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Processo n.º 322/02
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Por sentença de 13 de Dezembro de 2000, A. foi condenado, no Tribunal Judicial
de Guimarães, pela prática de um crime de ofensas corporais graves, previsto e
punido pelo artigo 143.º, alínea b), da versão de 1982 do Código Penal, na pena
de um ano e seis meses de prisão, tendo sido suspensa pelo período de três anos,
bem como nas custas do processo-crime.
Inconformado, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, “nos
termos do disposto nos artigos 410.º, n.º 2, 411.º e 427.º, do CPP, (...)
impugnando-se, desde logo, e igualmente, a decisão proferida sobre a matéria de
facto (art.º 412.º, n.º 3, do C.P.P.), por deficiente, contraditória e errada
apreciação da prova.”
Por acórdão de 10 de Outubro de 2001, o Tribunal da Relação do Porto decidiu
rejeitar o recurso relativo à matéria de facto e julgar totalmente improcedente
o recurso relativo à matéria de direito, e, consequentemente, confirmar a
sentença recorrida, na parte em que foi impugnada, salientando que
“(...)
2.2. Dado que as declarações prestadas oralmente em audiência foram documentadas
na acta, esta Relação conhece de facto e de direito.
Só que, no que respeita à matéria de facto, o recurso terá que ser rejeitado.
Com efeito, determina o art.º 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP:
‘3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente
deve especificar:
a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas
alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes
técnicos, havendo lugar a transcrição.’
Cabia, pois, ao recorrente não só especificar os pontos de facto que, a seu ver,
foram incorrectamente julgados, mas especificar também as provas que entendia
imporem decisão diversa da recorrida, indicando a sua localização na cassete, ou
cassetes, respectivas, e transcrevendo as passagens da gravação em que se funda.
Ora, porque não foi isso o que fez o recorrente, o recurso, na parte em que
impugna a decisão proferida sobre matéria de facto, terá, necessariamente, que
ser rejeitado.”
Após ter pretendido interpor recurso deste acórdão para o Supremo Tribunal de
Justiça – que foi rejeitado por tal recurso não ser admissível nos termos do
artigo 400.º, n.º1, alínea e), do Código de Processo Penal –, o arguido veio,
então, reclamar para o Supremo Tribunal de Justiça sustentando que o recurso é
admissível, nos seguintes termos:
“em primeiro lugar, por a interpretação que o acórdão em crise fez do artigo
412.º, n.º 4, do CPP é inconstitucional por violação das garantias de defesa do
arguido; e, em segundo lugar, o referido acórdão é nulo, nos termos do artigo
379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, tendo o despacho reclamado, ao não admitir o
recurso, violado o disposto nos art.ºs 379.º, n.º 2, do CPP, e 32.º, n.ºs 1, 2 e
9, da CRP.”
Por decisão datada de 14 de Março de 2002, o Presidente do Supremo Tribunal de
Justiça julgou improcedente a presente reclamação, considerando designadamente:
“Na hipótese em análise, está em causa um acórdão do Tribunal da Relação
referente a crime a que é aplicável pena de multa ou de prisão não superior a
cinco anos.
Nestes casos, não há possibilidade de recurso, de acordo com o disposto no art.º
400.º, n.º 1, alínea e), do CPP.
No que concerne à nulidade imputada ao acórdão da Relação não pode a mesma
fundamentar o recurso, por este não ser admissível face ao atrás dito; a existir
tal nulidade, devia a mesma ser arguida perante a Relação como resulta do art.º
379.º, n.º 2, do CPP, onde se prevêem as alternativas arguição (perante o
tribunal a quo) e conhecimento em recurso.
Quanto à invocada inconstitucionalidade pelo ora reclamante, cabe dizer o
seguinte: Após a revisão levada a efeito pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20
de Setembro, na sequência da jurisprudência do Tribunal Constitucional, o
direito ao recurso foi expressamente referenciado como uma garantia de defesa do
processo criminal, no n.º 1 do artigo 32.º da CRP.
Todavia, como o T.C. também tem sustentado, a Constituição não impõe que tenha
de haver recurso de todos os actos do juiz, como também não exige que se garanta
um triplo grau de jurisdição (cfr., por todos, os acórdãos do T.C. de 19-06-90,
BMJ, 398, p. 152, e de 19-11-96, DR, II Série, de 14-3-97).
Ora, a admitir-se recurso para este S.T.J. estar-se-ia a garantir um triplo grau
de jurisdição, o que a Constituição não impõe, por se bastar com um segundo
grau, já concretizado aquando do julgamento pela Relação.
Acrescente-se ainda que a lei não desprotege o arguido em caso de prática de
alguma nulidade, sendo a decisão irrecorrível, uma vez que lhe possibilita a sua
arguição perante o próprio tribunal que a cometeu.
Não se julga, assim, inconstitucional a norma do art.º 379.º, n.º 2, do CPP.
No que tange à inconstitucionalidade imputada ao art.º 412.º, n.º 4, do CPP não
se pode dela tomar conhecimento por tal pressupor o julgamento do recurso por
parte deste Supremo Tribunal.”
2.Inconformado com esta decisão, veio o arguido interpor o presente recurso para
o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do
Tribunal Constitucional, para apreciação
“do n.º 4 (parte final) do art.º 412.º do C.P.P., no que concerne à análise
extrapolativa que o douto Acórdão da Relação do Porto, que rejeitou o recurso
para ela interposto relativamente à matéria de facto, faz do citado n.º 4, pelo
facto de o recorrente não ter indicado a localização nas cassetes de gravação,
não obstante ter apresentado a transcrição daquelas cassetes e indicado na sua
motivação a localização exacta dos depoimentos na mesma transcrição.”
Acrescentando ainda que
“[q]uando muito impunha-se ao Venerando Tribunal convidar o recorrente a
aperfeiçoar o seu recurso, indicando então, cumulativamente, - pese embora se
entenda desnecessário – também a localização nas cassetes. Ao assim proceder o
Venerando Tribunal ‘a quo’ fez errada interpretação da norma, violando o
disposto no citado art.º 412.º, n.ºs 1, 2 e 4, do C.P.P. e no art.º 690.º-A, n.º
3, do C.P.C. (cfr. neste sentido, entre outros o Ac. n.º 288/00, de 17/05/00, do
T. Constitucional), diminuindo as garantias de defesa do arguido e violando o
art.º 32.º da C.R.P.. Pelo exposto, deve o entendimento que o Tribunal da
Relação do Porto e bem assim o Supremo Tribunal de Justiça faz do n.º 4 do art.º
412.º do C.P.P., isto é, ao exigir que o recorrente, pese embora ter indicado a
localização na transcrição, exigir-se-lhe também a localização na própria
cassete ser considerado inconstitucional.”
O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, mesmo considerando que a norma do
artigo 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal não fora aplicada na decisão da
reclamação apresentada pelo recorrente, nos termos já vistos, admitiu o recurso
“tendo em vista o princípio da ‘favorabilia amplianda’”.
Após um incidente referente à condenação em custas pelo indeferimento da
reclamação, em que o arguido invocou o direito à dispensa no pagamento de
preparos e custas nos termos dos artigos 6.º e 16.º da Lei n.º 11/89, de 1 de
Junho, foi determinada a produção de alegações.
Das 43 conclusões com que encerra a sua peça, relevam especialmente as
conclusões 4.ª a 6.ª, não podendo assumir qualquer relevo nesta sede a discussão
do modo como foi feita a aplicação das normas de direito penal relevantes, nem
sequer a imputação de inconstitucionalidade à norma da alínea b) do n.º 1 do
artigo 2.º da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio (Lei da Amnistia), por esta questão
de constitucionalidade não ter sido suscitada durante o processo, nem sequer
integrar o elenco das que foram incluídas no requerimento de interposição do
recurso de constitucionalidade. Transcrevem-se, portanto, apenas as conclusões
mais relevantes:
«4.ª - Ao Venerando Tribunal da Relação incumbia-lhe pronunciar-se sobre a
matéria de facto, submetida, via recurso, ao seu julgamento, para o que o
recorrente juntou aos autos a transcrição completa da prova gravada com 196
páginas, fazendo as adequadas referências aos depoimentos de cada uma das
testemunhas e respectivas páginas, onde constavam os depoimentos, sendo certo
que os suportes magnéticos onde cada um desses depoimentos está gravado também
se encontram juntos aos autos.
Que mais podia fazer o recorrente?
Era-lhe impossível, como é óbvio, indicar o metro ou centímetro onde se
localizava cada um desses depoimentos, sendo fácil ao Tribunal proceder à sua
audição, caso necessite e o entenda, para melhor aplicar a Justiça.
Assim é que, ao assim não proceder, o Venerando Tribunal da Relação merecerá
censura de V. Ex.as, sobre “o uso que a Relação tenha feito dos poderes
conferidos pelos art.ºs 428.° do C.P.P. e 712.° do C.P.C.”( vide, neste sentido
Ac. do STJ, de 06/11/79, in BMJ, 291, 393, e Ac. do STJ, de 09/12/82, in BMJ,
322, 321).
5.ª - Entende, pois, o recorrente que, ao juntar aos autos toda a prova gravada,
especificando os pontos, como especificou (até exaustivamente), e que a seu ver
foram incorrectamente julgados, indicando as provas que entende imporem decisão
diversa da recorrida, cumpriu o disposto no art.º 412.°, n.ºs 3 e 4, do C.P.P..
Teve, aliás, o recorrente, aquando da sua motivação, de fazer constar que juntou
a transcrição da prova c/ 196 páginas e caso o Ilustríssimo Juiz Desembargador
Relator tivesse dúvidas, para melhor poder decidir sobre a matéria de facto,
bastava-lhe proceder à audição das cassetes, como a nosso ver seria de esperar,
porque o que está em causa é saber se estamos ou não perante uma condenação
injusta. E para obviá-la, há que fazer tudo o que está ao alcance do Julgador. E
todos esses dados encontravam-se ao alcance do Tribunal recorrido.
Bastava seguir a ordem dos depoimentos.
6.ª - Todavia o Tribunal recorrido diz que, como não é indicada a localização de
cada um daqueles depoimentos ou referenda (pese embora se indicar a página da
transcrição da prova gravada, onde se encontravam), com esse fundamento,
rejeita, pura e simplesmente, o recurso sobre a matéria de facto, assim não se
fazendo a Justiça que se pretende.
Entendemos, pois, com o muito respeito que nos merece o Tribunal, ter errado o
douto Acórdão recorrido, ao rejeitar o recurso, violando o disposto nos art.ºs
379.°, n.° 1, alínea c), e 410.°, n.ºs 2 e 3, do C.P.P.»
Respondeu o recorrido considerando “correcta a interpretação que o Tribunal da
Relação do Porto atribuiu aos artigos 412.º, n.º 4, 400.º, n.º 1, alínea e), e
379.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal.”
O Ministério Público, nas suas contra-alegações, suscitou a questão prévia do
não conhecimento do recurso por entender que
“A decisão recorrida – o despacho do Ex.mo Conselheiro Presidente do Supremo
Tribunal de Justiça que indeferiu a reclamação deduzida contra o despacho de
rejeição do recurso que se pretendeu interpor para esse Tribunal – não aplicou
as normas especificadas como integrando o objecto do recurso de fiscalização
concreta, pelo que inexiste um pressuposto de admissibilidade deste.”
Em resposta a esta questão prévia, e a convite do relator, veio o recorrente
esclarecer que
“porque se suscita, no recurso em causa, fundamentalmente, a
inconstitucionalidade da interpretação que é feita pela Relação do Porto,
relativamente ao art.º 412.º, n.º 4, do C.P.P., e impossibilitou a análise e
reapreciação da prova naquela Relação, onde subiram os autos, inquinando todos
os despachos subsequentes, entende-se que o Tribunal Constitucional se deverá
pronunciar, devendo conhecer-se do recurso (…)”
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
3.O presente recurso vem interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b),
da Lei do Tribunal Constitucional, sendo indispensável, para dele se poder tomar
conhecimento, que a norma nele impugnada tenha sido aplicada, como ratio
decidendi, pela decisão recorrida. Tal norma é a do n.º 4 (parte final) do
artigo 412.º do C.P.P., interpretado no sentido de exigir, sob pena de rejeição
do recurso, que o recorrente, pese embora ter indicado a localização na
transcrição, indique também a localização na própria cassete para conhecer do
recurso em matéria de facto, sem que lhe seja dada a oportunidade de suprir tal
omissão.
Ora, começando por apreciar a questão prévia suscitada, importa, desde logo,
determinar qual é a decisão recorrida, pois não há dúvidas de que o despacho do
Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que indeferiu a reclamação deduzida
contra a decisão que rejeitou o recurso interposto para aquele Supremo Tribunal
não aplicou a norma do artigo 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal como sua
ratio decidendi, antes se tendo baseado num certo entendimento do artigo 379.º,
n.º 2, do Código de Processo Penal, quanto ao alcance das nulidade que prevê, e
dizendo, expressamente, que “[n]o que tange à inconstitucionalidade imputada ao
art.º 412.º, n.º 4, do CPP não se pode dela tomar conhecimento por tal pressupor
o julgamento do recurso por parte deste Supremo Tribunal.”
Ora, é certo que o acórdão do Tribunal da Relação, que aplicou a norma do
referido artigo 412.º, n.º 4, era ainda recorrível para este Tribunal, nos
termos do artigo 75.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, na sequência da
inviabilização do recurso intentado para o Supremo Tribunal de Justiça (através
da decisão da reclamação para o seu Presidente). Todavia, conforme resulta do
requerimento de recurso, não foi esta a decisão de que o recorrente recorreu
para o Tribunal Constitucional. Lê-se, efectivamente, nesse requerimento, que o
recorrente:
“(…) notificado do douto despacho, desse Venerando Supremo Tribunal de Justiça,
exarado a fls. 155 a 157 dos autos e não se conformando com o mesmo, dele vem
interpor o competente recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos das
disposições conjugadas dos arts. 72.º, n.º 1, al. b), e 70.º, n.º 1, als. b) e
f), da Lei n.º 28/82, de 15-09 (…).
O Recorrente, logo nas suas alegações de interposição de recurso para o STJ,
suscitou a inconstitucionalidade do n.º 4 (parte final) do art.º 412.º do
C.P.P., no que concerne à análise extrapolativa que o douto Acórdão da Relação
do Porto, que rejeitou o recurso dele interposto relativamente à matéria de
facto, faz do citado n.º 4, pelo facto de o recorrente não ter indicado a
localização nas cassetes de gravação, não obstante ter apresentado a transcrição
daquelas cassetes e indicado na sua motivação a localização exacta dos
depoimentos na mesma transcrição.
(…)
Pelo exposto deve o entendimento que o Tribunal da Relação do Porto e bem assim
o Supremo Tribunal de Justiça faz do n.º 4 do art.º 412.º do C.P.P., isto é, ao
exigir que o recorrente, pese embora ter indicado a localização na transcrição,
exigir-se-lhe também a localização na própria cassete, ser considerado
inconstitucional.” (itálicos aditados)
Posteriormente, o recorrente iniciou as suas alegações no recurso de
constitucionalidade dizendo que o
“presente recurso vem interposto do douto despacho do STJ, exarado a fls… dos
autos, indeferindo a reclamação que o recorrente fez pelo facto de o
Ilustríssimo Juiz Desembargador Relator, do Tribunal da Relação do Porto, o
qual, não tendo tomado conhecimento sobre a matéria de facto, em que o Tribunal
da 1.ª Instância de Guimarães se estribou para condenar o arguido, e,
relativamente à qual o recorrente havia interposto o competente recurso, para a
Relação, não admitiu, por sua vez, o recurso que foi interposto do douto Acórdão
da Relação, confirmativo do acórdão condenatório da 1.ª instância.” (itálicos
novamente aditados)
Pese embora a tentativa de recondução, na resposta à questão prévia suscitada
pelo Ministério Público, da questão suscitada como referente à decisão do
Tribunal da Relação do Porto, afigura-se resultar com clareza das peças
processuais indicadas – quer do requerimento de recurso, quer das alegações no
recurso de constitucionalidade – que o recorrente interpôs recurso do despacho
do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que indeferiu a reclamação.
E, assim sendo, há que concluir pela procedência da questão prévia relativa ao
não conhecimento do recurso, suscitada pelo Ministério Público nas suas
alegações, pois nesse despacho não foi aplicada a norma do artigo 412.º, n.º 4,
do Código de Processo Penal, tendo-se ele baseado apenas nas normas processuais
que tornavam inadmissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Pelo que
não pode tomar-se conhecimento do presente recurso de constitucionalidade.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não tomar
conhecimento do presente recurso de constitucionalidade e condenar o recorrente
em custas, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 22 de Junho de 2005
Paulo Mota Pinto
Maria Fernanda Palma
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos