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Processo n.º 1083/04
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
O representante do Ministério Público junto do Tribunal
da Relação do Porto interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo
do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de
Fevereiro (LTC), do acórdão daquela Relação, de 11 de Novembro de 2004, que
recusou, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação da norma do artigo
25.º, n.º 4, da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, interpretada no sentido de
impor ao requerente de pedido de apoio judiciário, na modalidade de nomeação de
patrono, apresentado na pendência de acção judicial, o ónus de juntar aos autos
documento comprovativo da apresentação do requerimento com que é promovido o
procedimento administrativo, para efeitos de interrupção dos prazos processuais
que estiverem em curso.
O acórdão recorrido foi proferido em recurso interposto
do despacho de 31 de Maio de 2004 da Juíza do Tribunal Judicial da Comarca de
Baião, que julgou improcedente o justo impedimento alegado pelo réu A. quanto à
prática não atempada do acto de contestar, justo impedimento que consistiria na
falta de informação, por parte das funcionárias do Serviço Local da Segurança
Social de Baião, de que ele, para obter a interrupção do prazo para contestar,
deveria juntar ao processo judicial cópia do requerimento de apoio judiciário,
na modalidade de nomeação de patrono, apresentado naquele Serviço.
O acórdão ora recorrido, apesar de confirmar a
inexistência de justo impedimento, viria a conceder provimento ao recurso,
determinando a substituição do despacho recorrido por outro a julgar tempestiva
a contestação, solução alcançada com base no juízo de inconstitucionalidade da
norma do artigo 25.º, n.º 4, da Lei n.º 30-E/2000, com a seguinte fundamentação:
“VIII – A presente questão situa-se antes, a nosso ver, no âmbito da possível
inconstitucionalidade do n.º 4 do artigo 25.º da mencionada Lei n.º 30-E/2000.
Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 20.º da Constituição da República, a todos é
assegurado o acesso ao direito e aos tribunais, não podendo a justiça ser
denegada por insuficiência de meios económicos e todos têm direito ao
patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer
autoridade.
E o artigo 13.º consagra o princípio da igualdade.
Aquele n.º 4 do artigo 25.º determina que, quando o apoio judiciário
é apresentado na pendência de acção judicial e o requerente pretende a nomeação
de patrono, o prazo que estiver em curso interrompe-se com a junção aos autos de
documento comprovativo da apresentação do requerimento com que é promovido o
procedimento administrativo.
IX – Nos casos, como o presente, de decurso de prazo para a
contestação, temos, então, o seguinte quadro:
O réu tem prazo para contestar;
Não tem meios económicos para se dirigir a um advogado que o faça;
Dirige-se à Segurança Social;
Onde corre um processo administrativo com vista a conceder-lhe ou
denegar-lhe a pretensão.
X – Dele decorre, em situações de normalidade, o seguinte:
O autor – até porque obrigatória em processo como este – está
assistido por advogado;
O réu tem perante ele uma confusão: dum lado fixam-lhe um prazo para
contestar; do outro referem-lhe outro para ter advogado que conteste.
Se juntar documento comprovativo do requerimento, o primeiro prazo
interrompe-se. Se não juntar tem contra ele consequências por via de regra
catastróficas. Tudo se passa como se não tivesse contestado.
Ou seja, num momento crucial para os seus interesses, o réu está
despido de aconselhamento jurídico, perante a contraparte que já o tem.
E, vindo do Estado, ainda que de órgãos diferentes, temos uma
situação que leva o cidadão normal a abster-se, deixando passar o prazo. Na
verdade, se um órgão lhe diz que para contestar precisa de advogado e outro lhe
refere que vai decorrer processo para lhe ser nomeado um, ou o Estado entra em
contradição consigo mesmo ou o primeiro prazo «tem de aguardar» (passe a
expressão) o desenrolar do processo de nomeação.
XI – E contra isto não se pode argumentar, a nosso ver, com a
natureza dos órgãos ou mesmo a sua diferenciação independentemente dela. Temos
de ter sempre presente que estamos perante um cidadão a aguardar aconselhamento
e acompanhamento jurídicos e não perante um jurista.
O que ele, se for uma pessoa do seu tempo, estranhará é que órgãos
do Estado não comuniquem entre si – nos termos até da comunicação informática –
fazendo impender sobre incautos uma obrigação perfeitamente burocrática e,
também por aí, injustificada.
XII – Nem poderá relevar a «nota» que lhe foi entregue com a citação
e que se referiu no número 3 da enumeração factual.
Muitos portugueses não sabem ler e para a quase totalidade aquela
linguagem só pode ser «descodificada» por um advogado [Repare-se que mesmo que
ele compreendesse o que era um prazo, dificilmente saberia o que significava a
sua interrupção e, matéria de extrema importância, ignoraria certamente as
consequências práticas do decurso de tal prazo sem contestar. Sem advogado, o
que entenderia ele com a expressão «consideram-se confessados os factos
articulados pelo autor»?]. Que ele solicitou bem atempadamente nos Serviços da
Segurança Social e que, durante todo o período que decorreu o prazo para
contestar, lhe não foi concedido.
XIII – Cremos, pois, estar perante um caso em que, se se
considerasse extemporânea a contestação:
Se violava o princípio da igualdade consignado no artigo 13.º da
Constituição, já que numa fase processual, aliás de extrema importância, a
autora estava assistida juridicamente e o réu não;
Se violava o princípio do acesso ao direito e aos tribunais, na
medida em que o réu, tendo direito a um advogado e não tendo meios económicos
para dele se socorrer, sofreria consequências de monta em virtude de
comportamento processual abstencionista, que teve lugar no período em que o
Estado, na sequência de imposição constitucional, diligenciava para lhe ser
nomeado um.
XIV – Muito menos gravoso era o entendimento que chegou a ser
sustentado face ao Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro (artigo 24.º),
de que, nas nomeações de patrono, o prazo que tinha decorrido até à notificação
deste devia ser contabilizado. E, já então, se argumentou visando a solução
contrária – que veio largamente a prevalecer – com os princípios da igualdade e
do acesso ao direito (Cf. Salvador da Costa, Apoio Judiciário, 1996, pág. 176).
XV – Nesta conformidade, julgando-se inconstitucional a norma do
artigo 25.º, n.º 4, da Lei n.º 30-E/2000, concede-se provimento ao recurso,
determinando-se que a Sr.ª Juíza substitua o despacho recorrido por outro que
julgue a contestação tempestiva.”
No Tribunal Constitucional, o representante do
Ministério Público alegou, concluindo:
“1 – A norma constante do artigo 25.°, n.° 4, da Lei n.°
30-E/2000, interpretada em termos de impor à parte que peticiona junto da
Segurança Social a nomeação de patrono o ónus de promover a junção aos autos do
documento comprovativo da apresentação do requerimento com que se promove o
processo administrativo, como condição sine qua non da interrupção do prazo
peremptório aí previsto – e com os efeitos cominatórios e preclusivos que são
associados à omissão – traduz restrição desproporcionada no acesso à justiça
por parte dos economicamente carenciados.
2 – Na verdade, a advertência acerca da existência de
tal ónus é feita apenas no momento da citação, sem que seja reiterada no momento
adequado, por mais próximo daquele em que cumpriria actuá-lo: o da dedução do
pedido perante a Segurança Social – e sem que – apesar desta ter notícia da
identificação do processo – se lhe imponha qualquer dever de dar notícia ao
tribunal do início do procedimento administrativo.
3 – Termos em que deverá confirmar-se o juízo de
inconstitucionalidade, formulado pela decisão recorrida.”
O recorrido não apresentou contra-alegações.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
A questão de constitucionalidade que constitui objecto
do presente recurso já foi apreciada por este Tribunal, no Acórdão n.º 98/2004
(Diário da República, II Série, n.º 78, de 1 de Abril de 2004, pág. 5233), que
não julgou inconstitucional a norma em causa, com a seguinte fundamentação:
“3 – Dispõe o artigo 25.º, n.º 4, da Lei n.º 30-E/2000:
«Quando o pedido de apoio judiciário é apresentado na pendência de
acção judicial e o requerente pretende a nomeação de patrono, o prazo que
estiver em curso interrompe-se com a junção aos autos do documento comprovativo
da apresentação do requerimento com que é promovido o procedimento
administrativo.»
Foi esta disposição que o acórdão recorrido interpretou no sentido
de que compete ao interessado, requerente do apoio judiciário para nomeação de
patrono, a junção aos autos do documento comprovativo de apresentação do
requerimento de apoio judiciário, para efeitos de interrupção do prazo em curso.
Estando fora dos poderes de cognição deste Tribunal sindicar o
acerto de uma tal interpretação no estrito plano do direito infraconstitucional,
a questão a decidir, no presente recurso, é tão-só a de saber se a norma ínsita
no citado preceito da Lei n.º 30-E/2000, com aquela interpretação, ofende a
Constituição, maxime o disposto no artigo 20.º, n.º 1, da CRP.
E a resposta – adiante-se já – é negativa.
O instituto do apoio judiciário visa obstar a que, por insuficiência
económica, seja denegada justiça aos cidadãos que pretendem fazer valer os seus
direitos nos tribunais, decorrendo, assim, a sua criação do imperativo
constitucional plasmado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição.
Não basta, obviamente, para cumprir tal imperativo, a mera
existência do referido instituto no nosso ordenamento; impõe-se que a sua
modelação seja adequada à defesa dos direitos, ao acesso à Justiça, por parte
daqueles que carecem dos meios económicos suficientes para suportar os encargos
que são inerentes à instauração e desenvolvimento de um processo judicial,
designadamente custas e honorários forenses.
Nesta conformidade, há-de a lei estabelecer, designadamente, medidas
que, no plano da tramitação processual (se o pedido é formulado na pendência de
um processo), acautelem a defesa dos direitos do requerente do apoio, em
particular no que concerne aos prazos em curso.
Tais medidas impõem-se tanto mais quanto o pedido de apoio visa a
nomeação de patrono, uma vez que, desacompanhada de mandatário forense, a parte
não dispõe de meios para, no processo, defender (ou defender adequadamente) os
seus direitos.
É, aliás, essa a razão do disposto no artigo 25.º, n.º 4, da Lei n.º
30-E/2000, ao determinar, nos casos de pedido de nomeação de patrono, na
pendência de acção judicial, a interrupção dos prazos em curso com a junção aos
autos do documento comprovativo do requerimento de apoio judiciário naquela
modalidade.
A exigência de documentação do pedido compreende-se uma vez que, no
regime instituído pela Lei n.º 30-E/2000, os procedimentos tendentes à
concessão do apoio, em processos cíveis, correm nos serviços de segurança
social (artigo 21.º); e seria inaceitável e comprometedor da segurança jurídica
a indefinição do decurso dos prazos processuais que resultaria, fatalmente, da
falta dessa documentação – que assim se impõe –, tendo em conta o efeito
interruptivo dos prazos, decorrente da apresentação do pedido.
Mas, sendo assim, a questão de constitucionalidade está em saber se
pôr a cargo do requerente da nomeação de patrono o acto de dar a conhecer e
documentar no processo a apresentação do pedido, para efeitos de interrupção do
prazo em curso, constitui um ónus que compromete (ou compromete
desproporcionadamente) o direito de acesso à justiça por parte dos cidadãos
economicamente carenciados.
Sem dúvida que se poderia congeminar outro sistema, fazendo, p.
ex.., recair sobre os serviços de segurança social o dever de darem a conhecer,
de imediato, nos pertinentes processos judiciais os pedidos de nomeação de
patrono. Mas, independentemente da praticabilidade dessa ou de outras
alternativas, a questão – repete-se – é a de saber se o regime, tal como o
acórdão recorrido o interpretou, ofende a Constituição.
Ora, não se considera gravoso para o requerente, em termos de lesar
o seu direito de aceder à Justiça, exigir que ele documente nos autos a
apresentação do requerimento de apoio judiciário nos serviços de segurança
social, no prazo judicial em curso, para que este se interrompa.
Trata-se, com efeito, de uma diligência que não exige quaisquer
conhecimentos jurídicos e que, portanto, a parte pode praticar por si só, com o
mínimo de diligência a que, como interessada, não fica desobrigada pelo facto
de se encontrar numa situação de carência económica.
Note-se, aliás, – o que não é despiciendo – que, no modelo de
impresso aprovado, em que o requerente inscreve o seu pedido, consta uma
declaração, a subscrever pelo interessado, no sentido de que tomou conhecimento
de que deve apresentar cópia do requerimento no tribunal onde decorre a acção,
no prazo que foi fixado na citação/notificação. Com o que nem sequer pode
legitimamente invocar o desconhecimento daquela obrigação.
A protecção constitucionalmente garantida pelo artigo 20.º, n.º 1,
da CRP aos cidadãos que carecem de meios económicos para custear os encargos
inerentes à defesa jurisdicional dos seus direitos não é, pois, afectada pela
norma contida no artigo 24.º, n.º 5, da Lei n.º 30-E/2000, na interpretação dada
pelo acórdão recorrido.”
É este entendimento que ora se reitera, não obstante as
observações aduzidas no acórdão recorrido e nas alegações do Ministério Público
neste Tribunal.
Não se trata – como se assinalou no Acórdão n.º 98/2004
– de apurar se a interpretação normativa reputada inconstitucional é a mais
correcta ao nível do direito ordinário ou se a solução legislativa em causa
(mantida, aliás, no n.º 4 do artigo 24.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, que
substituiu a Lei n.º 30-E/2000) é a mais adequada, designadamente face à
possibilidade de se instituir a obrigação de comunicação oficiosa por parte dos
serviços de Segurança Social ao tribunal identificado como aquele onde pende a
causa para que se solicita a nomeação de patrono da apresentação do requerimento
de concessão de apoio judiciário (recorde-se que os artigos 26.º, n.º 4, da Lei
n.º 30-E/2000 e 25.º, n.º 4, da Lei n.º 34/2004 impõem aos serviços da Segurança
Social o envio mensal de relação dos pedidos de protecção jurídica tacitamente
deferidos a diversas entidades, entre elas, “se o pedido envolver a nomeação de
patrono e se o requerimento tiver sido apresentado na pendência de acção
judicial, ao tribunal em que esta se encontra pendente”), assim obviando ao
inconveniente de manter durante um período indefinido de tempo o tribunal da
causa no desconhecimento da apresentação do pedido de nomeação de patrono, com
todos os riscos de insegurança jurídica e de desenvolvimento de actividade
judicial inútil que daí derivam.
De especial relevância se reveste a constatação de que
no caso ocorreu a reclamada “dupla advertência”. Está provado (n.º 3 da matéria
de facto constante do acórdão recorrido) que na carta registada, com aviso de
recepção, pela qual o réu foi citado estava aposta uma nota que referia: “Sendo
requerido nos Serviços de Segurança Social benefício de apoio judiciário na
modalidade de nomeação de patrono, deverá o citando juntar aos presentes autos,
no prazo da contestação, documento comprovativo da apresentação do referido
requerimento para que o prazo se interrompa até notificação da decisão de apoio
judiciário”. E, por outro lado, consta do requerimento de apoio judiciário
apresentado pelo réu, imediatamente antes da sua assinatura, o seguinte:
“Declaro que tomei conhecimento de que devo entregar cópia do presente
requerimento no tribunal onde decorre a acção, no prazo que me foi fixado na
citação/notificação”. Atenta esta dupla advertência – cuja compreensão é
perfeitamente acessível ao cidadão comum – e o prazo disponível (o réu foi
citado em 6 de Janeiro de 2004, apresentou o pedido de apoio dois dias depois,
em 8 de Janeiro de 2004, tinha o prazo para contestar de 30 dias acrescido da
dilação de 5 dias, em virtude não ter sido citado na sua pessoa, pelo que, após
a apresentação de nomeação de patrono, dispôs de 33 dias para juntar ao processo
judicial documento comprovativo dessa apresentação), impõe-se a conclusão de
que não foi imposto ao réu um ónus intoleravelmente gravoso, que comprometesse
desproporcionadamente o direito de acesso à justiça dos cidadãos
economicamente carenciados.
E não colhe, por último, a violação do princípio da
igualdade, invocada no acórdão recorrido, já que bastava o cumprimento do
aludido ónus para que ao réu fosse assegurada a assistência de profissional
forense, em termos equivalentes aos de que usufruía a autora.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 25.º,
n.º 4, da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, interpretada no sentido de impor
ao requerente de pedido de apoio judiciário, na modalidade de nomeação de
patrono, apresentado na pendência de acção judicial, o ónus de juntar aos autos
documento comprovativo da apresentação do requerimento com que é promovido o
procedimento administrativo, para efeitos de interrupção dos prazos processuais
que estiverem em curso; e, consequentemente,
b) Determinar a reformulação da decisão recorrida em
conformidade com o precedente juízo de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 25 de Maio de 2005
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
Paulo Mota Pinto
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos