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Processo n.º 360/07
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
A – Relatório
1 – A. e B., melhor identificados nos autos, recorrem
para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1,
alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção actual (LTC), do
Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 12 de Dezembro de 2006, pretendendo
ver sindicada a constitucionalidade da norma do artigo 174.º, n.º 5, do Código
de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a comunicação da
realização de uma busca, realizada a coberto dos “artigos 174.º, n.º 4, alínea
a), e 177.º, n.º 2, do mesmo diploma, pode ser efectuada conjuntamente com a
apresentação dos arguidos detidos, no prazo de 48 horas”, e da norma resultante
dos artigos 174.º, n.º 4, alínea a), e 177.º, n.º 2, do Código de Processo
Penal, interpretada “no sentido de que para efeitos de apreciação e validação de
busca domiciliária realizada, é suficiente que o juiz de instrução valide as
detenções dos arguidos e aprecie os indícios existentes nos autos em ordem à
fixação de uma medida de coacção, sem expressa e/ou inequivocamente declarar que
valida a busca realizada”, em ambos os casos por violação do disposto nos
artigos 32.º, n.º 8 e 34.º, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.
2 – Na parte ora relevante, a decisão recorrida tem o
seguinte teor:
“(...)
7.2. – 2ª questão (a nulidade da busca)
Suscitam os recorrentes a nulidade da busca invocando dois fundamentos:
- a ausência da comunicação imediata da realização da busca ao juiz;
- a não validação dessa busca.
7.2.1. As buscas domiciliárias podem ser efectuadas pelos órgãos de polícia
criminal, designadamente, nos casos “de terrorismo, criminalidade violenta ou
altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime
que ponha em grave risco a vida ou integridade física de qualquer pessoa” (art°s
177 nº 2 e 174 nº 4 al. a), ambos do CPP).
Nesse caso, “a realização da diligência é, sob pena de nulidade, imediatamente
comunicada ao juiz de instrução e por este apreciada em ordem à sua validação”
(art. 174 nº 5 do CPP).
A lei não diz o que deve entender-se pela expressão “imediatamente
comunicada...”, mas não pode deixar de se entender, por um lado, ao sentido
atribuído a tal expressão na linguagem comum, pois “o intérprete presumirá que o
legislador... soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (art. 9 nº 3
do código Civil), por outro, aos fins visados com tal comunicação imediata da
realização da diligência ao juiz de instrução.
Imediatamente significa, em suma, “de modo imediato, sem demora”,
“urgentemente”, “o mais rapidamente possível”; por outro lado, com aquela
comunicação imediata visa o legislador assegurar um controlo efectivo da
legalidade da diligência (e da legalidade das provas assim obtidas), de modo a
garantir que a mesma – enquanto intromissão na vida privada de alguém – se
revelava necessária e proporcionada aos fins visados, sem deixar de ter em
conta, também, as circunstâncias concretas em que ela se realiza, muitas vezes
integrada numa complexidade de factos e diligências que não permitem a sua
imediata comunicação ao juiz de instrução, sob pena de se frustrarem os fins
visados com a investigação, que não se circunscrevem àquela diligência.
Pretende-se, em suma, procurar uma situação de equilíbrio entre os fins visados
com a busca e a investigação dos ilícitos que justificam a sua realização, por
um lado, e o respeito pelos direitos dos cidadãos, maxime, dos arguidos, que se
visam acautelar com um controlo efectivo da legalidade da busca pelo juiz de
instrução.
Ora, tendo em conta, por um lado, a complexidade (e gravidade) dos factos em
investigação, que resulta, quer dos crimes em causa (pelos quais os arguidos
vieram a ser pronunciados: um crime de sequestro, um crime de homicídio
qualificado, um crime de profanação/ocultação de cadáver e um crime de detenção
ilegal de arma de defesa) quer da quantidade dos arguidos envolvidos (cinco),
por outro, a complexa organização do processo/expediente – que se infere
daqueles factos, mas que resulta de outras diligências documentadas nos autos e
referenciadas no despacho de pronúncia – para ser presente com os arguidos
(detidos) ao juiz de instrução, temos de considerar:
- que a apresentação do expediente (relativo à busca) ao juiz de
instrução, juntamente com os arguidos (detidos) para 1º interrogatório judicial
(no dia 17.09.2005), foi efectuada num prazo razoável, ou seja, o mais
rapidamente possível, atentas as circunstâncias do caso, apreciadas de acordo
com os critérios da razoabilidade e do bom senso (não faria sentido,
contrariamente ao alegado, que nesse complexo de diligências de investigação, em
que está a ser preparado/organizado todo o expediente para apresentar ao juiz de
instrução, juntamente com os arguidos, detidos, para 1º interrogatório judicial,
que a comunicação da busca merecesse tratamento privilegiado e isolado em
relação à apresentação dos arguidos, quando é certo que os elementos de prova
nela recolhidos eram essenciais para o interrogatório e seriam necessariamente
aí considerados);
- que – como se argumentou no despacho recorrido – não seria
razoável (e não resulta que essa fosse a sua intenção) que o legislador
pretendesse impor um prazo mais curto para a comunicação da busca ao juiz de
instrução do que o imposto para a apresentação do arguido detido para 1º
interrogatório judicial, sendo certo que a privação da liberdade se apresenta
como uma restrição mais grave aos direitos dos cidadãos do que a restrição de
quaisquer outros direitos;
- que a apresentação desse expediente ao juiz de instrução (que o
manuseia, com ele contacta materialmente e aprecia), juntamente com os arguidos
detidos para 1º interrogatório judicial, vale como comunicação da busca
(comunicar não é mais do que levar ao conhecimento de...), pois o juiz de
instrução – com tal formalidade e com o interrogatório dos arguidos – tomou
necessariamente conhecimento da busca, circunstâncias em que foi realizada e dos
elementos de prova recolhidos na mesma, como se demonstra pelo interrogatório
efectuado (que incidiu sobre os elementos de prova recolhidos na casa onde foi
efectuada a busca) e da necessária referência a tais elementos, designadamente,
ao cadáver da vítima encontrado na busca.
7.2.2. Relativamente à validação da busca dir-se-á apenas:
Por um lado, que a nulidade (da diligência) prevista no art. 174º nº 5 do CPP
não resulta da não validação da mesma pelo juiz, mas da sua não comunicação (o
que aí se escreve é que “a realização da diligência é, sob pena de nulidade,
comunicada ao juiz de instrução e por este apreciada...”) – e esta, em face do
que se deixa dito, considera-se efectuada com a apresentação do expediente ao
juiz juntamente com os arguidos detidos para serem interrogados, designadamente,
sobre os indícios recolhidos na busca.
Por outro lado, e mesmo que assim não se entenda, a busca e os elementos de
prova nela recolhidos foram apreciados pelo juiz de instrução, como se vê do
despacho que validou e manteve a detenção dos arguidos, concretamente porque, em
face dos elementos de prova recolhidos e que lhe foram presentes (designadamente
os indícios de prova recolhidos na busca), se mostrava fortemente indiciada a
prática, por todos os arguidos, em co-autoria material, de um crime de homicídio
qualificado, de um crime de ocultação de cadáver e de posse e detenção de arma
proibida; tendo o cadáver da vítima e as armas apreendidas sido encontrados no
interior da casa onde foi efectuada a busca, não pode deixar de se concluir que
o juiz de instrução, fundamentando a sua decisão nessas provas, não só tomou
conhecimento da busca e dos elementos de prova nela recolhidos, como a
considerou, implicitamente, válida, aceitando e valorando as provas nela
recolhidas para validar a detenção dos arguidos e manter os mesmos em prisão
preventiva.
Neste sentido podem ver-se, entre outros, os acórdãos da RL de 2.10.94 e de
23.06.94, in www.dgsi.pt
Em sentido idêntico pode ver-se também o acórdão do STJ de 15.12.1998, in
www.dgsi.pt, onde se escreveu, em sumário: “... Quanto à validação da busca...
ela resulta inequivocamente do despacho do Mmº Juiz de Instrução Criminal,
proferido no dia imediato ao da realização da busca e que validou a detenção do
arguido recorrente e lhe aplicou a medida de coacção de prisão preventiva
expressamente com base nas quantidades de produtos estupefacientes apreendidos
quando o arguido lhe foi presente para interrogatório, acompanhado do auto de
notícia – no qual é relatada a detenção do arguido e subsequente busca
domiciliária... — e auto de apreensão da droga...”.
(...)”.
3 – Notificados para o efeito, os recorrentes
apresentaram as suas alegações, tendo concluído a sua argumentação dizendo que:
“(...)
1. O douto acórdão recorrido interpretou a expressão “imediatamente
comunicada…”, ínsita no artigo 174º nº 5 do CPP, com o sentido de que o OPC pode
comunicar a realização de uma busca, realizada a coberto dos artigos 177º nº 2 e
174º nº 4 al. a) do CPP, no tempo em que apresenta o expediente para audição de
arguido detido para 1º interrogatório, ou seja, 40 horas após a realização
daquela diligência, ainda que o tribunal se encontrasse aberto para expediente.
2. Tal impõem os interesses constitucionais em causa, tendo em conta
que foi feita uma busca domiciliária sem qualquer despacho prévio de qualquer
autoridade judiciária.
3. A Constituição Portuguesa considera o direito ao domicílio como um
direito inviolável.
4. Como escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira[1] V. O direito à
inviolabilidade de domicilio é ainda um direito à liberdade da pessoa pois está
relacionado, tal como o direito à inviolabilidade de correspondência, com o
direito à inviolabilidade pessoal (esfera privada espacial, previsto no art.
2óº), considerando-se o domicílio como projecção espacial da pessoa e a
correspondência como exteriorização da própria pessoa.
5. É assim, desde logo, por força de pertinentes e incontornáveis
imperativos constitucionais, nomeadamente do artigo 34º da CRP, que faz depender
a validade e admissibilidade destas medidas da observância das pertinentes
normas de autorização constantes da lei processual penal.
6. Estão em causa direitos tão nucleares como a privacidade, o sigilo
da correspondência e das telecomunicações, a inviolabilidade do domicílio e dos
espaços vedados ao público.
7. Na verdade, como já explanado, entendemos que tais normais deverão
ser interpretadas com o sentido de que é excessivo um prazo superior às 24 horas
seguintes à pratica do acto processual – uma busca –, em horário de
funcionamento normal dos serviços do Tribunal e dos OPC, atendendo à
simplicidade do acto em si, para a comunicação imediata exigida pela Lei.
8. O douto acórdão também interpretou a norma constante dos artigos
177º nº 2 e 174º nº 4 al. a) e nº 5, do CPP com o sentido de que a nulidade aí
prevista não resulta da não validação da busca pelo juiz mas da sua não
comunicação. De todo o modo, entende o douto acórdão recorrido que a
circunstância de o juiz ter apreciado os elementos resultantes dessa busca,
implicitamente a validou.
9. O nº 5 do art. 174º do CPP configura um pressuposto complementar e
irrenunciável do específico regime legal das buscas.
10. Com tal clareza, contra o qual só à custa de frontal violação da lei
se pode invocar uma validação tácita, decorrente de decisão posterior a decretar
a prisão preventiva.
11. Dúvidas não existem, que é imposto ao juiz de instrução (juiz das
liberdades), uma apreciação em concreto de uma busca domiciliária sem
autorização judicial.
12. Até porque, só existindo um despacho judicial que aprecie em concreto
a validade da busca, é que é possível ao arguido exercer o seu direito de
recurso
13. A busca realizada deverá ser expressamente apreciada e validada pelo
Juiz de Instrução, debruçando-se este concretamente, sobre a validade do meio de
obtenção de prova: ou de outra forma, tais normas devem ser interpretadas com o
sentido de que, por ser formal e substancialmente diferente, o Juiz de Instrução
deve apreciar a regularidade de realização de uma busca e assim validá-la, não o
fazendo com a mera actividade de validar a detenção ou de sopesar, para fins
completamente diferentes (para fixação de uma medida de coacção), o resultado
indiciário deste meio de obtenção de prova.
14. Consideramos pois, que a interpretação dada pelo tribunal a quo aos
art°s 174º nº 4 al. a) e nº 5 e art. 177º nº 2 do CPP, com o sentido de que para
efeitos de apreciação e validação (nos termos do nº 5 já citado) de busca
domiciliária realizada (ao abrigo das citadas normas), basta e é suficiente
(encontrando-se o Meritíssimo JIC a realizar essa operação de apreciação e
validação da busca), que este valide as detenções dos arguidos e aprecie os
indícios existentes nos autos em ordem à fixação de uma medida de coacção, sem
expressa e/ou inequivocamente declarar que valida a busca realizada, inquina de
inconstitucionalidade aquelas normas, por violação do disposto nos arts 32º nºs
8 e 34º nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa”.
4 – Por sua vez, o Procurador-Geral Adjunto, no Tribunal
Constitucional, contra-alegou, concluindo que:
“1.º Não constitui restrição desproporcionada à tutela constitucional do
domicílio o entendimento segundo o qual é tempestiva a comunicação ao juiz da
realização de uma busca domiciliária dentro do prazo de 48 horas, procedendo-se
à apresentação conjunta do expediente que a corporiza e do próprio arguido
detido.
2.º Não viola qualquer princípio constitucional o
entendimento segundo o qual é passível de interpretação o despacho judicial
subsequente a tal comunicação, tendo-se a busca domiciliária por validada quando
o juízo de validação, embora não expresso, constitua antecedente lógico
indispensável, implícito no acto que considerou inquestionavelmente válida a
aquisição processual dos meios probatórios facultados por tal diligência.”
B – Fundamentação
5 – Como se referiu, as questões de constitucionalidade
colocadas no presente recurso surgem delimitadas por referência aos artigos
174.º, n.º 4, alínea a), e 177.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Tais normas, sistematicamente inseridas no Capítulo II
(Das revistas e buscas) do Título III (Dos meios de obtenção da prova) do Livro
III (Da prova) do Código de Processo Penal, têm o seguinte teor literal:
“Artigo 174.º
(Pressupostos)
1. Quando houver indícios de que alguém oculta na sua pessoa
quaisquer objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, é
ordenada revista.
2. Quando houver indícios de que os objectos referidos no
número anterior, ou o arguido ou outra pessoa que deva ser detida, se encontram
em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, é ordenada busca.
3. As revistas e buscas são autorizadas ou ordenadas por
despacho pela entidade judiciária competente, devendo esta, sempre que possível,
presidir à diligência.
4. Ressalvam-se das exigências contidas no número anterior as
revistas e as buscas efectuadas por órgão de polícia criminal nos casos:
a) De terrorismo, criminalidade violenta ou altamente
organizada, quando haja fundados indícios da prática de iminente crime que ponha
em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa;
b) Em que os visados consintam, desde que o consentimento
prestado fique, por qualquer forma, documentado; ou
c) Aquando da detenção em flagrante por crime a que
corresponda pena de prisão.
5. Nos casos referidos na alínea a) do número anterior, a
realização da diligência é, sob pena de nulidade, imediatamente comunicada ao
juiz de instrução e por este apreciada em ordem à sua validação”.
“Artigo 177.º
(Busca domiciliária)
1. A busca em casa habitada ou numa sua dependência fechada só pode ser ordenada
ou autorizada pelo juiz e efectuada entre as sete e as vinte e uma horas, sob
pena de nulidade.
2. Nos casos referidos no artigo 174.º, n.º 4, alíneas a) e
b), as buscas domiciliárias podem também ser ordenadas por órgão de policia
criminal. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 174.º, n.º 5.
3. [...].
4. [...]”.
Por sua vez, os preceitos constitucionais tidos por
violados – artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, nºs 1 e 2 da CRP – têm a seguinte
redacção:
“Artigo 32.º
(Garantias de processo criminal)
1. [...].
2. [...].
3. [...].
4. [...].
5. [...].
6. [...].
7. [...].
8. São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção,
ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida
privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
9. [...].
10. [...]”.
“Artigo 34.º
(Inviolabilidade do domicílio e da correspondência)
1. O domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de
comunicação privada são invioláveis.
2. A entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só
pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as
formas previstos na lei.
3. [...].
4. [...].
Passemos, então, a considerar as questões postas pelos
recorrentes.
6 – Como é consabido, a axiologia fundamentante do processo penal surge,
hodiernamente, entretecida com o direito constitucional, em termos que permitem
desvelar uma “estrita ligação” entre estes dois âmbitos jurídicos dogmáticos –
cf. Acórdão n.º 7/87 (publicado no Diário da República I Série, de 9 de
Fevereiro de 1987 e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9.º vol., p. 7 e
ss.) –, bem ilustrada no entendimento de que aquele direito adjectivo corporiza,
em substância, verdadeiro “direito constitucional aplicado”.
Essa relação de interferência normativa fundamentante
está na base da afirmação, no artigo 32.º da Constituição, “[d]os mais
importantes princípios materiais do processo criminal – [condensados n]a
constituição processual criminal” (v. Gomes Canotilho/Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª edição, vol. I, Coimbra,
2007,pp. 515).
Nesse mesmo preceito constitucional – no seu n.º 8 – consta uma referência
ineliminável ao problema da obtenção da prova, claramente elucidativa de que o
nosso legislador constituinte ponderou e valorou os interesses subjacentes ao
processo penal, modelando esse horizonte jurídico em referência ao princípio
suprapositivo da tutela da dignidade humana, daí resultando, como se disse no
Acórdão n.º 7/87, “uma estrutura processual que permita, eficazmente, tanto
averiguar e condenar os culpados criminalmente, como defender e salvaguardar os
inocentes de perseguições injustas”, tendo em conta, por outro lado, a “válida
conciliação de dois princípios ético-jurídicos fundamentais: o princípio da
reafirmação, defesa e reintegração da comunidade ético-jurídica – i. é, do
sistema de valores ético-jurídicos que informam a ordem jurídica, e que encontra
a sua tutela normativa no direito material criminal –, e o princípio do respeito
e garantia da liberdade e dignidade dos cidadãos, i. é, os direitos irredutíveis
da pessoa humana” (A. Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal,
1967-1968, I, citado no Acórdão supra referido).
Na mesma linha, escreve-se no referido aresto, reproduzindo Figueiredo Dias (in
Direito Processual Penal, 1974), que:
“O processo penal constitui um dos lugares por excelência em que tem de
encontrar-se a solução do conflito entre as exigências comunitárias e a
liberdade de realização da personalidade individual. Aquelas podem postular, em
verdade, uma «agressão» na esfera desta; agressão a que não falta a utilização
de meios coercivos (prisão preventiva, exames, buscas, apreensões) e que mais
difícil se torna de justificar e suportar por se dirigir a meros «suspeitos» –
tantas vezes inocentes – ou mesmo a «terceiros» (...).
Daí que ao interesse comunitário na prevenção e repressão da criminalidade tenha
de pôr-se limites – inultrapassáveis quando aquele interesse ponha em jogo a
dignitas humana que pertence mesmo ao mais brutal delinquente; ultrapassáveis,
mas só depois de cuidadosa ponderação da situação, quando conflitue com o
legítimo interesse das pessoas em não serem afectadas na esfera das suas
liberdades pessoais para além do que seja absolutamente indispensável à
consecução do interesse comunitário. É através desta ponderação e justa decisão
do conflito que se exclui a possibilidade de abuso do poder (...) e se põe a
força da sociedade ao serviço e sob controlo do Direito; o que traduz só,
afinal, aquela limitação do poder do Estado pela possibilidade de livre
realização da personalidade ética do homem que constitui o mais autêntico
critério de um verdadeiro Estado de direito(...).
Daqui resultam, entre outras, as exigências correntes: de uma estrita e
minuciosa regulamentação legal de qualquer indispensável intromissão, no decurso
do processo, na esfera dos direitos do cidadão constitucionalmente garantidos;
de que a lei ordinária nunca elimine o núcleo essencial de tais direitos, mesmo
quando a Constituição concede àquela liberdade para os regulamentar; de estrito
controlo judicial da actividade de todos os órgãos do Estado (...); de proibição
de provas obtidas com violação da autonomia ética da pessoa, mesmo quando esta
consinta naquela (...)”.
Assim, do mesmo passo que numa certa perspectiva se tem realçado, como o fez o
Tribunal Constitucional Federal alemão (Bundesverfassungsgericht – BVerfG; v.
Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts –BVerfGE–, 33, 383), que “na medida
em que o princípio do Estado de Direito contém uma ideia de justiça como
componente essencial [...], ele exige também a manutenção de uma administração
de justiça capaz de funcionar, sem o que não se pode ajudar a justiça a vingar
[...], [devendo reconhecer-se] as necessidades irrenunciáveis de uma acção penal
eficaz [...], acentuado o interesse público numa investigação da verdade, o mais
completa possível, no processo penal, indicando o esclarecimento dos crimes
graves como tarefa essencial de uma comunidade orientada pelo princípio do
Estado de Direito”, também a doutrina tem recordado a existência de “limites
intransponíveis à prossecução da verdade em processo penal” (Manuel da Costa
Andrade, Sobre as proibições de prova em processo penal, Coimbra, 1992, p. 117)
que decorrem do reconhecimento de que “quando em qualquer ponto do sistema ou da
regulamentação processual penal, esteja em causa a garantia da dignidade da
pessoa – em regra do arguido, mas também de outra pessoa, inclusive da vítima –,
nenhuma transacção é possível. A uma tal garantia deve ser conferida
predominância absoluta em qualquer conflito com o interesse – se bem que, também
ele legítimo e relevante do ponto de vista do Estado de direito – no eficaz
funcionamento do sistema de justiça penal” (Figueiredo Dias, Para uma reforma
global do processo penal português. Da sua necessidade e de algumas orientações
fundamentais, in Para uma nova justiça penal, Coimbra, 1983, p. 207).
E também este Tribunal, abordando, no seu Acórdão n.º 578/98 (publicado no
Diário da República II Série, de 26 de Fevereiro de 1999), o tema da prova em
processo penal, não deixou igualmente de lembrar que:
“(...) no processo penal, vigora o princípio da liberdade de prova, no
sentido de que, em regra, todos os meios de prova são igualmente aptos e
admissíveis para o apuramento da verdade material, pois nenhum facto tem a sua
prova ligada à utilização de um certo meio de prova pré-estabelecido pela lei. E
recorda-se que também a busca da verdade material é, no processo penal, um dever
ético e jurídico.
É que o Estado, como titular que é do ius puniendi, está interessado em que
os culpados de actos criminosos sejam punidos; só tem, porém, interesse em punir
os verdadeiros culpados: satius esse nocetem absolvi innocentem damnari –
sentenciavam os latinos.
O Estado está, por isso, igualmente interessado em garantir aos indivíduos
a sua liberdade contra o perigo de injustiças. Está interessado, desde logo, em
defendê-los «contra agressões excessivas da actividade encarregada de realizar a
justiça penal» (cf. Eduardo Correia, «Les preuves en droit pénal portugais», in
Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XIV, 1967, p. 8).
Existe um dever ético e jurídico de procurar a verdade material. Mas também
existe um outro dever ético e jurídico que leva a excluir a possibilidade de
empregar certos meios na investigação criminal.
A verdade material não pode conseguir-se a qualquer preço: há limites
decorrentes do respeito pela integridade moral e física das pessoas; há limites
impostos pela inviolabilidade da vida privada, do domicílio, da correspondência
e das telecomunicações, que só nas condições previstas na lei podem ser
transpostos. E existem também regras de lealdade que têm de ser observadas.
(...)
Numa síntese aproximativa, pode dizer-se, com Eduardo Correia, que determinada
prova é inadmissível «quando a violação das formas da sua obtenção ou da sua
produção entra em conflito com os princípios cuja importância ultrapassa o valor
da prova livre» (cf. ob. cit., p. 40); numa palavra: quando aqueles valores e
princípios são lesados «a um tal ponto que as razões éticas que impõem
precisamente a verdade material não podem deixar de a proibir) (ob. cit., p.
35).”
Ora, se nestas considerações se denota a tensão
particular que está subjacente ao nódulo problemático que as presentes questões
de constitucionalidade densificam, ilustrando o referente axiológico-normativo
aqui presente, importará agora, projectando tal pressuposto dogmático, reflectir
sobre os termos em que a tutela jusfundamental do domicílio surge
constitucionalmente configurada, em articulação com o regime processual das
buscas domiciliárias, principaliter na parte controvertida no presente recurso.
6.1 – O direito à inviolabilidade do domicílio, com
assento no artigo 34.º da CRP – bem como, para além de muitos outros
ordenamentos jurídicos, no artigo 12.º da Declaração Universal dos Direitos do
Homem, no artigo 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no artigo
17.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos –, pode
entender-se, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição..., cit., p.
541), como “um direito à liberdade da pessoa pois está relacionado (...) com o
direito à inviolabilidade pessoal (esfera privada espacial, previsto no art.
26.º), considerando-se o domicílio como projecção espacial da pessoa”.
Tal entendimento vem sendo também acolhido por este
Tribunal – cf., inter alia, os Acórdãos nºs 507/94 (publicado nos Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 28.º vol., 1994, p. 463) e 364/06 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt) –, que vem tratando este direito fundamental
'dimensionado e moldado a partir da observância do respeito pela dignidade da
pessoa humana, na sua vertente de intimidade da vida privada' (Acórdão n.º
67/97, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36º vol., p. 247).
Concretizando o sentido emergente dessa jurisprudência, dir-se-á agora, apenas,
que a inviolabilidade do domicílio densifica um direito fundamental que garante
à pessoa, numa precipitação que traduz o reconhecimento da sua dignidade ética e
concretiza a tutela jusfundamental do seu livre desenvolvimento (cf. artigo
26.º), um elementar espaço de vida” – elementaren Lebensraum –, ou uma “esfera
privada espacial” – räumliche Privatsphäre – (cf. BverfGE 51, 97 e BverfGE 109,
279), colocada na livre disponibilidade do seu titular.
Formulação esta que acompanha de perto as considerações vertidas no recente
Acórdão de 4 de Março de 2004 do Bundesverfassunsgericht (BverfGE 109, 279 e
igualmente disponível em:
www.bundesvefassungsgericht.de/entscheidungen/rs20040303_1bvr237898.html), onde
se considerou que “a inviolabilidade do domicílio (Unverletzlichkeit der
Wohnung) está intimamente relacionada com a dignidade humana e, ao mesmo tempo,
com o mandamento constitucional de respeito incondicional por uma esfera do
cidadão para um exclusivamente privado – “personalíssimo” – desenvolvimento
(eine ausschließlich private - eine 'höchstpersönliche' – Entfaltung)”, daí
decorrendo a necessidade de garantir o “direito de ser deixado em paz”, maxime
no que concerne às “dependências domiciliares” onde a pessoa desenvolve, em
reserva, a sua vida privada.
Em todo o caso, se não se duvida de que o respeito pela inviolabilidade do
domicílio constitui “uma condição de integridade da pessoa e a sua protecção
deve ser considerada actualmente como um aspecto da protecção da «dignidade
humana»” (mutatis mutandis, assumem-se aqui as reflexões tecidas a propósito da
protecção da vida privada por Paulo Mota Pinto, in A Protecção da vida privada e
a Constituição, Boletim da Faculdade de Direito – BFDUC –, Coimbra, 2000, p.
164), importará igualmente reconhecer que tal direito não pode configurar-se, em
absoluto, como um direito de conteúdo ou âmbito material ilimitado em face de
outros direitos ou interesses tutelados sub species constitutionis.
Nessa linha e como refere Vieira de Andrade (in Os Direitos Fundamentais na
Constituição Portuguesa de 1976, 2.ª edição, Coimbra, 2001, p. 79), pode
afirmar-se que a “autonomia dos direitos fundamentais como instituto
jurídico-constitucional é, afinal, o reflexo da autonomia ética da pessoa,
enquanto ser simultaneamente livre e responsável. E, como esta, é ao mesmo tempo
irrecusável e limitada. [§] Irrecusável, porque a liberdade dos homens não pode
confundir-se com a justiça social ou com a democracia política, nem ser-lhes
sacrificada (...). [§] Limitada, porque o homem individual, destinado ou
condenado a viver em comunidade, tem também deveres fundamentais de
solidariedade para com os outros e para com a sociedade, obrigando-se a
respeitar as restrições e as compressões indispensáveis à acomodação dos
direitos dos outros e à realização dos valores comunitários, ordenados à
felicidade de todos (...)”.
E um reflexo imediato dessa ponderação encontra-se logo nos termos com que a
própria Constituição define a tutela da “inviolabilidade do domicílio”,
autorizando, no n.º 2 do artigo 34.º, a “entrada no domicílio dos cidadãos
contra a sua vontade” quando ordenada pela “autoridade judicial competente, nos
casos e segundo as formas previstos na lei”, e, no n.º 3 do mesmo preceito, que
“em situação de flagrante delito ou mediante autorização judicial em casos de
criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada, incluindo o
terrorismo e o tráfico de pessoas, de armas e de estupefacientes, nos termos
previstos na lei”, o acesso não consentido ao domicílio de uma pessoa possa ser
realizado mesmo durante a noite.
Do mesmo passo, ainda em idêntico plano, importará também acentuar que a própria
Constituição, no artigo 32.º, n.º 8, apenas sanciona com nulidade as provas
obtidas mediante intromissão na vida privada que deva ser considerada abusiva.
Como este Tribunal já afirmou, ainda que noutro contexto problemático (cf.
Acórdão n.º 137/02 – publicado no Diário da República II Série, de 3 de Abril de
2002), «não há dúvida de que o princípio da investigação ou da verdade material,
sem prejuízo da estrutura acusatória do processo penal português, tem valor
constitucional. Quer os fins do direito penal, quer os do processo penal, que
são instrumentais daqueles, implicam que as sanções penais, as penas e as
medidas de segurança, apenas sejam aplicadas aos verdadeiros agentes de crimes,
pelo que a prossecução desses fins, isto é, a realização do direito penal e a
própria existência do processo penal só são constitucionalmente legítimas se
aquele princípio for respeitado), acaba por admitir uma intromissão na
intimidade da vida privada ao ressalvar da inviolabilidade do domicílio e da
correspondência a ingerência das autoridades públicas nos casos previstos na lei
em matéria de processo penal (cf. artigo 34º, n.º 2: “A entrada no domicílio dos
cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial
competente, nos casos e segundo as formas previstos na lei” e n.º 4: “É proibida
toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas
telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na
lei em matéria de processo criminal”)».
Por sua vez, e quanto ao carácter não ilimitado da inviolabilidade do domicílio,
e mesmo perante a redacção vigente do artigo 34.º da Constituição, refira-se que
o Acórdão n.º 7/87, considerou que, mesmo sem autorização judiciária, as buscas
domiciliárias efectuadas no âmbito da investigação de criminalidade violenta ou
organizada não atentariam contra a Constituição, desde que existisse perigo
iminente da prática de um crime com grave risco para a vida ou para a
integridade de uma pessoa, porquanto “o direito à inviolabilidade do domicílio
(...) deve[r] compatibilizar-se com o direito à vida e à integridade pessoal,
consignados respectivamente nos artigos 24º e 25º da lei fundamental (...),
direitos que hão-de entender-se como limites imanentes do direito em causa”
(cf., também, João Conde Correia, “Qual o significado de abusiva intromissão na
vida privada, no domicílio, na correspondência e nas telecomunicações (art.
32.º, n.º 8, 2.ª parte da CRP)?”, in Revista do Ministério Público, n.º 79,
1999, pp. 55 e ss.).
E tal contextualização permite compreender e enquadrar,
num plano axiológico-normativo, a admissibilidade das buscas domiciliárias,
enquanto meio de obtenção da prova em processo penal e, do mesmo passo, a
justificação material do seu regime, maxime no que concerne com a intervenção
garantística do juiz de instrução, exigida, como se deu conta no Acórdão n.º
114/95 (publicado no Diário da República II Série, de 22 de Abril de 1995) “pela
preocupação de controlar a legalidade e, bem assim, garantir os direitos
fundamentais dos cidadãos, no caso, a inviolabilidade do domicílio”.
Já no que concerne aos termos em que essa intervenção é
exigida e concretizada, importa notar que a nossa lei processual penal
estabelece, como regime-regra, a necessidade da realização de uma busca
domiciliária ser precedida, sob pena de nulidade, de autorização judicial
(artigo 177.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Admite-se, porém, que, em certas circunstâncias
(tipificadas no artigo 174.º, n.º 4, ex vi artigo 177.º, n.º 2), essa busca
possa ser “ordenada pelo Ministério Público ou efectuada por órgãos de polícia
criminal”, sem depender dessa autorização prévia, sendo que, quando a busca for
justificada pela ocorrência de “terrorismo, criminalidade violenta ou altamente
organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha
em grave risco a vida ou a integridade física de qualquer pessoa”, a realização
da diligência deve ser imediatamente comunicada ao juiz de instrução para que
este a aprecie em ordem a uma validação a posteriori (artigos 177.º, n.º 2 e
174.º, n.º 5, do Código de Processo Penal).
Regime este que, em termos de direito “comparado”, não
se afasta dos caracteres fundamentais presentes noutras experiências jurídicas.
De facto, mesmo existindo algum polimorfismo no modo como a matéria é
regulamentada noutros ordenamentos jurídicos, não será inapropriado referir que
o regime pátrio não diverge essencialmente da regulamentação processual penal
além fronteiras no que diz respeito à necessidade de ponderar algumas situações
de facto onde a urgência na realização da diligência, em confronto com a tutela
de bens jurídicos fundamentais, justifica um tratamento diferenciado ao nível
dos pressupostos definidos para a sua concretização (cf. Mario Chiavario e
outros, Procedure Penali d’Europa, 2.ª edição, Milão, 2001), seja mediante a
previsão de formas de autorização não escritas, seja prescindindo de autorização
prévia para a realização da diligência.
Assim sucede, inter alia, na Bélgica (op. cit., p.76), na França (op. cit., p.
141), na Alemanha (op. cit., p. 205), na Inglaterra (op. cit., p. 259), na
Espanha (cf. Francisco Javier Matia Portilla, “Delito Flagrante e inviolabilidad
del domicilio”, in Revista Española de Derecho Constitucional, n.º 42, 1994, pp.
197 e ss. e Marcos Francisco Massó Garrote, “Nota jurisprudencial sobre los
aspectos constitucionales de la inviolabilidad del domicilio a la luz de la
nueva regulacion procesal y material”, in Revista de las Cortes Generales, nº
29, 1993, pp. 147 e ss.) e na Itália (op. Cit., p. 320), sendo que, neste último
ordenamento, admitindo-se, nas hipóteses tipificadas no artigo 352.º, n.º 1, do
Códice di Procedura Penale, a realização de uma busca pelo ufficiale di polizia
giudiziaria sem prévia autorização, estabelece-se um prazo de quarenta e oito
horas para que tenha lugar a comunicação da realização da diligência, devendo a
autoridade judiciária competente proceder à sua validação no prazo de quarenta e
oito horas após a referida comunicação.
6.2 – No caso dos autos questiona-se, em face dos parâmetros constitucionais
considerados, uma dimensão normativa do artigo 174.º, n.º 5, por referência ao
disposto no artigo 177.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que contende,
precisamente, com a tramitação processual subsequente à realização de uma busca
domiciliária realizada sem prévia autorização judicial.
Anote-se que os recorrentes não questionam a constitucionalidade dos referidos
preceitos enquanto deles se extrai a admissibilidade da busca domiciliária não
judicialmente autorizada, mas apenas numa dimensão normativa que admita que a
comunicação ao juiz da realização da diligência, nos termos do referido artigo
174.º, n.º 5, possa ter lugar no prazo de quarenta e oito horas após a sua
realização.
Atentos os limites decorrentes do quadro constitucional supra balizado, a nossa
Constituição endossa ao legislador o estabelecimento de critérios susceptíveis
de autorizar a “entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade”, não
definindo, recta via, qualquer prazo para a comunicação ao órgão judicial
competente da realização de uma busca domiciliária.
Compreende-se que, sendo a comunicação da busca um pressuposto material da
emissão de um juízo cometido à função jurisdicional (artigo 202.º, n.º 2, da
Constituição) e, nessa medida, uma conditio sine qua non do controlo
jurisdicional da legalidade da sua realização, aquela comunicação – e este
controlo – deva ser cumprida, tendo em conta a especificidade/complexidade de
cada problema concreto, sem delongas injustificadas, como resulta do sentido
emprestado pelo advérbio “imediatamente” à imposição posta no artigo 174.º, n.º
5, do Código de Processo Penal.
Na ausência de uma delimitação temporal precisa, como sucede, por exemplo, com o
prazo de apresentação do arguido detido para primeiro interrogatório judicial
(v. artigo 28.º da Constituição e 141.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), o
acórdão recorrido considerou tempestiva a comunicação ao juiz da realização da
busca domiciliária no prazo de quarenta e oito horas, tendo aquela ocorrido
conjuntamente com a apresentação dos arguidos detidos.
Ora, este entendimento não merece qualquer censura, não densificando,
contrariamente ao alegado, qualquer restrição desproporcionada ao direito à
inviolabilidade do domicílio.
Desde logo, não pode olvidar-se que, estando a comunicação da busca preordenada,
como se disse, à apreciação da sua legalidade, o expediente que é remetido ao
juiz para esse efeito não deve noticiar apenas a realização da diligência, mas
toda a contextualização que materialmente a justificou e os termos em que a
mesma se concretizou, o que, por sua vez, poderá acarretar a exposição de uma
complexidade de factos e anteriores diligências que impossibilite a sua adequada
comunicação num momento anterior ao que o tribunal a quo teve como razoável e
justificado.
Aliás, perscrutando os fundamentos da decisão recorrida, denota-se, com
meridiana clareza, que o tribunal justificou o critério normativo aplicado com
base no facto da comunicação da busca ter sido realizada “o mais rapidamente
possível”, tendo em conta “por um lado, a complexidade (e gravidade) dos factos
em investigação, que resulta, quer dos crimes em causa (pelos quais os arguidos
vieram a ser pronunciados: um crime de sequestro, um crime de homicídio
qualificado, um crime de profanação/ocultação de cadáver e um crime de detenção
ilegal de arma de defesa) quer da quantidade dos arguidos envolvidos (cinco),
por outro, a complexa organização do processo/expediente – que se infere
daqueles factos, mas que resulta de outras diligências documentadas nos autos e
referenciadas no despacho de pronúncia – para ser presente com os arguidos
(detidos) ao juiz de instrução”.
Por outro lado, cumpre igualmente notar, que o prazo de quarenta e oito horas
foi igualmente justificado com base no argumento de que “não seria razoável (e
não resulta que essa fosse a sua intenção) que o legislador pretendesse impor um
prazo mais curto para a comunicação da busca ao juiz de instrução do que o
imposto para a apresentação do arguido detido para 1º interrogatório judicial,
sendo certo que a privação da liberdade se apresenta como uma restrição mais
grave aos direitos dos cidadãos do que a restrição de quaisquer outros
direitos”.
Ora, a interferência deste argumento sistemático, mas também valorativo, na
determinação do sentido jurídico-normativo do critério aplicado pelo tribunal é
claramente pertinente.
De facto, o prazo constante do artigo 28.º, n.º 1, da Constituição da República
(onde se dispõe que “a detenção será submetida, no prazo máximo de quarenta e
oito horas, a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de
medida de coacção adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a
determinaram e comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidade de
defesa”), traduz, relativamente ao direito e garantia fundamental da liberdade,
precisamente um reflexo da ponderação de interesses supra referida (6.1.), pela
mão do legislador constituinte, norteada por um critério de necessidade,
adequação e estrita proporcionalidade e traduzida numa autorizada compressão do
direito à liberdade (artigo 27.º do diploma fundamental) em face do interesse
associado à prossecução da justiça penal.
Ora, mutatis mutandis, igual ponderação, pelo menos, será de admitir também em
face de uma compressão da esfera de reserva delimitada pelo domicílio.
E, in casu, essa ponderação não pode ser indiferente ao facto de o domicílio já
ter sido objecto de realização de uma busca, materialmente justificada por
outros valores ou bens jurídicos constitucionalmente tutelados, e não apenas os
decorrentes do ius puniendi estatal, susceptíveis de “prevalecer sobre a
garantia constitucional de reserva de juiz” (cf. Acórdão n.º 7/87 e Ana Luísa
Pinto, “Aspectos problemáticos do regime das buscas domiciliárias”, in Separata
da Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 2005, p. 435), estando no momento em
causa a sua comunicação para efeito da sua validação a posteriori, sendo que no
referente à questão do momento oportuno para essa validação da diligência, este
Tribunal já considerou (cf. Acórdão n.º 192/01, publicado no Diário da República
II Série, de 17 de Julho de 2001, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 50.º
vol., p. 295), que a própria “sanação a posteriori da nulidade consubstanciada
na omissão de validação imediata de buscas não domiciliárias” não atenta contra
as garantias de defesa dos arguidos tipificadas no artigo 32.º, nºs 1 e 8, da
Constituição.
Tal entendimento, aqui reiterado, estribou-se na consideração de que apesar de
ser “certo que, até à validação da busca e podendo, entretanto, prosseguir a
investigação com base nos resultados dessa diligência, existe um momento de
incerteza sobre a verificação dos pressupostos legais da mesma diligência, com o
aparente risco de vir a ser proferida uma decisão de não validação quando
aqueles resultados já proporcionaram a obtenção de outras provas”, a verdade é
que “mesmo neste caso – de hipotética não validação – o (...) regime
estabelecido no artigo 122º do CPP assegura que os actos subsequentes sejam
declarados inválidos se dependerem do acto que não obtém a necessária
validação”.
Com isto fica acautelado o direito dos arguidos de não verem valoradas
jurisdicionalmente as provas obtidas por uma busca domiciliária cuja legalidade
não foi jurisdicionalmente sindicada.
Em conclusão: não se afigura desrazoável, arbitrária ou desproporcionada uma
interpretação dos artigos 174.º, n.º 5 e 177.º, n.º 2, no sentido de admitir a
tempestividade da comunicação de uma busca realizada a coberto do disposto no
artigo 174.º, n.º 4, alínea a), do Código de Processo Penal, dentro do prazo de
apresentação dos arguidos detidos para primeiro interrogatório judicial.
6.3 – Os recorrentes controvertem também a constitucionalidade da norma
resultante dos artigos 174.º, n.º 4, alínea a), e 177.º, n.º 2, do Código de
Processo Penal, interpretada “no sentido de que para efeitos de apreciação e
validação de busca domiciliária realizada, é suficiente que o juiz de instrução
valide as detenções dos arguidos e aprecie os indícios existentes nos autos em
ordem à fixação de uma medida de coacção, sem expressa e/ou inequivocamente
declarar que valida a busca realizada”, em ambos os casos por violação do
disposto nos artigos 32.º, n.º 8 e 34.º, nºs 1 e 2 da Constituição da República
Portuguesa.
Mas ao recorte da questão de constitucionalidade emergente da dimensão normativa
destes preceitos, tal qual foi definida pelos recorrentes mais em função dos
termos em que se mostra expressado o concreto juízo judicativo-decisório do que
em face da enunciação em abstracto do critério legal aplicando, importa precisar
que foi, também, entendimento do acórdão recorrido que, ocorrendo apresentação
dos arguidos para o 1.º interrogatório judicial acompanhada dos elementos em que
se traduzira e resultaram da busca, o interrogatório foi também sobre os
indícios nela recolhidos e que o juiz, efectivamente, fez uma apreciação desta e
desses elementos de prova “em face dos elementos de prova recolhidos e que lhe
foram presentes”, para, com base na sua implícita e necessariamente pressuposta
validade, concluir pela validação da detenção dos arguidos e manutenção dos
mesmos em prisão preventiva.
A questão agora colocada passa por ponderar se os referidos parâmetros
constitucionais autorizam, no contexto normativo circunstancialmente em causa,
um juízo de validação implícita do acto que determinou a aquisição dos elementos
probatórios concretamente apreciados pelo juiz, como foi admitido, como ratio
decidendi, pelo Acórdão recorrido, onde se deixou consignado que “a busca e os
elementos de prova nela recolhidos foram apreciados pelo juiz de instrução, como
se vê do despacho que validou e manteve a detenção dos arguidos, concretamente
porque, em face dos elementos de prova recolhidos e que lhe foram presentes
(designadamente os indícios de prova recolhidos na busca), se mostrava
fortemente indiciada a prática, por todos os arguidos, em co-autoria material,
de um crime de homicídio qualificado, de um crime de ocultação de cadáver e de
posse e detenção de arma proibida; tendo o cadáver da vítima e as armas
apreendidas sido encontrados no interior da casa onde foi efectuada a busca, não
pode deixar de se concluir que o juiz de instrução, fundamentando a sua decisão
nessas provas, não só tomou conhecimento da busca e dos elementos de prova nela
recolhidos, como a considerou, implicitamente, válida, aceitando e valorando as
provas nela recolhidas para validar a detenção dos arguidos e manter os mesmos
em prisão preventiva”.
Como já se disse, a intervenção judicial em sede de autorização e validação das
buscas domiciliárias configura uma dimensão essencialmente garantística
direccionada a legitimar uma intervenção estatal num domínio de reserva
constitucionalmente garantido como direito fundamental.
Nessa medida, será essencial que a autoridade judicial, tomando conhecimento da
realização de uma busca domiciliária realizada com base no regime vertido no
artigo 174.º, n.º 4, alínea a), do Código de Processo Penal, formule um juízo
sobre a legalidade da diligência, sendo essa decisão, como não se discutirá, uma
conditio sine qua non de valoração dos elementos probatórios adquiridos nessa
diligência.
Ora, podendo reconhecer-se que estes dois momentos podem diferenciar-se de modo
cortante quando considerados em termos estáticos, deverá também aceitar-se que,
em termos dinâmicos, um juízo que tenha por válidos os elementos probatórios
decorrentes de uma busca que está a ser sujeita a apreciação judicial, traduz em
si, de forma inequívoca, uma decisão – necessariamente pressuposta – quanto à
validação da diligência e à possibilidade de valoração desses elementos, sendo
certo que, existindo esse juízo de validação, permanecerão intocáveis os
direitos do arguido no sentido de se haver por legitimada a intervenção dos
órgãos de polícia no seu domicílio.
E, nesse quadro, é certo que, como bem nota o representante do Ministério
Público junto deste Tribunal, “mais do que os termos literais ou verbais do
despacho, o que releva é que, da interpretação da decisão em causa, se possa
deduzir, de forma incontroversa e inquestionável, que o juiz teve por válidos os
elementos probatórios obtidos através da busca submetida a apreciação
jurisdicional”, sendo indubitável, face ao teor da decisão recorrida, que o
Tribunal assentou num critério normativo concretizado na exigência de um juízo
relativo à legalidade da busca em causa.
Por outro lado, e independentemente de saber-se se a validação tácita
corresponde à melhor interpretação do direito infraconstitucional, não poderá,
também, deixar de mencionar-se que, na óptica dos direitos invocados pelos
recorrentes – traduzidos na inviolabilidade do domicílio e na nulidade das
provas obtidas mediante abusiva intromissão naquele –, fundamental será apenas
que o tribunal tenha por válida a obtenção da prova materializada numa busca
domiciliária: existindo essa validação, expressa ou implícita, ficará sempre
sancionada, legitimada, a realização da diligência.
E idêntica conclusão é imposta quando, para lá daqueles parâmetros
jusfundamentais, se invoquem as garantias de defesa e o direito ao recurso dos
arguidos.
De facto, tendo os arguidos conhecimento da realização da busca e dos
pressupostos que a justificaram, e, para além disso, tendo sido concretamente
confrontados com os elementos probatórios recolhidos, encontram-se em plenas
condições para sindicar jurisdicionalmente – como, aliás, vieram a fazer – a
realização da diligência e a valoração dos elementos probatórios nela colhidos.
C – Decisão
7 – Destarte, atento o exposto, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 2 de Maio de 2007
Benjamim Rodrigues
João Cura Mariano
Rui Pereira
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos
[1] Constituição da República Portuguesa Anotada; 4ª ed. 2007