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Procº nº 796/96.
2ª Secção. Relator:- Consº BRAVO SERRA.
I
1. Em processo comum com intervenção de juiz singular pendente pelo 2º Juízo Criminal do Tribunal de comarca de Guimarães e no qual foi demandada como parte civil a A., pretendeu a mesma, da sentença proferida em
11 de Julho de 1995 e que a condenou no pagamento de determinada indemnização, recorrer para o Tribunal da Relação do Porto.
Porém, como não tivesse pago no prazo a taxa de justiça a que se reporta o artº 192º do Código das Custas Judiciais, foi o recurso, por despacho de 27 de Outubro de 1995, dado sem efeito.
Desse despacho recorreu aquela seguradora para o Tribunal da Relação do Porto, sustentando, na respectiva motivação, a inconstitucionalidade da mencionada disposição do Código das Custas Judiciais.
A Relação do Porto, por acórdão de 9 de Outubro de 1996, negou provimento ao recurso, o que motivou que o Ministério Público e a A., tivessem interposto recurso para este órgão de fiscalização concreta da constitucionalidade normativa, tendo o primeiro impugnado aquele aresto ao abrigo da alínea g) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, e ponderando o decidido no Acórdão nº 575/96 do Tribunal Constitucional, e a segundo ao abrigo da alínea b) dos mesmos número e artigo.
2. Do recurso do Ministério Público não se tomou conhecimento por intermédio do Acórdão nº 150/97, proferido nestes autos.
Resta, assim, decidir do recurso interposto pela seguradora.
3. Na alegação que apresentou, formulou ela as seguintes conclusões:-
'1. A INCONSTITUCIONALIDADE DECRETADA POR VOSSAS EXCELÊNCIAS É EXTENSIVA AO PRESENTE RECURSO.
2. HÁ MANIFESTA VIOLAÇÃO DO PRINCIPIO DA IGUALDADE E TRATAMENTO DAS PARTES PORQUANTO NO DIREITO CIVIL NÃO É DEVIDO QUALQUER IMPOSTO OU TAXA DE JUSTIÇA E O RECURSO SOBE AO TRIBUNAL SUPERIOR SENDO A PARTE NOTIFICADA PARA O PREPARO.
3. A PARTE CIVEL, EM PROCESSO PENAL, É SEMPRE PREJUDICADA EM PROCESSO CRIME, PORQUANTO O TRATAMENTO É DIFERENCIADO EM MANIFESTA VIOLAÇÃO DO PRINCIPIO DA IGUALDADE DAS PARTES E DA DEFESA.
4. PELO QUE, NA PARTE CIVEL, O ARTIGO 192 DO CÓDIGO DAS CUSTAS JUDICIAIS TEM DE SER DECLARADO INCONSTITUCIONAL SOB PENA DE HAVER VIOLAÇÃO DO PRINCIPIO DA IGUALDADE.'
De seu lado, o Ministério Público rematou a sua alegação, na qual propugna por se dever julgar procedente o recurso, concluindo:-
'1º
Estabelecendo o artigo 74º, nº 3, do Código de Processo Penal uma equiparação legal entre o estatuto processual do arguido e do responsável meramente civil, demandado em processo de adesão, deverá este beneficiar tendencialmente das garantias de defesa concedidas ao próprio arguido, quando seja condenado na satisfação da pretensão indemnizatória contra ele deduzida.
2º Assim sendo, assente que ao arguido - condenado no âmbito da matéria penal - se não aplica o regime de irremediável deserção fiscal da instância de recurso, decorrente da norma constante do artigo 192º do Código das Custas Judiciais - sem que o mesmo seja notificado para o pagamento da taxa de justiça em dívida e da sanção patrimonial que lhe acresce - deverá tal regime aplicar-se reflexamente àquele demandado ou interveniente no enxerto cível.
3º A 'cisão' da norma constante do artigo 192º do Código das Custas Judiciais em dois segmentos ideais - um aplicável apenas ao arguido condenado quanto à matéria penal, outro aplicável aos restantes sujeitos do processo penal, incluindo as partes civis no processo de adesão - implica a quebra de uma originária igualdade das partes ou sujeito processuais, vigente no processo penal, sem que se encontre fundamento material bastante para impor àqueles sujeitos uma tão desproporcionada cominação ou preclusão, o que implica violação do princípio constitucional da igualdade, previsto no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.'
II
1. Por intermédio do Acórdão nº 575/96 (publicado na 2ª Série do Diário da República de 19 de Julho de 1996) - e outros que na sua esteira se seguiram - julgou este Tribunal, conquanto por maioria, inconstitucional a norma constante do artº 192º do Código das Custas Judiciais
'na medida em que prevê que a falta de pagamento, no tribunal a quo, no prazo de sete dias, da taxa de justiça devida pela interposição de recurso da sentença penal condenatória pelo arguido determina irremediavelmente que aquele fique sem efeito, sem que se proceda à prévia advertência dessa cominação ao arguido recorrente'.
Desse aresto, atenta a fundamentação ao mesmo carreada, podem extrair-se as seguintes ideias base:
a) Na sequência da jurisprudência da Comissão Constitucional (citando-se os Pareceres números 8/78 e 9/92 in Pareceres da Comissão Constitucional, 5º vol., 3 e segs, e 19º vol., 29 e segs., e o Acórdão nº 478, publicado no nº 327, 431 e segs., do Boletim do Ministério da Justiça) o Tribunal Constitucional, nos seus Acórdãos números 160/90, 209/90 e 409/94
(publicados, respectivamente, na 2ª Série do Diário da República de 11 de Setembro de 1990, no nº 398, 152 e segs., do citado Boletim, e naqueles jornal oficial e Série, de 5 de Setembro de 1994), entendeu que a norma constante do artº 192º do Código das Custas Judiciais só deveria ser tida por inconstitucional quando, por insuficiência de meios económicos, impedisse o seguimento da via de recurso aberta por lei;
b) A diversidade entre o regime prescrito naquela norma e o regime constante do artº 187º (que remete para o artº 110º, nº 1, este e aquele também do Código das Custas Judiciais), por si só, não poderia ser perspectivada como ofensiva do princípio da igualdade, 'pois que não se trata de uma diferenciação discriminatória ou arbitrária, mas objectivamente justificada', dado que tal artigo se reporta ao pagamento de taxas de justiça devidas pela distribuição do recurso no tribunal superior e não ao pagamento de uma taxa de justiça devida pela interposição de recurso no tribunal a quo, o que significava tratar-se de situações distintas justificadoras de tratamento diferenciado;
c) Quanto à questão de saber se a norma do artº 192º do C.C.J. se não apresenta como excessiva no tocante à limitação do princípio de harmonia com o qual devem ser asseguradas todas as garantias de defesa, não seria por via de um 'paralelismo com o regime estipulado no processo civil que se fundamentará qualquer pretensão de excessiva sanção ou cominação processual, mas antes pela lógica e princípios intrínsecos ao processo penal, ou seja, concretamente, pela aplicação prática do artigo 32º da Constituição, naquilo que ele tem de vinculativamente orientador para o legislador';
d) Um tal princípio, que há-de postular que o 'Estado assegure aos cidadãos uma protecção e segurança efectivas perante o exercício do jus puniendi', compreendia necessariamente no seu núcleo o direito ao recurso das sentenças penais condenatórias, direito este que, todavia, se se não podia configurar como absoluto ou ilimitado - o que redundava em que o seu conteúdo podia, de modo mais ou menos amplo, ser tratado pelo legislador ordinário -, pressupunha um 'duplo grau de jurisdição no caso de sentenças penais condenatórias em matéria penal, para garantir que o arguido tenha à sua disposição de forma eficaz e efectiva, todas as garantias de defesa';
e) Não se vislumbrava existir 'interesse constitucionalmente relevante que possa justificar uma tão acentuada compressão do direito ao recurso da decisão penal condenatória' como aquele que advinha da norma do artº 192º, ao determinar que, sem que o arguido fosse previamente advertido, a falta de pagamento da taxa de justiça implicava ficar o recurso daquela decisão irremediavelmente sem efeito.
2. Verifica-se, assim, que o juízo de inconstitucionalidade levado a efeito no Acórdão nº 575/96 repousou unicamente na circunstância de a norma então em apreciação - na parte em que não prevê que se faça ao arguido, condenado por sentença numa determinada pena criminal e que dela pretenda recorrer, a advertência da cominação resultante do não pagamento, em prazo, da taxa de justiça devida pela interposição de recurso - limitar excessivamente as garantias de defesa que defluem do artigo 32º da Lei Fundamental.
Isso conduz, pois, ao entendimento de que, se se tratasse de uma sentença condenatória de carácter não penal, diferente seria a solução a que chegaria o Tribunal no aludido aresto. Assim, e por exemplo, estando em causa uma decisão condenatória de natureza cível e se, por hipótese, o respectivo regime de recurso, no tocante à taxa de justiça devida pela respectiva interposição, tivesse de obedecer a uma norma de teor semelhante ao do artº 192º, certamente a falta de advertência da «parte» condenada não conduziria a um juízo de inconstitucionalidade em nome das garantias de defesa
ínsitas no citado artigo 32º.
O que significa que a argumentação em que se sustentou o mencionado Acórdão não poderia, por si e no exemplo dado, servir para sustentar um eventual juízo de inconstitucionalidade.
3. A questão, contudo, deve colocar-se aqui de um prisma diferente.
Não se perfilha o entendimento - que se supõe ser perfilhado na alegação do Ministério Público - segundo o qual há que ponderar que, tratando-se de um «processo de adesão», em que a responsabilidade civil é conexa com a criminal, e em que se 'visa essencialmente ressarcir direitos do ofendido, atingidos em consequência de uma infracção criminal', seria
'incompreensível a subsistência de obstáculos formais à efectivação dos direitos do lesado, mais intensos do que os que estão genericamente estabelecidos quando se trata de efectivar puras pretensões civis, em processo autónomo, sem qualquer conexão com a prática de um crime'.
Na verdade, uma tal postura neste particular passa em claro, desde logo, que é possível a instauração de uma acção de natureza cível visando o ressarcimento de prejuízos decorrentes da prática de actos ilícitos de natureza criminal (cfr., por entre o mais, o artº 72º do Código de Processo Penal).
De outro lado, igualmente se não perfilha o entendimento
- que, de idêntica sorte, se supõe ser o perfilhado pelo Ministério Público - que repousa no facto de a lei processual penal consagrar um equiparação legal entre o arguido e o responsável civil demandado no processo criminal.
Na realidade, não foi seguramente com base nas garantias conferidas ao arguido pela lei processual penal que o juízo de inconstitucionalidade detectado no Acórdão nº 575/96 se baseou, mas sim, e como
é óbvio, nas garantias que a Constituição lhe confere quanto ao processo penal e que hão-de servir como algo de vinculante para o legislador ordinário.
Por fim, também se não acolhe a óptica segundo a qual não seria fácil vislumbrar a 'sobrevivência' do segmento ideal da norma do artigo 192º do Código das Custas Judiciais, que subsistiria após o julgamento de inconstitucionalidade da jurisprudência constitucional firmada na sequência do referido Acórdão nº 575/96'.
É que, o juízo de desconformidade que foi efectuado pelo dito aresto certamente incidiu sobre um «segmento ideal» da norma em análise; segmento esse que se reporta aos casos em que está em causa uma sentença na parte em que impõe uma condenação criminal e um recurso dela interposto pelo arguido. A «sobrevivência» da norma, afora esse «segmento ideal», ainda teria justificação - caso não houvesse, sobre ela, qualquer juízo de inconstitucionalidade - para os casos de sentença não impositora de condenação criminal e de não ser recorrente o arguido que sofreu imposição de pena.
3.1. Neste contexto, e como já se disse, a questão em apreço haverá que ser posta num outro prisma. Reside ele, justamente, em saber se, conferindo a lei processual penal ao demandado civilmente uma posição processual idêntica à do arguido (conquanto - vide artº 74º, nº 3 - tão só quanto à sustentação e à prova das questões civis julgadas no processo), se justificava ou, se se quiser, haveria razões com fundamento bastante para, depois do juízo de inconstitucionalidade operado pelo Acórdão nº 575/96, dar um tratamento diferente ao demandado e tendo como foco a norma em crise, sob pena de, dando-se esse diverso tratamento, se violar o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição.
E é sobre este ponto que se irão tecer algumas considerações.
3.2. É que, tendo por referência o princípio da igualdade - que é aquele em que se alicerça o Ministério Público para concluir pela inconstitucionalidade - entende o Tribunal que este não haverá, no caso em apreço, de se ter por violado.
Efectivamente, são realidades necessariamente diferentes
- e, no que agora releva, para efeitos de garantias constitucionalmente consagradas - os direitos que, em nome delas, devem ser conferidos em processo penal aos arguidos (e que, vinculativamente, se hão-de impôr ao legislador ordinário) e aos demais intervenientes nesse processo, nomeadamente os responsáveis meramente civis que, por essa qualidade, são «demandados em adesão». Para estes não visou o legislador constituinte erigir garantias de defesa em processo penal, sendo que, de todo o modo, isso não é, nem pode ser, obstáculo a que o legislador ordinário, no exercício da sua liberdade de conformação normativa, possa, se o entender, dar àqueles responsáveis um
«estatuto» semelhante ao que detém o arguido (cfr. Acórdão deste Tribunal nº
611/94 no Diário da República, 2ª Série, de 5 de Janeiro de 1995).
E, neste particular, há que realçar que, de todo o modo, a pretensa «equiparação» ou «identidade» processual que se extrai do teor do nº
3 do artº 74º do Código de Processo Penal não pode ter uma abrangência tal que imponha semelhantes juízos de compatibilidade constitucional como aqueles que venham a ser formulados (ponderando as garantias de defesa do arguido em processo criminal) quanto às condicionantes fiscais tocantes à interposição de recurso (aquela norma, de facto, apenas comanda uma «identidade» entre a posição processual do arguido e a do demandado civilmente quanto à sustentação e à prova das questões civis julgadas no processo).
III
Em face do que vem de ser exposto, nega-se provimento ao recurso. Lisboa, 19 de Março de 1997 Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca Luís Nunes de Almeida