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Processo n.º 175/05
1.ª Secção Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. e mulher, B., deduziram reclamação do despacho do Conselheiro Relator que, no Supremo Tribunal de Justiça, não admitiu o recurso que pretendiam interpor para o Tribunal Constitucional.
2. Resulta dos autos que:
2.1. No Tribunal de Círculo de Braga, C. e marido, D., e E. intentaram, em Janeiro de 1999, contra A. e mulher, B., acção declarativa comum, na forma ordinária (posteriormente remetida para o Tribunal Judicial da Póvoa do Lanhoso), pedindo: se decrete a anulação do testamento outorgado por F. em 10 de Outubro de 1996, no 2º Cartório Notarial de Guimarães; se determine a repristinação do testamento outorgado por F. em 15 de Março de 1994, no Cartório Notarial da Póvoa do Lanhoso; se condenem os Réus a restituir de imediato à massa da herança aberta por óbito de F. todos os bens e direitos, móveis e imóveis, incluindo quantias em dinheiro, que estão a deter em virtude do referido testamento de 10 de Outubro de 1996.
Em 23 de Novembro de 2000, foi proferida sentença que julgou a acção totalmente procedente (fls. 142 e seguintes).
2.2. Os Réus A. e mulher não se conformaram e interpuseram recurso de apelação, mas o Tribunal da Relação do Porto negou provimento ao recurso, confirmando inteiramente a decisão da 1ª instância (acórdão de 8 de Maio de
2001, fls. 227 e seguintes). Interposto recurso de revista e determinada pelo Supremo Tribunal de Justiça a remessa dos autos ao Tribunal da Relação do Porto para que se pronunciasse sobre questão cujo conhecimento havia sido omitido, foi proferido novo acórdão, em que a Relação negou provimento à apelação e confirmou a sentença recorrida (acórdão de 29 de Abril de 2003, fls. 331 e seguintes).
2.3. Mais uma vez inconformados, os Réus interpuseram recurso de revista, a que o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento (acórdão de 25 de Março de
2004, fls. 368 [428] e seguintes).
2.4. Tendo sido pedida por A. e mulher a aclaração do acórdão, foi tal pedido indeferido (acórdão de 17 de Junho de 2004, fls. 395 [455] e seguintes).
2.5. Vieram então A. e mulher “arguir nulidades e invocar a inconstitucionalidade do decidido” (fls. 400 [460] e seguintes), afirmando, na parte que agora importa considerar:
“[...] O acórdão sustenta que para que o testamento seja anulável «não há qualquer exigência de que seja conhecida» (a incapacidade do testador) «por um declaratário que não há, ou que seja cognoscível (porquanto essa cognoscibilidade traz em si, ainda e em última análise, a ideia de fazer recair sobre o declaratário que não conheceu mas podia conhecer a mesma sanção da anulabilidade – do negócio – que recai sobre aquele que conhece)». Ora, ocorre que sobre esta matéria há jurisprudência divergente deste Supremo Tribunal de Justiça produzida no domínio da mesma legislação. De facto, o acórdão do STJ de 25/2/2003 (in Col. Jur. STJ 2003, 1, 109) decidiu que, referindo-se a um testamento
«Não se exige, no regime de incapacidade acidental decorrente do artigo 2199º do Código Civil, contrariamente ao que determina o art. 257° do mesmo Código, que os factos respectivos sejam notórios ou conhecidos do beneficiário, pois que não há que proteger as expectativas deste, mas antes que preservar a liberdade e a vontade real do testador». E o acórdão do STJ de 21/3/1995 (in Col. Jur. STJ 1995, Ano III, 1, pág. 130) decidiu que, referindo-se a uma doação
«A declaração negocial feita por quem, devido a qualquer causa, se encontrava acidentalmente incapacitado de entender o sentido dela ou não tinha o livre exercício da sua vontade, desde que o facto seja notório ou do conhecimento do declaratário, é anulável». Disposição testamentária ou doação são para o efeito actos da mesma natureza, por terem carácter gratuito – e em relação a ambos se pode dizer que só há que atender ao interesse de quem dispõe e não ao de quem é beneficiário. Estabelece o n.° 2 do artigo 732° A do Código de Processo Civil que o julgamento ampliado de revista deve ser sugerido pelo relator, por qualquer dos adjuntos ou pelo presidente das secções cíveis, designadamente quando verifique a possibilidade de vencimento de solução jurídica que esteja em oposição com jurisprudência anteriormente firmada no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito. E embora se não ignore que se vem entendendo que as partes não podem sindicar o não uso deste normativo pelas pessoas nele nomeadas, afigura-se não ser essa a doutrina mais correcta, como resulta do elemento literal extraído do modo como o texto está redigido. De facto, aí se diz que qualquer das partes ou o Ministério Público podem requerer julgamento alargado, enquanto em relação ao relator, aos adjuntos ou ao presidente das secções cíveis se diz que devem sugerir tal julgamento. E se devem, nem a lei lhes concede uma simples faculdade, a exercitarem ou não conforme o seu critério pessoal e discricionário, nem as partes podem estar impedidas de provocarem que quem deve sugerir, sugira, de facto. A ser assim, no caso sub judice, deveria ter sido determinado o julgamento pelas secções reunidas, por iniciativa de qualquer das pessoas a quem aquele inciso legal impôs aquele dever. Não tendo tal julgamento sido assim efectuado, pronunciou-se o tribunal de revista sobre questão de que não podia tomar conhecimento, enfermando o acórdão produzido, a nosso ver, da nulidade a que se refere o art. 668° n.° 1, alínea d) do Código de Processo Civil. Acresce que, segundo supomos, a tese segundo a qual o n.° 2 do citado art. 732° A não impõe aos julgadores o recurso ao julgamento ampliado de revista e o não uso deste não é sindicável pelos interessados contraria a regra constitucional
ínsita no n.° 1 do art. 20° da Constituição, por recusar aos interessados o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. Assim sendo, tal interpretação dada ao n.° 2 do art. 732° A do Código de Processo Civil é inconstitucional, pelo que o tribunal devia recusá-la.
[...].”.
2.6. O Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 9 de Dezembro de 2004, decidiu indeferir o requerido (fls. 421 [481] e seguintes).
Lê-se nesse acórdão, para o que aqui releva:
“[...]
[...] a verdade é que nem as partes, designadamente os recorrentes, nem o M.P., que podiam requerer o julgamento ampliado, o fizeram. Nem mesmo agora, quando requerem o que requerem, os requerentes apontam a jurisprudência firmada – firmada, repete-se! – que o acórdão recorrido põe em causa.
[...] Se alguma questão de inconstitucionalidade se coloca ou se colocou, não é este o caminho processual próprio para dela conhecer (se caminho tiver sido aberto).
[...].”
2.7. Notificados deste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, A. e mulher pretenderam recorrer para o Tribunal Constitucional, em 21 de Dezembro de 2004, através do requerimento de fls. 427 [487], assim redigido:
“[...] notificados dos acórdãos produzidos nesta instância, porque com os mesmos se não podem conformar, vêm interpor recurso para o Tribunal Constitucional. Termos em que requerem seja o recurso recebido seguindo-se os demais termos.
[...].”.
2.8. Por despacho do Conselheiro Relator, foram os recorrentes notificados, ao abrigo do disposto no artigo 75º-A, n.º 5, da Lei do Tribunal Constitucional, para “cumprir as indicações exigidas por essa mesma disposição legal” (fls. 430
[490]).
2.9. Os recorrentes responderam através do requerimento de fls. 431 [491] e seguinte:
“[...] a) O recurso vem interposto de normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo, na interpretação que as instâncias lhe deram (art. 70° n.° 1 b) da LTC); b) No processo os recorrentes suscitaram a inconstitucionalidade da interpretação dada aos arts. 732° A e 668° n.° 1 d) do Código de Processo Civil e 257° do Código Civil e provocaram a exaustão dos meios recursórios ordinários, nos termos a que a eles alude o art. 70°, n.° 2 da Lei 28/82 de 15 de Novembro; c) Tais normas, interpretadas como o foram, são manifestamente desconformes com a lei constitucional (art. 2°, 3°, 20°, 202° n.° 1 e 2, 205° e 20° da Constituição);
[...].”.
2.10. O Conselheiro Relator, no Supremo Tribunal de Justiça, decidiu não admitir o recurso para o Tribunal Constitucional (despacho de 27 de Janeiro de
2005, a fls. 435 [495]), fundamentando assim a sua decisão:
“Dispõe o n.º 2 do art. 72º da Lei do Tribunal Constitucional que os recursos previstos nas als. b) e f) do n.º 1 do art. 70º só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade de modo processualmente adequado perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos deste estar obrigado a dela conhecer. E não foi o caso. Como os próprios recorrentes afirmam «as questões em causa foram suscitadas perante o tribunal a quo, após o surpreendente julgamento de revista». Após o julgamento de revista; logo, após o momento em que este tribunal estava obrigado a conhecer as questões. E confirmou o acórdão recorrido. Consequentemente, o recurso é inadmissível e... não se admite.
[...].”.
2.11. A. e mulher vieram deduzir reclamação do despacho de não admissão do recurso para o Tribunal Constitucional, invocando o disposto nos artigos 688º e
689º do Código de Processo Civil, com os seguintes fundamentos (fls. 2 dos presentes autos de reclamação):
“[...] Perante o STJ e em requerimento que argui a nulidade do acórdão produzido suscitou-se a questão de o próprio STJ no seu referido acórdão não ter cumprido o n.° 2 do art. 732° A do Código de Processo Civil, violando-se, por isso, e com essa decisão – não com as que a precederam – o art. 20° n.° 1 e 4° da Constituição. Imediatamente após a inesperada omissão do STJ, os recorrentes arguiram a nulidade da mesma e a sua inconstitucionalidade. Seria possível – sem dotes de prognose – adivinhar antes da decisão que nela o STJ ia violar aqueles normativos legais e constitucionais? Não era, como é óbvio – e o recurso é, pois, admissível e deve ser admitido
[...] pois não é de exigir a ninguém que antecipe a arguição da inconstitucionalidade de normas processuais em que se funda a decisão. Termos em que deve revogar-se o despacho recorrido, ordenando-se o recebimento do recurso [...].
[...].”.
2.12. O Conselheiro Relator, no Supremo Tribunal de Justiça, determinou a remessa dos autos ao Tribunal Constitucional, incluindo o processo principal
(fls. 7).
3. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional emitiu parecer (fls. 8 v.º), do seguinte teor:
“A presente reclamação é manifestamente improcedente. Na verdade, o decidido pelo Supremo não constitui obviamente «decisão-surpresa» que, pelo seu carácter insólito e imprevisível, fosse susceptível de dispensar o recorrente do ónus de suscitação das questões de constitucionalidade «durante o processo», já que o entendimento seguido quanto à faculdade de oficiosamente se sugerir a utilização do mecanismo processual da «revista ampliada» corresponde a jurisprudência reiterada do STJ; e, deste modo, se o recorrente pretendia questionar a constitucionalidade de tal entendimento, podia e devia ele próprio, ter requerido tal forma de julgamento do recurso, aí deduzindo as questões de constitucionalidade que tivesse por pertinentes e adequadas, como lhe é permitido pela primeira parte do n.º 2 do art. 732º-A do CPC.”
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. Os ora reclamantes interpuseram recurso para este Tribunal, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, “dos acórdãos produzidos” no Supremo Tribunal de Justiça,
“porque com os mesmos não se podem conformar”.
Através de tal recurso, pretendiam os ora reclamantes que o Tribunal Constitucional apreciasse a inconstitucionalidade das normas dos artigos 732°-A e 668°, n.° 1, alínea d), do Código de Processo Civil e 257° do Código Civil, pois, em sua opinião, “tais normas, interpretadas como o foram, são manifestamente desconformes com a lei constitucional (art. 2°, 3°, 20°, 202° n.°
1 e 2, 205° e 20° da Constituição)”.
O Conselheiro Relator no Supremo Tribunal de Justiça não admitiu o recurso por entender que os recorrentes não cumpriram o ónus de suscitar a questão da inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer, uma vez que “como os próprios recorrentes afirmam «as questões em causa foram suscitadas perante o tribunal a quo, após o surpreendente julgamento de revista»”, isto é, “após o julgamento de revista”, ou seja, “após o momento em que este tribunal estava obrigado a conhecer as questões” (supra, 2.10.).
Na reclamação deduzida, os reclamantes vêm invocar: que “perante o STJ e em requerimento que argui a nulidade do acórdão produzido suscitou-se a questão de o próprio STJ no seu referido acórdão não ter cumprido o n.° 2 do art. 732° A do Código de Processo Civil, violando-se, por isso, e com essa decisão – não com as que a precederam – o art. 20° n.° 1 e 4° da Constituição”; que “imediatamente após a inesperada omissão do STJ, os recorrentes arguiram a nulidade da mesma e a sua inconstitucionalidade”; e que não lhes teria sido possível “adivinhar antes da decisão que nela o STJ ia violar aqueles normativos legais e constitucionais” (supra, 2.11.).
5. Antes de mais, importa esclarecer que, na reclamação deduzida, os ora reclamantes apenas se referem ao recurso que pretendiam interpor para o Tribunal Constitucional para apreciação da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 732º-A, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Daqui resulta que não vem impugnado o despacho proferido no Supremo Tribunal de Justiça na parte em que considerou inadmissível o recurso para apreciação da inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 668°, n.° 1, alínea d), do Código de Processo Civil e 257° do Código Civil. Consequentemente, tal despacho transitou em julgado quanto a essa parte.
O objecto da presente reclamação cinge-se portanto à decisão de não admissão do recurso para o Tribunal Constitucional quanto à norma do artigo
732º-A, n.º 2, do Código de Processo Civil.
6. Não têm porém razão os reclamantes.
Em primeiro lugar, verifica-se que a questão identificada pelos ora reclamantes se prende essencialmente com o problema de saber se deveria ter sido aplicado no caso dos autos o artigo 732º-A, n.º 2, do Código de Processo Civil, mediante sugestão do próprio relator.
Tal pretensão, dizendo respeito à determinação das normas do direito infraconstitucional – no caso, das normas de direito processual – aplicáveis pelo Supremo Tribunal de Justiça na decisão do recurso que lhe havia sido submetido, excede obviamente a competência do Tribunal Constitucional, que, no tipo de recurso de constitucionalidade interposto pelos ora reclamantes, se limita à apreciação da conformidade constitucional das normas efectivamente aplicadas pelo tribunal a quo na decisão recorrida.
Como decorre do que acaba de se referir, a norma do artigo 732º-A, n.º 2, do Código de Processo Civil não foi aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça e não cabe ao Tribunal Constitucional decidir se estavam ou não verificados no caso os pressupostos de que tal disposição faz depender o julgamento ampliado da revista.
Acresce que os reclamantes não suscitaram, de modo processualmente adequado, a inconstitucionalidade da norma que pretendem ver apreciada por este Tribunal e, no caso dos autos, não poderiam considerar-se os então recorrentes dispensados do ónus de suscitar tais questões perante o tribunal recorrido, tendo em conta as circunstâncias do processo e considerando a jurisprudência do Tribunal Constitucional neste domínio.
Na verdade, a decisão do Supremo não constitui “decisão-surpresa” que, pelo seu carácter insólito ou imprevisível, fosse susceptível de dispensar os recorrentes do ónus de suscitar a questão de inconstitucionalidade “durante o processo”, no sentido que o Tribunal Constitucional tem atribuído a esta exigência constitucional e legal.
Como sublinha o Senhor Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, “o entendimento seguido quanto à faculdade de oficiosamente se sugerir a utilização do mecanismo processual da «revista ampliada» corresponde a jurisprudência reiterada do STJ”.
Assim, se os recorrentes pretendiam questionar a conformidade constitucional de tal entendimento, podiam e deviam eles próprios ter requerido tal forma de julgamento do recurso, como lhes é permitido pela primeira parte do n.º 2 do artigo 732º-A do Código de Processo Civil, aí deduzindo as questões de inconstitucionalidade que considerassem pertinentes e adequadas.
Não o tendo feito, há que concluir que os ora reclamantes não cumpriram o ónus de invocação da questão de inconstitucionalidade “durante o processo”, tal como exigem os artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional.
7. Não estando verificados, no caso em apreço, os pressupostos processuais estabelecidos na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – a disposição invocada como fundamento do recurso pelos ora reclamantes –, não é admissível o recurso interposto.
Tanto basta para concluir que a reclamação tem de ser indeferida.
III
8. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em vinte unidades de conta.
Lisboa, 30 de Março de 2005
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos