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Processo n.º 308/05
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por decisão sumária de fls. 259 e seguintes, não se tomou
conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A. e
outros, pelos seguintes fundamentos:
“[...]
6. O presente recurso de constitucionalidade foi interposto ao abrigo das
alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
No que se refere à alínea f) – que prevê os recursos para o Tribunal
Constitucional das decisões judiciais que «apliquem norma cuja ilegalidade haja
sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas
alíneas c), d) e)» –, é patente que o presente recurso não preenche os
respectivos pressupostos, desde logo porque os recorrentes não suscitaram,
durante o processo, a ilegalidade de qualquer norma com fundamento em violação
de lei com valor reforçado, com fundamento em violação do estatuto de uma região
autónoma ou com fundamento em violação de lei geral da República (cfr. também o
artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional).
Na verdade, nem nas alegações que produziram junto do Tribunal Administrativo do
Círculo de Lisboa (supra, 1.), nem nas alegações que produziram no recurso para
o Supremo Tribunal Administrativo (supra, 3.), suscitaram os recorrentes a
ilegalidade de qualquer norma por qualquer desses fundamentos: nas primeiras,
limitaram-se a sustentar a ilegalidade da própria deliberação camarária
recorrida; nas segundas, limitaram-se a sustentar a ilegalidade da própria
decisão judicial recorrida (a do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa).
Não pode, assim, por falta de preenchimento dos respectivos pressupostos,
conhecer-se do objecto do presente recurso, no que diz respeito à alínea f) do
n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
7. No que se refere à alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional, considerações similares devem ser tecidas.
Na verdade, constitui pressuposto processual do recurso aí previsto a invocação
pelo recorrente, durante o processo, da inconstitucionalidade da norma cuja
conformidade constitucional pretende que o Tribunal Constitucional aprecie (cfr.
também o artigo 72º, n.º 2, da mesma Lei).
Ora, nem nas alegações que produziram junto do Tribunal Administrativo do
Círculo de Lisboa (supra, 1.), nem nas alegações que produziram no recurso para
o Supremo Tribunal Administrativo (supra, 3.), suscitaram os recorrentes a
inconstitucionalidade de qualquer norma, tendo-se limitado a sustentar a
inconstitucionalidade da deliberação camarária e a inconstitucionalidade da
decisão do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa.
Concretamente, não pode ver-se nas expressões utilizadas pelos recorrentes nas
alegações apresentadas perante o Supremo Tribunal Administrativo – a peça
processual que aqui importaria considerar, atento o disposto no artigo 72º, n.º
2, da Lei do Tribunal Constitucional – a invocação, em termos processualmente
adequados, de questões de inconstitucionalidade normativa, as únicas que ao
Tribunal Constitucional compete apreciar no âmbito dos recursos de fiscalização
concreta de constitucionalidade.
Não pode, assim, por falta de preenchimento dos respectivos pressupostos,
conhecer-se do objecto do presente recurso, no que diz respeito à alínea b) do
n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
[...].”.
2. A. e outros reclamaram para a conferência desta decisão sumária, ao
abrigo do disposto no artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional,
sustentando (fls. 274 e seguinte):
“[...]
A decisão proferida afirma que, nem nas alegações junto do Tribunal
Administrativo, nem nas alegações produzidas no recurso para o Supremo Tribunal
Administrativo, os recorrentes suscitaram a inconstitucionalidade de qualquer
norma.
Não é verdade. Como é reconhecido, a questão de inconstitucionalidade tanto pode
respeitar a norma, como a uma sua dimensão parcelar, como ainda a uma
interpretação ou sentido com que ela foi tomada no caso concreto e aplicada na
decisão recorrida. (Guilherme da Fonseca e Inês Domingos, Breviário de Direito
Processual Constitucional, 2ª edição, pág. 30 e Ac. TC aí citados).
Tal entendimento resulta do teor do n.° 3 do artigo 80° da LTC onde se prevê que
o juízo de constitucionalidade ou de legalidade se possa fundar em «determinada
interpretação da norma, devendo esta ser aplicada com tal interpretação».
Ora nas alegações apresentadas no recurso para o STA, os recorrentes
referiram-se a vários preceitos da Lei n.° 91/95, sustentando uma interpretação
conforme com o texto constitucional como a única admissível sob pena de
inconstitucionalidade dos preceitos em causa (artigos 12°, 18°, 1. d) e f), 24°,
3. c), 24°, 2. a) e 25°).
Como se decidiu no Ac. 336/95 de 22-6-1995 (DR II Série de 31-07-1995) «Tem pois
de concluir-se que o Tribunal Constitucional pode conhecer das questões de
constitucionalidade concretas sempre que imputadas pelo recorrente a uma
interpretação de uma dada norma jurídica aplicada na decisão recorrida e que foi
considerada violadora de norma ou princípio constitucional, desde que a questão
tenha sido suscitada durante o processo». E no mesmo sentido decidiu o Ac. n.°
222/95 de 26-04-1995 (DR II Série de 28-10-1995).
O Acórdão do STA apesar da sua extensão não se pronunciou sobre as questões de
constitucionalidade suscitadas. Tal não conhecimento equivale a aplicação
implícita de norma (Ac. 318/90 citado por Guilherme da Fonseca, ob. cit. pág.
44).
Nestes termos, quer porque o requerimento de interposição de recurso obedece ao
disposto no artigo 75°-A, quer porque o recurso não é manifestamente infundado,
nem a questão a decidir assume carácter simples, deverá a decisão reclamada ser
substituída por outra que decida conhecer do recurso, seguindo-se os ulteriores
termos.
[...].”.
3. A esta reclamação respondeu uma das entidades recorridas, a B.,
pugnando pelo não provimento do recurso (fls. 278 e seguintes).
A outra recorrida, a Câmara Municipal de Loures, também respondeu,
sustentando que a decisão sumária reclamada devia ser mantida (fls. 281 e
seguinte).
Cumpre apreciar.
II
4. Sustentam os reclamantes, em síntese, que contrariamente ao que se
entendeu na decisão sumária, suscitaram durante o processo questões de
inconstitucionalidade de normas, concretamente nas alegações apresentadas no
recurso para o Supremo Tribunal Administrativo (supra, 2.).
Ora, como facilmente decorre da leitura das conclusões dessas alegações (a fls.
166 e seguintes) – que a decisão sumária reclamada, aliás, reproduziu no seu
ponto 3. –, nelas não foi imputada a inconstitucionalidade a qualquer norma, ou
a qualquer norma, numa certa interpretação.
É o seguinte o teor dessas conclusões (onde se sublinharam as passagens das
quais decorre, à evidência, que os ora reclamantes se limitaram a censurar a
alegada inconstitucionalidade da decisão do Tribunal Administrativo do Círculo
de Lisboa e da deliberação camarária – que não são normas, ou normas, numa certa
interpretação):
“[...]
5. A competência para julgar os litígios emergentes de relações jurídicas
administrativas cabe, nos termos do artigo 212° da CRP aos tribunais
administrativos, tendo os tribunais comuns nos termos do artigo 211° da CRP
competência para julgar questões de direito privado, cíveis e criminais.
6. Não obstante o artigo 12° da Lei 91/95 admitir a possibilidade de impugnação
judicial das deliberações tomadas pela assembleia de proprietários, tal previsão
não exclui a garantia constitucional prevista no artigo 268°, n.° 4 da CRP de
impugnação da deliberação camarária que aprova o projecto de reconversão de uma
área urbana ilegal pelos proprietários que não votaram favoravelmente tal
projecto e com o qual não se conformam por ser lesivo dos respectivos
interesses.
7. Sendo certo que objecto da providência cautelar requerida no tribunal comum
foi a validade da deliberação dos particulares, não tendo aquele tribunal
julgado nem a legalidade intrínseca do projecto de reconversão e muito menos a
deliberação da câmara, ainda inexistente.
8. Apesar de a Lei 91/95 prever um regime excepcional de reconversão
urbanística, todo o processo administrativo conducente à deliberação camarária
final está sujeito aos princípios constitucionais vigentes em matéria de
urbanismo e ordenamento do território, nomeadamente o princípio da participação
e ponderação das expectativas legítimas dos interessados, da igualdade e justa
repartição dos benefícios e encargos, da proporcionalidade e da fundamentação
dos actos desfavoráveis (artigo 65°, n.° 5, 266°, 267°, n.° 5 e 268°, n.° 3 da
CRP).
[...]
11. A atribuição em compropriedade a cinco proprietários de três lotes quando
todos os demais foram contemplados individualmente com um lote, viola o
princípio da justa repartição dos encargos e benefícios, corolário do princípio
de justiça previsto no artigo 266° da CRP.
12. Tendo os 6°, 7° e 8° recorrentes sido prejudicados no projecto de
reconversão, com imposição de limitações às suas parcelas, que não foram
impostas aos demais proprietários, violado foi também o mesmo princípio.
13. A sentença recorrida ao considerar que a deliberação recorrida por coincidir
com o projecto de reconversão era válida, incorreu em violação do citado
princípio constitucional.
14. Tendo todos os recorrentes apresentado à câmara recorrida reclamações contra
o projecto de reconversão, a autoridade recorrida não podia proferir a
deliberação final sem se referir de forma fundamentada às pretensões dos
recorrentes.
15. Não o tendo feito, a deliberação final incorreu em vício de forma por falta
de fundamentação e vício de violação de lei por desrespeito do disposto no
artigo 24°, 3, e) da Lei 91/95.
16. E pelas mesmas razões, a deliberação recorrida violou os princípios da
participação, concertação e justiça previstos nos artigos 65°, 5, e 266°, da CRP
e nos artigos 5°, 1, d) e e) do Decreto-Lei n.° 69/90, de 2-3 (redacção dada
pelo DL 21/92, de 8-10) e no artigo 5° da Lei n.° 48/98, de 11-8.
17. A sentença recorrida não se pronunciando sobre várias das questões alegadas
nem seleccionando na matéria de facto diversos factos provados documentalmente,
incorreu ainda em nulidade por violação do disposto no artigo 668°, 1, b) e d)
do CPC.
[...].”.
Não têm, assim, razão os ora reclamantes quando impugnam a decisão
sumária por nela se ter entendido que não havia sido suscitada a
inconstitucionalidade de qualquer norma durante o processo.
Acrescente-se, por fim, que as considerações tecidas pelos
reclamantes (supra, 2.) acerca da possibilidade de o Tribunal Constitucional
sindicar, não apenas normas, mas também interpretações normativas, não afastam,
como é óbvio, tal conclusão.
É que essa possibilidade – pacificamente admitida pelo Tribunal Constitucional –
não significa que o Tribunal Constitucional possa sindicar a conformidade
constitucional de decisões judiciais ou de deliberações camarárias, ou que o
ónus a que se referem os artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do
Tribunal Constitucional se possa considerar cumprido quando, durante o processo,
apenas se suscitou a questão da inconstitucionalidade de tais decisões ou
deliberações (como sucedeu no presente caso).
Não pode, em conclusão, conhecer-se do objecto do presente recurso –
havendo, consequentemente, que manter a decisão sumária reclamada (proferida ao
abrigo do disposto no artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional,
que permite, justamente, ao relator proferir tal decisão, quando não possa
conhecer-se do objecto do recurso) –, por não estar preenchido um dos seus
pressupostos processuais: a invocação pelos recorrentes, durante o processo, da
questão da inconstitucionalidade da norma (ou interpretação normativa) que
pretendem ver apreciada pelo Tribunal Constitucional.
III
5. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, mantém-se a decisão
sumária reclamada de não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em vinte
unidades de conta.
Lisboa, 21 de Junho de 2005
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira
Rui Manuel Moura Ramos