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Processo n.º 701/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam, em conferência, na 2ª secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, com o n.º 701/12, foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido nos presentes autos em 3 de julho de 2012.
2. Pela decisão sumária n.º 515/12 decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto, com os seguintes fundamentos:
“1. Nos presentes autos, por Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido em 3 de julho de 2012, foi negado provimento ao recurso e confirmada a sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Almeida que condenou a arguida e ora recorrente A. pela prática de três crimes de injúria previstos e punidos pelos artigos 181.º, n.º 1, e 182.º, do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à razão diária de € 5,00 (cinco euros), por cada um dos crimes e, em cúmulo jurídico, na pena única de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), perfazendo a quantia de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros), bem como a pagar à demandante, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de € 700,00 (setecentos euros), acrescida de juros moratórios vencidos, desde a data da notificação do pedido cível, e de juros vincendos até integral pagamento.
2. Inconformada, a arguida A. interpôs recurso para este Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
«A., recorrente no processo supra, notificada do Acórdão, deste interpõe recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do n.º1 do artigo 70.º da Lei 28/82 de 15 de novembro, redação atual.
O recurso sobre em imediato e nos próprios autos, tendo efeito suspensivo.
A norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende que o Tribunal aprecie: artigo 127.º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de permitir a fundamentação de fls. 168, que pura e simplesmente dispensa a demonstração do facto de ter sido a Recorrente a utilizar o telemóvel in casu para enviar as mensagens dos autos à assistente.
A indicação da norma ou princípio constitucional ou legal que se considera violado: princípio da presunção de inocência consignado no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
A peça processual em que a Recorrente suscitou a questão de inconstitucionalidade ou ilegalidade: alegações de recurso apresentado neste Tribunal da Relação de Coimbra. (…)”.
3. O recurso foi subsequentemente admitido.
(...)
4. Sabido que a decisão que admitiu o recurso não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional) e, entendendo-se que, no caso em apreço, o recurso não é admissível, cumpre proferir decisão sumária, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da mesma lei.
5. No sistema português, os recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade têm necessariamente objeto normativo, devendo incidir sobre a apreciação da constitucionalidade de normas ou interpretações normativas, e não sobre a apreciação de alegadas inconstitucionalidades imputadas pelo recorrente às decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Nas palavras do Acórdão nº 138/2006 (acessível, como os demais referidos, em www.tribunalconstitucional.pt), a «distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada diretamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adoção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com caráter de generalidade, e, por isso, suscetível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto».
Daí que, quando se pretenda questionar a constitucionalidade de uma dada interpretação normativa, é indispensável que a parte identifique essa interpretação com o mínimo de precisão, não sendo idóneo, para esse efeito, o uso de fórmulas como «na interpretação dada pela decisão recorrida» ou similares. Com efeito, segundo jurisprudência pacífica deste Tribunal e utilizando a formulação do Acórdão n.º 367/94, «esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão, em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito, ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, desse modo, afrontar a Constituição».
Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, como ocorre no presente caso, a jurisprudência constitucional vem entendendo, de modo reiterado e uniforme, que é pressuposto específico deste tipo de recurso que a questão de inconstitucionalidade haja sido suscitada «durante o processo» e «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da Lei do Tribunal Constitucional), além da efetiva aplicação da norma ou interpretação normativa, em termos de a mesma constituir ratio decidendi ou fundamento jurídico da decisão proferida no caso concreto, e do esgotamento dos recursos ordinários que no caso cabiam.
6. No caso presente, como decorre do requerimento de interposição de recurso, a recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade constitucional do artigo 127.º do Código de Processo Penal quando interpretado no sentido de permitir a fundamentação de fls. 168, que pura e simplesmente dispensa a demonstração do facto de ter sido a recorrente a utilizar o telemóvel in casu para enviar as mensagens dos autos à assistente.
Ora, resulta claramente, quer do requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, quer da motivação do recurso que foi interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra, que a recorrente não suscita qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
7. Desde logo, o modo como foi fixado o objeto do presente recurso, em sede de requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, demonstra, à evidência, a ausência de dimensão normativa, não tendo a recorrente identificado, com o mínimo de precisão, qualquer interpretação normativa erigida em critério de decisão, abstratamente enunciado e vocacionado para uma aplicação potencialmente genérica. Ao invés, ao referir que a fundamentação da decisão de facto de fls. 168, que alegadamente dispensa a demonstração do facto de ter sido a recorrente a utilizar o telemóvel in casu para enviar as mensagens dos autos à assistente, viola o princípio da presunção de inocência, ressalta que a recorrente se limita a colocar em crise a própria decisão judicial, mais precisamente a decisão de valoração das provas, enquanto ponderação concreta e casuística das circunstâncias próprias e específicas do caso concreto, que não cabe ao Tribunal Constitucional sindicar.
