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Processo n.º 364/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal
Constitucional,
1. A. vem reclamar para a conferência, ao abrigo do
disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), da decisão sumária do relator, de 5 de Maio de 2005, que decidira, no
uso da faculdade conferida pelo n.º 1 do mesmo preceito, não conhecer do
objecto do presente recurso.
1.1. A decisão sumária reclamada é do seguinte teor:
“1. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo
do artigo 70.º, n.º 1, alíneas a) e f), da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26
de Fevereiro (LTC), contra o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de
Abril de 2004, que rejeitou o recurso por ela interposto do acórdão do Tribunal
da Relação do Porto, de 5 de Novembro de 1993, que, por seu turno, havia negado
provimento ao recurso do acórdão do Tribunal Colectivo da Comarca de Espinho,
que a condenara, como co-autora material de um crime de tráfico de
estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 4 anos de prisão.
De acordo com o requerimento de interposição de recurso para o
Tribunal Constitucional, a que logo adicionou a respectiva motivação (fls. 1188
a 1193):
«A recorrente pretende, com o presente recurso, ver declarada a
inconstitucionalidade da norma do artigo 410.º, n.ºs 1 e 2, do Código de
Processo Penal, quando interpretada no sentido de que o Supremo Tribunal de
Justiça não tem de conhecer dos vícios da decisão em matéria de facto,
sindicando-os por força da admissão de recurso, e rejeitando a admissão,
sustentando a improcedência por ausência de poderes cognitivos.
A recorrente pretende ver, igualmente, declarada a
inconstitucionalidade da decisão recorrida, pela violação do artigo 13.º da
Constituição da República Portuguesa, já que, no âmbito de processos
diversos, o Tribunal recorrido conheceu, na interpretação dada pela
recorrente, não rejeitando, mostrando-se, assim, violado o princípio da
igualdade de todos perante a lei.
Neste termos em que deve merecer provimento o presente recurso,
Vossas Excelências, ao sufragarem o entendimento expresso pela recorrente,
declarando a inconstitucionalidade da decisão recorrida e remetendo os autos ao
Tribunal recorrido para que o mesmo conheça do recurso, Vs. Ex.as farão, como
aliás sempre fazem, Justiça.»
O recurso foi admitido pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal
de Justiça, decisão que, como é sabido, não vincula o Tribunal Constitucional
(artigo 76.º, n.º 3, da LTC). E, de facto, entende-se que, no caso, o recurso é
inadmissível, o que possibilita a prolação de decisão sumária de não
conhecimento do seu objecto, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.
2. Na motivação do recurso interposto para o Supremo Tribunal de
Justiça, a recorrente insurgiu-se fundamentalmente contra a decisão da matéria
de facto, apurada na 1.ª instância e mantida pelo Tribunal da Relação,
concluindo, com eventual relevância em sede de suscitação de questões de
inconstitucionalidade:
«X – Por não se ter logrado provar o envolvimento material da
recorrente A. é manifesto que não pode deixar de ser ilibada, senão pela
ausência de prova ao menos em nome do princípio in dubio pro reo que emana do
artigo 32.º, n.º 2, da CRP.
XI – Foi violado o artigo 32.º, n.º 2, da CRP.»
No Supremo Tribunal de Justiça, a representante do Ministério
Público, no seu visto inicial, suscitou a questão da inadmissibilidade do
recurso da recorrente, «por versar apenas matéria de facto» (artigo 432.º,
alínea d), do Código de Processo Penal).
A recorrente foi notificada para, querendo, responder à questão
suscitada, nos termos do n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal
(cfr. cota de fls. 1125 verso), tendo apresentado a resposta de fls. 1128 a
1131, concluindo:
«A. Ao contrário do que sustenta o Excelentíssimo Senhor
Procurador[-Geral] Adjunto, a decisão é recorrível, aliás nos termos do n.º 2
do artigo 410.º do Código de Processo Penal, que mesmo admitindo ser do
conhecimento oficioso não exclui a sua arguição em sede de recurso, na
motivação e conclusões.
B. Ainda que por absurdo se entendesse que a motivação e conclusões
não expressavam de forma clara a pretensão do recurso, padecendo assim de
clarividência, sempre nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 690.º do Código
de Processo Civil, ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal, deveria ser a
recorrente convidada a aperfeiçoar tal requerimento, não podendo nem devendo
por isso mesmo ser rejeitado.
C. Se dúvidas se suscitam de que o interposto recurso o é da
decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação, aclarem-se as dúvidas,
por forma a que a recorrente as desfaça, aperfeiçoando o requerimento em sede
de motivação e conclusões.
Nestes termos, porque a decisão proferida pelo Tribunal da Relação é
recorrível, aliás tal não é sequer questionado pelo Excelentíssimo Senhor
Procurador[-Geral] Adjunto, e porque é desta decisão que se recorre, e
igualmente porque suscitada a reapreciação da decisão de direito e de facto nos
limites impostos pelas disposições processuais penais, mormente as do artigo
410.º do C.P.P., tendo esse ilustre Tribunal poderes para apreciar nos termos
requeridos, deve assim improceder a pretensão do Excelentíssimo Senhor
Procurador[-Geral] adjunto, devendo os autos prosseguir para julgamento do
recurso, sem prejuízo da necessidade de aperfeiçoamento do requerimento de
recurso se for esse o entendimento avisado de Vossa Excelência Meritíssimo
Senhor Juiz Conselheiro Relator, sendo certo que, ao assim decidir, Vossa
Excelência fará como sempre inteira e merecida Justiça!»
Pelo acórdão de 21 de Abril de 2004, ora recorrido, o Supremo
Tribunal de Justiça rejeitou o recurso da recorrente, com a seguinte
fundamentação:
«Ao STJ é reservada a função de reavaliação em exclusivo da matéria
de direito, como tribunal de revista que é, nos termos do artigo 434.º e 432.º,
alínea d), do CPP, sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, n.º 2, do CPP.
Ao ressalvar-se a intromissão nos preditos vícios consagra-se aquilo
a que se apelida de recurso de revista ampliada, de cognição da insuficiência
para a decisão da matéria de facto provada, da contradição insanável da
fundamentação ao nível dos factos essenciais, de erro notório na apreciação da
prova, evidente, denotando o triunfo do profano, do juízo pelo homem comum dos
termos decisórios, sobre o jurídico, mas, ainda assim, o STJ não se divorcia da
sua primordial missão, pois seria inaceitável que, na aplicação do direito, se
deixassem persistir aqueles vícios no silogismo judiciário, porque o tribunal de
recurso tem o poder-dever de fundar a “boa decisão de direito” numa “boa
decisão de facto”, que não padeça daqueles vícios (cfr. Doutora Maria João
Antunes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 4.º, fasc. 1, págs. 118 e
segs., em anotação ao Acórdão deste STJ, de 6 de Maio de 1992, e Acórdão do STJ,
de 4 de Outubro de 2001, in Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo
Tribunal de Justiça, ano IX, tomo III, 2001, pág. 183).
O conhecimento, oficioso, de tais vícios liga o recurso à
realização da descoberta da verdade material, à teleologia da justa pena, na
conformidade do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, segundo o qual, mesmo que o recurso
seja restrito à matéria de direito, pode ele ter como fundamento, desde que
resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras
da experiência e da vida, qualquer dos elencados vícios nas diversas alíneas
daquele n.º 2.
Em contraste, o entendimento pacífico na jurisprudência deste STJ é
de que aos sujeitos processuais é vedado erigirem o seu recurso de decisão do
colectivo nos vícios descritos, porque nessa invocação estaria explícito
atropelo àquela função primordial deste STJ, enquanto tribunal de revista, e
subversão do princípio da reserva de competência exclusiva da matéria de direito
que lhe cabe e, agora, de forma mais vincada desde a Lei n.º 95/98, de 25 de
Agosto, na redacção ao artigo 432.º, n.º 2, alínea d), do CPP, aditando-lhe,
como pressuposto recursório directo para o STJ dos acórdãos finais do tribunal
colectivo, a sua incidência exclusiva sobre matéria de direito.
Titularia tal procedimento uma vinculação aprioristicamente contra
legem, a submissão deste STJ a fundamentos de recurso incorporando matéria de
facto, ao arrepio da dimensão histórica para que foi criado, introduzindo-se
naquele segmento restritivo do artigo 432.º, n.º 2, alínea d), do CPP, uma
componente libertadora da excessiva sobrecarga funcional propiciada pelo CPP
de 1987, circunscrevendo-se o recurso para o STJ aos acórdãos finais proferidos
pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame da matéria de
direito.
O recorrente há-de reclamar, em recurso, junto do Tribunal de
Relação a avaliação da solidez da matéria de facto para bem se decidir de
direito, à luz da competência-regra daquele Tribunal, firmada no artigo 428.º,
n.º 1, do CPP: conhecimento de facto, de facto e direito, para o que se lhe
confere os indispensáveis mecanismos processuais, em previsão nos artigos
412.º, n.ºs 3 e 4, 426.º, 426.º-A, 430.º e 431.º do CPP.
Ao Tribunal da Relação é-lhe deferida, por excelência, a
apreciação, em último termo, da matéria de facto.
Esgotado esse amplo conhecimento pela Relação, já é defeso ao
recorrente para o STJ, já o dissemos, reiterar o apelo a erros de julgamento
na valoração e fixação da matéria de facto, tanto sob o signo dos vícios
elencados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, quanto sob a égide da ofensa ao
princípio in dubio pro reo, havido como estranho à competência do STJ, por a
sua violação configurar não questão de direito, mas antes ser um princípio de
prova que vigora em geral, sujeita a livre valoração, salvo se através de
presunção se estabelecer o contrário – cfr. Acórdãos deste STJ, de 16 de Março
de 1994, Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de
Justiça, ano II, tomo II, pág. 183, e de 6 de Maio de 1996, Colectânea de
Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano IV, tomo II, pág.
177.
VI. O estado de dúvida em que o tribunal de 1.ª instância possa ter
sucumbido ao apreciar as provas, que valora livremente, nos termos do artigo
127.º do CPP, escapa ao poder de cognição deste STJ, cuja sindicabilidade lhe é
vedada, porque as provas não desfilaram ante si, com elas não mantendo
imediação, contacto e nem contraditoriedade, logo não podendo sobrepor-se à
livre convicção que formou, antes acatar irrestritamente.
Só excepcionalmente assim não será, podendo censurar o uso do
princípio quando dos termos da decisão resulte que o tribunal caiu num nítido
estado de dúvida e, apesar da evidência, decidiu in malem partem, contra o
arguido.
O princípio da livre apreciação da prova, entendido como esforço de
descoberta da verdade material, como tensão de objectividade, encontra assim no
princípio in dubio pro reo o seu limite normativo; ao mesmo tempo que transmite
o carácter objectivo à dúvida que acciona este último; “livre convicção e
dúvida que impedem a sua formação são a face e contraface de uma mesma
intenção”, segundo palavras de Cristina Líbano Monteiro, In Dubio Pro Reo,
Coimbra Editora, 1997, pág. 53.
VII. A estruturação formal do recurso para este STJ pela recorrente
é a reedição da argumentação para o Tribunal da Relação do Porto, impugnando a
matéria de facto, e que, no uso daquela sua competência, este último Tribunal
superior já lhe significou, afirmando que «como não se vislumbra qualquer vício
que seja de conhecimento oficioso, tem-se como definitiva essa decisão», e
assim repetirá este STJ, a quem está vedado reapreciá-la, tornando-se
intangível.
Em remate se dirá, à semelhança do Acórdão deste STJ, de 22 de Maio
de 2001, Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de
Justiça, ano IX, tomo I, pág. 259, que: “Nos recursos das decisões finais do
tribunal colectivo, o Supremo só conhece dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do
CPP, por sua própria iniciativa e nunca (sublinhado nosso) a pedido do
recorrente ...”.
O recurso da arguida é, pois, de rejeitar porque está vedado à
arguida peticionar a reponderação da matéria de facto fixada pela Relação,
tanto na óptica da sua pura modificabilidade, como na perspectiva da invocação
do princípio in dubio pro reo.
Não cabe convite à correcção da motivação como sustenta na sua
resposta, apoiando-se em jurisprudência do TC, porque não é caso de
aperfeiçoamento, a supor que as conclusões se mostram deficientes, mas mais
gravemente comportando um conteúdo que a lei veda.
A lei veda o recurso para o STJ da matéria de facto – artigo 432.º, alínea d),
do CPP – pelo que o convite à correcção é de excluir.»
3. A recorrente, como se referiu, interpôs o presente recurso com
expressa invocação das alíneas a) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Mas, como inequivocamente resulta da mera leitura do acórdão
recorrido e das passagens pertinentes da motivação do recurso da recorrente e
da sua resposta à questão suscitada pelo Ministério Público, é patente que do
acórdão recorrido não consta nenhuma recusa de aplicação de norma com fundamento
na sua inconstitucionalidade nem qualquer aplicação de norma cuja ilegalidade
houvesse sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos
referidos nas alíneas c), d) e e) do n.º 1 do citado artigo 70.º (violação, por
norma constante de acto legislativo, de lei com valor reforçado; violação, por
norma constante de diploma regional, do estatuto da região autónoma ou de lei
geral da República; e violação, por norma emanada de um órgão de soberania, do
estatuto de uma região autónoma).
Assim, é manifesto que, no caso, não cabe recurso com base nas
mencionadas alíneas a) e f).
4. A igual conclusão – inadmissibilidade do recurso – se chegaria,
mesmo que se considerasse que houve lapso da recorrente na indicação daquelas
alíneas e que ela pretenderia invocar as alíneas b) e g) do mesmo preceito.
Como é sabido, no sistema português de fiscalização de
constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional
cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões
de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas (ou a
interpretações normativas, hipótese em que o recorrente deve indicar, com
clareza e precisão, qual o sentido da interpretação que reputa
inconstitucional), e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas
directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a sua admissibilidade depende da
verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade
haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado
perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar
obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), e de a decisão
recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões
normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
A recorrente, durante o processo e designadamente na motivação do
recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e na resposta ao parecer do
Ministério Público, jamais suscitou, de modo adequado, qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa, apesar de ter disposto de oportunidade
processual para o efeito. Nessa resposta, a recorrente não suscitou, de todo,
qualquer questão de inconstitucionalidade; e naquela motivação a violação do
artigo 32.º, n.º 2, da CRP foi directamente imputada à decisão das instâncias de
fixação da matéria de facto, o que manifestamente não constitui objecto idóneo
de recurso de constitucionalidade. Por este motivo, seria inadmissível o
recurso mesmo se fundado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
E o mesmo sucederia se tivesse sido invocada a alínea g) do mesmo
preceito, uma vez que não existe – nem a recorrente a invoca – qualquer decisão
anterior do Tribunal Constitucional a julgar inconstitucional a específica
dimensão normativa aplicada, como ratio decidendi, pelo acórdão recorrido.”
1.2. A reclamação apresentada pelo recorrente contra a
decisão sumária do relator desenvolve a seguinte fundamentação:
“Salvo o devido respeito, que aliás muito o é, pelo Insigne Senhor
Juiz Conselheiro Relator, que proferiu a decisão sumária ora objecto da presente
reclamação, não podemos de todo com a mesma concordar já que, pese embora se
admita por parte da recorrente alguma imprecisão na sustentação das diversas
peças recursórias, maxime a de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, já
não é de admitir, sempre com o mais elevado respeito, que das mesmas não resulte
de forma implícita o objecto do recurso.
Na verdade,
Se se atentar a tudo quanto vertido foi nos instrumentos de recurso,
quer para o Venerando Tribunal da Relação do Porto, quer para o Supremo Tribunal
de Justiça, o que está verdadeiramente em causa e sempre esteve foi e continua a
ser a violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa,
que consagra o direito ao recurso em processo criminal, como uma garantia
fundamental do arguido.
Ora,
Que ao Supremo Tribunal de Justiça esteja cometido por princípio o
poder/dever de julgar de direito e só nos casos previstos na lei conhecer de
facto, quer se concorde, quer não se concorde, numa época em que se recorre por
tudo e por nada, aliás quase sempre por nada, até os mais indefectíveis
defensores do direito a um duplo grau de jurisdição recursiva entenderão, o que
não se entende e jamais se poderá entender é que, confinando o direito de
recurso em matéria de facto a uma única instância, no caso ao Tribunal da
Relação, este, não cumprindo a lei, não conhecendo de facto ou simplesmente
recusando conhecer de facto para além da previsão plasmada no artigo 410.º, n.º
2, do Código de Processo Penal, ou seja, recuse no fundo a reapreciação da prova
em função dos elementos constantes dos autos, assim se limitando a aderir à
fundamentação de facto da primeira instância, furtando-se a qualquer esforço de
análise dos pontos de facto cuja apreciação foi solicitada pela recorrente.
Efectivamente,
Com maior ou menor precisão, a recorrente deu suficiente satisfação
aos normativos processuais penais em sede de recurso, pelo que deste modo
caberia à Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da
decisão sobre a matéria de facto, tendo em atenção o conteúdo das alegações da
recorrente, sem prejuízo de, oficiosamente, atender a quaisquer outros
elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os
pontos da matéria de facto impugnada, artigo 712.º, n.º 2, do Código de
Processo Civil, que ora e sempre ao diante se convoca ex vi do artigo 4.º do
Código de Processo Penal.
Como refere José Lebre de Freitas, em Código de Processo Civil
Anotado, volume 3.º, 2003, «o n.º 5 [do artigo 690.º-A do CPC] estabelece o
princípio de que o Tribunal da Relação procede à audição ou visualização dos
depoimentos indicados», in pág. 54/55; «quando exista gravação dos depoimentos
prestados em audiência, a Relação vai na sua veste de tribunal de apelação,
reponderar a prova produzida em que assentou a decisão impugnada», págs. 96/97.
Foi aqui que a Relação, salvo o devido respeito, falhou, porquanto
se limitou a aderir aos fundamentos da decisão de 1.ª instância sobre a matéria
de facto, a que aditou muito judiciosas considerações teóricas sobre o valor da
prova e o princípio da livre convicção do tribunal em matéria de facto quando
estão em causa provas de livre apreciação.
Só que não era nem é disso que se trata, mas sim de, previamente,
reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, para o que
naturalmente deveria ouvir as gravações sobre os pontos impugnados e
testemunhas em referência – se outras provas ou testemunhos não entendesse
ouvir. É isso que resulta do comando do artigo 712.º, n.º 2, do Código de
Processo Civil, combinado com o do artigo 690.º-A, n.º 5, ao dizer-se que a
Relação reaprecia as provas em que assenta a parte impugnada da decisão, artigo
712.º, n.º 2, logo se acrescenta que «sem prejuízo de oficiosamente se atender a
quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à
decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados». Isto quer precisamente
dizer que a reapreciação da prova pela Relação, nos termos do artigo 712.º, n.º
1, alínea a), do CPC, tem a mesma amplitude de poderes que tem a 1.ª instância,
aliás, após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 183/2000, a reapreciação das
provas implica que o tribunal de recurso (a Relação) ouça ou visualize os
depoimentos gravados, ora, se assim o é, e é, em processo civil, por maioria de
razão o é, e é, e tem de ser, em processo penal, onde as decisões proferidas
atingem valores de maior melindre, logo a exigir, senão um maior cuidado, pelo
menos uma equidade de procedimentos em sede de decisão e reapreciação da decisão
a proferir.
Facto é que
O Tribunal da Relação, ao limitar a análise do recurso em matéria de
facto, como limitou, numa simples adesão à fundamentação da decisão de 1.ª
instância, não reapreciando como devia reapreciar os pontos concretos de prova
que sustentam a discordância da recorrente, salvo o devido respeito, que
reafirmamos muito o é pelos Venerandos Senhores Juizes Desembargadores daquele
mesmo Tribunal da Relação, limitou a sua acção a um puro acto administrativo,
confirmativo, em nome do princípio da imediação, da oralidade e da colegialidade
do douto colectivo de 1.ª instância, o mesmo é dizer, não reapreciou, não
sindicou de facto, e, não tendo sido reapreciada a prova e a matéria de facto, o
recurso interposto desta mais não foi do que um acto inútil para a recorrente, o
mesmo é dizer que de facto exerceu o direito de recurso, mas não viu ser
exercido o direito de o seu recurso ser apreciado em conformidade com a lei e a
Constituição.
Foi assim,
Que a recorrente interpôs recurso para o Supremo Tribunal de
Justiça, onde pretendia ver sindicada a decisão da Relação por esta não ter
conhecido de facto e consequentemente na prática se ver a recorrente privada de
recorrer de facto, em clara violação do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da
Constituição da República Portuguesa, e artigo 61.º, n.º 1, alínea h), do Código
de Processo Penal,
Recurso esse que foi rejeitado pelos motivos e fundamentos
constantes do douto acórdão de que se pretende recorrer, já que ao Supremo
Tribunal de Justiça está, salvo o devido respeito, cometido o poder/dever de
julgar de direito e é de direito o recurso que versa o impedimento do
julgamento da matéria de facto por parte do Tribunal recorrido, no caso, o
Tribunal da Relação.
Não podia, pois, a recorrente suscitar junto da Relação a violação
da norma do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa,
porquanto o recurso havia sido admitido, só o podendo fazer junto do Supremo
Tribunal de Justiça, como aliás o fez, sendo certo que a este competiria admitir
o recurso e ordenar a remessa do mesmo ao tribunal recorrido (Tribunal da
Relação) com vista a que este reapreciasse a prova, o mesmo é dizer, a matéria
de facto assente e a suficiência da prova em contraponto com o entendimento da
recorrente, socorrendo-se dos elementos probatórios juntos aos autos, decidindo
depois como lhe competia.
A rejeição do recurso por parte do Supremo Tribunal de Justiça
constituiu causa impeditiva para a recorrente ver reapreciada a matéria de
facto decidida em 1.ª instância, pelo que viu postergado o seu direito ao
recurso, logo violado o disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da
República Portuguesa.
Termos em que Vossas Excelências Senhores Juizes Conselheiros, ao
admitirem a presente reclamação e ao convocarem os normativos constitucionais
violados, proferindo douto acórdão onde se ordene a remessa dos autos ao
Tribunal da Relação para que este conheça de facto, farão como sempre Justiça!”
1.3. Notificado da apresentação desta reclamação, o
representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional apresentou
resposta, considerando que aquela “carece ostensivamente de fundamento”, por “as
razões apresentadas pela reclamante em nada afectarem a decisão reclamada, no
que toca à evidente inverificação dos pressupostos de admissibilidade do
recurso”.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. As considerações expendidas na reclamação da
recorrente são de todo estranhas aos fundamentos em que se alicerçou a decisão
sumária de não conhecimento do objecto do recurso.
Nessa decisão, salientou-se ser manifesta a não
verificação de qualquer das situações previstas nas alíneas a) e f) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC, invocadas no requerimento de interposição de recurso. A
reclamante nada aduz contra esta constatação.
Admitindo que a recorrente teria querido referir-se às
alíneas b) e g) do mesmo preceito, a admissibilidade de um eventual recurso com
base nesta última alínea foi afastada por não existir, nem a recorrente a
invocar, qualquer decisão anterior do Tribunal Constitucional a julgar
inconstitucional a específica dimensão normativa aplicada, como ratio
decidendi, pelo acórdão recorrido. A reclamante nada aduz contra esta
constatação.
Quanto ao hipotético recurso com base na alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a decisão sumária considerou não ter a recorrente,
durante todo o processo e especificamente perante o tribunal recorrido (o STJ),
suscitado qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, imputando, na
motivação do recurso interposto para o STJ, a violação do artigo 32.º, n.º 2, da
CRP à própria decisão judicial então recorrida (o acórdão do Tribunal da
Relação). A reclamante nada aduz contra esta constatação.
Na presente reclamação, a recorrente, para além de não
endereçar qualquer crítica aos fundamentos da decisão sumária questionada,
continua a não identificar qualquer norma (ou interpretação normativa) que
repute inconstitucional, limitando-se a imputar às decisões judiciais a violação
(agora) do n.º 1 do artigo 32.º da CRP, o que – repete-se – não constitui
objecto idóneo do recurso de constitucionalidade.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente
reclamação.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 25 de Maio de 2005
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos