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Processo n.º 45/05
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A. vem reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), da decisão sumária do relator, de 22 de Fevereiro de 2005, que decidira, no uso da faculdade conferida pelo n.º 1 do mesmo preceito, não conhecer do objecto do presente recurso.
1.1. A decisão sumária reclamada é do seguinte teor:
“1. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 16 de Novembro de 2004, tendo, no respectivo requerimento de interposição de recurso, indicado, «nos termos do n.º
2 do artigo 75.º-A» da referida Lei, que pretendia ver apreciada «a violação do princípio constitucional da igualdade na não aplicação da Lei n.º 116/97, de 4 de Novembro, e violação dos artigos 9.º, alínea f), e 74.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, como foi suscitado na petição de recurso e nas alegações apresentadas no recurso interposto no Venerando Tribunal Central Administrativo». O recurso foi admitido pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal Administrativo, decisão que, como é sabido, não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da LTC). Neste Tribunal, o relator exarou despacho a convidar o recorrente, nos termos do n.º 6 do artigo 75.º-A da LTC, «a indicar, com precisão, qual a norma que terá sido aplicada no acórdão recorrido e cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada, e, bem assim, a localizar concretamente as passagens das peças processuais em que essa questão de constitucionalidade terá sido suscitada». Em resposta, o recorrente veio indicar que «a norma cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada é a não aplicação do Estatuto dos trabalhadores estudantes plasmado na Lei n.º 116/97, de 4 de Novembro, aos militares da Guarda Nacional Republicana, por violação dos artigos 13.º, 9.º, alínea f), e
74.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, como foi suscitado na petição de recurso nos artigos 18.º, 19.º e na parte final, e no requerimento de substituição do objecto do recurso nos artigos 17.º e 18.º, e nos n.ºs 4 e 5 das conclusões das alegações, apresentadas no recurso contencioso interposto no Venerando Tribunal Central Administrativo». Assim delineado, o presente recurso de constitucionalidade surge como inadmissível, o que possibilita a prolação de decisão sumária de não conhecimento do respectivo objecto, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC.
2. No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas (ou a interpretações normativas, hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o sentido da interpretação que reputa inconstitucional), e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, a actos administrativos ou a condutas ou omissões processuais, em si mesmas consideradas. Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º
1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente. Aquele primeiro requisito (suscitação da questão de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferida a decisão impugnada) só se considera dispensável nas situações especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou em que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade. No presente caso, o recorrente não suscitou nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa durante o processo, nem, muito especialmente, perante o tribunal que proferiu a decisão ora recorrida, como resulta da mera leitura das passagens das peças processuais que indicou como sendo os locais onde teria suscitado a questão de inconstitucionalidade que pretende ver apreciada. Assim, na originária petição de recurso contencioso referiu:
«18.º - Porque o ensino e a valorização permanente do cidadão é uma das tarefas fundamentais do Estatuto do Trabalhador-Estudante com consagração na alínea f) do artigo 9.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
19.º - Porque todos, e não só alguns, têm direito ao ensino, garantindo o direito de oportunidades de acesso aos graus mais elevados do ensino (artigo
74.º, n.º 2, alínea d), da CRP).
(...) Termos em que o presente recurso deve ser admitido e a final anulado o indeferimento tácito do Senhor Ministro da Administração Interna, por violação da Lei n.º 116/97, de 4 de Novembro, e por violação da alínea f) do artigo 9.º, dos n.ºs 1 e 2, alínea d), do artigo 74.º, e n.º 4 do artigo 268.º da Constituição da República Portuguesa.»
No requerimento de substituição do objecto do recurso contencioso lê-se:
«18.º - A não aplicação do Estatuto do trabalhador-estudante aos militares da GNR configura arbítrio intolerável, violando-se o artigo 13.º da CRP.
19.º - Ao não aplicar ao ora recorrente o Estatuto do trabalhador-estudante, o acto ora recorrido violou o disposto na Lei n.º 116/97, de 4 de Novembro, artigos 156.º e 157.º do EMGNR e artigos 9.º e 13.º da CRP, sofrendo do vício de violação de lei por erro nos seus pressupostos, sendo nulo ou anulável.»
E nos n.ºs 4 e 5 das conclusões das alegações do recurso contencioso, apresentadas pelo recorrente no Tribunal Central Administrativo, lê-se:
«4. Ao não aplicar ao ora recorrente o Estatuto do trabalhador-estudante, o acto ora recorrido violou o disposto na Lei n.º 116/97, de 4 de Novembro, artigos 156.º e 157.º do EMGNR e artigos 9.º e 13.º da CRP, sofrendo do vício de violação de lei por erro nos seus pressupostos, sendo nulo ou anulável.
5. O ensino e a valorização permanente do cidadão é uma das tarefas fundamentais do Estatuto do trabalhador-estudante com consagração na alínea f) do artigo 9.º da CRP. A não aplicação do Estatuto do trabalhador-estudante aos militares da GNR configura arbítrio intolerável, violando-se o artigo 13.º da CRP.»
Como se vê, em nenhuma destas passagens é imputada a uma norma ou a uma interpretação normativa, minimamente identificada, a violação de princípios ou normas inconstitucionais. É ao acto administrativo contenciosamente impugnado, em si mesmo considerado, que são directamente assacadas violações de normas de direito ordinário e de normas constitucionais, nisto se traduzindo o vício de violação de que o mesmo acto administrativo padeceria. Ora, a questão da inconstitucionalidade de um acto administrativo não constitui, como se assinalou, objecto idóneo do recurso de constitucionalidade previsto no ordenamento jurídico português.
A isto acresce que, tendo o Tribunal Central Administrativo (Sul) concedido provimento ao recurso contencioso, do correspondente acórdão interpôs a entidade recorrida recurso jurisdicional para o Supremo Tribunal Administrativo. Ora, nesse recurso jurisdicional - que veio a ser provido, com revogação do acórdão recorrido e improcedência do recurso contencioso -, o recorrente contencioso não apresentou contra-alegações. Isto é: por força desta omissão, não suscitou «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida [o Supremo Tribunal Administrativo], em termos de este estar obrigado a dela conhecer», como o exige o n.º 2 do artigo 72.º da LTC, a questão de constitucionalidade que pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, quando teve oportunidade processual para o fazer
(nas contra-alegações do recurso jurisdicional).
3. Termos em que se decide, ao abrigo do n.º 1 do artigo
78.º-A da LTC, não conhecer do objecto do recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 (seis) unidades de conta.”
1.2. A reclamação apresentada pelo recorrente contra a decisão sumária do relator desenvolve a seguinte fundamentação:
“1. A douta decisão fundamenta-se no facto de o ora recorrente não ter suscitado «de modo processualmente adequado perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida (o Supremo Tribunal Administrativo), em termos de este estar obrigado a dela conhecer, como o exige o n.º 2 do artigo 72.° da LTC, a questão da inconstitucionalidade que pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, quando teve oportunidade processual para o fazer (nas contra-alegações do recurso jurisdicional)».
2. Porém, como consta da douta decisão sumária, na originária petição de recurso contencioso, no requerimento de substituição do objecto de recurso e nas conclusões finais é dito que ao não aplicar ao recorrente o Estatuto de trabalhador-estudante, o acto recorrido violou o disposto na Lei n.°
116/97, de 4 de Novembro, os artigos 156.° e 157.° do EMGNG e os artigos 9.°, alínea f), 13.°, 74.°, n.°s 1 e 2, e 268.°, n.° 4, da CRP.
3. Parece-nos, com o devido respeito, que, contrariamente ao referido na douta decisão que «em nenhuma destas passagens é imputada a uma norma ou a uma interpretação normativa, minimamente identificada, a violação de princípios ou normas constitucionais», se diz que a não aplicação do Estatuto de trabalhador-estudante à GNR é uma interpretação inconstitucional do referido Estatuto.
4. O recorrente esclareceu, quando convidado por douto despacho, que o que pretendia era a inconstitucionalidade da não aplicação do Estatuto de trabalhador-estudante plasmado na Lei n.° 116/97, de 4 de Novembro, aos militares da GNR, por violação dos artigos 13.º, 9.°, alínea f), 74.°, n.°s 1 e
2, e 268.°, n.° 4, da CRP, como tinha suscitado nas peças processuais citadas em
2.
5. Relativamente ao facto do ora recorrente não ter contra-alegado no recurso jurisdicional que a entidade recorrida interpôs do acórdão proferido em 1.ª instância e, consequentemente, não ter suscitado perante o Supremo Tribunal Administrativo que proferiu a decisão a questão da inconstitucionalidade, em termos de este estar obrigado a dela conhecer, parece-nos, salvo melhor opinião e com o devido respeito, que é muito, que não é assim.
Vejamos.
A entidade recorrida contenciosamente ficou vencida em 1.ª instância e entendeu, nos termos do artigo 104.°, n.° 1, da LPTA que devia interpor recurso jurisdicional, tendo requerido e sido admitido.
Nos termos do artigo 106.° da LPTA alegou em tempo.
O recorrido não tem que alegar e não alegou porque tudo quando tinha alegado anteriormente era suficiente para se concluir que a não aplicação do disposto no Estatuto do trabalhador-estudante a pessoal da Guarda Nacional Republicana era uma interpretação inconstitucional de todas as suas normas, atendendo ao estipulado nos artigos 9.°, alínea f), 13.° e 74.° e n.° 4 do artigo 268.° da CRP. O Supremo Tribunal Administrativo, ao julgar o recurso jurisdicional, não pode ignorar o que se alegou nas peças constantes dos autos, nomeadamente na petição de recurso contencioso, no requerimento de substituição do objecto do recurso contencioso e nas alegações finais desse recurso, pois à inércia do recorrido não está conexionada qualquer consequência desfavorável.”
1.3. Notificado da apresentação desta reclamação, a entidade recorrida apresentou resposta, concluindo:
“I. O Tribunal Constitucional, por força do artigo 280.° da Constituição da República Portuguesa e do artigo 70.° da Lei do Tribunal Constitucional, apenas tem competência para apreciar a inconstitucionalidade de normas e não de actos administrativos.
II. O recorrente não suscitou a questão da inconstitucionalidade de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, tendo tido, no entanto, oportunidade processual de o fazer, em momento anterior ao requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, nas contra-alegações para o STA, peça que decidiu não apresentar.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Os argumentos explanados na reclamação do recorrente não se mostram procedentes.
Desde logo, é reconhecido que não foi suscitada nenhuma questão de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Administrativo, autor do acórdão recorrido, já que o recorrente optou por não apresentar contra-alegações no recurso jurisdicional interposto pela entidade contenciosamente recorrida, sendo óbvio que era esse o momento processual adequado para a suscitação da questão de inconstitucionalidade “perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”, como o exige o n.º 2 do artigo 72.º da LTC.
Depois, mesmo que se admitisse – o que não se admite – que valia para esse efeito a suscitação da questão de inconstitucionalidade, não directamente perante o tribunal que proferiu a decisão ora recorrida, mas perante instâncias inferiores da respectiva ordem jurisdicional, o certo é a questão que foi suscitada perante o Tribunal Central Administrativo (quer na originária petição de recurso contencioso, quer no requerimento de substituição do objecto do recurso, quer nas alegações do recurso contencioso – tudo peças processuais endereçadas ao Tribunal Central Administrativo) não foi uma questão de inconstitucionalidade normativa, mas antes uma questão de inconstitucionalidade do próprio acto administrativo contenciosamente impugnado, em si mesmo considerado, como se evidenciou na decisão sumária ora reclamada. Com efeito, não constitui modo adequado de suscitar uma questão de inconstitucionalidade normativa afirmar-se que uma decisão judicial ou um acto administrativo violam uma norma de direito ordinário e uma norma constitucional
– como o recorrente fez nos apontados locais –, pois nesse caso não se está a reportar a violação da Constituição à norma de direito ordinário (que também se considerou desrespeitada), mas à própria decisão judicial ou administrativa, que será simultaneamente ilegal e inconstitucional.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
15 (quinze) unidades de conta. Lisboa, 29 de Março de 2005 Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos