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Processo n.º 452/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
A – Relatório
1 – A., identificado nos autos, recorre para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), pretendendo ver
sindicada a inconstitucionalidade, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da
Constituição da República Portuguesa, do artigo 147.º do Código de Processo
Penal, na interpretação segundo a qual as formalidades dele constantes não se
aplicam em audiência de julgamento.
2 – Na parte relevante para a decisão do presente problema de
constitucionalidade, consta da decisão recorrida – Acórdão do Supremo Tribunal
de Justiça de 30 de Março de 2005 – que:
«[...]
O reconhecimento em audiência dos arguidos foi um dos meios de prova de que o
tribunal se serviu para formar a sua convicção probatória - cf. fls.140 a 141,
do acórdão de 1ª instância.
E a questão de direito que o arguido suscita respeita à não observância, no
reconhecimento a que em julgamento se procedeu, do formalismo previsto no art.
147º do CPP, cuja infracção importa violação do seu direito de defesa.
Dispõe o n.º 1 do art. 147º do CPP que, no reconhecimento de qualquer pessoa,
sendo necessário, solicita-se à pessoa que deva fazer a identificação da pessoa,
a descrição completa e a indicação pormenorizada de todos os pormenores de que
se recorda; depois, se já a tinha visto e em que condições, e, por fim, sobre
outras circunstâncias que possam interferir na identificação.
De seguida, o preceito alude às dificuldades no reconhecimento, para o que
descreve a metodologia a usar, no seu n.º 2; enuncia, em sequência, o n.º 3, as
medidas a tomar quando a pessoa que identifica se sinta intimidada ou perturbada
e não seja em audiência de julgamento, para, no seu n.º 4, cominar que o
reconhecimento não vale como meio de prova, caso não obedeça ao formalismo
amplamente descrito e rigorosamente exigido.
No que à prova por reconhecimento concerne, o Ac. n.º 408/89, in Acs. do TC, 13º
Vol., II, 1147, sublinha que a sua importância e validade se projectam logo na
fase inicial do processo, pois do que se trata é de reconhecer o verdadeiro
culpado do crime; 'o reconhecimento do culpado é, por isso, de importância
decisiva e o resultado do reconhecimento pode, portanto, ser fatal para o
arguido'; 'uma vez reconhecido o erro de reconhecimento, difícil será não o
repetir na audiência de julgamento, já que ele se converteu numa realidade
psicológica para quem proceda ao reconhecimento'; 'o auto de reconhecimento da
identidade tende a merecer na prática judiciária um valor reforçado, funcionando
quase como uma presunção de culpabilidade do suspeito, pelo menos na fase
indiciária'.
A validade do acto de reconhecimento é directamente proporcional à observância
das formalidades: o acto vale assim tanto menos quanto mais seja
'heterodirigido', escreve Francesco Paola, Rigognizioni, 'Digesto delle
Discipline Penalistiche', XII, Torino, 1997, 222.
Dada a relevância prática para a formação da convicção probatória do auto de
reconhecimento e os perigos que acarreta, um reconhecimento tem que obedecer,
necessariamente, para que possa valer como meio de prova, com segurança, a um
rígido formalismo, definido no art. 147º do CPP, não valendo como meio de prova
(n.º 4), se o infringir.
Essa não valia como meio de prova é considerada, pondera o Exmo Cons.º Maia
Gonçalves, in Comentário ao CPP, ao supracitado preceito, como um 'caso pontual
de vício de inexistência'.
Este STJ tem vindo a sufragar, de forma pacífica, o entendimento segundo o qual
o reconhecimento do arguido em audiência não está sujeito ao formalismo previsto
no art. 147º, do CPP, por tal apertado formalismo se restringir às fases de
inquérito ou instrução, atenta a incompatibilidade entre as regras de
reconhecimento naquelas e no julgamento – cf. os Acs. de 11.5.2000. in CJ-STJ,
Ano VIII, T2, 190 , de 16.1.97, in Pº. n.º 54/96 - 3ª, de 1.2.96, in CJ-STJ ,
Ano IV, T1, 198, de 11.5.2000 , P.º n.º 75/2000 – 5ª Sec., 9.1.1997, P.º n.º
783/96 – 3ª, de 6.11.96 , P.º n.º 84/96 – 3ª e de 20.11.96, P.º n.º 788/96 – 3ª.
Se é possível descrever a pessoa enquanto autora do facto bem assim os
pormenores em que o depoente funda a convicção, em inquérito ou instrução, já a
reconstituição prevista nos nºs 2 e 3, do art. 147º, do CPP, é inviável, por
irrepetível, ultrapassada.
No n.º 3 do art. 147º do CPP, afirma-se que se houver razão para crer que a
pessoa chamada a fazer a identificação pode ser intimidada ou perturbada pela
efectivação do reconhecimento, e este não tiver lugar em audiência, deve o mesmo
efectuar-se, se possível, sem que aquela seja vista pelo identificando.
Donde ter de entender-se que a referência ao reconhecimento em audiência naquele
n.º 3, apenas significa a possibilidade de admissão de reconhecimento como meio
de prova, em tal fase, não havendo lugar, aí, à observância do formalismo
descrito no art. 147º, n.º 3, do CPP, na parte em que se verificar aquele clima
de perturbação.
Exprime o segmento normativo em causa que se pode lançar mão do reconhecimento
enquanto meio de prova, tanto a requerimento do interessado, como oficiosamente,
ao abrigo do art. 340º, do CPP, para a boa decisão da causa, em audiência de
julgamento, sujeito a livre valoração, nos termos do art. 127º, do CPP, por se
tratar de prova não vinculada.
A defesa, deve salientar-se, tem direito, no uso do contraditório - art. 327º,
do CPP - a pôr em crise esse meio de prova, ou seja o auto de reconhecimento,
advindo de fase processual anterior, do inquérito ou instrução, se nele não
foram respeitadas as formalidades legais, como se decidiu, recentemente, no Ac.
deste STJ, de 28.5.2003, P.º n.º 903/2002 – 3ª Sec., acessível in
http://www.dgsi.pt/jstj, onde mais uma vez se acentuou que o formalismo
processual do art. 147º, do CPP, não comporta aplicação em sede de julgamento.
O Ac. do TC, de 28.3.2001, n.º 137/01, P.º n.º 778/00, DR n.º 149, II Série, de
29/6, decidiu, de resto, ser inconstitucional, por violação do art. 32º, da CRP,
interferindo no leque dos direitos e garantias de defesa do arguido, a norma do
art. 127º, do CPP, quando interpretada no sentido de que o princípio da livre
apreciação da prova consente a valoração em julgamento, de um reconhecimento do
arguido sem observância de nenhuma das regras formais do art. 147º, do CPP,
quando o reconhecimento se faça em inquérito ou instrução.
Em julgamento procedeu-se ao reconhecimento – fls. 6172 a fls. 6182 – através da
inquirição de testemunhas (B. e C., D., E. e F.), que antes foram ouvidas pelo
sistema de videoconferência, mas que compareceram pessoalmente em audiência,
como consta da fundamentação depuseram sobre factos pertinentes à causa
decisória, factos que a defesa teve toda a liberdade de investigar e
contraditar, deixando no Colectivo, conjugadamente com outras e numerosas provas
recolhidas, uma impressão sobeja e idoneamente identificativa da autoria dos
factos por parte do arguido, sendo que só o C. e o D. o reconheceram como autor
de factos penalmente relevantes -cf. fls. 140 do acórdão de 1ª instância.
Uma interpretação reconducente das regras do art. 147º, do CPP, à fase de
inquérito e instrução, libertando da sua rigidez o Colectivo em sede de
julgamento, em nada atenta contra os direitos fundamentais de defesa do arguido,
primeiro porque já vem firmada a autoria dos factos e a sua identificação
pessoal desde a formação da culpa, apoiada nos indícios probatórios até então
recolhidos nos autos, depois, porque, não obstante essa atenuação de rigor
formal, esse meio de prova, sujeito a amplo controle em julgamento, não foi o
único em que se apoiou o Tribunal de 1ª instância para fundar a condenação,
recorrendo a outros, após a imediação com eles, de livre valoração, nos termos
do art. 127º, do CPP, não se afrontando a CRP.
Julga-se, assim, em conferência, manifestamente improcedente o recurso, que se
rejeita em conferência, o que se delibera neste STJ, nos termos dos arts. 419º,
n.º 4, a), e 420º, n.º 1, do CPP (...)».
3 – Admitido o recurso interposto, nos termos supra mencionados, para este
Tribunal, veio o Recorrente, em síntese conclusiva, sustentar que:
«(...)
1. Os reconhecimentos realizados pelo tribunal 'a quo' em audiência, não
observaram o formalismo legal imposto pelos nºs 1, 2 e 3 do art. 147º do C.P.P.,
pelo que são nulos por força do n.º 4 mesmo preceito legal;
2. O reconhecimento é um meio de prova que consiste na confirmação de uma
percepção sensorial anterior, ou seja, consiste em estabelecer a identidade
entre uma percepção sensorial anterior e outra actual da pessoa que procede ao
acto;
3. Recorre-se a este meio de prova não já para introduzir ex novo um dado
cognoscitivo, mas para confirmar um elemento de prova já admitido;
4. O cuidado que o legislador pôs na regulamentação do acto de reconhecimento
evidencia a importância e fabilidade deste meio de prova, quando não forem
tomadas as devidas precauções. Por isso que as estabelecidas na lei o são sob
pena de invalidade do reconhecimento, art. 147º, n.º 4, do C.P.P.;
5. Os actos preliminares ao reconhecimento são constituídos por um conjunto de
informações sobre a pessoa ou coisa a identificar, prestadas pela pessoa que
deva proceder ao reconhecimento para permitir apreciar da credibilidade da
identificação;
6. Assim, a pessoa que há-de proceder ao reconhecimento terá de previamente
descrever a pessoa ou coisa a reconhecer, com indicação de todos os pormenores
de que se recorda e sobre outras circunstâncias que possam influir na
credibilidade da identificação;
7. Se a identificação deixar dúvidas, a pessoa a identificar é apresentada
juntamente com pelo menos outras duas que apresentem com ela as maiores
semelhanças possíveis, inclusive de vestuário, e só então são as três ou mais
apresentadas juntamente à pessoa que procede ao reconhecimento,
perguntando-se-lhe se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual;
8. O reconhecimento só tem valia probatória desde que substancial e
formalmente se respeitem as regras de procedimento estabelecidas na lei;
9. A prova por reconhecimento é uma prova muito delicada e porque irrepetível
deve ser rodeada de cuidados especiais para assegurar a sua fiabilidade, é um
verdadeiro meio autónomo e material de prova;
10. Assim, os reconhecimentos em apreço e efectuados em audiência não
respeitaram nenhumas das características anteriormente mencionadas, as quais são
inerentes a este meio de prova e deveriam ter sido observadas pelo tribunal de
1ª instância, em respeito pelo art. 147º, n.ºs 1, 2 e 3;
11. O espírito de legislador foi dar especificidade ao reconhecimento em
audiência, nunca autonomizá-lo, visto definir sem margem para dúvidas como se
realiza um reconhecimento;
12. É do entendimento do ora recorrente que o n.º 3 do art. 147º do C.P.P., não
é mais do que uma especificidade para o reconhecimento em audiência e por
razões, mas já vem desde os n.ºs 1 e 2 deste mesmo artigo, as condições
rigorosas em que o reconhecimento deve ser realizado e que devem ser observados
mesmo no reconhecimento em audiência, sob pena do efeito previsto no n.º 4, a
nulidade e nenhum valor como prova;
13. O artigo 147º, n.º 1, prevê um reconhecimento intelectual, a informação
sobre anterior identificação e em que condições do visado, outras circunstâncias
que possam influir na credibilidade da identificação, o n.º 2 prevê um
reconhecimento físico, o n.º 3 uma garantia da realização idónea do meio de
prova em apreço, com a especificidade para situações em audiência, e por fim o
n.º 4 prevê a consequência do desrespeito dos números anteriores;
14. A estrutura do preceito legal em questão tem razão de ser. Se o legislador
tivesse a intenção de autonomizar o reconhecimento em audiência tê-lo-ia
certamente feito, em abono do princípio da investigação e da verdade material e
não recorreria ao artigo 127º do C.P.P.
15. O recorrente arguiu a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 147º
do C.P.P. que estabelece que este se não aplica aos reconhecimentos em audiência
- a qual consta da motivação do recurso que tempestivamente apresentou no
decurso da audiência.
16. Donde que, uma garantia de defesa tal relevante que a sua pretensão resulta
da sua invalidade como prova, não é aplicada no momento crucial e mais nobre do
processo criminal que é a audiência de julgamento.
17. Assim sendo, violou-se o artigo 32º, n.º 1, da C.R.P., porquanto esta
garantia de defesa (os exigentes requisitos da realização desta diligência
probatória são uma garantia de defesa) existem no processo criminal e não são
aplicadas quando o cidadão mais dele necessita.
Nestes termos, o Acórdão do S.T.J. recorrido interpretou o artigo 147º, nºs 1, 2
e 3, do C.P.P: com violação do artigo 32º do C.R.P., descurando-se assim uma das
mais elementares garantias de defesa dos cidadãos pelo que o presente recurso é
efectuado ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional (...)».
4 – Por seu turno, o Representante do Ministério Público, pugnando
pela improcedência do recurso, concluiu que:
«(...)
1 - Não é exigência constitucional que os requisitos para a validação de prova
obtida através de determinados meios legalmente previstos, tenham que
necessariamente ser os mesmos em todas as fases do processo.
2 - Vigorando na sua plenitude, na fase da audiência, o princípio do
contraditório é através do seu efectivo exercício, que a defesa do arguido pode
questionar o seu reconhecimento por parte de uma testemunha, feito nessa fase,
não estando o mesmo sujeito aos requisitos estabelecidos no artigo 147º do CPP,
apenas válidos para as fases preliminares do inquérito e de instrução.
3 - Não viola a Constituição, designadamente a norma do n.º 1 do seu artigo 32º,
uma interpretação normativa do artigo 147º do Código do Processo Penal, que
exclua da proibição de prova estabelecido no n.º 4, o reconhecimento feito por
uma testemunha em audiência de julgamento, sem a verificação dos requisitos aí
contemplados.
(...)».
Cumpre decidir.
B – Fundamentação
5 – Objecto do recurso e parâmetros constitucionais.
5.1 – Considerado de per se – no seu preciso teor
semântico-gramatical –, o artigo 147.º do Código de Processo Penal (CPP),
integrado no seu Livro III (Da prova), como um 'dos meios de prova' legalmente
previstos, dispõe, sob a epígrafe 'Reconhecimento de pessoas', que:
'(...)
1. Quando houver necessidade de proceder ao reconhecimento de
qualquer pessoa, solicita-se à pessoa que deva fazer a identificação que a
descreva, com indicação de todos os pormenores de que se recorda. Em seguida,
é-lhe perguntado se já a tinha visto antes e em que condições. Por último, é
interrogada sobre outras circunstâncias que possam influir na credibilidade da
identificação.
2. Se a identificação não for cabal, afasta-se quem dever proceder a
ela e chamam-se pelo menos duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças
possíveis, inclusive de vestuário, com a pessoa a identificar. Esta última é
colocada ao lado delas, devendo, se possível, apresentar-se nas mesmas condições
em que poderia ter sido vista pela pessoa que procede ao reconhecimento. Esta é
então chamada e perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso
afirmativo, qual.
3. Se houver razão para crer que a pessoa chamada a fazer a
identificação pode ser intimidada ou perturbada pela efectivação do
reconhecimento e este não tiver lugar em audiência, deve o mesmo efectuar-se, se
possível, sem que aquela pessoa seja vista pelo identificando.
4. O reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não
tem valor como meio de prova'.
Tal como consta do requerimento de interposição de recurso, este vem delimitado
em torno do critério normativo de acordo com o qual não se aplicam aos
“reconhecimentos” produzidos em audiência as formalidades previstas nos n.os 1,
2 e 3 do artigo 147.º do CPP, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da
Constituição.
5.2 – Sob a epígrafe 'garantias de processo criminal', o parâmetro
constitucional relevante – artigo 32.º, n.º 1, da Constituição – dispõe que:
'(...)
1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa,
incluindo o recurso.
(...)'.
6 – Da prova por 'reconhecimento' e das garantia(s) de defesa
6.1 – Começando por considerar, a título meramente propedêutico, os
fundamentos normativos que se encontram na base do juízo firmado pelo Supremo
Tribunal de Justiça, importará reter que a decisão recorrida não se afasta da
anterior jurisprudência desse Tribunal segundo a qual 'o formalismo indicado
[no] artigo 147.º para a prova por reconhecimento não se aplica na fase de
julgamento', 'atenta a incompatibilidade entre as regras de tal reconhecimento e
as que presidem à tramitação processual da audiência de julgamento',
justificando-se a valoração de tais reconhecimentos com base na ideia de não
estarem abrangidos por uma proibição directa da lei e de se integrarem no
contexto de um meio de prova expressamente previsto – a prova testemunhal – onde
é possível o exercício do contraditório (cf., inter alia, os Acórdãos do Supremo
Tribunal de Justiça de 22 de Setembro de 1994, de 1 de Fevereiro de 1996, de 2
de Outubro de 1996, de 9 de Janeiro de 1997 e de 11 de Maio de 2000, disponíveis
em www.dgsi.pt).
Como a delimitação dos poderes cognoscitivos do Tribunal
Constitucional não está, no nosso sistema de justiça constitucional, delineada
em torno da concepção do recurso de constitucionalidade como sendo um recurso de
amparo jurisdicional, não cabe a este Tribunal sindicar o mérito jurídico da
decisão recorrida sob a óptica de saber se aí vem assumido o 'melhor direito',
mas apenas sindicar a bondade constitucional do critério assumido como ratio
decidendi do juízo decisório em termos de saber se o seu sentido
jurídico-normativo resvala, ou não, para a esfera do 'não direito', enquanto
norma não tolerada pela lei fundamental.
Apenas disso se tratará, pois.
6.2 – Este Tribunal já se pronunciou, no seu Acórdão n.º 137/01,
publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 49º vol., p. 537, sobre a
questão da (in)conformidade com a Lei fundamental da norma aqui em causa, num
contexto de aplicação na fase do inquérito, tendo, aí, julgado
'inconstitucional, por violação das garantias de defesa do arguido, consagradas
no n.º 1 do artigo 32º da Constituição, a norma constante do artigo 127º do
Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de admitir que o
princípio da livre apreciação da prova permite a valoração, em julgamento, de um
reconhecimento do arguido realizado sem a observância de nenhuma das regras
definidas pelo artigo 147º do Código de Processo Penal'.
Estribou-se esse juízo na seguinte argumentação:
«(...)
Ora, se, em termos gerais, 'a salvaguarda da rectidão das decisões
judiciais há-de encontrar-se no respeito por princípios jurídicos fundamentais
de prova' (CAVALEIRO DE FERREIRA, Curso de Processo Penal, II, reimp., Lisboa,
1981), a observância de regras básicas que garantam a fidedignidade do acto de
reconhecimento é pressuposto da atribuição de valor como meio de prova a tal
reconhecimento. 'A validade do acto de reconhecimento é directamente
proporcional à observância das formalidades: o acto vale assim tanto menos
quanto mais ‘seja hetero-dirigido’' (FRANCESCO M. PAOLA, Ricognizioni, in
'Digesto delle Discipline Penalistiche', XII, Torino, 1997, pág. 222).
Referindo-se ao artigo 243º do Código de Processo Penal anterior, o
acórdão n.º 408/89 (que julgou inconstitucional a norma que permitia 'a
realização de actos de reconhecimento do arguido sem a presença do juiz',
publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13º vol., tomo II, págs. 1147
e segs.) pronunciou-se nos seguintes termos sobre o acto de reconhecimento:
'A importância do acto de reconhecimento decorre logo e patentemente da
frase inicial deste preceito: ‘se houver dúvida sobre a pessoa do culpado
[...]’. Do que se trata é pois de reconhecer no arguido o responsável pelo crime
que lhe é imputado. O ‘reconhecimento do culpado’ é, por isso, de importância
decisiva e o resultado do reconhecimento pode, portanto, ser fatal para o
arguido.
É por isso que a lei rodeia tal acto de certas cautelas, que a doutrina
sublinha e sistematiza num conjunto de regras práticas a observar como condições
de genuinidade e seriedade do acto. Entre essas conta-se a regra de que a pessoa
a ser sujeita a reconhecimento deve ser apresentada no meio de outras e a regra
de que essas pessoas devem ser o mais possível semelhantes à pessoa a reconhecer
(...).
Compreendem-se estas cautelas. Elas visam minorar os perigos ínsitos em
todo o reconhecimento da identidade. (...)
E, uma vez cometido o erro de reconhecimento, difícil será não o repetir
na audiência de julgamento, já que ele se converteu numa realidade psicológica
para quem procedeu ao reconhecimento. (...)
Embora submetido ao princípio da livre apreciação da prova, o auto de
reconhecimento da identidade do arguido tende a merecer, na prática judiciária,
um valor probatório reforçado, funcionando quase como uma presunção de
culpabilidade do suspeito, pelo menos na fase indiciária'.
Em suma, dada a relevância que na prática assume para a formação da
convicção do tribunal, e os perigos que a sua utilização acarreta, um
reconhecimento tem necessariamente que obedecer, para que possa valer como meio
de prova em sede de julgamento, a um mínimo de regras que assegurem a
autenticidade e a fiabilidade do acto.
Dir-se-á que nem todas as regras definidas como condição de
admissibilidade da prova por reconhecimento assumem a mesma relevância. A
verdade, todavia, é que se não torna necessário proceder a nenhuma distinção,
porque a norma aplicada no caso presente as considerou, a todas, desnecessárias.
Deste modo, é claramente lesivo do direito de defesa do arguido,
consagrado no n.º 1 do artigo 32º da Constituição, interpretar o artigo 127º do
Código de Processo Penal no sentido de que o princípio da livre apreciação da
prova permite valorar, em julgamento, um acto de reconhecimento realizado sem a
observância de nenhuma das regras previstas no artigo 147º do mesmo diploma».
Tais reflexões merecem ser acompanhadas, no que tange à importância
que os requisitos presentes no artigo 147.º do Código de Processo Penal assumem
ao nível de um reconhecimento idóneo e congruente com a afirmação do(s)
direito(s) de defesa do arguido, sendo, todavia, estranhas ao momento de
imputação ao arguido que a testemunha, porventura, faça na prestação do seu
depoimento.
Vejamos.
6.3 – Como refere Germano Marques da Silva (cf. Curso de Processo Penal, II.
volume, Lisboa, 1999, p. 174), 'o reconhecimento é um meio de prova que consiste
na confirmação de uma percepção sensorial anterior, ou seja, consiste em
estabelecer a identidade entre uma percepção sensorial anterior e outra actual
da pessoa que procede ao acto'.
Este meio probatório, como vem sendo dogmaticamente assumido, representa um acto
de 'extraordinária importância' (cf. – apud Nicola Triggiani, 'La ricognizione
personale: struttura ed efficacia', in Rivista italiana di diritto e procedura
penale, 1996, fasc. 2-3, p. 730, n. 8; G. Foschini, Sistema del diritto
processuale penale, vol. II, 1, La istruzione, Milão, 1961, p. 79), por estar
dotado de 'uma grandíssima força impressionística' (C. Taormina, Diritto
processuale penale, vol. II, Turim, p. 543).
Em face desta sua 'elevada eficácia de convencimento' ou de 'intensa eficácia
persuasiva' (cf. Alberto Medina de Seiça, 'Legalidade da prova e reconhecimentos
'atípicos' em processo penal: notas à margem de jurisprudência (quase)
constante', in Aa. Vv. - organização de Manuel da Costa Andrade et alii - Liber
disciplinorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra, 2003, p. 1400), ele pode
assumir, na concreta valoração do probatório disponível, um peso determinante do
juízo penal.
Tal entendimento não deixa de ser potenciado – ou, mais impressivamente,
confirmado, no plano da sua aplicação prática – pelo juízo de necessidade
probatória que o determina e que, naturalmente, reconduz este meio de prova para
um campo onde a imputação penal subjectiva não está, em absoluto, totalmente
esclarecida, acabando, assim, por actuar, primordialmente, nos casos onde
'surjam dúvidas relativas à individualização de uma determinada pessoa' (cf.
Nicola Triggiani, 'La ricognizione personale: struttura ed efficacia', cit., p.
731, nta 10, com outras indicações doutrinais).
Também Eduardo de Urbano Castrillo/Miguel Ángel Torres Morato (La prueba ilícita
penal, 3.ª ed., Madrid, 1999, p. 113) referem a operatividade desta prova 'só
quando existem dúvidas de identidade'.
E, entre nós, Alberto Medina de Seiça ('Legalidade da prova e reconhecimentos
'atípicos' em processo penal..., cit., p. 1398), debruçando-se sobre o papel
desta prova ao nível da identificação, não deixa de concluir que o contexto
normal do reconhecimento se verifica durante a investigação.
Por outro lado, também, não é menos verdade que a prova por reconhecimento, pela
sua dependência de inúmeros factores subjectivos, não deixa de assumir uma
questão de 'extraordinária delicadeza' – resultante do 'perigo de erro agravado
(...) pelo fácil sugestionamento de que pode ser vítima a pessoa que deve
realizar o reconhecimento' (cf. G. Foschini, Sistema del diritto processuale
penale, cit., p. 79).
Dada a estrutura intrínseca do 'juízo de identidade entre uma percepção presente
e uma passada' (a expressão de Altavilla é mencionada por Daniela Vigoni, 'La
ricognizione personale', in Rivista italiana di diritto e procedura penale,
1985, fasc.1, p. 172), a sua realização deve envolver especiais cautelas
funcionalizadas a garantir a sua integridade e a fornecer ao juiz uma
possibilidade de controlo, judicante da realização e dos resultados decorrentes
da mobilização deste meio de prova.
Assim, reconhecendo que esta prova assenta numa 'modalidade muito particular de
reconstrução mnemónica do passado', particularmente sensível a 'múltiplos
factores de distorção e engano que ocorrem ao longo de todo o itinerário da
cognição, da memorização e da evocação' e que, por isso, se presta a
'curtos-circuitos' de sensações racionalmente insondáveis' (cf. Alberto Medina
de Seiça, 'Legalidade da prova e reconhecimentos 'atípicos' em processo
penal..., cit., pp.1397 e 1413 e ss.), torna-se necessário fazer acompanhar este
meio probatório de um leque de garantias que concorram para reduzir os riscos de
erro e que possibilitem um mínimo de objectivação sindicável no âmbito de um
processo marcadamente subjectivo, sendo nesse contexto que deve compreender-se a
necessidade de acentuar uma regulamentação minuciosa da actividade preliminar ao
reconhecimento, como forma de afastar a marcada desconfiança perante a
atendibilidade dos resultados deste meio de prova e a exigência de assegurar na
maior medida possível o respeito das regras destinadas a evitar resultados
influenciados e preconstituídos– assim se reflectiu em Itália, a propósito do
sentido das incontornáveis 'formalidades' inerentes à 'ricognizione,' na
Relazione al progetto preliminare del codice di procedura penale [de 1988]
(texto mencionado por Nicola Triggiani, 'La ricognizione personale: struttura ed
efficacia', cit., p. 730).
Ora, os requisitos constantes do artigo 147.º do Código de Processo
Penal mais não são do que a concretização dessas exigências, assumindo-se como
condições de validade do próprio reconhecimento.
De facto, quando a norma prevê que, havendo lugar ao reconhecimento
se deve solicitar 'à pessoa que deva fazer a identificação que a descreva, com
indicação de todos os pormenores de que se recorda', sendo-lhe, em seguida,
'perguntado se já a tinha visto antes e em que condições', está a estabelecer um
procedimento que, para além de um funcionalmente adequado 'trazer à lembrança',
permite introduzir uma válvula de segurança – que, em bom rigor, sempre será uma
segurança 'insegura' – de controlo da credibilidade do reconhecimento e, como
consequência disso, da sua efectiva atendibilidade, sendo, de resto, manifesta
uma tal finalidade de controlo quando a lei prevê que o sujeito activo do
reconhecimento seja interrogado 'sobre outras circunstâncias que possam influir
na credibilidade da identificação'.
Como refere Daniela Vigoni ('La ricognizione personale', cit., p.
174), a propósito da previsão paralela do Codice di Procedura Penale (art.
213.º), 'a descrição preventiva da pessoa a reconhecer pelo sujeito activo é
motivada pelo facto de que, por um lado, a sua realização pode contribuir para
graduar a atendibilidade do reconhecimento sucessivo, e, por outro lado, permite
a realização da própria experiência recognitiva'.
Só assim se poderá 'verificar se a pessoa chamada a efectuar o
reconhecimento faz, na sua declaração, uma efectiva referência à pessoa a
reconhecer' (cf., com mais indicações, Nicola Triggiani, 'La ricognizione
personale: struttura ed efficacia', cit., p. 734) e se tal 'imputação' é
condicionada por factores potencialmente distorsivos da 'imagem' evocada.
Nessa medida, ainda que uma 'identificação' inconcludente não seja determinante
da impossibilidade do reconhecimento – posto que 'não é suficiente conservar uma
imagem, é necessário evocá-la mentalmente para a poder descrever e poucos
sujeitos disporão de tal capacidade re-evocativa' (cf., apud Nicola Triggiani,
'La ricognizione personale: struttura ed efficacia', cit., p. 734, e Daniela
Vigoni, 'La ricognizione personale', cit., p. 174, Altavilla, Il riconoscimento
e la ricognizione delle persone e delle cose, Roma, 1934, pp. 30 e ss.) –, o
cumprimento dos requisitos constantes do artigo 147.º, n.º 1, do Código de
Processo Penal sempre permitirá que o juiz exerça um controlo mínimo das
condições – e condicionantes – da projecção subjectiva do 'fantasma mnemónico'
evocado pelo sujeito activo do reconhecimento e, assim, possa valorar, com
alguma objectividade, a eficácia probatória do reconhecimento, que, sempre,
deverá depender de uma avaliação sobre a 'capacidade do declarante se subtrair a
fenómenos de auto ou heterosugestão' (cf., apud Nicola Triggiani, 'La
ricognizione personale: struttura ed efficacia', cit., p. 739, E. Fortuna-S.
Dragone, 'Le prove', in Aa. Vv., Manuale pratico del nuovo processo penale,
Pádua, 1995, p. 369).
De resto, a este nível, será da maior relevância que o juiz se possa
inteirar de todas 'as circunstâncias que possam influir na credibilidade da
identificação', tendo em conta as condições realísticas em que o sujeito activo
foi confrontado com o sujeito a reconhecer.
Só assim se poderá colocar o juiz a par do processo
mnemónico-evocativo do sujeito activo do reconhecimento, pressuposta a
impossibilidade material do julgador se colocar 'por dentro' dessa
reconstituição.
Mutatis mutandis, o mesmo se passa quando a identificação efectuada
ex vi do artigo 147.º, n.º 1, do Código de Processo Penal 'não for cabal' e for
necessário 'confrontar' a pessoa que procede ao reconhecimento com o sujeito a
reconhecer.
Também, nesse caso, ainda que tratando-se de um operador
subsidiário, é manifesto que os critérios operativos plasmados no n.º 2 da norma
sindicanda estão preordenados a garantir, na medida do possível, a 'neutralidade
psíquica' do sujeito activo e a 'garantir a atendibilidade do resultado
probatório', pretendendo evitar-se, com o cumprimento desses requisitos, meras
'situações formais que façam [invariavelmente] convergir a escolha sobre o
imputado' (cf. Silvia Priori, 'La ricognizione di persona: cosa suggerisce la
ricerca psicologica', in Diritto penale e processo, fasc. 10, 2003, pp. 1284 e
ss.).
Trata-se, no fundo, de tentar reduzir 'um dos mais fortes factores de distorção
dos actos recognitivos que decorre do facto de quem é chamado a reconhecer,
sobretudo, num ambiente de tensão, sentir-se constrangido a identificar
positivamente alguém – o chamado yes effect' (cf. Alberto Medina de Seiça,
'Legalidade da prova e reconhecimentos 'atípicos' em processo penal..., cit., p.
1418, n. 91; sobre o yes effect, v. também Silvia Priori, 'La ricognizione di
persona: cosa suggerisce la ricerca psicologica', cit., pp. 1284 e ss.; em
geral, sobre o sentido dos requisitos procedimentais do reconhecimento, com
amplas indicações bibliográficas, cf. Nicola Triggiani, 'La ricognizione
personale: struttura ed efficacia', cit., pp. 743 e ss.).
6.4 – Após o que vem de dizer-se, compreender-se-ão as razões pelas quais o
cumprimento dos requisitos constantes do artigo 147.º do Código de Processo
Penal pode influenciar o juízo acerca da idoneidade deste meio probatório, mesmo
quando usado em audiência de julgamento, no plano do reconhecimento
constitucional das garantias de defesa do arguido.
De facto, como sustenta Alberto Medina de Seiça ('Legalidade da
prova e reconhecimentos 'atípicos' em processo penal..., cit., p. 1416), os
critérios procedimentais previstos para a realização do reconhecimento não podem
deixar de ser vistos como 'standards mínimos de validade da informação obtida
que, embora não eliminem as limitações inerentes a este tipo de acto
cognoscitivo-declarativo, permitem, de todo o modo, reduzi-las a patamares
considerados aceitáveis' (cf., neste mesmo sentido, M. Simas Santos e M.
Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, I volume, Lisboa, 2003, p.
789, que, em anotação ao artigo 147.º da lei processual penal, reconhecem que
'todo este procedimento dá especiais garantias quanto à validade do
reconhecimento e acentua o carácter autónomo e material' desse meio probatório).
Ademais, cumpre a este propósito evidenciar que, em bom rigor –
melhor se dirá, em face da sua natureza intrínseca –, o acto de reconhecimento,
em sentido estrito, na sua inerente dimensão recognitiva, sempre 'escapa a um
efectivo controle' (cf. Alberto Medina de Seiça, 'Legalidade da prova e
reconhecimentos 'atípicos' em processo penal..., cit., p. 1415), sendo, por
isso, insusceptível de um verdadeiro contraditório em juízo.
Nessa medida, se a mnemónica descodificação subjectiva é, na essência,
insindicável, não pode deixar de reconhecer-se a ineliminável necessidade de
introduzir, na realização desta prova, um certo grau de objectividade que
permita ter em conta, na valoração do reconhecimento, uma diversidade de
factores potencialmente distorsivos dessa descodificação, de modo a reduzir-se o
'ruído' causado por mensagens interferentes no processo evocativo.
A isso obriga a especificidade da reconstrução mnemónica que é pedida no domínio
do reconhecimento e, principaliter, a necessidade do tribunal acompanhar a
reconstrução do iter recognitivo, sondando, como instância de controlo da
idoneidade e da validade do material probatório, as circunstâncias susceptíveis
de determinar a integralidade do acto de reconhecimento.
Assim sendo, o não cumprimento dos requisitos coetâneos ao acto do
reconhecimento pode acabar por conduzir à impossibilidade do juiz sindicar as
variáveis condicionantes da imputação efectuada e de relevar os seus possíveis
factores distorsivos.
Na linha do exposto, compreende-se a reduzida valia de uma intervenção post
factum que seja estranha – porque posterior – ao acto de reconhecimento em
sentido estrito, como seja a possibilidade de 'contra-interrogar' o sujeito
activo do reconhecimento.
Na verdade, o reconhecimento, enquanto reconstrução e evocação de uma
experiência sensitiva passada, implica uma analepse interior do sujeito activo
do reconhecimento e uma projecção, temporalmente desfasada, de um retrato
anterior.
Ora, nesse quadro, só se garantirá um mínimo de objectividade sindicável se o
juiz puder estabelecer um confronto 'contraditório' com base nos elementos que
resultem da exteriorização dessa memória passada revivida em juízo, sendo que o
controlo dessa evocação será sempre reforçado quando se dirija ao momento
temporalmente relevante da aquisição da percepção.
Assim sendo, não deve, congruentemente, ter-se juridicamente por asséptica a
ordem de cumprimento dos requisitos constantes do artigo 147º, relegando-se para
um plano subsidiário o reconhecimento entre outras pessoas (previsto no n.º 2),
dado que este, isolado de per se, apenas tem como factor de controlo a
existência de outras possíveis escolhas (nisto se esgotando a (im)possibilidade
de 'contra-prova'), não se podendo por ele avaliar, inter alia, as
características da pessoa a reconhecer ao tempo da aquisição da 'informação' e
confrontar o sujeito activo do reconhecimento com esses dados, de molde a
garantir um convencimento mínimo da correspondência do reconhecido à pessoa a
reconhecer.
Além do mais, como já se aflorou, as razões essenciais, que, do ponto de vista
legislativo, concorrem para a modelação normativa deste específico meio
probatório, não deixam, também, de concorrer para justificar a pertinência dos
mencionados critérios.
De facto, tais cautelas apenas se compreendem num ambiente de dúvida e de
incerteza quanto à imputação subjectiva, situações para as quais o
reconhecimento está finalisticamente preordenado.
Por isso, este meio de prova não pode confundir-se, na sua essência, com a prova
testemunhal e com o juízo de imputação subjectiva que neste domínio seja
efectuado.
Não há dúvida de que entre a 'prova por reconhecimento' e a 'prova testemunhal'
existem diversos 'pontos de contacto' (cf. Nicola Triggiani, 'La ricognizione
personale: struttura ed efficacia', cit., p. 775 e Massimo Ceresa Gastaldo, 'La
ricognizione personale 'attiva' all’esame della Corte Costituzionale: facoltà di
astenzione o incompatibilità del coimputato', in Rivista italiana di diritto e
procedura penale, 1, 1995, p. 264).
Desde logo, pode dizer-se que um testemunho, enquanto 'juízo' de imputação
fáctica, implica sempre um 'reconhecimento' de um determinado sujeito – recte,
uma individualização concretizadora ou um acto de identificação directa [cf.
Nicola Triggiani, 'La ricognizione personale: struttura ed efficacia', cit., p.
773, n. 173; v. também Daniela Vigoni, 'La ricognizione personale', cit., p.
183; Giovanni Conso/Vittorio Grevi, Commentario breve al Nuovo Codice di
Procedura Penale, Pádua, 1994, pp. 213 e ss.; Tommaso Rafaraci, 'Ricognizione
informale dell'imputato e (pretesa) fungibilità delle forme probatorie' – nota
a Cass. sez. II pen. 28 febbraio 1997 – in Cassazione Penale, n.º 6, 1998, pp.
1739-1747].
Contudo, não podem olvidar-se as diferenças qualitativo-funcionais entre estes
dois domínios probatórios.
Desde logo, importa ter presente o pressuposto específico – que autonomiza o
reconhecimento e o erige como meio de prova – traduzido num inequívoco juízo de
necessidade, direccionado, como se disse, ao esclarecimento de uma situação de
incerteza subjectiva, em termos de a ele se recorrer apenas 'quando houver
necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa' (v. Alberto Medina
de Seiça, 'Legalidade da prova e reconhecimentos 'atípicos' em processo
penal..., cit., p. 1413).
E se este juízo permite distinguir a valoração autónoma deste meio de prova
daqueloutra relativa à prova testemunhal qua tale, também não é menos verdade
que, por ele, se devem circunscrever à esfera da prova testemunhal os
'reconhecimentos testemunhais', onde não se autonomize e onde não releve a
necessidade de esclarecimento de uma qualquer situação de incerteza quanto à
autoria dos factos e à identificação do agente.
De facto, a identificação subjacente a um depoimento testemunhal esgota a sua
eficácia – e a possibilidade de o juiz o valorar – no âmbito de um meio
probatório não direccionado ao reconhecimento de uma pessoa e, assim, qualquer
'individualização' ou 'reconhecimento' – em sentido impróprio, diga-se – que aí
se faça não pode deixar de ter como pressuposto uma situação de determinação
subjectiva, e, por isso, só poderá ser valorada dentro da esfera probatória de
onde emerge – a prova testemunhal –, não lhe podendo ser reconhecido um valor
probatório autónomo e separado.
Ou seja, por outras palavras, não estando implicada na produção e valoração
deste meio de prova uma necessidade de se afastar uma situação de incerteza
quanto à identificação de um sujeito, a funcionalidade e a finalidade inerentes
a um acto de 'reconhecimento' – de imputação – que se produza neste contexto
terá sempre uma função exógena da que é cumprida pelo reconhecimento em sentido
próprio – v. g. aferir da credibilidade e consistência do depoimento –, não
podendo aquele ser autonomamente valorado para responder às situações onde se
justifique a autonomização de um verdadeiro acto de reconhecimento.
Diferenciadas serão já aqueloutras situações onde se torne
necessário proceder ao reconhecimento de pessoas.
Na verdade, havendo que dirimir-se um problema de (in)determinação subjectiva –
e recorde-se aqui a especificidade da reconstrução mnemónica que se preside ao
acto de reconhecimento, já evidenciada supra, nas suas diferenças em face da
construção lógico-narrativa que marca um depoimento testemunhal, comportando
aquele uma bem maior margem de aleatoriedade pela inevitável presença de
factores emotivos e pela sua difícil controlabilidade (cf. Nicola Triggiani, 'La
ricognizione personale: struttura ed efficacia', cit., p. 729; sobre as
diferenças ao nível do discurso evocativo, v., inter alia, Tommaso Rafaraci,
'Ricognizione informale dell'imputato e (pretesa) fungibilità delle forme
probatorie', cit., pp. 1740 e ss.; Alberto Medina de Seiça, 'Legalidade da prova
e reconhecimentos 'atípicos' em processo penal..., cit., pp. 1413 e ss.) –, não
poderão deixar de ser adoptados critérios adequados a um 'objectivo' judicar da
'incontrolabilidade da (...) validade gnoseológica' emergente do reconhecimento
qua tale como forma de lhe garantir um mínimo de idoneidade probatória.
Referindo-se ao problema da fungibilidade das provas, e situando-se nesta linha,
Alberto Medina de Seiça ('Legalidade da prova e reconhecimentos 'atípicos' em
processo penal..., cit., p. 1410 e ss., esp.te 1413) considera que – pressuposta
a necessidade efectiva da identificação e como 'a admissibilidade dos meios de
prova pressupõe a sua necessidade' e 'esta necessidade impõe não só que sejam
admitidos como não sejam substituídos por outras formas probatórias que, embora
previstas e disponíveis, não apresentam a mesma capacidade de esclarecimento ou
a mesma garantia de fiabilidade' –, 'não é legítimo considerar como testemunho
um reconhecimento que não cumpre os cânones previstos no artigo 147º', pelo que,
quando tal necessidade se verificar, 'surge o dever de produzir a prova
prescrita pelo legislador como a mais idónea para o esclarecimento desse
concreto tipo de enunciado, na medida em que nela se condensa um conjunto de
regras que a lei, findada na experiência histórica e nos contributos das
ciências empíricas, considera como standards mínimos da fiabilidade dessa
prova'.
6.5 – Tendo em consideração o pano de fundo exposto que espelha a
diversidade dos interesses jurídicos aqui em causa, cumpre agora confrontá-lo,
no caso sub judicio, com o critério normativo que constituiu a ratio essendi da
decisão recorrida.
Perscrutando na 'história' dos concretos “reconhecimentos”
efectuados nos autos – e no que importa para o presente recurso de
constitucionalidade – qual o critério normativo que presidiu à sua efectivação,
verifica-se que se efectuou, sempre, uma interpretação do artigo 147.º do Código
de Processo Penal no sentido de considerar inaplicável à fase de julgamento a
metodologia nele prevista quando “já vem firmada a autoria dos factos e a sua
identificação pessoal desde a formação de culpa” e se está perante uma imputação
de factos ao arguido, que responde em audiência de julgamento, efectuada no
quadro da prestação do depoimento da testemunha.
O acórdão recorrido recorta o relato dos factos feito pelas
testemunhas que depuseram em audiência de julgamento, na parte em que o mesmo
envolve a imputação ao arguido, com base na percepção directa que deles tiveram,
da autoria dos mesmos factos como consubstanciando ainda um acto de
“reconhecimento” abarcado pelo tipo legal de meios de prova definido no art.º
147º do CPP, embora não sujeito a todas as regras de procedimento aí enunciadas,
valorando esse acto como sendo um meio probatório de livre apreciação pelo
tribunal, mas distinguindo entre a credibilidade a conferir aos depoimentos e o
relevo probatório a dar-lhe dentro de uma consideração conjugada com as outras
provas produzidas em audiência, na perspectiva funcional da formação da
convicção do tribunal sobre a autoria pelo arguido dos factos dados por
provados, penalmente relevantes.
É este o sentido o acórdão quando discorre do seguinte jeito:
“Em julgamento procedeu-se ao reconhecimento – fls. 6172 a fls. 6182
– através da inquirição de testemunhas (B. e C., D., E. e F.), que antes foram
ouvidas pelo sistema de videoconferência, mas que compareceram pessoalmente em
audiência, como consta da fundamentação depuseram sobre factos pertinentes à
causa decisória, factos que a defesa teve toda a liberdade de investigar e
contraditar, deixando no Colectivo, conjugadamente com outras e numerosas provas
recolhidas, uma impressão sobeja e idoneamente identificativa da autoria dos
factos por parte do arguido, sendo que só o C. e o D. o reconheceram como autor
de factos penalmente relevantes - cf. fls. 140 do acórdão de 1ª instância.
Uma interpretação reconducente das regras do art. 147º, do CPP, à fase de
inquérito e instrução, libertando da sua rigidez o Colectivo em sede de
julgamento, em nada atenta contra os direitos fundamentais de defesa do arguido,
primeiro porque já vem firmada a autoria dos factos e a sua identificação
pessoal desde a formação da culpa, apoiada nos indícios probatórios até então
recolhidos nos autos, depois, porque, não obstante essa atenuação de rigor
formal, esse meio de prova, sujeito a amplo controle em julgamento, não foi o
único em que se apoiou o Tribunal de 1ª instância para fundar a condenação,
recorrendo a outros, após a imediação com eles, de livre valoração, nos termos
do art. 127º, do CPP, não se afrontando a CRP”.
Ora, é bom de ver que, conquanto o acórdão recorrido haja
qualificado os momentos dos depoimentos das testemunhas – prestados em audiência
de julgamento e em que estas subjectivaram, referindo-a ao arguido, a prática
dos factos cujo conhecimento fundaram na sua percepção sensorial – como
traduzindo um acto (meio de prova) de “reconhecimento”, o certo é que não podem
eles ser havidos enquanto corporizando substancialmente o meio de prova regulado
no artigo 147º do CPP.
Se a testemunha que depõe em audiência de julgamento, tendo na sua
frente certa pessoa na posição de arguido, lhe assaca a prática de certos
factos, contextualizados espácio-temporalmente, a questão posta ao tribunal não
é a de saber qual é a pessoa, dentre várias, a quem os factos constantes da
pronúncia podem ser atribuídos, que corresponde à representação recognitiva e
mnemónica retida pela testemunha, mas a de saber se a imputação feita nesse
depoimento a essa concreta pessoa é ou não credível, segundo o princípio da
livre apreciação da prova testemunhal.
Em causa não está, pois, saber qual é a identidade da pessoa que corresponde à
imagem que a testemunha sensorizou como sendo o autor dos factos que relata, mas
sim a de saber se a subjectivação que faz relativamente ao arguido se revela
capaz, dentro da apreciação crítica de todas as provas produzidas em julgamento,
de fundar a convicção do tribunal.
Assim sendo, nada impede o Tribunal de 'confrontar' uma testemunha com um
determinado sujeito para aferir da consistência do juízo de imputação de factos
quando não seja necessário proceder ao reconhecimento da pessoa, circunstância
em que não haverá um autêntico reconhecimento, dissociado do relato da
testemunha, e em que a individualização efectuada – não tem o valor de algo que
não é: o de um reconhecimento da pessoa do arguido como correspondendo ao
retrato mnemónico gravado na memória da testemunha e de cuja equivalência o
tribunal, dentro do processo de apreciação crítica das provas, saia convencido.
Diferente – mas que não ocorreu nos autos – é a situação processual que ocorre
quando, pressuposta que seja a necessidade de reconhecimento da pessoa, tida
como possível autora dos factos, se coloca o identificante na posição de ter
precisar, entre várias pessoas colocadas anonimamente na sua presença, quem é
que corresponde ao retrato mnemónico por ele retido.
Aqui desenvolve-se um específico meio de conhecimento de factos – meio de prova
– cujo fim é apenas o de apurar a identidade da pessoa que corresponde àquele
retrato.
Só neste caso é que, no plano da conformação dos meios legais de prova, o
reconhecimento, tem um valor autónomo de prova, não sendo legítimo fundir tal
valor probatório no domínio da prova testemunhal para, (in)dependentemente
disso, libertar a prova por reconhecimento das amarras credenciadoras da sua
adequada obtenção, mesmo que produzido em julgamento.
In casu, como se relatou, não foi efectuado pelas testemunhas
qualquer acto processual autónomo do da prestação do seu depoimento que esteja
legalmente funcionalizado para poder dar a conhecer se, entre várias pessoas de
identidade desconhecida, entre as quais o arguido se contaria, a imagem
mnemónica retida pelo identificante incidiria sobre este.
Em rectas contas, não se trata de situação que se ajuste ao meio de
prova conformado no art.º 147º do CPP, designado de reconhecimento, mas
simplesmente de uma atribuição dos factos expostos no depoimento da testemunha a
certa pessoa ou pessoas, sendo de notar que na dinâmica dos acontecimentos podem
estar “em cena” não só o arguido (possível sujeito passivo do reconhecimento)
mas também outras pessoas intervenientes no processo, como ofendidos e outras
testemunhas.
Tal imputação integra-se, assim, no meio de prova testemunhal, tendo
o valor probatório que legalmente lhe está atribuído (livre apreciação).
A circunstância de o tribunal, ao fundamentar a sua convicção, cindir, na
valoração do meio de prova testemunhal, o momento de imputação do da ponderação
do depoimento, na sua totalidade, e em conjugação com os demais meios de prova,
não equivale a atribuir a essa imputação um valor autónomo de prova,
correspondendo antes a uma atitude de fazer realçar os diferentes aspectos do
depoimento que se revelaram decisivos, dentro da apreciação crítica das provas,
para a formação da sua convicção.
De qualquer modo, a circunstância de a realidade processualmente
acontecida haver sido subsumida pelo acórdão recorrido a um certo entendimento
do art.º 147º do CPP – simpliciter, o de o acto da testemunha não estar sujeito
ao cumprimento de todas as regras consubstanciadoras dos standards mínimos
legais que suportam a fiabilidade daquele meio de prova – não constitui óbice a
que o Tribunal Constitucional possa conhecer se a substancialidade do meio
impropriamente denominado de reconhecimento e qualificado dentro de tal preceito
legal, mas em rigor correspondente a prova testemunhal, ofende o princípio da
plenitude das garantias de defesa consagrado no art.º 32º, n.º 1, da
Constituição.
Ora, vigorando na fase da audiência de julgamento, na sua plenitude,
o princípio do contraditório, não pode deixar de entender-se que o arguido pode
questionar todos os elementos de facto que sejam evidenciados pela testemunha
como razão de ciência da imputação feita ao arguido, bem como a correcção da sua
prognose recognitiva.
E visto nesta dimensão, o impropriamente denominado acto de
“reconhecimento” não viola a referida norma constitucional ou qualquer outra.
C – Decisão
Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) não julgar inconstitucional o 147º, nos 1 e 2, do Código de Processo
Penal, na interpretação segundo a qual quando, em audiência de julgamento, a
testemunha, na prestação do seu depoimento, imputa os factos que relata ao
arguido, a identificação do arguido efectuada nesse depoimento não está sujeita
às formalidades estabelecidas em tal preceito;
b) negar provimento ao recurso;
c) condenar o recorrente nas custas, fixando a procuradoria em 20 Ucs.
Lisboa, 25 de Agosto de 2005
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos