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Processo n.º 1104/04
3.ª Secção Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência,
na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 370, foi proferida a seguinte decisão sumária :
«1. Por sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Ourique de 10 de Novembro de
2003, constante de fls. 225 e seguintes, foi A. condenado, pela prática de um crime de corrupção activa, previsto e punido pelo artigo 374º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 8 meses de prisão, sendo a sua execução suspensa, nos termos do artigo 50º, n.º 1, do mesmo diploma, por um período de 2 anos, e, pela prática de um crime de detenção ilegal de arma de defesa, previsto e punido pelo artigo 6º, com referência ao artigo 1º, al. b), da Lei n.º 22/97, de 27 de Junho, na pena de 70 dias de multa á razão diária de € 3. Inconformado, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora, tendo, nas conclusões da sua motivação afirmado, designadamente, o seguinte:
“2 – Uma vez que a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo assenta numa alegada conversa tida entre o Arguido e uma das testemunhas – cfr. Sentença, pág. 7, parágrafo 5º, manifesta clara violação do disposto no artº 129º, n.º 1, do CPP. Tendo como consequência a apontada ilegalidade, que o depoimento, nessa parte, não pode servir como meio de prova válido. Consequentemente, vai impugnado o facto provado n.º 12, pois que mais nenhuma prova foi produzida nesse sentido e clara e manifestamente tal facto resultou provado pela convicção formada por um depoimento de «ouvir dizer». Por outro lado,
3 – E ainda quanto à supra apontada ilegalidade, sempre terá que se concluir que fundamentar uma convicção sobre a existência, ou não, de uma licença (que é um documento, in casu, autêntico), em prova testemunhal, é uma violação flagrante do princípio da prova vinculada, expresso no artº 169º do CPP e artº 393, n.º 1, do Código Civil, ex vi, artº 125º do CPP. Tanto mais que, a fundamentação para a convicção do Tribunal para considerar como provado o facto n.º 16 (cfr. pág. 4,
§ 6º da Sentença), atento o que supra se refere, mais não é do que um verdadeiro atentado ao princípio constitucional da presunção de inocência, pois que na prática, trata-se de inverter o ónus da prova em processo penal, para que tivesse que ser o Arguido a provar a sua inocência – de que tinha (ainda que não no momento), ou não, a licença de uso e porte de arma, ou o certificado de registo da arma apreendida, exigidos nos termos da lei (violação dos artºs 3º, n.º 3, e 32º, n.º 2, ambos da CRP).” Por acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12 de Outubro de 2004, constante de fls. 322 e seguintes, foi negado provimento ao recurso, confirmando-se integralmente a sentença recorrida.
2. Ainda inconformado, A. veio, “nos termos da al. b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, requerer interposição de recurso para o Tribunal Constitucional”, por considerar “violadas as normas constitucionais que consagram o direito do arguido ao silêncio e da presunção de inocência”. Notificado pelo tribunal recorrido ao abrigo do disposto no artigo 75º-A da Lei n.º 28/82, o recorrente veio dizer o seguinte:
“1 – A norma que o Recorrente pretende que seja apreciada constitucionalmente, é a que consta do artigo 127º do CPP, na dimensão que considere que pode prevalecer sobre a norma constante do artigo 343º, n.º 1, do CPP, ex vi, artigo
32º, n.º 1 e 2, da CRP. Ou por outro lado,
2 – Se o entendimento de que é possível valorar prova testemunhal que se baseie naquilo que se terá ouvido dizer ao arguido (remetendo-se este ao silêncio) pode ser valorado desfavoravelmente ao arguido. Ou seja, se o artigo 127º, n.º 1, do CPP, se compadece (e prevalece) com o direito do arguido ao silêncio, resultando violada tal norma por desconformidade com o artigo 32º, n.º 1 e 2, da CRP, ex vi, artigo 343, n.º 1, do CPP.
3 – Quanto à peça processual onde se suscitou de forma expressa e mais veemente questões de inconstitucionalidade, foi, no articulado em que foram formuladas conclusões (Conclusão 3), enviado a juízo via fax em 29.03.2004. ainda assim,
4 – Considera o recorrente que, o entendimento vertido na página 21 e 22, 1º 4 do Acórdão final, proferido por esse Venerando Tribunal em 12.10.2004, configura uma manifesta «decisão surpresa», que, salvo o mui devido respeito, é violadora de normas e princípios constitucionais, em termos semelhantes aos expostos em 1 e 2 que antecede.” O recurso foi admitido, por decisão que não vincula este Tribunal (nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82).
3. Verifica-se, assim, que na sequência do referido convite formulado para completar o seu requerimento de interposição de recurso, o recorrente esclareceu que a norma que pretende seja apreciada “é a que consta do artigo 127º do CPP, na dimensão que considere que pode prevalecer sobre a norma constante do artigo
343º, n.º 1, do CPP, ex vi, artigo 32º, n.º 1 e 2, da CRP”. Sucede, porém, que antes da interposição do recurso para este Tribunal, não foi suscitada qualquer questão de constitucionalidade normativa tendo por objecto a norma do artigo 127º do Código de processo Penal. Ora é pressuposto de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta de normas interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, como é o caso, que a inconstitucionalidade haja sido “suscitada durante o processo” (artigo 70º, n.º 1, alínea b)), ou seja, colocada “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2 do artigo 72º da Lei n.º
28/82).
É certo que, como o Tribunal tem repetidamente afirmado, o recorrente pode ser dispensado do ónus de invocar a inconstitucionalidade “durante o processo” nos casos excepcionais e anómalos em que não tenha disposto processualmente dessa possibilidade, sendo então admissível a arguição em momento subsequente (cfr., a título de exemplo, os Acórdãos n.º 62/85, n.º 90/85 e n.º 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 5, págs. 497 e
663 e no Diário da República, II Série, de 28 de Maio de 1994). O recorrente afirma, aliás, que não suscitou antes a inconstitucionalidade em causa por a decisão recorrida configurar “uma manifesta «decisão surpresa»”. Mas não lhe assiste, manifestamente, qualquer razão, pois este último acórdão limitou-se a considerar que as ilegalidades invocadas não se verificavam, ao abrigo das normas invocadas pelo próprio recorrente, não confrontando este com qualquer interpretação imprevisível das mesmas, interpretação essa que o recorrente nem sequer indica.
4. Estão, portanto, reunidas as condições para que se proceda à emissão da decisão sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Assim, decide-se não tomar conhecimento do recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 ucs.»
2. Inconformado, o recorrente reclamou para a conferência, ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, pretendendo a revogação da decisão sumária.
Em seu entender, a interpretação inconstitucional com que o acórdão recorrido aplicou o artigo 127º do Código de Processo Penal foi mesmo
“absolutamente imprevisível”, ao considerar que o princípio da livre apreciação da prova “prevalece sobre o princípio constitucional do direito ao silêncio e/ou
à presunção de inocência”, tendo sido essa interpretação o “único fundamento” para considerar “válidas as ilações tiradas pelo Tribunal Judicial da Comarca de Ourique, baseadas no silêncio a que se remeteu o Arguido. Em bom rigor, o silêncio desfavoreceu mesmo o Arguido, ao ponto de se ter presumido factos dos quais mais nenhuma prova existia nos autos (que não fosse a de que ...«o arguido disse...»), fora de qualquer controlo judicial, de qualquer Magistrado do Ministério Público, ou advogado.”
Para além disso, sustenta que não é exacta a afirmação de que não indica a interpretação das normas cuja apreciação pretende, apontando para o demonstrar passagens das “conclusões” de fls. 301 e da resposta de fls. 365 e concluindo não ser “de todo correcto considerar-se, como se fez na decisão ora reclamada, que o Recorrente não chegou a indicar a interpretação que considerava que o Tribunal a quo tinha preconizado, no sentido de tornar inconstitucional as normas previstas nos artºs 127º e 129º, ambos do CPP'.
Termina observando ser excessivo o montante das custas em que o recorrente foi condenado (8 ucs), “tendo em conta, por um lado, as condições pessoais do Recorrente e que se encontram provadas nos autos; por outro, a situação económica miserável que atravessa o nosso país”.
Assim, requer que seja revogada a decisão reclamada e proferido acórdão a conhecer do recurso ou, em alternativa, que seja reduzido o montante das custas fixadas na mesma decisão.
Notificado para o efeito, o Ministério Público pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação, por não ter sido oportunamente suscitada a questão de inconstitucionalidade.
3. Com efeito, a reclamação é improcedente, pelas razões que, na decisão reclamada, foram apresentadas para justificar o não conhecimento do recurso.
Em primeiro lugar porque, tal como ali se decidiu, o ora reclamante tinha o ónus de ter suscitado oportunamente a inconstitucionalidade, e não o fez. Apenas se acrescenta que basta verificar que o objectivo que o ora reclamante pretendeu alcançar por via do recurso de constitucionalidade é o mesmo que, perante o Tribunal da Relação de Évora, quis obter com a alegação de violação do artigo 129º do Código de Processo Penal (cfr., em particular, o n.º
8.3 do acórdão recorrido).
Em segundo lugar, não pode entender-se que o ora reclamante tenha definido de forma suficiente para que o Tribunal Constitucional pudesse conhecer do recurso a “dimensão” da norma do artigo 127º do Código de Processo Penal que
“pode prevalecer sobre a norma constante do artº 343º, n.º 1, do CPP,” e que infringiria o n.º 1 do artigo 32º da Constituição. Não é, seguramente, a que o reclamante refere como “o entendimento de que é possível valorar prova testemunhal que se baseie naquilo que se terá ouvido dizer ao Arguido
(remetendo-se este ao silêncio)”, porque para obter tal norma, seria necessário incluir no objecto do recurso o artigo 129º do Código de Processo Penal – como o reclamante acaba por reconhecer na reclamação agora apresentada –, e porque uma norma assim formulada respeitaria à definição dos meios de prova admissíveis e não ao princípio segundo o qual o tribunal os aprecia. Ora o artigo 127º do Código de Processo Penal refere-se a esta última matéria.
Poder-se-ia, aliás, objectar que, se fosse possível entender que o objecto do recurso incluía o artigo 129º do Código de Processo Penal, agora acrescentado, não teria utilidade o julgamento do recurso de constitucionalidade. Com efeito, o acórdão recorrido afirma expressamente que, ainda que se entendesse não ser possível utilizar o depoimento em questão na parte em que o depoente refere ter ouvido o arguido fazer determinadas afirmações, se manteria a parte restante do depoimento, e que isso seria suficiente para manter a decisão sobre o facto que estava em causa.
4. Quanto ao montante das custas em que o ora reclamante foi condenado, cumpre dizer que o Tribunal Constitucional não pode considerar os argumentos apresentados para pedir a respectiva redução.
Em primeiro lugar, e no que toca à dificuldade do reclamante na satisfação do montante correspondente, poderia ter sido ultrapassada mediante a concessão de apoio judiciário. Em segundo lugar, e relativamente aos valores das custas em geral, há que não esquecer o carácter específico do recurso de constitucionalidade, bem como a circunstância de, em casos de não conhecimento do recurso, estar em causa a violação de regras expressamente definidas na Constituição e na lei.
Ora, cabe observar que, segundo o Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro, a taxa de justiça a aplicar nas decisões sumárias “a que se refere o n.º 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro”, será “fixada entre 2 e 10 ucs”. Ora, é manifesto, no caso concreto, por um lado, que o reclamante não cumpriu um requisito expressamente exigido para que o Tribunal Constitucional possa conhecer do recurso e, por outro, que não foram apresentados ao Tribunal elementos do quais se pudesse concluir tratar-se de um “caso excepcional”, como prevê o n.º 2 do artigo 9º do mesmo Decreto-Lei; não tem cabimento, assim, a redução da taxa de justiça.
Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso, e indefere-se o pedido de redução da taxa de justiça.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 ucs
(artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98).
Lisboa, 11 de Fevereiro de 2005
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Artur Maurício