8. Acresce que a recorrente não suscitou, perante o tribunal recorrido, de forma processualmente adequada, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, jamais tendo especificado qual a interpretação normativa do artigo 127.º do Código de Processo Penal que seria inconstitucional de modo a que o tribunal recorrido ficasse obrigado a dela conhecer. De facto, se atentarmos nas conclusões da motivação do recurso da recorrente para o Tribunal da Relação de Coimbra, onde se faz menção ao artigo 32.º da Constituição - conclusões 3ª a 10ª – verifica-se que a recorrente imputa diretamente a violação do princípio constitucional à própria atividade judicial de valoração da prova, i.e., ao ato de julgamento, em si mesmo considerado, indissociável das especificidades próprias e irrepetíveis do caso concreto.
9. Face ao exposto, ausente o pressuposto de colocação de questão normativa, como exigido pela alínea b) do n.º 1 do art.º 70.º da LTC, o recurso não pode ser conhecido”.
3. Inconformada, a recorrente reclamou da decisão sumária para a conferência, com os seguintes fundamentos:
“O artigo 127.º do Código de Processo Penal consagra o princípio da livre apreciação da prova, opinião comum, direito constitucional concretizado;
Ora, opinião comum outrossim, os princípios distinguem-se das regras, além do mais, na medida dos métodos de subsunção e de ponderação;
Assim, no ora relevante, salvo devido respeito,
A Recorrente questiona, como questionou, a constitucionalidade de determinada aplicação normativa, qual seja:
- a inconstitucionalidade do indicado artigo 127.º quando a aplicação do mesmo conduza (como sucede in casu, bem assim e entendido, na condenação vertente) à desnecessidade da demonstração do facto de ter sido a Recorrente a utilizar o telemóvel para enviar as mensagens dos Autos à Assistente;
Destarte, a Recorrente questiona a constitucionalidade de determinada aplicação normativa com um mínimo de precisão, salvo o devido respeito, a todas as luzes.
De resto, a Recorrente, ora Reclamante, não coloca em crise a decisão recorrida com base exclusivamente numa mera questão de discordância face à matéria fáctica dada como provada – fá-lo suscitando a postergação de um princípio ou regra fundamental em matéria de prova, indicando as legais consequências.
Assim, observados que estão os formalismos legais da interposição de recurso do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra para o Tribunal Constitucional, deve proceder esta reclamação, devendo o recurso interposto para este Tribunal ser admitido, notificando-se a Reclamante para apresentar as suas alegações, fazendo-se Justiça!”.
4. Notificado, o Ministério Público tomou posição no sentido da improcedência da reclamação.
Cumpre decidir.
II. Fundamentação
5. Como decorre da transcrição supra, a decisão sumária reclamada fundou-se na ausência de colocação de questão normativa e, adicionalmente, na omissão do ónus de prévia suscitação, perante o Tribunal a quo, em termos deste dela estar obrigado a conhecer, de questão de constitucionalidade dirigida ao preceituado no artigo 127.º do Código de Processo Penal ou a uma sua interpretação normativa.
6. Na reclamação apresentada, a recorrente limita-se a dizer que questionou a “inconstitucionalidade do indicado artigo 127.º quando a aplicação do mesmo conduza (como sucede in casu, bem assim e entendido, na condenação vertente) à desnecessidade da demonstração do facto de ter sido a Recorrente a utilizar o telemóvel para enviar as mensagens dos Autos à Assistente”.
7. Ora, essa formulação constitui exemplo acabado de questão colimada à decisão recorrida enquanto ato de julgamento, indissociável das circunstâncias concretas do caso. Trata-se, como se diz na decisão sumária, de questionar a decisão de valoração das provas e não qualquer critério normativo, o que ainda fica mais patente dos termos da reclamação, na medida em que se esclarece que o objeto do recurso de constitucionalidade visa a discussão da “postergação de princípio ou regra fundamental em matéria de prova”, ou seja, a discussão infraconstitucional sobre a procedência do juízo de prova formulado pelo Tribunal a quo.
8. Face ao exposto, porque não se mostram verificadas razões para alterar a decisão sumária, cumpre concluir pelo indeferimento da reclamação e pelo não conhecimento do recurso.
III. Decisão
9. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e confirmar a decisão sumária n.º 515/12.
10. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, tendo em atenção os critérios seguidos por este Tribunal e a dimensão do impulso desenvolvido pelo reclamante.
Notifique.
Lisboa, 9 de janeiro de 2013. – Fernando Vaz ventura – Pedro Machete – Joaquim de Sousa Ribeiro.