Imprimir acórdão
Processo n.º 305/2005
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Bravo Serra
1. Em 2 de Maio de 2005 o relator proferiu a seguinte
decisão:-
“1. Nos autos de execução, seguindo a forma de processo ordinário, que
a A., instaurou pelo 1º Juízo do Tribunal de comarca de Albufeira contra B., o
Juiz daquele Juízo, em 19 de Fevereiro de 2003, proferiu despacho em que, a dado
passo, disse:-
‘A A. veio intentar a presente acção executiva, sob a forma de
processo ordinário, contra B..
Verifica-se, agora, que o executado foi notificado por via postal
simples para a morada que constava das bases de dados acessíveis por parte do
Tribunal.
A citação é, por definição, o acto pelo qual se dá conhecimento ao réu
de que foi proposta contra ele determinada acção e se chama, o mesmo, ao
processo para se defender (artigo 228º, nº 1, do Código de Processo Civil).
O direito de defesa do demandado é um direito de natureza processual
que está ínsito no direito de acesso aos tribunais, nos termos do nº 1, do
artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
Quando este preceito estatui que a todos é assegurado o acesso ao
direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, é
manifesto que tanto abrange os demandantes que recorrem aos tribunais para fazer
valer as suas pretensões, como os demandados que ficam sujeitos à jurisdição do
tribunal da causa e que têm o direito de se opor tais pretensões.
Em todas as tramitações de natureza declarativa que conduzem à emissão
de um julgamento por parte de um tribunal, tem de existir um debate ou discussão
entre as partes contrapostas, demandante e demandado, havendo o processo
jurídico adequado de garantir que cada uma dessas partes deva ser chamada a
dizer de sua justiça (audiatur et altera pars) - ver Ac. Tribunal Constitucional
de 22/06/1995, sumariado na internet em www.dgsi.pt.
Igualmente, na presente acção executiva, em que não houve prévio
debate, ele pode vir a existir no momento dos embargos à execução, aí se
exercendo o direito de defesa.
Ora, para que se possa exercer em plenitude o direito de defesa
(consagrado na lei fundamental no artigo 20º, nºs 1 e 4) constitui pressuposto
essencial que o demandado tenha efectivo conhecimento de que está accionado
judicialmente.
No entanto, as novas regras para citação introduzidas na redacção
dada aos artigos 238º, nºs 1 e 3, que terão o valor previsto nos artigos 238º-A,
nº 4 e 784º, todos do Código de Processo Civil (sendo os dois primeiros com a
nova redacção dada pelo D.L. 183/2000, de 10 de Agosto e Lei 30-D/2000, de 20 de
Dezembro) poderão não assegurar tal conhecimento ou, pelo menos, não são
suficientes para garantir ao Tribunal que ao Réu tenha sido dada a possibilidade
de, em tempo útil, vir ao processo dizer de sua justiça.
Basta mudar de residência sem que aos serviços públicos seja dada uma
nova morada, basta fazer uma viagem ou férias mais prolongadas, basta ser
destacado temporariamente para prestar serviço noutro local do país, para se
poder ser citado e condenado (e, neste caso, executado) em Tribunal. A
enumeração é pouco exaustiva, mas elucidativa dos perigos que tais normas
poderão ter para o direito constitucional a apresentar uma defesa quando se é
demandado em Tribunal.
O D.L. 183/2000, de 10 de Agosto, veio introduzir uma desproporcionada
ampliação das possibilidades de citação por via postal simples, privilegiando em
termos absolutos a ‘celeridade processual’, com claro prejuízo para a segurança
jurídica (lembrar que o acto de citação não pode ter um[ ] valor inferior a uma
simples notificação ao mandatário, que em regra é feita por carta registada).
Assim, por entender que os artigos 238º, nºs 1 e 3, e 238º-A, nº 4, do
Código de Processo Civil, na redacção dada pelo D.L. 183/2000, de 10 de Agosto e
Lei 30-D/2000, de 20 de Dezembro, são materialmente inconstitucionais por
violarem o disposto no artigo 20º, nºs 1 e 4, da Constituição da República
Portuguesa, o que se declara, decido não os aplicar no presente processo, ao
abrigo do artigo 204º daquela Lei Fundamental.
Em consequência, dever-se-á repetir a citação do executado, aplicando
o disposto na anterior redacção do artigo 239º, nº 1, do Código de Processo
Civil.
Proceda-se à citação do executado na morada indicada a fls. 50, por
via postal registada e, caso se fruste tal citação, depreque-a tendo em conta a
mesma morada.
(...)’.
Do despacho de que parte se encontra transcrita recorreu ao abrigo da
alínea a) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o
Representante do Ministério Público junto do aludido Tribunal, intentando a
apreciação da constitucionalidade das normas cuja recusa de aplicação nele
ocorreu.
O Juiz do 1º Juízo do Tribunal de comarca de Albufeira, por despacho de
3 de Março de 2003, admitiu o recurso e, incompreensivelmente (cfr. nº 4 do artº
78º da Lei nº 28/82), determinou que o mesmo subisse em separado, quando
estivesse concluída a penhora, e com efeito meramente devolutivo.
Na certidão destinada a instruir o recurso determinado subir em
separado surpreendem-se, para o que ora releva, fotocópias:-
- de um mandado emitido pela magistrada judicial do 1º Juízo do
Tribunal de comarca de Albufeira e pelo qual, na sequência da instauração da
execução, determinou a citação do executado, cuja residência seria em
----------------------, Albufeira;
- de uma certidão negativa, lavrada por oficial de justiça,
comprovativa da não realização da citação do executado, que se teria ausentado
daquela morada há cerca de dois anos;
- de um requerimento da exequente, solicitando a citação edital do
executado;
- de uma cota demonstrativa de consulta às bases de dados (Segurança
Social, Direcção-Geral dos Impostos, Direcção-Geral de Viação e Direcção dos
Serviços de Identificação Civil, a fim de se saber da actual morada do
executado;
- dos resultados extraídos de tal consulta, de todos eles se alcançando
que, actualmente, a morada do executado seria em Lisboa, na Avenida
-----------------, nº ---, ---, ------;
- de cota de envio de carta registada com pedido de depósito para a
morada do executado, em Lisboa;
- da «nota» da declaração de que o aviso postal simples de citação do
executado foi depositado em 18 de Outubro de 2001 no receptáculo postal
domiciliário da sua morada em Lisboa.
Os autos vieram a ser remetidos ao Tribunal Constitucional em 15 de
Abril de 2005.
2. Em face da jurisprudência já tomada por este Tribunal, entende-se
ser de proferir decisão ex vi do nº 1 do artº 78º-A da Lei nº 28/82.
Dispõe-se nos cabidos preceitos ínsitos nos artigos 238º e 238º-A:-
Artigo 238.º
(Frustração da citação por via postal)
1. No caso de se frustrar a citação por via postal, a secretaria
obterá, oficiosamente, informação sobre a residência, local de trabalho ou,
tratando-se de pessoa colectiva ou sociedade, sobre a sede ou local onde
funciona normalmente a administração do citando, nas bases de dados dos serviços
de identificação civil, da segurança social, da Direcção-Geral dos Impostos e da
Direcção-Geral de Viação.
2. Se a residência, local de trabalho, sede ou local onde funciona
normalmente a administração do citando, para o qual se endereçou a carta
registado com aviso de recepção, coincidir com o local obtido junto de todos os
serviços enumerados no número anterior, procede-se à citação por via postal
simples, dirigida ao citando e endereçada para esse local, aplicando-se o
disposto nos n.ºs 5 a 7 do artigo 236.º-A.
3. Se a residência, local de trabalho, sede ou local onde funciona
normalmente a administração do citando, para a qual se endereçou a citação, não
coincidir com o local obtido nas bases de dados de todos os serviços enumerados
no n.º 1, ou se nestas constarem várias residências, locais de trabalho ou
sedes, procede-se à citação por via postal simples para cada um desses locais.
Artigo 238.º-A
(Data e valor da citação por via postal)
1.
......................................................................
.................................................................................
2. A citação realizada ao abrigo do disposto nos n.ºs 5 e 6 do artigo
236.º-A e no n.º 2 do artigo anterior considera-se feita no dia em que o
distribuidor do serviço postal depositou a carta na caixa postal do citando ou
no dia em que a depositou na caixa postal do endereço indicado nas bases de
dados de todos os serviços enumerados no n.º 1 do artigo anterior,
respectivamente, data essa que é indicada na declaração
3.
......................................................................
.................................................................................
Na situação prevista no n.º 3 do artigo anterior, a citação
considera-se feita no dia e no local em que o distribuidor do serviço postal
depositar a carta na caixa postal do último endereço para o qual seja remetido
ou, se ocorrer a circunstância prevista no número anterior, no 8.º dia posterior
à data do aviso que é deixado pelo distribuidor do serviço postal no último dos
locais para os quais são remetidas as várias cartas, excepto se o réu acusar
recepção da carta num outro local.
O conjunto normativo desaplicado pelo despacho acima extractado
reportou-se à consequência jurídica resultante do circunstancialismo acima
descrito e de acordo com o qual, em face do que se prescreve nos números 1 e 3
do artº 238º e no nº 4 do artº 238º-A, ambos do diploma adjectivo civil, na
redacção emergente do Decreto-Lei nº 183/2000, de 10 de Agosto, e da Lei nº
30-D/2000, de 20 de Dezembro, se haveria de considerar como efectuada a citação
do executado com o depósito, no receptáculo postal da morada que constava das
bases de dados consultadas pelos serviços do Tribunal de comarca de Albufeira,
do aviso postal de citação.
Torna-se, porém, evidente que, em face daquele circunstancialismo, o
que, in casu, deveria cobrar aplicação eram as disposições, constantes da lei
ordinária, a que se reportam o nº 2 do artº 238º e no nº 2 do artigo 238º-A (já
que a totalidade dos resultados da consulta das bases de dados indicavam sempre
a mesma morada do executado:- Avenida --------------, nº ----, ---,
------------, em Lisboa), e não o nº 3 do primeiro artigo e o nº 4 do segundo.
Todavia, neste particular, não cabe a este Tribunal censurar o juízo decisório
formulado pelo Juiz a quo e de acordo com o qual a situação sub specie seria
regulada, em termos de direito ordinário, pelos já citados nº 3 do artº 238º e
nº 4 do artº 238º-A.
Seja como for, e porque, como se disse acima, a desaplicação do
conjunto normativo em causa se alicerçou na consideração de que era desarmónico
com a Constituição o entendimento, extraído de tal conjunto, de se considerar
efectivada a citação do demandado na data do dia em que foi depositado na caixa
postal do citando o aviso postal simples endereçado para a morada que se apurara
pelos resultados da consulta às bases de dados a que se reporta o nº 1 do artº
238º, é sobre esta questão que se deve debruçar este Tribunal.
Ora, respeitantemente ao problema em foco, já este órgão de
administração de justiça teve ocasião de se pronunciar.
Fê-lo por intermédio do Acórdão nº 91/2004 (subscrito também pelo ora
relator), onde, a dado passo, teve ocasião de assim discretear:-
‘(...)
11. De facto, no caso concreto, conforme consta dos autos e da decisão
recorrida, a recorrente foi citada através do envio de carta registada com aviso
de recepção para a morada indicada pelo recorrido. A carta foi devolvida ao
remetente com a indicação de não reclamada. Seguiu-se o pedido de envio de
informações às entidades oficiais, tendo sido consultadas as bases de dados
referidas na legislação aplicável. Obtida informação, procedeu-se à citação por
via postal simples, sendo endereçada carta para o local resultante das consultas
efectuadas, bem como para a moradia onde alegadamente foram prestados os
serviços de construção civil geradores do crédito reclamado e para um outro
endereço. Tais cartas foram depositadas no receptáculo postal domiciliário das
moradas em causa, tendo o distribuidor do serviço postal indicado a data em que
o fez. Desta forma, a decisão recorrida considerou que a citação foi
regularmente efectuada. Posteriormente, a recorrente, identificando-se com a
expressão ‘com os sinais dos autos’, juntou a estes uma procuração onde, como
refere a decisão recorrida, ‘não fornece qualquer elemento acerca do seu
domicilio’.
O Tribunal Constitucional, no acórdão 287/2003 (disponível na página do Tribunal
na Internet, em http://www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm), julgou
‘inconstitucional, por violação dos princípios da ‘proibição da indefesa’ e do
‘processo equitativo’, consagrados no artigo 20º da Constituição da República
Portuguesa, a norma do artigo 238º n.º 2 do Código de Processo Civil,
interpretada no sentido de, em acção declarativa que se segue ao procedimento de
injunção em que se frustrou a notificação por carta registada com aviso de
recepção do requerido, e não havendo estipulação de domicílio no contrato de que
emerge a pretensão condenatória, dever o réu ser imediatamente citado por via
postal simples, sem que o tribunal deva averiguar previamente, por consulta das
bases referenciadas no n.º 1 do mesmo artigo 238º do CPC, se a residência
indicada pelo credor coincide com o teor dos registos públicos constantes
daquelas bases’.
Ora, ainda que se concorde com tal decisão, é diversa a situação nos presentes
autos, pelo que daquele acórdão não decorre, necessariamente, uma solução de
inconstitucionalidade para o caso que nos ocupa.
De facto, nos presentes autos, como consta da decisão recorrida, ‘foram
encetadas as diligências possíveis junto de autoridades oficiais cuja actividade
se relaciona, normalmente, com o dia a dia do cidadão comum. Logo, era
previsível que a morada da R fosse encontrada.’. Na verdade, procedeu-se à
consulta das bases oficiais previstas na lei e remeteram-se cartas para todas as
moradas disponíveis, o que, desde logo, distingue a presente situação da
decidida no acórdão n.º 287/2003.
E, sendo a situação diferente, não há qualquer outro motivo que justifique
solução semelhante.
Na verdade, é pacífico o entendimento de que a proibição de indefesa se contém
no princípio mais vasto de acesso ao direito e aos tribunais, constante do
artigo 20º da Lei Fundamental.
No entanto, se é verdade que, como se escreveu no Acórdão n.º 335/95 (Acórdãos
do Tribunal Constitucional, 31º vol., págs. 531 e segs.), ainda no âmbito do
regime anterior à vigência do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, ‘em
todas as tramitações de natureza declarativa que conduzem à emissão de um
julgamento (judicium) por parte de um tribunal, tem de existir um debate ou
discussão entre as partes contrapostas, demandante e demandado, havendo o
processo jurídico adequado (a due process of law clause, da tradição
anglo-americana) de garantir que cada uma dessas partes deva ser chamada a dizer
de sua justiça (audiatur et altera pars)’, não é o menos que, em determinadas
situações, o tribunal não pode ficar paralisado. Disso mesmo se dá conta no
mesmo acórdão agora citado, onde se afirma:
‘Simplesmente, há situações em que o demandado não pode ser localizado, não
obstante diligências levadas a cabo pelo tribunal, nomeadamente a requerimento
do demandante (desconhecimento do domicílio; ausência do domicílio sem deixar
indicação do paradeiro, por exemplo). Ora, nos processos cíveis - normalmente
quando estão essencialmente em causa pretensões de natureza patrimonial e as
partes são, para a lei, perfeitamente iguais - o legislador tem de prever
mecanismos para evitar que o processo fique parado indefinidamente, à espera de
que o demandado seja localizado e chamado ao processo. Tratando-se de processos
de diferente natureza, por exemplo em processos de natureza penal, as
preocupações de evitar que o processo fique parado à espera de localização do
arguido levam à consagração de outros mecanismos, sendo perfeitamente
compreensível que o grau de exigência quanto a tais mecanismos seja superior,
dados os interesses em causa, nomeadamente a regra constitucional de que o
processo penal assegura todas as garantias de defesa (veja-se o instituto da
contumácia em processo penal).
Relativamente ao processo civil em especial, Trocker, autor italiano citado
várias vezes no despacho recorrido, chama a atenção para que o fenómeno da
comunicação de actos processuais às partes ou a terceiros está sempre dependente
de uma concordância prática entre princípios tendencialmente opostos, entre o
chamado princípio da ‘objectividade do direito’ e o princípio subjectivo do
conhecimento pelo destinatário. Cada ordenamento jurídico pode ou privilegiar a
necessidade subjectiva do conhecimento desses actos pelo destinatário, com
correlativo sacrifício da exigência de certeza objectiva do direito, ou optar
antes pela tutela da mera cognoscibilidade desses actos de comunicação através
de uma publicitação suficiente (por exemplo, citação ou notificação editais com
eventual ampliação dos prazos para reacção dos destinatários), sacrificando o
efectivo conhecimento subjectivo. Normalmente, cada ordem jurídica acaba por
consagrar soluções balanceadas ou de compromisso entre as lógicas extremas
destes dois princípios (0b.cit., págs. 468 e seguintes)’
Mais recentemente, aliás, no acórdão n.º 508/2002, publicado no Diário da
República, II série, de 26 de Fevereiro de 2003, o Tribunal reafirmou
expressamente a necessidade de conciliar lógicas e princípios diversos. Assim,
escreveu-se nesse acórdão:
‘[...] o legislador tem de prever mecanismos para evitar que o processo fique
parado indefinidamente, à espera de que o demandado seja localizado e chamado ao
processo». Há que conciliar e equilibrar os vários princípios e interesses em
jogo, nomeadamente os do contraditório e da referida proibição da indefesa com
aquele outro princípio da celeridade processual e ainda com os princípios da
segurança e da paz jurídica, que são valores e princípios de igual relevância e
constitucionalmente protegidos.
Bem se compreende assim que o legislador tenha, por um lado, procurado garantir
de forma rigorosa a citação da parte, a fim de prosseguir aqueles princípios do
contraditório e de acesso ao direito, na vertente da proibição da indefesa
[...]. Mas, por outro lado, a fim de salvaguardar também esses outros princípios
de estabilidade, paz e segurança jurídica, bem como a própria celeridade
processual, traçou o legislador um limite às tentativas de citação do demandado,
limite esse que se retira ou alcança da formação da convicção do julgador quanto
à impossibilidade de localização do citando. Garantido que o julgador usará de
todos os meios, e nomeadamente dos melhores meios ou daqueles que se mostrem
mais aptos para o efeito de procurar localizar o citando, uma vez essa convicção
adquirida, então há que prosseguir com o processo, e não permitir que este se
arraste indefinidamente em investigações exaustivas e infindáveis ou que as
mesmas se possam reabrir ou efectuar novamente a qualquer momento no decurso do
processo, o que poderia ter consequências desestabilizadoras e frustrar assim o
alcance da justiça. [...]’
De acordo com esta jurisprudência, é manifesto que, no caso concreto, em que
foram efectuadas todas as diligências previstas na lei – nomeadamente a consulta
das bases de dados nela citadas –, remetidas cartas não só para a morada
correspondente ao local onde alegadamente foram prestados os serviços de
construção civil geradores do crédito reclamado, mas também para todas as outras
moradas conhecidas e em que se não vislumbra, no processo, qualquer indicação de
que a recorrente tenha um qualquer outro domicílio, ponderando os princípios
referidos no acórdão transcrito, a solução legislativa em causa, tal como foi
interpretada, não ofende desproporcionadamente os direitos de defesa do
demandado.
Não se verifica, assim, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo
238º, n.º 2, do Código de Processo Civil, na interpretação que lhe foi dada nos
autos, pois foi garantido o direito de acesso aos tribunais e não houve violação
da proibição da indefesa’.
A situação ocorrida no processo de onde emergiu o recurso de
constitucionalidade que veio a ser decidido pelo aresto de que parte se encontra
transcrita, tem contornos em tudo semelhantes à dos vertentes autos. E,
justamente por isso, a fundamentação carreada a esse acórdão é inteiramente
transponível para o caso ora em apreço.
Neste contexto, haverá, também agora, que se concluir que, não
enfermando do vício de desconformidade com a Lei Fundamental o conjunto
normativo em causa e de acordo com o qual se considera efectuada a citação no
dia em que foi depositada a carta com o aviso postal simples na caixa postal do
endereço do citando, endereço esse coincidente com o local constante de todos os
resultados da consulta das bases de dados a que se refere o nº 1 do artº 238º do
Código de Processo Civil, deve ser concedido provimento ao recurso, o que se
decide, em consequência se determinando a reforma do despacho impugnado em
consonância com o juízo ora formulado sobre a questão de constitucionalidade.
Uma última nota para se sublinhar que, tendo em conta o que foi
decidido no despacho admissor do recurso e a que acima já se fez referência (no
que ora releva, ser o recurso processado em separado e com subida diferida para
momento posterior ao da conclusão da penhora), não fornecem os autos remetidos a
este Tribunal quaisquer elementos de onde se possa extrair se porventura foi
levada a efeito a citação do executado nos moldes determinados no despacho
impugnado. E, sem esses elementos, não é, sequer, equacionável, na hipótese de a
citação assim ter sido efectivada, a questão de saber se o presente recurso
ainda teria qualquer utilidade repercutível no feito”.
Da transcrita decisão reclamou o Ex.mo Representante do
Ministério Público junto deste Tribunal, o que fez por intermédio de
requerimento em que disse:-
“1º
Afigura-se que não há coincidência normativa entre o caso dos autos e a
situação dirimida através do Acórdão nº 91/04.
2º
Efectivamente, nesse processo estava em causa apenas a questão da
constitucionalidade da norma constante do artigo 238º, nº 2, do Código de
Processo Civil, na versão emergente do Decreto-Lei nº 183/2000.
3º
Pelo contrário, o presente recurso tem como objecto um amplo ‘bloco
normativo’, integrado pela generalidade das normas adjectivas que regulavam a
citação por carta simples, incluindo a que estabelece o valor da citação por via
postal simples (artigo 238º-A, nºs 2 e 4 do CPC).
4º
Tal diferença não é apenas formal, mas essencial e absolutamente
relevante: na verdade, os problemas atinentes à excessiva simplificação e
‘degradação’ do acto de citação prendem-se, por um lado, com os mecanismos de
averiguação do domicílio do réu e com o estabelecimento de presunções de que o
mesmo residirá no local que conste de determinadas bases de dados; e, por outro
lado, com o valor e efeitos que se atribuem ao mero depósito no receptáculo
postal de tal domicílio presumido da carta simples ou do aviso postal para o
respectivo levantamento – presumindo-se a efectiva recepção da carta com base em
simples declaração do funcionário dos serviços postais.
5º
Ou seja: o regime de citações simplificadas, globalmente instituído em
2000, assenta uma dupla presunção: a de que o réu reside no local referenciado
em alguma ou algumas das bases de dados a que o artigo 238º confere relevância;
e a de que o expediente postal, depositado no receptáculo postal de tal morada
presumida, foi efectivamente recebido e conhecido pelo destinatário da citação –
presunção esta assente em mera declaração do funcionário postal.
6º
Ora, no acórdão nº 91/04 – cujo objecto era integrado apenas pela norma
constante do nº 2 do artigo 238º do Código de Processo Civil – não estava
naturalmente em causa a apreciação do valor da citação por carta simples,
emergente de outra norma (que, porém, integra o objecto do presente recurso) – o
artigo 238º-A do CPC, na versão emergente do Decreto-Lei nº 183/2000.
7º
Sendo evidente que – no caso dos autos – é necessário apreciar se a
referida ‘dupla presunção’ (de domicílio no local resultante da consulta às
bases de dados e de efectivo recebimento da carta, depositada no receptáculo
postal de tal residência presumida) não fragilizará, porventura, em excesso a
posição do citando.
8º
E sendo precisamente a constatação de que essa ‘dupla presunção’ acaba
por afectar desproporcionalmente o direito de defesa do réu que terá levado o
próprio legislador, ao editar o Decreto-Lei nº 38/03, a alterar substancialmente
o regime da citação, procurando incrementar a fiabilidade do acto e acautelar
minimamente a posição do citando.
9º
Por outro lado, não pode seguramente qualificar-se como ‘simples’ a
questão que se traduz em operar uma ponderação ou balanceamento entre o
princípio constitucional da a proibição da indefesa do réu e as legítimas e
reais necessidades de celeridade e eficácia do processo – não podendo este
segundo interesse ser alcançado com um desproporcionado sacrifício da posição do
demandado, sujeito aos efeitos cominatórios da revelia sem ter tido efectiva
oportunidade de – por desconhecimento não culposo do acto da citação – exercitar
o direito de defesa.
10º
Termos em que – por a questão dos autos não coincidir com a que foi
dirimida no acórdão nº 91/04, englobando regimes normativos que aí não podiam
nem deviam ter sido apreciados – se afigura que o presente recurso obrigatório
deverá seguir a sua normal tramitação, com produção de alegações entre as
partes”.
Cumpre decidir.
2. Como transparece do requerimento corporizador da
reclamação ora em apreço, a entidade impugnante brande, essencialmente, com o
argumento segundo o qual não existe coincidência normativa entre o caso objecto
de apreciação na decisão reclamada e aqueloutro decidido pelo Acórdão nº
91/2004.
Ora, como se anotou naquela decisão, o que estava em
causa era, e tão só, o entendimento que se extraía do conjunto normativo
constituído pelos número 3 do artº 238º e nº 4 do artº 238º-A, ambos do Código
de Processo Civil na redacção emergente do Decreto-Lei nº 183/2000, de 10 de
Agosto, e da Lei nº 30-D/2000, de 20 de Dezembro, entendimento esse de harmonia
com o qual se deveria considerar efectivada a citação do demandado na data em
que foi depositado o aviso postal na caixa postal da residência do citando que
se apurara pelo resultado, todo ele coincidente, da consulta às bases de dados a
que se reporta o nº 1 do citado artº 283º.
E, sendo este, pois, o problema em análise, torna-se
evidente que a questão a apreciar in casu em nada se diferencia da que foi
curada por intermédio do Acórdão nº 91/2004, como, aliás, resulta do relato
levado a efeito na primeira parte do ponto 11 daquele aresto, transcrito na
decisão ora em crise.
A panóplia argumentativa carreada na reclamação em causa
no sentido de, na situação sub specie, se dever equacionar o estabelecimento da
denominada “dupla presunção” que decorre do regime de citação desaplicado no
despacho recorrido e, consequentemente, não se devendo perspectivar a questão
como «simples» por remessa para a jurisprudência que decorre do Acórdão nº
91/2004, não colhe. E não colhe, justamente pela circunstância de naquele
acórdão, perante a norma então em apreciação, se postar um tal equacionamento,
sendo que, indubitavelmente, o valor da citação por carta simples estava, também
ali, em causa.
Concluindo-se, pois, pela não diferença substancial
entre o caso objecto de decisão no despacho agora sob reclamação e o que foi
analisado no Acórdão nº 91/2004, e tendo em conta que esta Secção continua a
sufragar o entendimento de que o conjunto normativo apreciado naquele despacho
não enferma de desconformidade com a Constituição, indefere-se tal reclamação.
Sem custas, por não serem elas devidas pela entidade
reclamante.
Lisboa, 5 de Maio de 2005
Bravo Serra
Gil Galvão
Artur Maurício