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Processo n.º 570/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
O arguido A. interpôs recurso para o Tribunal da
Relação de Lisboa do acórdão do Tribunal Colectivo do Círculo Judicial de
Almada, de 3 de Julho de 2003, que o condenou, pela co‑autoria de um crime
continuado de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1,
204.º, n.º 2, alínea g), e 30.º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 2 anos e 6
meses de prisão, suscitando, na respectiva motivação, além do mais, a questão de
constitucionalidade sintetizada na conclusão 1.ª: “As captações de vídeo nas
instituições em causa [captações efectuadas no interior de agências da B. de
Almada, Alverca do Ribatejo e Cova da Piedade] foram feitas sem se cumprir o
disposto nos artigos 1.º, 3.º, alínea b), e 112.º, n.º 2, do Decreto‑Lei n.º
231/98, e infringiu‑se o disposto no artigo 199.º, n.º 2, alíneas a) e b), do
Código Penal, e assim os artigos 125.º e 167.º, n.ºs 1 e 2, do Código de
Processo Penal, por terem sido obtidas sem a vontade do arguido e como tal
interpretado inconstitucionalmente os artigos acima indicados, por violação dos
artigos 26.º e 32.º, n.º 1, da CRP”.
Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 30 de
Novembro de 2004, foi negado provimento a esse recurso, consignando‑se, quanto à
aludida questão, o seguinte:
“Quanto à captação de imagens, ela é legal, como no caso dos autos,
em instituição bancária. Não é método proibido de prova (artigo 126.º do CPP)
nem pela CRP, nem pelo CPP. O direito à imagem não é violado, dado no caso
concreto outros direitos constitucionais legitimarem a captação de imagens. Não
existem as alegadas violações legais.”
Esta passagem foi objecto de pedido de aclaração
formulado pelo mesmo arguido, solicitando a indicação dos preceitos
constitucionais que (segundo o acórdão) teriam valor análogo ou superior aos por
ele (arguido) considerados violados, referindo que, “por desconhecimento dos
preceitos invocados no douto Acórdão, bem como o valor dos mesmos, suscitou‑se
logo, em recurso, a inconstitucionalidade interpretativa do artigo 126.º, n.ºs 1
e 3, do CPP, conjugado com o artigo 1.º, 3.º, alínea b), e 112.º, n.º 2, do
Decreto‑Lei n.º 231/98, por violação do artigo 26.º, n.º 1 ([direito] «à imagem»
e «reserva da intimidade da vida privada»), e 32.º, n.º 1, da nossa Lei
Fundamental”.
Este pedido de aclaração foi decidido pelo acórdão de 19
de Abril de 2005 do Tribunal da Relação de Lisboa, no qual se consignou:
“(...) em primeiro lugar, o direito à imagem e reserva da intimidade
da vida privada cede aos mais elementares direitos da vida comunitária,
designadamente ao princípio geral da administração da justiça, consagrado no
artigo 202.º, n.ºs 1, 2 e 3, da CRP.
Em segundo lugar e numa perspectiva das tarefas fundamentais do
Estado, não é de desprezar as exigências de polícia ou de justiça referidas no
artigo 79.º, n.º 2, do Código Civil, devendo referir‑se também o artigo 9.º,
alínea b), da CRP, precisamente quando se define a essência dos direitos da
personalidade, maxime ao direito à imagem.
Finalmente, e na esteira do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça,
de 20 de Junho de 2001 (Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo
Tribunal de Justiça, ano IX, tomo II, p. 226), não existe qualquer
inconstitucionalidade interpretativa do artigo 126.º do CPP, não sendo método
proibido de prova a captação de imagens dos autos, dadas as razões supra e «por
obedecerem aos requisitos restritivos mas permitidos pela Constituição aos
direitos e garantias fundamentais dos artigos 25.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, e 18.º,
n.ºs 2 e 3, da Constituição, pois, fundamentalmente, apesar de comprimirem o
direito à reserva da vida privada, não o fazem de modo, de todo em todo,
intolerável».”
Veio então o referido arguido interpor recurso para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional,
aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela
Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), pretendendo ver apreciada a
constitucionalidade “da norma do artigo 126.º, n.º 3, conjugada com o artigo
167.º, n.º 2, quando interpretada, como o foi, no sentido de que a «captação de
imagens é legal», não é método proibido de prova e não é violadora do direito à
imagem e à reserva da vida privada, mesmo obtida sem a vontade do arguido e sem
autorização judicial, por violação dos artigos 26.º, n.º 1, e 32.º, n.º 8, da
nossa Lei Fundamental”.
No Tribunal Constitucional, o relator determinou a
apresentação de alegações, consignando que nelas as partes se deveriam
pronunciar sobre a eventualidade de se vir a decidir: (i) não se conhecer do
objecto do recurso, por não ter sido adequadamente suscitada, pelo recorrente,
perante o tribunal recorrido, uma questão de inconstitucionalidade normativa,
através de clara identificação da interpretação normativa acusada de
inconstitucional, imputando‑se a violação da Constituição directamente às
operações de captação de imagem; e/ou (ii) excluir do âmbito do recurso a
dimensão normativa reportada à ausência de autorização judicial, só referida no
requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, tendo
sido omitida na motivação do recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, onde
apenas se aludia à ausência de vontade do arguido.
O recorrente apresentou alegações, tendo, inicialmente,
a título de “Consideração prévia”, consignado o seguinte:
“O arguido recorre exercendo um direito que a lei lhe confere, no
entanto fá‑lo com o maior respeito pelo douto acórdão recorrido e, pela sua
interpretação dos artigos 126.°, n.° 3, conjugado com o artigo 167.°, n.° 2, do
CPP, quando interpretados, como o foram, no sentido de a captação de imagens ser
legal, mesmo que obtida sem o consentimento e conhecimento do visado, pois não é
método proibido de prova, não violando o direito à imagem e à reserva da vida
privada.
Destas alegações excluiu‑se a dimensão normativa reportada «à
ausência de autorização judicial», por na verdade tal interpretação não ter
sido suscitada na motivação do recurso interposto para a Veneranda Relação de
Lisboa.”
No termo das sua alegações, o recorrente formulou as
seguintes conclusões:
“A – Os fotogramas constantes dos autos constituem prova ilegal que
não pode ser valorada pelo tribunal.
B – De facto, tal prova foi recolhida sem o consentimento e
conhecimento do recorrente, bem como das demais pessoas que foram filmadas e
retratadas em clara intromissão da vida privada do arguido, ora recorrente, e
demais pessoas.
C – As filmagens em instituições bancárias não são um local público
mas sim um local aberto ao público, pelo que o que dentro dos mesmos se passa
pertence à vida privada de cada um.
D – Tal prova só poderia ser valorada se fosse lícita face à lei
penal, seja a lei substantiva, seja a adjectiva.
E – E, nos termos do artigo 199.°, n.º 2, alínea a), do Código
Penal, é punido quem contra a vontade do titular do direito fotografar ou filmar
o mesmo, ainda que licitamente obtidos.
F – Além disso, teriam de obedecer ao disposto no artigo 167.º, n.ºs
1 e 2, do CPP.
G – Com efeito, se o legislador entendesse que tal prova deveria ser
admitida sem quaisquer formalidades na sua recolha – como o foi no âmbito dos
presentes autos –, tê‑lo‑ia consagrado em forma de lei.
H – Ainda que se admitisse que tal prova seria admitida pelo
disposto no artigo 12.° do Decreto‑Lei n.º 231/98, teriam de estar reunidos os
pressupostos aí previstos, o que, como inequivocamente se constata, não
aconteceu, sendo certo que tal norma foi declarada organicamente
inconstitucional.
I – O tribunal recorrido interpretou a norma do artigo 126.°, n.° 3,
do CPP no sentido de a captação de imagens ser legal, bastando que
implicitamente tal decorra da lei, preterindo tacitamente que para ser legal
tem que estar «expressamente prevista na Constituição» e olvidando que os
preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias
são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.
J – O acórdão recorrido não foi capaz de fundamentar devidamente a
legalidade da sua captação, limitando‑se a dizer que outros direitos
constitucionais a legitimam, referindo normas constitucionais que de maneira
nenhuma se podem sobrepor às que contemplam os preceitos constitucionais que
respeitam aos direitos. liberdades e garantias.
K – Por outro lado, vingando esta interpretação do artigo 126.°, n.°
3, do CPP, que permite a utilização como prova das obtidas mediante intromissão
da vida privada, sem o consentimento ou conhecimento do visado, desde que
exigências de polícia ou de justiça o justifiquem, abria seguramente mão a
abusos das entidades públicas e privadas, pois que a sua captação e o seu uso
era permitido de forma arbitrária e sem controlo.
L – Dai interrogarmo‑nos que a ser essa interpretação do citado
artigo conforme à Constituição da República Portuguesa, qual a razão de ser do
Decreto‑Lei n.° 35/2004, de 21 de Fevereiro, que refere no seu artigo 13.°, n.°
2, que a gravação de imagens só pode ser utilizada «nos termos da legislação
processual penal»…
M – E a Lei n.° 1/2005, de 10 de Janeiro, no seu artigo 2, n.º 1,
que diz que «só pode ser autorizada a instalação de videovigilância nos termos
da presente lei ...».
N – Ora, nos termos da interpretação que fez o acórdão recorrido do
artigo 126.°, n.° 3, do CPP, não era necessário existir lei expressa sobre as
condições de utilização da captação de imagens, bastando que, implicitamente,
tais provas, mesmo que obtidas sem o consentimento e conhecimento dos visados,
fossem necessárias «ao princípio geral da administração da justiça» e às
«exigências de polícia ou de justiça referidas no artigo 79.°, n.º 2, do Código
Civil». E 202.°, n.ºs 1, 2 e 3, da CRP!
O – Ora, tal interpretação do artigo 126.°, n.° 3, em conjugação com
o disposto no artigo 167.°, n.°s 1 e 2, do CPP e artigo 199.°, n.° 2, alínea a),
do Código Penal, restringe o seu âmbito de aplicação, pois foram interpretados
no sentido de que, mesmo que não esteja expressamente prevista na lei o meio de
obtenção da prova, em locais abertos ao público, são legais, e podem ser
livremente utilizadas e valoradas pelo tribunal, por exigências de polícia e de
justiça.
P – Donde tal interpretação é violadora dos artigos 18.°, n.°s 1 e
2, 26.°, n.° 1, e 32.º, n.° 8, da CRP.
Q – Assim, deve ser declarada a inconstitucionalidade do artigo
126.°, n.° 3, em conjugação com o disposto no artigo 167.º, n.°s 1 e 2, do CPP e
artigo 199.°, n.° 2, alínea a), do Código Penal, por violação dos artigos 18.°,
n.°s 1 e 2, 26.°, n.° 1, e 32.°, n.° 8, da CRP.”
O representante do Ministério Público no Tribunal
Constitucional contra‑alegou, concluindo:
“1 – O recorrente não suscitou, durante o processo e em termos
processualmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa,
identificando, nomeadamente, em termos inteligíveis, qual a concreta
interpretação dos preceitos de direito infra‑constitucional que considerava ter
sido aplicada na decisão recorrida e estava afectada pelas alegadas
inconstitucionalidades.
2 – Termos em que – por falta dos pressupostos de admissibilidade –
não deverá sequer conhecer‑se do recurso interposto.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
Impõe‑se, antes de mais, conhecer da questão prévia de
não conhecimento do mérito do recurso por inadmissibilidade deste – “por não ter
sido adequadamente suscitada, pelo recorrente, perante o tribunal recorrido, uma
questão de inconstitucionalidade normativa, através de clara identificação da
interpretação normativa acusada de inconstitucional, imputando‑se a violação da
Constituição directamente às operações de captação de imagem” –, suscitada no
despacho do relator que determinou a apresentação de alegações e a que se
associou o Ministério Público.
Na verdade, no sistema português de fiscalização de
constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional
cinge‑se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões
de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas (ou a
interpretações normativas, hipótese em que o recorrente deve indicar, com
clareza e precisão, qual o sentido da interpretação que reputa
inconstitucional), e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas
directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas ou a actos,
condutas ou omissões processuais.
Por outro lado, tratando‑se de recurso interposto ao
abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente
caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos
de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada “durante o
processo”, “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu
a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2
do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua
ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo
recorrente.
Neste contexto, constitui orientação pacífica deste
Tribunal que (para usar a formulação do Acórdão n.º 367/94), “ao suscitar‑se a
questão de inconstitucionalidade, pode questionar‑se todo um preceito legal,
apenas parte dele ou tão‑só uma interpretação que do mesmo se faça. (...) [E]sse
sentido (essa dimensão normativa) do preceito há‑de ser enunciado de forma que,
no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na
sua decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os
operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido
com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, violar a
Constituição”.
Como se mencionou no precedente relatório, o recorrente,
expressamente confrontado com a questão da admissibilidade do recurso e da
delimitação do seu objecto, aceitou, quanto a este último ponto, o afastamento
da dimensão normativa reportada à “ausência de autorização judicial”, por não
ter sido suscitada na motivação do recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa,
mas, quanto ao primeiro ponto, nada aduziu que contrariasse o entendimento,
apontado no despacho do relator, de “não ter sido adequadamente suscitada, pelo
recorrente, perante o tribunal recorrido, uma questão de inconstitucionalidade
normativa, através de clara identificação da interpretação normativa acusada de
inconstitucional, imputando‑se a violação da Constituição directamente às
operações de captação de imagem”, que seria impeditiva da admissibilidade do
recurso.
E, com efeito, não constitui suscitação adequada de tal
questão limitar‑se o recorrente a afirmar que: “As captações de vídeo nas
instituições em causa [captações efectuadas no interior de agências da B. de
Almada, Alverca do Ribatejo e Cova da Piedade] foram feitas sem se cumprir o
disposto nos artigos 1.º, 3.º, alínea b), e 112.º, n.º 2, do Decreto‑Lei n.º
231/98, e infringiu‑se o disposto no artigo 199.º, n.º 2, alíneas a) e b), do
Código Penal, e assim os artigos 125.º e 167.º, n.ºs 1 e 2, do Código de
Processo Penal, por terem sido obtidas sem a vontade do arguido e como tal
interpretado inconstitucionalmente os artigos acima indicados, por violação dos
artigos 26.º e 32.º, n.º 1, da CRP”. A arguição de que uma actuação material,
mesmo com relevância processual penal, é ilegal não constitui, manifestamente, a
suscitação de uma questão de inconstitucionalidade normativa. E a mera
afirmação de que uma “tal interpretação” dos artigos 125.º e 167.º, n.ºs 1 e 2,
do Código de Processo Penal – interpretação que não se especifica minimamente –
viola preceitos constitucionais não constitui modo adequado de suscitar tal
questão, pois não permite ao Tribunal Constitucional, na hipótese de provimento
do recurso, emitir “decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em
geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o
sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo,
violar a Constituição”.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em não conhecer do objecto
do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em
10 (dez) unidades de conta.
Lisboa, 9 de Novembro de 2005
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
Paulo Mota Pinto
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos