Imprimir acórdão
Processo n.º 1064/04
1.ª Secção Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
O Conselho de Administração da A., recorre, nos termos da alínea b) do n. 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão proferido em 8 de Setembro de 2004 na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo que, em suma, anulou a deliberação contenciosamente impugnada, proferida pela autoridade ora recorrente no âmbito do concurso público para
“Empreitada de Construção do PU1 – 1ª Fase – Infra-Estruturas e Espaço Público da Praça da Devesa, Praça Amato Lusitano, Alameda da Liberdade e Vias Envolventes, na Zona de Intervenção da Polis em Castelo Branco”.
A requerente começou por circunscrever o seu recurso às normas “cuja interpretação e aplicação, nos moldes feitos no Acórdão, se consideram desconformes à Constituição”, respeitantes aos artigos 62º n. 1 e 64º do Decreto-Lei 59/99 de 2 de Março e aos artigos 5º e 13º n. 1 do caderno de encargos da empreitada em cujo âmbito foi proferida a deliberação contenciosamente impugnada, esclarecendo que não suscitara previamente a questão de inconstitucionalidade perante o Tribunal recorrido em virtude de que “só a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Administrativo veio consagrar a interpretação e aplicação das referidas normas legais e regulamentares, num sentido que se reputa desconforme com a Constituição, não houve a possibilidade de as partes discutirem, em peças processuais anteriores, a questão da inconstitucionalidade em causa”.
Depois de convidada, ao abrigo do disposto no n. 5 do artigo 75º-A da LTC, a identificar com precisão as interpretações normativas que, aplicadas na decisão recorrida, pretende impugnar, veio a recorrente esclarecer que:
Em resumo, o recorrente encontra-se a impugnar a interpretação normativa constante do Acórdão recorrido, pela qual se decidiu que por aplicação dos arts.
62.º, n.º 1 e 64.º do Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de Março, em conjugação com os pontos 5 e 13.1 do Caderno de Encargos não era admissível ao recorrente considerar que a expressão que ele próprio consagrou em Caderno de Encargos pela qual se consideravam como meras previsões e por isso datas indicativas, certas datas de consignação para as fases de obra não era vinculativa, e, em consequência, que estaria a violar a lei - porque fora da sua margem de liberdade de apreciação e de decisão - ao adjudicar em favor de proposta que apresentava algumas datas de consignação distintas daquelas indicadas em Caderno de Encargos. A decisão recorrida assenta uma violação da lei (art. 61.º, n.º 2 e 64.º do Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de Março e pontos 5 e 13 do Caderno de Encargos) nessa decisão da recorrente, sendo que a recorrente reputa que tal interpretação normativa, porque elimina a sua margem de liberdade de apreciação e decisão consignada pelo legislador e com protecção constitucional ao nível da reserva de administração e autonomia das entidades administrativas (papel em que aparece fruto da aplicação do art. 3.º, n.º 1, alínea g) do Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de Março) e das pessoas privadas (que também é), na condução da sua actividade,
é uma interpretação normativa inconstitucional. Em consonância, é também uma interpretação normativa inconstitucional porque implica um excesso injustificado na compressão que faz dessa mesma reserva de administração em favor da recorrente, com o que defronta os princípios constitucionais de proporcionalidade e de justiça, corolários do Estado de Direito democrático, constituindo-se essas, como fontes autónomas de inconstitucionalidade, ainda que relacionadas com as fontes vistas no parágrafo anterior. Assim sendo, acha-se caracterizada a interpretação normativa sustentada na decisão recorrida, bem como identificados os seus fundamentos e enunciadas perfunctoriamente as razões da sua inconstitucionalidade, para fins do n.º 5 do art. 75.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, com o que se requer que se considere satisfeito o convite apresentado e prossiga o presente processo até sua decisão final, assim se possibilitando ao Recorrente demonstrar com precisão e de forma desenvolvida, mas clara, onde reside a manifesta inconstitucionalidade na interpretação normativa preconizada na decisão em recurso.
Foi, de seguida, proferida decisão sumária a não conhecer do recurso, com os seguintes fundamentos:
O recurso de fiscalização concreta previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, como o presente, incide obrigatoriamente sobre normas jurídicas aplicadas na decisão recorrida como fundamento jurídico da decisão, ainda que numa particular interpretação extraída no tribunal recorrido. Não é possível, conforme tem sido repetidamente afirmado por este Tribunal (v.g. acórdãos
612/94, 634/94 e 20/96, in DR, II Série, de 11 de Janeiro de 1995, de 31 de Janeiro de 1995 e 16 de Maio de 1996), que o objecto do recurso de constitucionalidade consista na própria decisão recorrida. Ora, perante o modo como se apresenta formulada a questão de constitucionalidade
– ligada indissociavelmente às circunstâncias do caso concreto – conclui-se que a discordância da recorrente assenta na subsunção jurídica que a decisão recorrida fez da situação de facto apurada e, portanto, a censura de inconstitucionalidade é dirigida à decisão recorrida que teria aplicado aquelas normas. Isto é, apresentada sob a capa de alegada inconstitucionalidade de uma interpretação normativa, o que verdadeiramente se pretende é que o Tribunal Constitucional avalie a decisão recorrida, em si mesma considerada.
Conclui-se, assim, que se não mostram verificados os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC, razão pela qual se decide, ao abrigo do artigo 78º-A da citada LTC, não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Contra esta decisão reclama a recorrente, nos seguintes termos:
1. Foi o Recorrente notificado da douta decisão sumária de fls. datada de 20.01.2005, pela qual o Exmº Sr. Juiz Conselheiro Relator determinou que não se mostravam “verificados os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC, razão pela qual se decide, ao abrigo do artigo 78º-A da citada LTC, não tomar conhecimento do objecto do recurso.”.
2. Para concluir desta forma, o Exmº Sr. Juiz Conselheiro Relator entendeu que não se poderia conhecer do recurso interposto pela Recorrente e ora Reclamante, dizendo o seguinte:
“(...) perante o modo como se apresenta formulada a questão de constitucionalidade –ligada indissociavelmente às circunstâncias do caso concreto- conclui-se que a discordância da recorrente assenta na subsunção jurídica que a decisão recorrida fez da situação de facto apurada e, portanto, a censura de inconstitucionalidade é dirigida à decisão recorrida que teria aplicado aquelas normas.”.
3. De forma conclusiva, dizia-se ainda nessa decisão sumária, o que de seguida se transcreve:
“(...) apresentada sob a capa de alegada inconstitucionalidade de uma interpretação normativa, o que verdadeiramente se pretende é que o Tribunal Constitucional avalie a decisão recorrida, em si mesma considerada.”.
4. Posta assim a questão pelo Exmº Sr. Conselheiro Relator, impõe-se à Recorrente e ora Reclamante, apelar à conferência que altere o decidido, em face do que a Recorrente irá esclarecer pela presente.
5. De facto, retira-se das passagens acima transcritas da Decisão Sumária, que o Exmº Sr. Conselheiro Relator ficou com a convicção que a Recorrente solicitava a este Alto Tribunal que viesse sindicar a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Administrativo e não a sindicar as normas legais inconstitucionais que indicou.
6. Cabe esclarecer e afastar terminantemente essa convicção, pois que não foi esse o sentido e a intenção com que a Recorrente interpôs o referido recurso de constitucionalidade das indicadas normas (art. 62.º, n.º 1 e 64.º do Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de Março e arts. 5.º e 13.º do caderno de encargos da empreitada em referência nos autos recorridos). Aliás, porque,
7. Conhece a Recorrente que a este Tribunal Constitucional são apresentadas questões de inconstitucionalidade ou de ilegalidade de normas jurídicas, que não de questões para serem conhecidas em 3ª instância.
8. De facto, o que a Recorrente contesta –e assumia, erroneamente, haver deixado claro na sua interposição de recurso e requerimento posterior- é a constitucionalidade das citadas normas legais e regulamentares.
9. Não se trata de uma questão de subsunção jurídica - a qual nem poderia ser porque a subsunção é uma actividade de relacionamento da factispecie de uma norma jurídica com a situação do mundo real, quando a questão em causa junto do Supremo Tribunal Administrativo era puramente uma questão de direito -, mas sim uma questão de desconformidade dessas normas com o diploma superior do ordenamento: a Constituição.
10. Simplesmente, essa desconformidade não surge numa situação em que, qualquer que seja a percepção ou interpretação da norma jurídica haja sempre inconstitucionalidade, mas sim de uma particular interpretação normativa que lhe foi emprestada pelo Supremo Tribunal Administrativo.
11. Não se pretende questionar a decisão do Supremo Tribunal Administrativo para decidir, mas sim questionar V.Ex.as. se as normas aplicadas são ou não inconstitucionais, quando tomadas no sentido que o foram.
12. E isso a Recorrente consegue mostrar se lhe for dada oportunidade, ainda que saiba que mesmo que haja decisão de inconstitucionalidade quanto a essas normas, no sentido interpretativo tomado, em tese, sempre outro sentido admissível poderia ser tomado em nova decisão do Supremo Tribunal Administrativo, para decidir no mesmo sentido.
13. Não se está, pois, a pretender que V.Ex.as. apreciem a decisão do Supremo Tribunal Administrativo, circunstância que a Recorrente quer deixar bastante clara, de modo a afastar o que lhe parece ter sido um erro de percepção pelo Conselheiro Relator, o qual, assumiu que sob um pedido legítimo (recurso para fiscalização concreta) se pretendia um resultado inadmissível (revisão da decisão do Supremo Tribunal Administrativo).
14. Assegura-se que não é essa a intenção da Recorrente, apesar de a mesma considerar compreensível a percepção que perpassa na Decisão Sumária, conhecedora que é da repetida utilização abusiva desta via de recurso, como forma de se conseguir uma revisão de decisões dos tribunais superiores.
15. Porém, não é esse o caso e demonstrar-se-á, efectivamente, que existe inconstitucionalidade nas normas referidas, se interpretadas no sentido exposto na referida decisão, situação que não é admissível à face da Constituição, por imperativo de interpretação conforme à Constituição, sob pena de a norma ser irremediavelmente tida por inconstitucional materialmente.
16. É este o escopo do recurso para este Alto Tribunal, que o mesmo actue como guardião da Constituição e dos princípios constitucionais e sindique normas do ordenamento (in casu, as indicadas atrás) em vista da sua incompatibilidade com a nossa Lei Fundamental (Grundegesetz), face a uma aplicação concreta das mesmas em decisão judicial que as põe em choque com a Constituição.
17. Repete-se que as normas legais em causa (art. 62.º, n.º 1 e 64.º do Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de Março e os arts. 5º e 13.º do referido regulamento administrativo constante do caderno de encargos referido nos autos) são inconstitucionais por violação de princípios constitucionais tutelados, como seja a reserva de administração, a auto-tutela administrativa, a autonomia privada e pública, bem como os princípios gerais de proporcionalidade e justiça, corolários do Estado de Direito Democrático e os limites materiais à compressão de direitos fundamentais, quando essas normas sejam interpretadas, como o foram na decisão em concreto –decisão surpresa, por essa linha não haver sido apresentada antes nos autos- o que legitima o presente recurso e a sua admissibilidade, bem como habilita V.Ex.as. com a possibilidade de exercerem a magistratura de controlo de constitucionalidade com que este tribunal foi dotado.
18. Não admitir este recurso, por tudo o que está em causa e pelo observado é uma clara denegação de justiça, a qual se tem por certo que V.Ex.as. não incorrerão, defensores últimos que são contra actos de ofensa aos valores fundamentais que organizam o nosso Direito.
19. Requer-se, em conformidade, que seja admitido este recurso de constitucionalidade, revogando-se a decisão sumária proferida, entendendo-se tudo quanto foi dito nesta peça processual, como nas anteriores, à luz do referido nos pontos anteriores. Nestes termos, deve a presente reclamação ser considerada procedente por provada e, em conformidade, ser a decisão sumária revogada e substituída por outra que admita o recurso interposto, tramitando-se o mesmo ulteriormente até sua decisão final.
A presente reclamação é, porém, improcedente.
Na verdade, a determinação jurídica que a recorrente visa submeter ao julgamento do Tribunal não consiste numa regra geral e abstracta aplicada na decisão recorrida como razão de decidir, mas na própria decisão recorrida, isto é, no acto de resolução do conflito mediante a aplicação de regras jurídicas aos factos assentes. Só assim se explica que – apesar de especialmente convidada a definir as normas impugnadas – a recorrente tenha declarado pretender impugnar
“...a interpretação normativa constante do Acórdão recorrido, pela qual se decidiu que por aplicação dos arts. 62.º, n.º 1 e 64.º do Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de Março, em conjugação com os pontos 5 e 13.1 do Caderno de Encargos não era admissível ao recorrente considerar que a expressão que ele próprio consagrou em Caderno de Encargos pela qual se consideravam como meras previsões e por isso datas indicativas, certas datas de consignação para as fases de obra não era vinculativa, e, em consequência, que estaria a violar a lei - porque fora da sua margem de liberdade de apreciação e de decisão - ao adjudicar em favor de proposta que apresentava algumas datas de consignação distintas daquelas indicadas em Caderno de Encargos”, sem reparar que esta enunciação não representa qualquer norma jurídica, mas a decisão concreta da questão em litígio.
Aliás, esta errada perspectiva do recurso previsto na alínea b) do n. 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, conduz a que a recorrente nunca tenha suscitado a questão de inconstitucionalidade no Tribunal recorrido, como lhe impõe o artigo 72º n. 2 da mesma Lei, e conforme lhe seria plenamente possível.
Nestes termos, porque a presente reclamação não logra infirmar os fundamentos do despacho reclamado, decide-se manter a decisão de não conhecer do recurso.
Custas pela reclamante. Taxa de justiça: 20 UC.
Lisboa, 8 de Março de 2005
Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Rui Manuel Moura Ramos