínea b), da LTC, não só não exige que a questão de constitucionalidade tenha sido atendida ou apreciada pelo Tribunal, como também não exige que tal questão tenha sido suscitada em primeira instância;
- E porque o que suscitaram, atempada e adequadamente , foi uma questão de inconstitucionalidade normativa, embora não de normas em abstracto, mas do sentido e do alcance com que as mesmas foram interpretadas e aplicadas pelo tribunal a quo.
2. O recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC que, em leitura combinada com o n.º 2 do artigo 72.º da mesma Lei, admite recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos restantes tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
2.1. A primeira objecção que a recorrida levanta ao prosseguimento do recurso é a de que a questão de constitucionalidade não pode considerar-se suscitada na resposta à contestação, como as recorrentes disseram, uma vez que o articulado em que o pretenderam fazer foi mandado desentranhar.
Esta observação, factualmente exacta (cfr. fls.74-77 e fls.126), é juridicamente improdutiva.
Com efeito, os recorrentes também esclareceram que haviam suscitado a questão da constitucionalidade nas alegações do recurso interposto da sentença de 1ª instância para o Tribunal da Relação (cfr. fls.263). Ora, é do acórdão proferido pela Relação que vem interposto o recurso de constitucionalidade, pelo que, com o investimento argumentativo que a recorrida nela põe, a questão poderia dar-se por respondida fazendo notar que, neste limitado aspecto, aquilo que se exige no n.º 2 do artigo 72.º da LTC é que a questão submetida ao Tribunal Constitucional tenha sido suscitada perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida.
Acrescentar-se-á, todavia, que a objecção improcede mesmo que se desloque a análise para a parte final do preceito (“em termos de este estar obrigado a dela conhecer”), isto é, quanto a saber se o facto de o articulado em que os autores ( agora recorrentes) suscitaram a questão da constitucionalidade perante o tribunal de 1ª instância não ter sido admitido interferia com o dever de conhecimento da questão de constitucionalidade pelo tribunal de recurso, no sentido que releva para a verificação do referido pressuposto porque é esse o limite dos poderes de cognição deste Tribunal. Efectivamente, não podendo os tribunais (todos os tribunais), por força do artigo 204.º da Constituição, aplicar normas inconstitucionais nos feitos submetidos ao seu julgamento, as alegações de recurso – pelo menos as alegações de recurso, que são a peça essencial de delimitação do âmbito deste; outras hipóteses são mais duvidosas ou exigem uma apreciação de aspectos particulares – são seguramente momento processual adequado para submeter à apreciação do tribunal superior, ainda que ex novo, as questões de constitucionalidade que respeitem às normas de que haja de fazer aplicação. Este mesmo entendimento já há muito o Tribunal o explicitou nos seguintes termos (Acórdão n.º 173/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, n.º 12, p. 549 ss.):
'sendo a inconstitucionalidade questão de conhecimento oficioso de qualquer tribunal (artigo 207º da Constituição) [ actualmente art.º 204º], logo com base nesta circunstância tem de admitir-se [...] que os interessados estejam sempre a tempo de invocá-la em qualquer via de recurso ordinário que a decisão consinta. Se suscitada pela primeira vez em alegações de recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça, não há que considerá-la, pois, uma «questão nova», que ao Supremo seja vedado apreciar: há, sim, que conhecer dela.'
Tanto basta para que, por qualquer dos ângulos por que se aprecie, improceda esta objecção da recorrida ao conhecimento do recurso.
2.2. Seguidamente, a recorrida objecta com a circunstância de a questão de constitucionalidade que as recorrentes colocam ao Tribunal não incidir sobre uma norma, mas sobre a interpretação que as instâncias perfilharam dessa mesma norma.
Com este alcance, tal objecção colide com a jurisprudência fortemente sedimentada do Tribunal no sentido de que, em recurso de fiscalização concreta, a questão de constitucionalidade não tem necessariamente por objecto a norma tal como a poderia extrair do preceito um intérprete ideal, mas a norma com a interpretação ou sentido com que foi tomada no caso concreto e aplicada na decisão recorrida. Força é, apenas, que o objecto proposto ao controlo de constitucionalidade seja ainda uma norma infraconstitucional, o critério normativo da decisão e não a decisão propriamente dita.
Sucede que, do requerimento de interposição do recurso, complementado com os esclarecimentos prestados em resposta ao convite formulado nos termos do artigo 75º-A da LTC, resulta suficientemente claro que os recorrentes pretendem submeter a escrutínio de conformidade com os artigos 13.º, n.º 2, 18.º, n.º 2 e 62.º da Constituição a norma que o acórdão a quo extraiu da conjugação dos artigos 1025.º, 1051.º, alínea a) e 1054.º, n.º 1, do Código Civil no sentido de que não assiste ao senhorio a possibilidade de denúncia do contrato de arrendamento para comércio e indústria com fundamento em caducidade por ter sido atingido o prazo máximo de 30 anos de duração (com a prazo inicial do contrato e as sucessivas renovações). Esta mesma questão foi colocada ao Tribunal da Relação pelos recorrentes nas respectivas alegações de recurso. Nessa peça processual, a par de proporem uma outra interpretação dos referidos preceitos, incluindo pela via da
“interpretação conforme”, não deixaram de censurar na perspectiva da inconstitucionalidade, substanciada e claramente, a solução normativa que triunfou (cfr. alíneas qq) a tt) – fls. 157). Aliás, o acórdão recorrido – e nem tanto seria necessário para que o recurso pudesse prosseguir – não deixou de responder a essa questão, embora sem a destacar formalmente, quando pondera parecer evidente “(...) que não se pode falar aqui de expropriação pois a lei não atinge a propriedade; atingirá quando muito a possibilidade de uma fruição dos rendimentos da propriedade; mas isso tem mais a ver com as limitações impostas às alterações dos montantes de rendas do que à propriedade em si cuja titularidade permanece no senhorio e não no arrendatário”.
Finalmente, não obsta ao conhecimento do recurso de constitucionalidade a circunstância de os recorrentes dedicarem parte substancial das alegações que nele produziram à demonstração de que a interpretação do direito ordinário deveria ter sido outra, designadamente, que o limite de duração máxima do contrato de locação imposto pelo artigo 1025.º do Código Civil se aplica à prorrogação forçada dos contratos de arrendamento, ao menos aos contratos de arrendamento para comércio e indústria, de modo que estes caducariam quando, com o período inicial e o das sucessivas renovações automáticas, se atingissem 30 anos de duração, assistindo, então ao senhorio faculdade de denúncia. É certo que tais considerações não poderão ser apreciadas porque extravasam do poder cognitivo do Tribunal Constitucional em recurso de fiscalização concreta, limitado, em regra, ao que respeite à apreciação da constitucionalidade das normas infraconstitucionais aplicadas (ou cuja aplicação foi recusada) pelos tribunais da causa. Mas resta a crítica final, suficientemente autonomizada, substanciada e explícita, de que com a interpretação efectivamente adoptada na sentença de 1ª instância e no acórdão recorrido – a contrária daquela que os recorrentes defendem – a norma que se extrai dos referidos preceitos é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade e por restrição desproporcionada do direito de propriedade.
Assim, desatendidas as excepções, cumpre passar ao conhecimento do objecto do recurso.
3. A acção que os recorrentes propuseram, visando pôr termo a um contrato de arrendamento para comércio e indústria com fundamento em que ao senhorio assiste direito de denúncia por caducidade, não se lhe impondo a renovação automática do contrato quando tiver sido atingido o prazo máximo de 30 anos, foi julgada improcedente, com fundamento em que o contrato não tinha caducado porque “[o] artigo 1025.º do Código Civil proíbe que se celebrem contratos por período superior a 30 anos; uma tal norma respeita às condições em que o contrato se inicia, não ao regime da sua prorrogabilidade”.
Assim, apesar de o requerimento de interposição de recurso indicar também a alínea a) do artigo 1051.º e o artigo 1054.º do Código Civil, a questão de inconstitucionalidade reduz-se, no essencial, à norma do artigo 1025.º do mesmo Código, quando interpretada no sentido de que o prazo de 30 anos nela previsto não constitui o termo máximo de duração dos contratos de arrendamento para comércio e indústria nos casos de prorrogação forçada. Os demais preceitos confluem na composição da norma aplicada para solução do caso e por isso é aceitável a sua inclusão no objecto do recurso mas, em si mesmos, são neutros quanto ao problema colocado.
4. Um dos aspectos caracterizadores do regime dos chamados arrendamentos vinculísticos – o arrendamento de prédios urbanos para comércio e indústria, que é o domínio considerado no presente recurso de constitucionalidade, mas também o arrendamento para habitação e o arrendamento para o exercício de profissões liberais – é a renovação do contrato, ainda que contra a vontade do senhorio, findo o período contratualmente estipulado (por cláusula negocial ou disposição supletiva), sempre que não seja afastada pelo arrendatário (prorrogação forçada ou renovação automática obrigatória).
É uma solução que, no ordenamento jurídico português, tem cerca de 90 anos de vigência ininterrupta. Surgiu na 2ª década do século XX, sob o impulso das dificuldades económico-sociais agudizadas pela Guerra de 1914-1918, abrindo uma brecha profunda na concepção de predomínio da liberdade contratual quanto à duração do contrato de arrendamento, característica de oitocentos e afirmada no Código de Seabra (artigos 1620º e 1645º), à semelhança do que, pela mesma
época, foi sucedendo noutros países europeus, alguns sob a pressão mais directa das devastações infligidas pela guerra ao património edificado. A princípio, esta restrição à liberdade contratual foi introduzida como medida de natureza transitória [A proibição de despejos por conveniência do senhorio foi imposta pelo n.º 5 do artigo 2.º da Lei n.º 828, de 28 de Setembro de 1917,
“enquanto durar o estado de guerra e até seis meses depois de assinado o tratado de paz” (artigo 9.º), consagrando o que já era efeito prático indirecto do Decreto n.º 1079, de 23 de Novembro de 1914. Foi reafirmado, ainda durante a Guerra, pelos artigos 45.º e 46.º do Decreto n.º 4488, de 27 de Junho de 1918 e, imediatamente após, pelo artigo 107.º do Decreto n.º 5 411, de 17 de Abril de
1919, para ser revisto quando o Governo entendesse que não subsistiam “as circunstâncias de carácter económico e financeiro que motivaram o Decreto n.º
1079, de 23 de Novembro de 1914”. Embora a Lei n.º 1662, de 4 de Setembro de
1924, previsse um termo para a sua vigência, este regime restritivo da liberdade contratual foi sucessivamente prorrogado, até que o Decreto n.º 14630, de 28 de Novembro de 1927, o considerou em vigor até à publicação de um novo diploma sobre o inquilinato (cfr. o historial contido nos n.ºs 5 e 6 do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro)]. Mas nunca mais deixou de vigorar – a Lei n.º 2030, de 22 de Junho de 1948, não tocou neste aspecto, mantendo o regime anterior – até que o art.º 1095º do Código Civil lhe veio conferir carácter definitivo.
Este regime, que veio conferir estabilidade à posição do locatário, permitindo-lhe, findo o prazo contratual ou o supletivo legal, impor ao senhorio a renovação do contrato, unilateral e discricionariamente, continua hoje consagrado, como regra, nos artigos 68.º e 69.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro (RAU). Não pode, assim, o senhorio denunciar o contrato de arrendamento ad nutum findo o prazo contratual.
Porém, embora mantendo-se como regra, a renovação obrigatória do contrato deixou de ter, para o futuro e no conjunto do sistema, o alcance prático que assumia quanto à limitação da liberdade contratual no arrendamento urbano, porque passou a ser possível optar pela celebração de contratos de duração limitada para habitação, (artigos 98.º a 100.º) e estipular um prazo para duração efectiva dos arrendamentos para comércio ou indústria (artigos 117.º e
118.º) ou para o exercício de profissões liberais (artigos 121.º).
5. Convém pôr desde já em evidência, porque será um factor a considerar ulteriormente no confronto da solução normativa com os parâmetros constitucionais pertinentes, que não são da mesma natureza os interesses que substancialmente justificam a prorrogação forçada no arrendamento para habitação e os que a podem justificar no arrendamento para comércio e indústria e para o exercício de profissões liberais.
Nos arrendamentos para habitação a regulamentação favorável ao inquilino tem imediato respaldo na consagração constitucional do interesse colectivo ou social do direito à habitação, cuja prossecução é imposta ao Estado e que não deixa de vincular os particulares, como se reconheceu no Acórdão n.º
151/92, publicado no Diário da República, II Série, de 28 de Julho de 1992, onde, ao avaliar as normas que subtraem o contrato de arrendamento para habitação à regra da liberdade contratual e o submetem à regra da renovação automática obrigatória, se refere que é nelas que 'o legislador, conhecendo como conhece, a falta de casas para habitação, sacrifica um direito do senhorio a favor do direito do locatário a dispor de uma casa para sua habitação', adiantando-se que, de 'facto, retira àquele o direito que, em princípio, lhe assistiria de denunciar livremente o contrato de arrendamento celebrado – direito este que está compreendido, seja no direito de iniciativa económica privada (artigo 61.º, n.º 1, da Constituição), seja no direito de propriedade privada (artigo 62.º, n.º 1, da Constituição)', e acrescentando, ainda, que a
'legislação sobre arrendamento para habitação é fortemente vinculística, sendo um domínio onde a hipoteca social que recai sobre a propriedade é, talvez, mais forte.'.
No que se refere ao arrendamento para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal não é possível encontrar na Constituição cobertura explícita ou tão imediatamente evidente como aquela que a jurisprudência tem desvendado quanto ao arrendamento para habitação. Efectivamente, o interesse acautelado pelo tratamento mais favorável ao locatário é aqui de outra natureza, predominantemente económica. Seguindo Pereira Coelho (Arrendamento, Lições ao Ciclo Complementar de Ciências Jurídicas, pol. Coimbra, 1984, p. 70), “ … pode dizer-se, em termos gerais, que a lei pretende garantir a continuidade da exploração comercial ou industrial ou da profissão liberal exercida no prédio arrendado, facilitar a circulação da empresa (de que o direito ao arrendamento constitui, por vezes, o elemento mais importante) e defender a integridade do valor económico do estabelecimento ou da profissão liberal do arrendatário, valor criado por iniciativa deste [(1) Ou que de todo o modo ele pagou (no caso de trespasse do estabelecimento ou cessão do local para exercício da mesma profissão liberal do arrendatário)] e que poderia ser consideravelmente afectado se o comércio, indústria ou profissão liberal tivesse de passar a exercer-se em local diferente. Trata-se, pois, fundamentalmente, de proteger o interesse do arrendatário para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal e ainda, reflexamente, o interesse geral, dado o valor social de que as respectivas actividades se revestem.”
6. Dito isto, importa lembrar que os recorrentes não questionam a constitucionalidade das normas que estabelecem a regra da renovação automática e obrigatória do contrato para o locador, que é o produto dos preceitos que estabelecem a renovação automática com aqueles que limitam a possibilidade de denúncia por parte do senhorio (artigos 68.º, n.º 2 e 69.º do RAU). O que censuram é o carácter temporalmente ilimitado dessa prorrogação que, relativamente a arrendamentos para comércio e indústria, pode dizer-se que é potencialmente perpétua, uma vez que as pessoas colectivas podem ter uma duração ilimitada e que, quanto às pessoas singulares, o arrendamento para comércio e indústria não caduca por morte do arrendatário (artigo 112.º do RAU).
7. Violará, então, a renovação obrigatória (para o senhorio) do contrato de arrendamento, na medida em que ultrapasse a duração máxima total de
30 anos, a garantia do direito de propriedade privada estabelecida pelo artigo
62.º da Constituição?
O n.º 1 do artigo 62.º da Constituição garante a todos “o direito à propriedade privada e à sua transmissão por vida ou por morte, nos termos da Constituição”.
Segundo o requerente, “a inexistência de um limite temporal para a vigência [por efeito da prorrogação forçada] dos contratos de arrendamento e a sua correlativa perpetuidade, constituem um cerceamento claramente intolerável do direito fundamental da propriedade, na medida em que tal perpetuidade faz do arrendatário comercial o real beneficiário da propriedade e do arrendamento uma autêntica expropriação”. Esse seria o primeiro fundamento de inconstitucionalidade das normas em causa assim interpretadas, mais imediatamente, desse sentido do artigo 1025.º do Código Civil.
O Tribunal Constitucional tem salientado repetidamente que o direito de propriedade, garantido pela Constituição, é um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, beneficiando, nessa medida, nos termos do artigo 17.º da Constituição, da força jurídica conferida pelo artigo 18.º (cfr., por exemplo, o Acórdão n.º 187/2001, publicado no Diário da República, II Série, de 26 de Junho de 2001, com ampla citação de jurisprudência em diversos domínios em que o Tribunal já foi chamado a pronunciar-se). Importa, porém, discernir, dentro do direito de propriedade privada, o núcleo ou conjunto de faculdades que revestem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, uma vez que nem todas se podem considerar como tal, como a mesma jurisprudência tem afirmado.
Não definindo o texto constitucional o que deva entender-se por direito de propriedade, não há inteira coincidência a propósito da extensão e compreensão de tal conceito. Contudo, uma primeira ideia é certa: quando o artigo 62.º garante o direito à propriedade privada “nos termos da Constituição” quer sublinhar que o direito de propriedade não é garantido em termos absolutos, mas dentro dos limites e nos termos previstos noutros lugares do texto constitucional. Como o Tribunal disse logo no Acórdão n.º 76/85, publicado no Diário da República, II Série, de 8 de Junho de 1985, a velha concepção clássica da propriedade, o jus utendi, fruendi ac abutendi individualista e liberal, foi cedendo o passo a uma concepção nova daquele direito em que avulta a sua função social. O próprio projecto económico, social e político da Constituição implica um estreitamento do âmbito de poderes tradicionalmente associados à propriedade privada e a admissão de limitações ou condicionamentos, quer a favor do Estado ou da colectividade, quer a favor de terceiros, das liberdades de uso, fruição e disposição (cfr., de entre outros, Acórdão n.º 866/96, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 34º, p. 53 e ss.).
Também não sofre dúvidas que a Constituição garante explicitamente no art.º 62.º três componentes: (i) o direito de aceder à propriedade; ( ii) o direito de não ser arbitrariamente privado da propriedade; (iii) o direito de transmissão da propriedade inter vivos ou mortis causa. Já o direito de usar e fruir os bens de que se é proprietário, que é a outra componente do direito de propriedade, não é explicitamente destacada neste preceito constitucional.
Os recorrentes não identificam claramente que componente defensiva do direito de propriedade consideram lesada pelo facto de a prorrogação do contrato se impor ao locador para além dos 30 anos de duração máxima. Dizendo que esse regime constitui uma “autêntica expropriação” parecem pretender equiparar a solução a uma privação da propriedade. Nada dizem, porém, que permita assimilar a situação à forma máxima de sacrifício do direito de propriedade, articulando-o com o conceito corrente de expropriação ou com um outro conceito de expropriação constitucionalmente adequado que proponham.
Na realidade, a prorrogação forçada do arrendamento não é, no sentido do artigo 62.º, n.º 2, da Constituição, um acto de expropriação. Transpondo o que se disse (a propósito da acessão) no Acórdão n.º 205/2000, publicado no Diário da República, II Série, de 30 de Outubro de 2000:
“A expropriação não é um conceito equivalente ao de desapropriação forçada ou de ablação de direitos sobre coisas, em todas as modalidades que estas figuras podem apresentar. Não são actos de expropriação, por exemplo (a não ser num sentido demasiado lato, desprovido de interesse prático), os mecanismos de desapossamento destinados a assegurar a execução coactiva das obrigações do devedor através da penhora e venda forçada de bens em processo civil, nem os actos de apreensão e confisco ditados por razões penais ou de segurança. A expropriação é um modo de aquisição de direitos sobre coisas que tem em vista proporcionar o aproveitamento directo dos bens pela entidade expropriante, sempre que a sua utilização se torna necessária para realizar determinados fins de interesse geral (obras públicas, reforma agrária, controlo da economia, protecção do património, entre os mais frequentes). É um acto, portanto, que assenta na prevalência da utilidade administrativa de um bem, para o Estado ou para outra entidade com atribuições de interesse público, em confronto com a utilidade que ele representa para o seu detentor particular. Nisso reside a justificação do sacrifício imposto ao direito do proprietário e, simultaneamente, a raiz do perfil histórico da expropriação como ponto de tensão especialmente sensível nas relações entre o poder público e os direitos individuais. Foi com esse sentido que a expropriação entrou nas declarações de direitos e no sistema das garantias constitucionais, subordinada à dupla condição da
'utilidade pública' e da 'justa indemnização'. A utilidade pública não deve, aqui, ser entendida apenas como um requisito de vinculação ao interesse público, pois o simples interesse particular nunca poderia justificar a apropriação forçada de bens para uso do Estado, a qual estaria sempre afastada num Estado de Direito, desde logo pelo princípio da legalidade. Enquanto sinónimo de interesse geral, por outras palavras, a utilidade pública não representa mais do que uma explicitação conceitual, um elemento qualificativo da figura da expropriação - um elemento, portanto, delimitador do âmbito da garantia constitucional e não do seu conteúdo. A formulação do artigo 62.º da Constituição traduz esta ideia, ao incluir a utilidade pública no próprio conceito de expropriação.
Mas ainda que se aceite caber na moldura do n.º 2 do artigo 62.º da Constituição um entendimento menos restrito do conceito de expropriação – questão que o Tribunal tem por vezes deixado em aberto (cfr. Acórdão n.º 109/88 e Acórdão n.º 52/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol., p.855 e segs. e 15.º vol., p. 49 e segs., respectivamente) e aqui também não é indispensável dilucidar; cfr. criticamente e sustentando a existência de um conceito constitucional de expropriação no n.º 2 do artigo 62.º não coincidente com o homólogo do direito civil e do direito administrativo, Maria Lúcia Amaral, Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do Legislador, p. 561 e ss. – é fácil convir que o prolongamento ex lege da duração de um modo típico de exploração das coisas imóveis – como é o arrendamento – não transferindo o domínio nem, por si, afectando os poderes de disposição e de fruição sobre a coisa de modo substancialmente diverso daquele que é inerente à celebração do contrato, não tem por efeito jurídico privar o senhorio da titularidade sobre o bem nem assume efeitos juridicamente equivalentes a um acto ablativo da propriedade. A coisa imóvel continua a integrar o seu património, relativamente
à qual exerce todos os poderes de proprietário (ou do direito real que o legitima como locador), excepto aqueles cuja privação é inerente ao contrato de locação. E, em contrapartida da entrega da coisa ao locatário e de lhe proporcionar o gozo desta para os fins a que se destina (artigo 1031.º do Código Civil), continua a receber a renda. Continua, portanto, a gozar as utilidades económicas do imóvel no modo indirecto próprio do proprietário locador (fruendi). Se, neste aspecto, houver perda de consistência prática do seu direito será por efeito das normas que estabeleçam limites à actualização das rendas – questão que não é objecto de apreciação neste recurso – e não da renovação obrigatória ou prorrogação forçada do arrendamento para lá dos 30 anos de duração.
É certo que a verificação de que a Constituição não define o conteúdo do direito de propriedade e que o direito de usar e fruir os bens de que se é proprietário não está explicitamente contemplada no artigo 62.º não conduz a que o legislador possa modelar o direito de propriedade de modo a despojá-lo de um conteúdo mínimo de faculdades sem o qual o direito subjectivo ficaria aniquilado e a própria garantia de instituto perderia substância. Afinal, será esse âmbito de protecção que os recorrentes querem dizer que não está salvaguardado quando afirmam que a solução normativa questionada constitui uma “autêntica expropriação”.
Porém, no complexo de direitos e obrigações do locador, a norma em causa não tem tal alcance de tornar irrisório o conteúdo do direito de propriedade. Em primeiro lugar, embora não possa escamotear-se, como se ponderou no Acórdão n.º 263/2000, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47º vol., págs. 363 e segs., que, na prática, a transmissão de um prédio urbano dado de arrendamento se antevê mais dificultosa relativamente a um outro que se não encontre «onerado» com um tal tipo de contrato e que, dados os condicionamentos da actualização das rendas, a sua fruição se pode apresentar como menos proveitosa, a circunstância de o arrendamento se prolongar ilimitadamente – salvo outros casos de denúncia ou resolução – não interfere com o núcleo essencial do direito de propriedade dos senhorios, que continuam a extrair do imóvel o proveito económico que corresponde a uma forma típica de exploração desse tipo de bens.
Além disso, não é exacto que o facto de a lei não reconhecer ao locador a faculdade de denúncia com fundamento no facto de o contrato completar, com a última prorrogação forçada, o período da duração máxima de locação, equivalha a negar-lhe em absoluto o direito de recuperar o gozo directo da coisa locada. Além dos casos de resolução do contrato – e pelo menos um deles, a resolução com fundamento na realização de obras não autorizadas, tem como fundamento último continuar a pertencer ao proprietário o poder de transformação ( cfr. José Oliveira Ascensão e Luís Menezes Leitão, O Direito, n.º 125, p. 427 ) – o locador conserva a possibilidade de recuperar o prédio por denúncia do contrato nas hipóteses previstas actualmente no artigo 69.º do RAU.
Tanto basta para considerar que a norma que se extrai da conjugação dos art.ºs 1025.º, 1051.º, alínea a) e 1054º, n.º 1, do Código Civil, interpretados no sentido de que o senhorio não goza de direito de denúncia com fundamento em se terem completado 30 anos de duração do contrato de arrendamento, não viola o disposto no art.º18.º, n.º2, com referência ao artigo
62.º da Constituição.
8. O facto de a situação não estar coberta pelo regime do artigo
18.º n.º 2 da Constituição não significa que o agravamento das limitações à liberdade contratual do locador que dela decorre não possa ser avaliado à luz dos princípios do Estado de Direito que impedem o legislador de restringir direitos individuais de modo arbitrário e desproporcionado, ainda que fora das hipóteses cobertas por aquele preceito (Cfr. Acórdão n.º 205/2000).
Sucede que também por este ângulo a resposta é negativa. Com efeito, o regime de prorrogação do arrendamento para além de 30 anos da duração máxima pode consistir numa arbitragem discutível entre os interesses do proprietário/locador e os do locatário e até ser menos coerente com a preocupação de evitar a “feudalização” da propriedade que dita a proibição de estipulação de prazos de duração de contratos de locação superiores a 30 anos
(objectivo, aliás, verificável noutros lugares do sistema; cfr. solução semelhante quanto ao usufruto e, por remissão, quanto ao uso e habitação, no artigo 1443.º do Código Civil) e ir ao arrepio da tendência actual para atenuar este aspecto do regime vinculístico (cfr., neste sentido Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, p. 149 e ss., onde se procede a uma resenha de direito comparado; autor que, aliás, se pronuncia no sentido da inconstitucionalidade da prorrogação forçada para além do prazo do artigo 1025.º do Código Civil, maxime p.198 e 984-986). Porém isso não basta para que se conclua pela inconstitucionalidade. Para que a opção do legislador pudesse ser censurada pelo juiz constitucional à luz deste parâmetro teria de se apresentar como destituída de fundamento ou obedecer a um critério legislativo manifestamente desrazoável e inadequado.
Ora, já vimos que o regime de prorrogação forçada do arrendamento para comércio e indústria obedece a um escopo de tutela da posição jurídica do inquilino que, do mesmo passo, serve o interesse público de defesa da economia mediante a protecção da estabilidade empresarial com larga tradição no nosso ordenamento jurídico e que naturalmente entra nas ponderações do locador quando opta por essa forma de fruição do imóvel (e também por aí se afastariam preocupações da tutela constitucional da confiança ou da segurança jurídica relativamente a contratos celebrados em 1971, como é o caso dos autos).
Esta preferência pela protecção da actividade empresarial em detrimento dos interesses dos titulares de riqueza imobiliária cabe na margem de discricionariedade legislativa quanto à conformação da propriedade privada, na tarefa de modelação normativa da função social do instituto. Encontra credencial constitucional, designadamente, na alínea d) do artigo 9.º e no n.º 1 do artigo 86.º da Constituição.
A extensão temporal dessa protecção para além de 30 anos de duração global da relação locatícia, ainda que possa conduzir a uma situação de duração ilimitada,
é adequada ao fim visado e não a torna, por si só, desproporcionada (por violação do subprincípio da proibição de excesso). Efectivamente, o equilíbrio da relação não pode ser avaliado isolando o efeito da norma em causa do conjunto dos direitos e obrigações do locador. Ora, além do que já se referiu quanto à possibilidade de recuperação do gozo directo do bem, pela existência de outras causas de denúncia ou de causas de resolução que traduzem a permanência na titularidade do locador de “competências” inerentes à propriedade, as rendas são anualmente actualizáveis (artigo 32.º do RAU), porventura tendo precedido avaliação ou correcção extraordinária (cfr. artigo
9.º do Decreto-Lei n.º 321-B/90, preambular do RAU e diplomas aí mencionados), pelo que não pode dizer-se que o prolongamento da duração do arrendamento tenha por efeito necessário tornar irrisória a contrapartida pela cedência do gozo da coisa (ao menos pela sua conjugação com o efeito da inflação, que é o que ocorre como mais provavelmente susceptível de arrastar, a longo prazo, essa consequência).
9. O Tribunal passa, por último, a uma apreciação breve da alegação de que a norma em causa viola o princípio constitucional da igualdade, embora seja duvidoso que os recorrentes mantenham esse fundamento como parâmetro da apreciação de inconstitucionalidade que querem ver reconhecida.
Efectivamente, no requerimento de interposição de recurso os recorrentes indicaram como norma constitucional violada o n.º 2 do artigo 13.º da Constituição, mas é manifesto que a solução normativa em causa não entra em qualquer das “categorias suspeitas” enunciadas neste preceito constitucional. E, nas alegações, a única e escassa referência que os recorrentes fazem a este princípio constitucional consiste na afirmação de que a solução em causa constitui uma compressão injustificada da igualdade das pessoas perante a lei,
“pela possibilidade dada ao inquilino de explorar economicamente a propriedade alheia, sem que ao senhorio seja dada idêntica faculdade”. Ora, se bem se entende o que os recorrentes pretendem significar com esta afirmação, tal diferenciação de tratamento é inerente à própria definição de locação, ou mais precisamente de arrendamento urbano, que a lei define como o contrato pelo qual uma das partes concede à outra o gozo temporário de um prédio urbano, no todo ou em parte, mediante retribuição (cfr. artigo 1.º do RAU e artigos 1022.º e 1023.º do Código Civil). Repete-se, aliás na senda do acórdão recorrido, que se houver quebra do equilíbrio contratual por efeito da disciplina jurídica do arrendamento – e é duvidoso que o princípio da igualdade fosse o parâmetro adequado – tal resultado será imputável ao regime de determinação da contrapartida e não à regra de prorrogação forçada.
Assim, porque nem os recorrentes dizem nem se vislumbra em que perspectiva a prorrogação forçada do arrendamento para além de 30 anos poderá configurar violação do princípio constitucional da igualdade, também quanto a este fundamento o recurso improcede.
10. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso e condenar os recorrentes nas custas, fixando a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 16 de Março de 2005
Vítor Gomes Gil Galvão Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Artur Maurício