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Processo n.º 893/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
(Conselheira Maria Fernanda Palma)
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 14 de Junho de 2005, negou
provimento ao recurso interposto por A. do acórdão proferido, em 21 de Outubro
de 2004, pelo Tribunal Central Administrativo Sul, que, por sua vez, tinha
negado provimento ao recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário
de Estado dos Assuntos Fiscais, de 13 de Dezembro de 1999, que lhe aplicou a
pena disciplinar de perda de pensão de aposentação pelo período de três anos.
A. interpôs então recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto
na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC),
visando a apreciação da constitucionalidade da norma constante do artigo 15.º,
n.º 2, do Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro (Estatuto Disciplinar dos
Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local), por violação
do “Princípio da Dignidade Humana, tal como resulta dos artigos 1.º e 63.º, bem
como o direito à Segurança Social dos arts. 59.º e 72.º da Constituição da
República Portuguesa”.
O recorrente suscitou a questão de constitucionalidade logo na interposição do
recurso contencioso, mas fê-lo, igualmente, nas alegações de recurso perante o
Supremo Tribunal Administrativo, tendo afirmado, em conclusão, o seguinte:
«O n.º 2 do art. 5.° do Estatuto Disciplinar padece de inconstitucionalidade
material, pois priva o funcionário aposentado da totalidade da sua pensão mensal
por um largo período de tempo, em violação manifesta e intolerável do Direito à
Segurança Social e aos Princípios do Estado de Direito Democrático e Social e da
Tutela da Dignidade da Pessoa Humana plasmados na Constituição da República
Portuguesa!»
O Supremo Tribunal Administrativo abordou a referida questão de
constitucionalidade nos seguintes termos:
«Dispõe o art. 15.°, n.º 2, do Estatuto disciplinar: “1. Para os funcionários e
agentes aposentados as penas de suspensão ou inactividade serão substituídas
pela perda da pensão por igual tempo de multa, e a de multa não poderá exceder o
quantitativo correspondente a 20 dias de pensão. 2. A pena de aposentação
compulsiva será substituída pela perda do direito à pensão pelo período de 3
anos”.
O arguido entende que este dispositivo, que foi aplicado no seu caso, é
inconstituciona1, por violação do princípio da dignidade humana e do disposto
nos artigos 63.°, 59.° e 72.° da Constituição, uma vez que equivale na prática à
negação do direito à Segurança Social. Invoca a seu favor um Acórdão do Tribunal
constitucional que declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral
do art. 824.°, n.ºs 1, b), e 2, do C.P.Civil, na parte em que permite a penhora
até um terço das prestações periódicas, pagas ao executado ... a título de
regalia social ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao salário
mínimo nacional”.
A argumentação do Tribunal Constitucional foi a seguinte: “Este preceito
constitucional, como se escreveu no Acórdão n.° 349/91 (in Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 19° Vol., pág. 515), ‘poderá, desde logo, ser interpretado como
garantindo a todo o cidadão a percepção de uma prestação proveniente do sistema
de segurança social que lhe possibilite uma subsistência condigna em todas as
situações de doença, velhice ou outras semelhantes. Mas ainda que não possa
ver-se garantido no artigo 63.° da Lei Fundamental um direito a um mínimo de
sobrevivência, é seguro que este direito há‑de extrair-se do princípio da
dignidade da pessoa humana condensado no artigo 1.° da Constituição’ (cf.
Acórdão nº 232/91, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19.° vol., pág. 341).
Pode, assim, configurar-se um conflito de direitos, entre o direito do credor à
realização rápida do pagamento do seu crédito e o direito do devedor e
pensionista da Segurança Social ou do Estado à percepção de uma pensão que lhe
garanta o mínimo de subsistência condigna com a sua dignidade de pessoa.
Existindo o referido conflito, o legislador não pode deixar de garantir a tutela
do valor supremo da dignidade da pessoa humana – vector axiológico estrutural da
própria Constituição – sacrificando o direito do credor na parte que for
absolutamente necessária – e que pode ir até à totalidade desse direito – por
forma a não deixar que o pagamento ao credor decorra o aniquilamento da mera
subsistência do devedor e pensionista. Essencial se torna, pois, a realização de
um balanceamento, da utilização de uma adequada proporção na repartição ‘dos
custos do conflito’ (cf. J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na
Constituição Portuguesa de 1976, Almedina, 1987, pág. 233). Em consequência,
será constitucionalmente aceitável o sacrifício do direito do credor, se o mesmo
for necessário e adequado à garantia do direito à existência do devedor com um
mínimo de dignidade (...). É certo que o legislador admite a penhora até 1/3 dos
salários auferidos pelo executado, mesmo de salários não superiores ao salário
mínimo nacional, tal como admite a penhora de idêntica parte das prestações
periódicas recebidas a título de pensão de aposentação ou pensão social, sem
qualquer limitação expressa decorrente do respectivo montante. Porém, assim como
o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica
estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela
sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o ‘mínimo
dos mínimos’ não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o
motivo, assim também, uma pensão por invalidez, doença, velhice ou viuvez, cujo
montante não seja superior ao salário mínimo nacional não pode deixar de conter
em si a ideia de que a sua atribuição corresponde ao montante mínimo considerado
necessário para uma subsistência digna do respectivo beneficiário. Em tais
hipóteses, o encurtamento através da penhora, mesmo de uma parte dessas pensões
– parte essa que em outras circunstâncias seria perfeitamente razoável, como no
caso de pensões de valor bem acima do salário mínimo nacional –, constitui um
sacrifício excessivo e desproporcionado do direito do devedor e pensionista, na
medida em que este vê o seu nível de subsistência básico descer abaixo do mínimo
considerado necessário para uma existência com a dignidade humana que a
Constituição garante. Nestes termos, considera-se que a norma do artigo 824.°,
n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, na medida em que permite a penhora até
1/3 quer de vencimentos ou salários auferidos pelo executado, quando estes são
de valor não superior ao salário mínimo nacional em vigor naquele momento, quer
de pensões de aposentação ou de pensões sociais por doença, velhice, invalidez e
viuvez, cujo valor não alcança aquele mínimo remuneratório, é inconstitucional
por violação do princípio da dignidade humana, decorrente do princípio do Estado
de direito, constante das disposições conjugadas dos artigos 1.º, 59.°, n.º 2,
alínea a), e 63.°, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa”.
No Acórdão 62/02, proferido no recurso 251/01, em 6 de Fevereiro de 2001, o
Tribunal Constitucional considerou também “inconstitucional por violação do
princípio da Dignidade Humana contido no princípio do Estado de Direito, tal
como resulta das disposições conjugadas dos artigos 1.º e 63.º n.ºs 1 e 3, da
Constituição da República, os artigos 821.º, n.º 1 e 824.º, n.º 1, alínea b) e
n.º 2 do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual são
penhoráveis as quantias percebidas a título de rendimento mínimo garantido”.
Julgamos que o art. 15.°, n.º 2, não põe em causa o direito à segurança social,
ou o princípio da Dignidade Humana.
Como se disse nos acórdãos do Tribunal constitucional citados, há (ou pode
haver) uma tensão ou conflito entre os diversos direitos constitucionalmente
protegidos. Para a solução de tais conflitos é essencial a realização de um
balanceamento da utilização de uma adequada proporção na repartição “dos custos
do conflito”. Em consequência, isto é, na justa repartição dos custos conclui o
acórdão, será constitucionalmente aceitável o sacrifício do direito do credor,
se o mesmo for necessário e adequado à garantia do direito à existência do
devedor com um mínimo de dignidade.
Também será aceitável constitucionalmente o sacrifício do poder disciplinar,
quando o arguido se veja privado da parte do seu vencimento que lhe garanta o
mínimo de subsistência?
Julgamos que não, e por isso julgamos que a doutrina acolhida nos acórdãos do
Tribunal Constitucional citados não é transponível. Se assim não fosse a pena de
demissão, por exemplo, deixando um funcionário público sem qualquer vencimento,
era sempre inadmissível, pois não lhe garantia o mínimo de subsistência. Do
mesmo modo, embora noutro domínio, uma pena de prisão não poderia ser aplicada
àqueles que, com o cumprimento de tal pena, deixassem de poder sustentar o seu
agregado familiar.
A garantia a uma existência condigna – a que alude o art. 59.°, a), da
Constituição –, ao referir-se ao direito à retribuição do trabalho não pode ter
o alcance pretendido pelo recorrente de o isentar de cumprir determinadas penas
disciplinares. Cabe no poder de conformação do legislador ordinário a ponderação
dos valores em conflito (direito à segurança social e punição disciplinar), e a
escolha que entenda adequada. A nosso ver só uma manifesta desadequação entre o
motivo invocado pelo legislador ordinário e a privação da pensão é
inconstitucional. Não é o caso da punição de faltas disciplinares, onde tal
punição se justifica por razões retributivas e preventivas. Trata-se, a nosso
ver, de um dos casos em que para assegurar um valor comunitário – a disciplina
funcional na relação de emprego público – se exige a compressão do direito a uma
certa parte da pensão de reforma.
Quando a lei admite a punição de infracções disciplinares, puníveis com a perda
de pensão, não está a descaracterizar o regime de segurança social. A haver
necessidade de protecção social de quem pela prática de actos ilícitos se vê
economicamente constrangido, não nos parece viável considerar inconstitucionais
as penas, nem limitá‑las à possibilidade económica dos arguidos ... A solução
há‑de ser encontrada pelo legislador, num outro plano normativo, garantido um
mínimo de subsistência nos termos em que o puder fazer, mas sem nunca pôr em
causa a aplicação das penas legalmente previstas.
Não é, finalmente, igual a situação de conflito entre o devedor e o credor e
entre o arguido que praticou um ilícito e a Administração, podendo o legislador,
nestes casos, tratar diferentemente as situações. A tensão entre a
regulamentação das sanções disciplinares e as implicações de tais penas no
mínimo de subsistência é diferente da tensão entre o direito do credor à rápida
satisfação do seu crédito e esse mínimo de subsistência. O Tribunal
Constitucional considerou desproporcional um pagamento mais rápido – isto é, uma
penhora em montante mais elevado –, quando dessa maior rapidez se ponha em causa
o mínimo de subsistência. Mas não podemos inferir daí, sem mais, a
intangibilidade do direito à pensão (ou de parte dela) como consequência de uma
sanção disciplinar.
Julgamos assim que andou bem o Acórdão recorrido ao não declarar a
inconstitucionalidade do art. 15.°, n.º 2 do Estatuto disciplinar.
Improcedem, deste modo, todas as conclusões do recorrente.»
2.No Tribunal Constitucional, o recorrente produziu alegações que concluiu do
seguinte modo:
«1.ª O presente recurso tem efeito suspensivo ex vi do disposto no art. 78.°/3
do Lei n.° 28/82 e dos art.s 102.° e 105.° da LPTA, pelo que deve ser corrigido
o efeito não suspensivo atribuído pelo STA no despacho de admissão do recurso de
constitucionalidade.
2.ª O n.º 2 do art. 15.° do DL n.° 24/84 é materialmente inconstitucional, por
violação do princípio da dignidade humana, do direito fundamental à retribuição
e do direito à segurança social e à protecção na velhice, consagrados nos art.s
1.°, 59.° e 63.º da Lei Fundamental, quando interpretado no sentido de permitir
a privação da totalidade da pensão de aposentação concedida a um funcionário ou
agente em consequência de punição disciplinar».
A entidade recorrida contra‑alegou, concluindo o seguinte:
«O n.º 2 do artigo 15.° do ED aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84 de 16 de
Janeiro, norma em que se fundamentou o despacho punitivo, ao impor a
substituição da pena de aposentação compulsiva pela de perda do direito à pensão
pelo período de três anos não ofende os preceitos constitucionais indicados pelo
recorrente.»
Inscrito o processo em tabela, e após mudança de relator, cumpre apreciar e
decidir.
II. Fundamentos
3.A norma que o recorrente submete à apreciação do Tribunal Constitucional – a
norma do artigo 15.º, n.º 2, do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes
da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84,
de 16 de Janeiro – prevê que para funcionários e agentes aposentados a pena
disciplinar de aposentação compulsiva (a segunda mais grave prevista nesse
Estatuto) seja substituída pela de perda do direito à pensão pelo período de
três anos.
Ora, o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre questão semelhante. Fê-lo
recentemente, no Acórdão n.º 442/2006, tirado na 3.ª Secção (publicado no Diário
da República, II Série, de 20 de Setembro de 2006, e disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), no qual, depois de se referir (tal como a
decisão ora recorrida) à jurisprudência do Tribunal sobre a
inconstitucionalidade de normas que permitem a penhora de rendimentos
provenientes de pensões sociais ou rendimentos do trabalho de montante não
superior ao salário mínimo nacional, afirmou o seguinte:
«[...]
10. A questão de constitucionalidade que está colocada nos presentes autos é,
porém, diferente da que foi objecto daqueles arestos. É que, neste caso, a
afectação da pensão de aposentação não resulta de um acto de penhora, visando a
satisfação coerciva de um direito de crédito não satisfeito voluntariamente pelo
devedor, traduzindo-se antes numa forma de pena disciplinar que visa punir uma
infracção da mesma natureza praticada pelo titular da pensão. Cabe, porém,
perguntar: uma vez que a aplicação da pena disciplinar de perda da pensão é
também ela susceptível de pôr em causa a possibilidade de satisfação das
necessidades básicas do respectivo titular, não valerão igualmente, não obstante
a diferença que se apontou no início, as razões que conduziram ao juízo de
inconstitucionalidade que naqueles arestos se formulou?
A esta questão há que responder negativamente. Com efeito, como se verá já de
seguida, além da diferença já assinalada entre as duas situações, outras existem
ainda que impedem que o juízo de inconstitucionalidade que se formulou em alguns
dos arestos supra referidos seja directamente transponível para a situação que
agora nos ocupa.
Vejamos.
10.1. Em primeiro lugar, verifica-se que, enquanto que a finalidade que a
penhora visa alcançar – a satisfação integral de um crédito não voluntariamente
satisfeito – não é, em circunstâncias normais, afectada, de modo definitivo,
pela impossibilidade de atingir uma parte – considerada necessária à garantia de
uma sobrevivência minimamente condigna – da pensão do respectivo titular –, uma
vez que, em princípio, o crédito poderá ser ainda integralmente satisfeito,
embora ao longo de um período de tempo mais dilatado –, as legítimas finalidades
de natureza repressiva e preventiva que fundamentam a pena disciplinar, ao
invés, seriam sempre, ao menos em parte, definitivamente prejudicadas pela
inaplicabilidade, decorrente de um eventual juízo de inconstitucionalidade da
norma que agora vem questionada. [...]
10.3. Acresce, finalmente, que mesmo naquelas hipóteses em que isso aconteça –
isto é, nos casos em que da aplicação do preceito cuja constitucionalidade vem
questionada resulte a privação do mínimo considerado indispensável à garantia de
uma sobrevivência minimamente condigna do pensionista – sempre este poderá
recorrer aos mecanismos assistenciais normais, previstos no ordenamento jurídico
português, para fazer face a situações de inaceitável carência social, fazendo
aí a prova da alegada situação de necessidade. Ora, estando disponíveis no
sistema mecanismos que visam, no limite, assegurar uma sobrevivência minimamente
condigna do pensionista, não se poderá concluir, no caso, ponderados os diversos
valores em presença, que fica violado o princípio fundamental da dignidade da
pessoa humana – “vector axiológico estrutural da própria Constituição”, como se
escreveu no acórdão n.º 306/2005, já citado.
11. Nestas circunstâncias, em face do que se expôs, resta apenas concluir, no
presente caso, pela não desconformidade constitucional da norma constante do
artigo 15.º, n.º 1, do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da
Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de
16 de Janeiro, na parte em que permite que aos funcionários e agentes
aposentados abrangidos por esse Estatuto possa ser aplicada, em caso de
infracção disciplinar, a pena de perda da pensão por tempo igual à pena de
inactividade que seria de aplicar não fora a situação de aposentação. [...]».
No Acórdão n.º 518/2006 (igualmente disponível em www.tribunalconstitucional.pt)
o Tribunal Constitucional teve ocasião de reiterar tal entendimento, concluindo,
após remissão para os fundamentos do citado acórdão n.º 442/2006, o seguinte:
«[…]
Na verdade, o julgamento desta questão distancia-se da solução encontrada quanto
à satisfação de um direito de crédito. Aqui, estamos em presença de uma pena
disciplinar que visa, dando satisfação a um interesse público, punir uma
infracção violadora de determinados deveres funcionais, ainda que praticada numa
situação de aposentação, na execução da qual é admissível que o arguido suporte
um incómodo que se repercuta nas suas condições de vida.
Por outro lado, mesmo no caso em que da aplicação da norma resulte a privação do
mínimo considerado indispensável à garantia de uma sobrevivência condigna,
sempre o interessado poderá recorrer aos mecanismos assistenciais previstos no
ordenamento jurídico, destinados a fazer face a situações de carência económica.
Havendo mecanismos que visam assegurar uma sobrevivência minimamente condigna do
cidadão, não poderá, com efeito, concluir-se que pela aplicação da questionada
norma fica violado o princípio da dignidade da pessoa humana, ou qualquer outro
previsto nos artigos 1.º, 19.º, 26.º, n.º 3, 59.º, n.ºs 1, alínea f), e 2,
alínea a), e 63,º da Constituição, como alega o recorrente.
Nestes termos, resta concluir pela não desconformidade constitucional da norma
constante do artigo 26.º n.º 1, alínea c), do Regulamento Disciplinar da Polícia
de Segurança Pública (RDPSP), aprovado pelo artigo 1.º da Lei n.º 7/90, de 20 de
Fevereiro, na parte em que permite que aos funcionários e agentes aposentados a
pena de demissão seja substituída pela perda do direito à pensão pelo período de
quatro anos.»
As considerações ora e supra transcritas são inteiramente aplicáveis ao presente
caso e, como tal, de observar (sendo, aliás, independentes da concordância que
possa, ou não merecer a jurisprudência a que se referem, na medida em que remete
como limite para a penhorabilidade para o limiar do salário). Cumpre, na
verdade, frisar que a substituição da pena disciplinar de aposentação compulsiva
pela de perda do direito à pensão pelo período de três anos só poderia provocar
a privação do “mínimo de sobrevivência” caso o funcionário punido não disponha
de outros rendimentos que lhe assegurem esse mínimo, e que mesmo então não fica
privado de recorrer aos mecanismos assistenciais gerais.
Nestas circunstâncias, apenas resta concluir pela que a norma constante do
artigo 15.º, n.º 2, do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da
Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de
16 de Janeiro, na parte em que prevê que para funcionários e agentes aposentados
a pena disciplinar de aposentação compulsiva seja substituída pela de perda do
direito à pensão pelo período de três anos não é inconstitucional, por
conseguinte se negando provimento ao recurso.
III. Decisão
Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 15.º, n.º 2, do
Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central,
Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, na
parte em que prevê que para os funcionários e agentes aposentados a pena
disciplinar de aposentação compulsiva seja substituída pela de perda do direito
à pensão pelo período de três anos;
b) Por conseguinte, negar provimento ao presente recurso e confirmar a
decisão recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita;
c) Condenar o recorrente em custas, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa
de justiça.
Lisboa, 17 de Janeiro de 2007
Paulo Mota Pinto
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues (vencido nos termos da
declaração anexa)
Maria Fernanda Palma (vencida nos termos de
declaração de voto junta).
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Embora com dúvidas, resolvi-as contra a tese que fez vencimento.
Não que não admita, em sede de princípio, como constitucional a solução legal de
substituição da pena disciplinar de aposentação compulsiva pela de perda do
direito à pensão pelo período de três anos, constante do n.º 2 do art.º 15.º do
Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro.
Ela justifica-se pelo interesse público do acautelamento do
cumprimento dos deveres funcionais dos trabalhadores, no caso dos trabalhadores
da função pública, sem o que não se torna possível o estabelecimento de qualquer
relação de emprego e de subordinação jurídica.
Em causa está, todavia, uma específica dimensão desse preceito,
nos termos da qual a aplicação dessa pena disciplinar, na relação de emprego
pública, é ainda permitida, mesmo que o trabalhador não tenha outros meios de
subsistência para além da pensão cuja perda é imposta por três anos.
Ora, nesta situação, não pode deixar de considerar-se que o
princípio da dignidade humana, erigido a elemento fundante do Estado de direito
democrático, que a República Portuguesa é (art.º 1.º da Constituição), e o
princípio da proporcionalidade apontam no sentido de não poder ser decretada a
perda da pensão na parte que vai além do mínimo para se sobreviver
condignamente.
Pela sua radicalidade axiológica, estes princípios demandam que
o trabalhador, ainda por cima normalmente depauperado da sua capacidade física
de ganho em razão da idade pressuposta para a aposentação voluntária (cf. art.º
37.º do Estatuto da Aposentação), não seja privado do mínimo de subsistência.
Dir-se-á, com o acórdão, que existem outros mecanismos
assistenciais, de segurança social, previstos no ordenamento jurídico que
poderão acautelar esse direito fundamental.
Mas este argumento esquece que a diferenciação do Estado entre
Estado empregador (art.º 47.º, n.º 2 da CRP), Estado garante do direito de
pensão consequente do tempo de trabalho prestado (art.º 63.º, n.ºs 2 e 4 da CRP)
e Estado subsidiariamente assistencial (n.º 3 do mesmo art.º 63.º) corresponde a
uma construção jurídica que assenta numa ficção de divisão da pessoa Estado em
função dos diferentes interesses, deveres ou funções materiais que prossegue.
Verificando-se uma situação em que o cidadão (funcionário
aposentado do Estado) fique sem meios de subsistência por força da aplicação da
pena de perda de pensão e sabido como é que o tempo de reacção ou de
funcionamento da dimensão assistencial do Estado não é coetâneo do momento da
aplicação da pena disciplinar, acaba por existir um lapso de tempo em que o
trabalhador fica totalmente desprotegido e sem meios de subsistência.
Em tal lapso de tempo de total carência, a pena de perda da
pensão, na parte que seja reclamada pela subsistência humana condigna, é
patentemente uma medida desproporcionada e como tal proibida pelo princípio do
Estado de Direito democrático (art.º 2.º da CRP).
De resto, nem se vê que essa separação material das funções do
Estado se afigure como necessária ou adequada para prosseguir aquele interesse
público que subjaz à previsão da pena disciplinar, com quebra deste outro dever
do Estado.
Benjamim Rodrigues
DECLARAÇÃO DE VOTO
Tendo sido a primeira relatora, propugnei a
inconstitucionalidade da norma constante do nº 2 do artigo 15º do Decreto-Lei
n.º 24/84, de 16 de Janeiro, que determina a substituição da pena disciplinar de
aposentação compulsiva pela de perda do direito à pensão pelo período de três
anos, tomando em atenção o seguinte:
1. O recorrente sustenta a inconstitucionalidade da norma, por violação do
princípio da dignidade humana, do direito à retribuição e do direito à segurança
social e à protecção na velhice, consagrada nos artigos 1º, 59º e 63º da
Constituição.
O Tribunal Constitucional apreciou, em diversos arestos, a conformidade à
Constituição de normas relativas à penhorabilidade de parte da pensão de
reforma, tendo concluído pela inconstitucionalidade da dimensão normativa que
não salvaguarde um mínimo de subsistência digna (cf. os Acórdãos nºs 232/91,
319/99, 449/91, e 177/02, entre outros). Tal orientação é, sem dúvida, relevante
para os presentes autos. Porém, nestes, não está em causa a penhorabilidade da
pensão, mas sim a sua supressão, supressão que consubstancia uma sanção
disciplinar.
Trata‑se, portanto, de um outro plano – o dos limites constitucionais dos
efeitos das sanções disciplinares.
A questão de constitucionalidade suscitada traduz‑se, assim, em saber se a
Constituição admite uma sanção disciplinar que se traduza na supressão total da
pensão de reforma por um período de três anos.
A sanção disciplinar pode, naturalmente, assumir uma dimensão patrimonial. Com
efeito, nenhum princípio ou norma constitucional impede que a consequência de
uma infracção disciplinar se repercuta directamente no património do infractor.
No entanto, se da sanção puder resultar que os meios de subsistência essenciais
não sejam assegurados a sanção afectará directamente as condições de
subsistência individual e familiar.
Deste modo, a característica essencial da sanção em causa, isto é, tratar‑se de
uma sanção que se traduz na privação da totalidade da pensão de aposentação por
um período contínuo de três anos (três anos, sublinhe‑se, fixos, sem qualquer
possibilidade de graduação em função da culpa ou das circunstâncias do caso)
assume uma dimensão pessoal que ultrapassa a natureza estritamente pecuniária
que à partida ostenta, afectando, como se disse, as condições mínimas de
subsistência do destinatário.
É verdade que o aposentado pode ser titular de outros rendimentos. No entanto,
não tendo sido considerada nos autos tal circunstância pelo Tribunal recorrido,
o Tribunal Constitucional não pode deixar de considerar a natureza da pensão de
aposentação e a sua função normal.
Assim, produzindo a sanção em causa um efeito nas condições básicas de vida do
condenado especialmente lesivo, a sua supressão por um período de três anos,
coloca o aposentado numa situação de privação, numa fase em que, em princípio,
já não tem condições para assegurar de outro modo a sua subsistência.
2. Por outro lado, a norma em causa visa substituir uma sanção de aposentação
compulsiva, quando o visado já adquiriu, entretanto, o estatuto de aposentado.
Desta sorte, ela ultrapassa desproporcionalmente, pela sua dimensão patrimonial
e pessoal, a sanção que substitui, pois, diferentemente da aposentação
compulsiva retira ao seu destinatário o direito à totalidade da pensão.
3. O tribunal a quo e a entidade recorrida invocam, porém, a sanção de
demissão, para demonstrar que a sanção de suspensão em causa é legítima.
Não está em causa, no entanto, nos presentes autos, a apreciação da conformidade
à Constituição de uma qualquer norma que consagre a sanção de demissão. Mas
sempre se dirá que os efeitos patrimoniais da sanção de demissão, ainda que
graves, resultam da verificação da extinção dos pressupostos de confiança e de
adequação do funcionário para o exercício da respectiva função que permitem a
subsistência do vínculo laboral. A demissão apenas se aplica com essa
justificação, sendo a supressão do vencimento pura consequência da extinção da
relação laboral. A suspensão da pensão aplica‑se a outro tipo de casos, como um
efeito patrimonial grave que visa prevenir ou reparar o dano disciplinar, em que
não está em causa a extinção de uma relação jurídica laboral. O sacrifício
patrimonial é a essência da sanção e o seu fim primordial, como meio de
reparação do dano provocado pelo ilícito. Deste modo, a afectação do mínimo das
condições de sobrevivência, em face da natureza da sanção (alternativa à
aposentação compulsiva) é excessivo, desproporcionado e desnecessário.
4. Em conclusão, consagrando a Constituição o princípio do respeito pela
dignidade da pessoa humana (artigo 1º) e o direito à segurança social (artigo
63º),
é incompatível com aquele princípio e com este direito a sanção que suprime
integralmente a pensão pelo período de três anos. Tal sanção permite,
contraproducentemente, a concretização plena dos efeitos que os dispositivos
constitucionais referidos visam evitar, já que nenhuma sanção (nem mesmo
penal – cf. a proibição de penas desumanas, constante do artigo 25º, nº 2, da
Constituição) pode traduzir‑se na condenação à sobrevivência sem meios
económicos.
Para além disso, sendo sanção alternativa à aposentação compulsiva, que não tem
essa intensidade patrimonial e pessoal, é desproporcionada, e viola no meu
parecer, o artigo 18º, nº 2, da Constituição.
Maria Fernanda Palma